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quinta-feira, 4 de março de 2010

Guiné 63/74 - P5930: Notas de leitura (73): Gadamael, de Carmo Vicente (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52,Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Março de 2010:

Queridos amigos,
Confesso que fiquei muito impressionado com a leitura dos relatos do 1.º Sargento Carmo Vicente, um pára-quedista zangado com meio mundo, é uma escrita sem perdão e sem reconciliação.
São relatos do início dos anos 80, porventura o tempo já sarou algumas cicatrizes mais profundas.

Um abraço do
Mário


Com zanga, desalento e contas a ajustar

Beja Santos

“Gadamael” (Edições Ró, 1982) é uma colectânea de relatos de Carmo Vicente, 1º sargento pára-quedista que cumpriu três comissões de serviço na Guiné e Moçambique. Mobilizado pela primeira vez como soldado, acabou por chegar em 1973 à situação de 1º sargento, no comando de um pelotão, precisamente em Gadamael.

Estes relatos não pretendem disfarçar a muita zanga que Carmo Vicente guardou dos homens e da guerra. Não esconde nomes de militares que sinceramente passou a detestar; não esconde a admiração pelos guerrilheiros destemidos, mostra como um quase adolescente ganha gosto pelo sangue e sente-se tentado à bestialidade. São relatos chocantes, incómodos, implacáveis. Pergunta-se se este homem não quer perdoar e escreveu mesmo para desassossegar todos aqueles com quem combateu, transformando a sua visão da guerra numa acusação de toda a guerra, incompatibilizando-se com tudo e todos. Como se passa a analisar.

Tudo começa no baptismo de fogo, à partida previa-se um simples treino operacional, na região de Mansoa. Depois de muita canseira na progressão nocturna, montou-se uma emboscada perto de um trilho inimigo; ao amanhecer, quem emboscava foi surpreendido pelo ataque inimigo. O comandante da companhia incitava-os a agarrarem os turras à mão e alguém lhe gritou: “Apanha-o tu, meu herói de merda!”. Findo o tiroteio, havia dois feridos bastante graves, descobriu-se que o furriel Branco e os seus homens andavam perdidos pela mata, demorou a estabelecer o contacto e a junção das forças. Tratava-se de um baptismo de fogo em que os pára-quedistas descobriam que os guerrilheiros eram muito diferentes daquilo que lhes tinham dito os instrutores. O comandante do batalhão, tenente-coronel Costa Campos exigiu-lhes que voltassem ao terreno e recolhessem o material ali deixado. De novo na zona do tiroteio da véspera, encontraram rastos de sangue de um guerrilheiro que, acabaram por verificar, tinha uma rótula esfacelada. O guerrilheiro pediu clemência, o comandante da companhia prometeu-lhe evacuação desde que ele se mostrasse disposto a colaborar, o ferido recusa. O capitão decreta a sentença de morte, quinze dias depois um soldado pára-quedista exibia, triunfante, duas orelhas humanas dentro de um frasco de compota.

Segue-se a “batalha de Bissau” que ocorreu durante um campeonato de andebol de sete, entre a UDIB e a ASA Clube. Havia duas claques, a primeira, composta pelos civis e alguns marinheiros, era apoiada pelos fuzileiros e por todo o pessoal da Armada; e a segunda, inteiramente formada por militares da Força Aérea, com destaque para os pára-quedistas. Segundo Carmo Vicente páras e fuzileiros eram amigos, mas na ocasião quiseram provocar-se mutuamente. Porquê, fica-se sem se saber. No BCP 12 todo o pessoal foi dispensado para poder assistir ao encontro e apoiar a equipa. Durante o encontro, boinas verdes e boinas negras apoiaram ruidosamente as suas equipas. Súbito, começaram os incidentes e cerca de 400 militares envolveram-se num corpo a corpo incontrolável, derrubaram-se as portas do recinto, a luta generalizou-se pelas ruas da cidade, tudo à cinturada, murro e pontapé. Parecia que os fuzileiros batiam em retirada quando de um prédio em construção saíram seis fuzileiros armados de G3 e de granadas de mão, começando a disparar indiscriminadamente. Dois pára-quedistas ficaram ali mortos. Para Lisboa transmitiu-se às famílias que tinham morrido num acidente com armas de fogo.

Carmo Vicente denuncia constantemente uma cadeia de comando autoritária, chefes incompetentes, cruéis, construtores de operações insensatas. Fala da crueldade e exemplifica com o soldado Queirós, um jovem que embruteceu em pleno teatro de combate. Tinham regressado exaustos da região da Coboiana, uma operação mal sucedida graças à resistência dos homens de Nino. Mal chegados, recebem ordens para voltar a sair. Foi uma duríssima progressão pela mata até chegar a uma tabanca, o dia começava a clarear. O capitão ordenou o assalto fulminante. A ordem era prender toda a gente e disparar sobre quem tentasse fugir. Acabou tudo num pandemónio: a população fugia aterrorizada, os soldados descontrolaram-se, transformaram-se máquinas de matar, parece que só tinham retido no ouvido a ordem de matar quem tentasse fugir. É nisto que o soldado Queirós, apontador de morteiro 60 e utilizador de uma pistola Walther começou a disparar sobre os fugitivos. Um ferido, deitado no chão, parecia pedir clemência, Queirós, abateu-o a frio. Interpelado por Carmo Vicente, Queirós respondeu que nada fizera de mal, era só uma experiência para ver se as balas da pistola furavam um gajo de lado a lado…

E assim chegamos a Gadamael Porto. Vejamos como ele descreve os acontecimentos:

“Quando em Abril de 1973 cheguei a Gadamael, integrado na companhia de caçadores pára-quedistas nº 122 toda a população tinha fugido para o mato, no quartel haviam ficado apenas os militares que constituíam a força ali destacada. Ali passámos os quarenta mais longos dias das nossas vidas. A minha companhia tinha regressado de uma missão de combate que durara três meses. Em Caboxanque e Cadique tínhamos sofrido alguns mortos e feridos enquanto fazíamos a protecção dos trabalhadores que construíam a nova estrada asfaltada entre Cadique e Jemberém. Uma distância de pouco mais de trezes quilómetros que nos ficou à razão por um morto por quilómetro. Encontrávamo-nos terrivelmente cansados, depois daqueles três meses de mato e esperávamos descansar. Porém, não era o que pensava o nosso comandante de batalhão. Ele tinha passado os últimos três meses em Bissau e Cufar, fazendo a guerra com umas cervejas frescas na frente, bebendo à medida que ia estudando os mapas… não vale a pena perder tempo a demonstrar a estupidez militarista deste homem. Não era o único, havia-os ainda piores do que ele. Existiram na guerra colonial centenas de comandantes iguais que se guindaram à custa do sangue, do suor e das lágrimas dos homens que comandavam… O comandante do BCP 12 tinha oferecido os pára-quedistas a Spínola, talvez na mira de apanhar mais algumas armas, mesmo que para isso tivesse que sacrificar a vida dos homens que comandava”. Depois do trajecto entre Bissau e Cacine, feito de noite, com todas as luzes apagadas, ainda longe do objectivo, ouvia-se nitidamente o bombardeamento a que Gadamael estava a ser sujeito, graças às armas pesadas do PAIGC. É assim que Carmo Vicente apresenta a situação: todo o quartel e aldeamento estavam praticamente destruídos, apenas um ou dois edifícios ainda se mantinha teimosamente de pé. Os bombardeamentos continuavam, toda a gente nas valas. Encolhidos dentro das valas, os militares procuravam não deixar nenhuma parcela do corpo à vista. Os vários feridos graves eram evacuados para Cacine em botes de borracha ou sintex. Competia também aos páras fazer alguns patrulhamentos à volta do quartel, e foi num desses patrulhamentos que a menos de 200 metros do arame farpado a unidade do Carmo Vicente sofreu uma grande emboscada, cerca de 45 minutos de um dilúvio de metralha. O rescaldo foi 18 feridos graves. Noutras circunstâncias, houve que apoiar forças do Exército que estavam a ser emboscadas. Ele conta que houve um caso em que saíram das valas para ajudar um pelotão que tinha sido atacado e encontraram três soldados e um alferes com os rostos parcialmente desfeitos por rajadas disparadas à queima-roupa. Carregaram os mortos às costas e é nisto que começou o novo bombardeamento e o soldado pára, de nome Costa, que carregava o cadáver do alferes, atirou-se para o chão, tendo ficado embrulhado num morto que o cobriu de sangue. Quando viu aquelas pastas de sangue coagulado, perdeu as estribeiras, parecia enlouquecido e teve de ser evacuado. Descreve que o estado de espírito das tropas era de tal maneira baixo que quando apareceram os botes com os fuzileiros para evacuar os mortos foram literalmente assaltados por uma avalanche de fugitivos que queriam sair daquele inferno. Surgiram indícios de motim. Por exemplo, o alferes Danif recusou-se a ir para o mato declarando sem rodeios que não estava disposto a deixar-se matar inutilmente. Fala também no alferes Coutinho Pereira que também partiu para Bissau, desertando-o do comando do seu pelotão.

Foi em Gadamael, diz Carmo Vicente, que tomou consciência que jamais se poderia vencer a guerrilha do PAIGC: “não me desviarei da verdade se afirmar que em Gadamael o PAIGC travou a batalha decisiva na sua luta pela independência, que quer tivesse havido, ou não, o 25 de Abril, teria conduzido o povo da Guiné a uma rápida vitória. Em Gadamael tombaram para sempre quase 50 irmãos nossos que não queriam combater e que abominavam a guerra. Quase 50 homens que, se o pudessem ter feito, teriam gritado antes de morrer: entreguem a Guiné aos Guineenses!”

São relatos sofridos, onde não se esconde o ressentimento, são libelos acusatórios, filípicas e catilinárias dirigidas a comandantes e outros, são memórias em carne viva pelo sofrimento dos camaradas e até da população inocente. Há, no entanto, que questionar se o autor mediu as consequências de tanta acusação e tanto despeito, depois do que se escreveu e já não se pode voltar atrás.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de março de 2010 > Guiné 63/74 - P5924: Notas de leitura (72): Lugar de Massacre, de José Martins Garcia (Beja Santos)

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5199: O Nosso Livro de Visitas (69): António Marquês, ex-Fur Mil da CCAÇ 4810 (Moçambique, 1972/74)

1. Mensagem de António Marquês, ex-Fur Mil Mecânico de Armamento do BCAÇ 4810, Chipera e Tete (Moçambique, 1972/74), com data de 8 de Março de 2009:

Meu caro Luís Graça,

Incompreensivelmente, apenas hoje encontrei o seu blogue "luisgraca e camaradas...". E só hoje por duas razões pouco saudáveis: por um lado, o trabalho (na área dos projetos de engenharia cívil) que houve até há meia dúzia de meses atrás, não me deixava muito tempo disponível e isso servia como desculpa (a tal outra razão pouco saudável) para não me entranhar tanto na NET, onde, verdade se diga, também não sou um ás.

E quem sou eu? Sou o António Marquês, que foi Furriel Miliciano em Chipera, Tete, como Mecânico de Armamento no BCAÇ 4810, entre Outubro de 1972 e Outubro de 1974 (graças ao 25 de Abril, porque já estava decidido que seria até Março de 75).

Como também não quis passar ao lado dessa experiência única na vida de um jovem de então (e para ficar alguma coisa para os filhos e netos - que pouco já vão ligando a isso, não é verdade?) escrevi um diário que está a ser publicado por um jornal local aqui do Seixal (*), que é onde vivo.

Mas antes da publicação deste diário, já houve em 1981 um livro a várias mãos, mas em que aparece apenas na capa o meu nome, o do Josué da Silva (ao tempo redactor no Diário de Lisboa) e o do Carmo Vicente. O livro tem o título de Era uma vez... 3 guerras em África e, para além da introdução do Josué da Silva, tem os testemunhos meu, do Carmo Vicente e mais dez homens, que estiveram nas 3 frentes e, ao tempo, eram meus colegas na H. Parry & Son, em Cacilhas. O livro vem recenseado na relação existente no site Guerra Colonial 1971-1974.

Dito isto, caro Luís Graça, quero agradecer-lhe, a si e aos outros amigos que dão o seu tempo, a disponibilidade para criarem e manterem o vosso blogue, que, apesar de destinado apenas aos ex-combatentes na Guiné (será?), é um veículo absolutamente necessário para manter viva a chama daqueles tempos de camaradagem e mostrar a quem estiver interessado o que foram aqueles anos, de bom e de mau, na vida de milhares de jovens.

Cá por mim e mais uns quantos tudo fazemos para manter viva a chama, realizando desde 1984 uma confraternização anual (que já teve um máximo de 152 presenças - aberto à família, naturalmente - e agora se vai quedando entre as 90 e as 100 pessoas). O mais conhecido do grupo é o nosso comentador de casos policiais Barra da Costa, que foi o Furriel Miliciano Mecânico Auto da CCS do Batalhão.

Renovando mais uma vez o meu agradecimento pelo trabalho ímpar que estão fazendo no vosso blogue, sou

António Marquês


2. Resposta dos Editores

Caro camarada António Marquês

Em primeiro lugar queremos pedir desculpa pela demora na resposta à tua mensagem, que parecendo que não, mereceu a nossa melhor atenção. Aconteceu só que o volume de correspondência no mail pessoal do mentor do Blogue é tal que a tua mensagem ficou por lá perdida. Recuperada, não podia deixar de merecer a nossa resposta.

Estamos a agradecer-te as amáveis e reconfortantes palavras que nos enviaste. Não nos envaidecemos pelo reconhecimento público do nosso trabalho, mas sentimo-nos recompensados pelo nosso esforço e dedicação quando alguém se nos dirige, como tu o fizeste.

O envio regular de textos e fotografias pelos nossos tertulianos, maioritariamente ex-combatentes da Guiné, porque a este teatro de operações o nosso blogue se dedica em exclusividade, obriga-nos a um trabalho que ocupa algumas horas do nosso dia. Fazemos isto com prazer, na medida em que sabemos estar a compor um legado que no futuro alguém há-de tratar para poder refazer este pedaço da História de Portugal.

Caro camarada, desculpa o tratamento por tu, mas é a prática saudável da casa. És mais um camarada que tem a porta da nossa caserna virtual aberta para que sempre que queiras possas intervir.

Em nome dos editores e demais camaradas e amigos do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, recebe um abraço.

Pelos editores
Carlos Vinhal
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4959: O Nosso Livro de Visitas (68): Ildefonso Alves, ex-combatente em Angola, que nos acompanha em Paris

(*) "Cadernos da Guerra Colonial", que tem vindo a ser publicados no semanário Comércio do Seixal e Sesimbra.

domingo, 26 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4251: FAP (26): Em louvor dos sargentos pára-quedistas do BCP 12 (Manuel Peredo, ex-Fur Mil CCP 122, 1972/74)

Guiné > Forças da CCP 122 / BCP 12 > Algures,s /d > Da esquerda, para a direita, o Fur Mil Fernandes, caboverdiano; ao centro, o Sargento Carmo Vicente ; à direita, o Manuel Peredo, Sargento... Os três sargentos do 4º Pelotão do CCP 122 estão equipados com armamento do PIAGC...O Manuel Peredo ostenta o RPG2, o temível LGFog usado pelos guerrilheiros do PAIGC.

Foto: © Manuel Peredo (2008). Direitos reservados


Manuel Peredo, ex-Fur Mil Pára-quedista (CCP 122 / BCP 12, Brá, Bissalanca, 1972/74) (*) deixou o seguinte comentário ao poste P4239, de 23 de Abril (**):

Se eu tivesse um décimo do talento literário de alguns bloguistas,teria uma participação mais activa.Desde que descobri o blogue,não consigo deixar passar um dia sem o consultar,o que não é muito do agrado da minha mulher e devem imaginar porquê.

Tudo o que aqui se diz sobre Gadamael me toca profundamente porque também eu vivi esses dias terríveis,mas aqueles que vieram de Guileje para Gadamael deviam ter ficado afectados psicologicamente para toda a vida.

O que o João Seabra, José Casimiro Carvalho,Manuel Reis e outros dizem sobre os pára-quedistas deixa-me imensamente orgulhoso de ter pertencido a essa tropa especial. O João Seabra diz que não compreende porque é que nenhum pára foi condecorado pelos serviços prestados em Gadamael.Se calhar ninguém se destacou em especial. Se o José Casimiro Carvalho não teve direito a nada, eu e outros também não merecíamos ser louvados ou condecorados.

O João Seabra faz bem em enaltecer o trabalho dos sargentos pára-quedistas que pertenciam ao quadro. Todos eles já tinham uma ou duas comissões no ultramar. Mesmo os oficiais e furrieis milicianos aprendiam muito com eles.

Faço aqui um reparo. Eles não eram promovidos por mérito, salvo talvez em raras excepções. Todos eles começaram como simples soldados e os melhores eram convidados a seguir a carreira militar. Os que aceitavam, tiravam o curso de sargentos, findo o qual passavam a cabos aprovados e depois iam subindo de posto em função dos anos de serviço,o mesmo acontecendo com os milicianos.

O Carmo Vicente (***) foi meu colega no quarto pelotão da CCP 122 e acho que chegou a ser comandante do mesmo pelotão durante algum tempo. Quando havia falta de alferes milicianos, os pelotões eram comandados pelos sargentos mais antigos,mas apenas por um tempo limitado. Raramente um sargento era operacional 24 meses.

Acalento a esperança de um dia poder participar num encontro nacional para poder trocar opiniões, em especial com o João Seabra, José Casimiro Carvalho, Manuel Rebocho, Victor Tavares e outros (****).

Por hoje tenho dito e aqui deixo um abraço para todos.

_____

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 27 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3095: Tabanca Grande (81): Manuel Peredo, Fur Mil Pára-quedista, CCP122/BCP 12 (Guiné, 1972/74)

(**) Vd. poste de 23 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4239: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (9): Eu, a FAP, o BCP 12 e a emboscada de 18 de Maio (João Seabra)

(***) Vd. postes de:

4 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2915: Com os páras da CCP 122/ BCP 12, no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (1): Aquilo parecia um filme do Vietname

5 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2917: Com os páras da CCP 122/BCP 12 no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (2): Quase meia centena de mortos... Para quê e porquê ?

12 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2933: Com os páras da CCP 122/BCP 12 no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (3): Manuel Peredo, ex-Fur Mil Pára, hoje emigrante

16 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2950: Com os páras da CCP 122 / BCP 12, no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (4): Opiniões (Carlos Silva / Nuno Almeida)

17 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2953: Com os páras da CCP 122/ BCP 12, no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (5): Fomos capazes do melhor e do pior (Virgínio Briote)

(****) Sobre a batalha de Gadamael, vd. entre outros os seguintes postes:

27 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3801: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (4): Cobarde num dia, herói no outro (João Seabra, ex-Alf Mil, CCav 8350)

14 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3623: Recortes de imprensa (11): A guerra do J. Casimiro Carvalho, pirata de Guileje e herói de Gadamael (Correio da Manhã)

16 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2949: Convívios (67): Pessoal da CCAV 8350, no dia 7 de Junho de 2008, na Trofa (J.Casimiro Carvalho/E.Magalhães Ribeiro)

7 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2729: Estórias de Guileje (10): os trânsfugas de Guileje, humilhados e ofendidos (Victor Tavares, CCP 121/BCP 12, 1972/74)

27 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2483: Estórias de Guileje (3): Devo a vida a um milícia que me salvou no Rio Cacine, quando fugia de Gadamael (ex-Fur Mil Art Paiva)

18 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1856: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (5): Gadamael, Junho de 1973: 'Now we have peace'

24 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1784: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (4): Queridos pais, é difícil de acreditar, mas Guileje foi abandonada !!!

19 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1613: Com as CCP 121, 122 e 123 em Gadamael, em Junho/Julho de 1973: o outro inferno a sul (Victor Tavares, ex-1º cabo paraquedista)

25 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1625: José Casimiro Carvalho, dos Piratas de Guileje (CCAV 8350) aos Lacraus de Paunca (CCAÇ 11)

2 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCI: Antologia (6): A batalha de Guileje e Gadamael (Afonso M.F. Sousa / Serafim Lobato)

15 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P879: Antologia (43): Os heróis desconhecidos de Gadamael (II Parte)

2 Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVIII: No corredor da morte (CCAV 8350, Guileje e Gadamael, 1972/73)(Magalhães Ribeiro)

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2991: Com os páras da CCP 122 / BCP 12 no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (7): Depoimento do José Casimiro Carvalho

1. Mensagem, com data de 13 de Maio último, do José Casimiro Carvalho , ex- Fur Mil Op Especiais, CCAV 8350, os Piratas de Guileje (1972/73) :


Ora, tendo eu lido na íntegra o texto que me foi enviado (1), só posso tentar rebuscar na minha memória o que ela me faculta, ou seja:

A hierarquia dos páras eu não posso comentar. Os actos heróicos e/ou de cobardia também não, mas umas verdades este homem diz, tais como as condições desumanas e cruéis em que estávamos colocados, a emboscada a uma patrulha , da qual eu era 2º cmdt, onde morreu o alferes Branco, 1 cabo e dois soldados, além de um ferido (o "pica") africano, que levou um tiro no cú.

Essa patrulha foi constituída ad hoc, com cerca de 16 homens, dois dos quais eu dispensei, pois eram 2 miúdos que se tinham oferecidos como voluntários. Saímos portanto 14 homens (!!!).

O estado dos cadáveres foi retratado tal e qual no texto, a emboscada em que caíram os páras foi interminável, com muitos RPG e dilagramas à mistura. Regressaram com cerca de desasseis feridos, um dos quais um sargento com um tiro numa perna, e que...sorria, pasme-se

A cena das salgadeiras foi verdade, pois até nós nos rimos de tanta urna sem ter ocupantes para elas e depois...foram insuficientes. Os mortos eram regados com creolina, na enfermaria, tal a putrefacção.

A fome, a sede, o cansaço e a desmoralização eram totais. Embora o autor tenha dito que o pessoal não saía das valas, eu acho que foi o contrário, o pessoal fugiu na maioria para o mato pois no quartel era onde caía a metralha.

Fui ferído em combate e fui evacuado ,e bem, pois fui num patrulha, o Orion, julgo eu, onde fui tratado e apaparicado pela Marinha. Fui para Cacine, donde mais tarde me ofereci voluntariamente para regressar ao "inferno", e aí o autor tem razão, eu não sei se foi um acto heróico ou de loucura, mas fui.

Imperava a lei do desenrasca, roubava-se e comprava-se cabritinhos aos pretos que eram cozinhados em bidões. Quando havia morteirada, eram esventrados bidões com vinho e o pessoal deitava-se por baixo com a boca aberta... Patético, mas verdadeiro. De um a dez em verdades, eu dava 7 ao autor.

O Rebocho (2) sabe bem do que se fala neste texto, duma boa parte pelo menos.

Um abraço

____________

Nota dos editores:


(1) Vd. os dois primeiros postes desta série:

4 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2915: Com os páras da CCP 122/ BCP 12, no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (1): Aquilo parecia um filme do Vietname

5 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2917: Com os páras da CCP 122/BCP 12 no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (2): Quase meia centena de mortos... Para quê e porquê ?

(2) Vd. poste de 20 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2969: Com os páras da CCP 122 / BCP 12, no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (6): O grande comandante Araújo e Sá (Manuel Rebocho)

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2950: Com os páras da CCP 122 / BCP 12, no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (4): Opiniões (Carlos Silva / Nuno Almeida)

1. Mensagem, com data de 4 de Junho, do Carlos Silva, ex-Fur Mil At Armas Pesada, CCAÇ 2548 (Jumbembem, 1969/71):

Luís:

Aqui vão as Capas e badanas dos 2 livros que tenho do Carmo Vicente (1).

 Li o Poste sobre o livro Gadamael. Dizes que o Carmo faz críticas aos seus superiores e que desconheces o seu paradeiro.

(i) Ele é DFA, talvez consigas saber alguma coisa dele através da Associação [AFDA - Associação dos Deficientes das Forças Armadas]

(ii) Quanto ao livro, é acutilante e não tem floreados, ele escreve o que lhe vai na alma, as críticas que ele faz, não sei se são ou não justas e não é a mim que compete julgá-las, são da responsabilidade dele e são públicas através do livro.

No entanto, estou de acordo com elas, porque, aliás, estou a lembrar-me de uma situação que ele descreve e por que passou em determinada operação, tendo eu e milhares de camaradas passado por situações semelhantes.

Estou a lembrar-me no caso de operações em que participei, com a avioneta PCV, com um indíviduo OPER DO AR, lá dentro, a fazer círculos por cima de nós, a denunciar ao IN a nossa posição. Por tal motivo, eu pensei, tal como o próprio Carmo refere, Aquele FP Operacional do ar condicionado merecia que se mandasse aquela merda abaixo. Aliás, também tenho este desabafo e corroboro os desabafos do Carmo.

Gostaste das fotos [da viagem à Guiné-Bissau, finais de Fevereiro e princípios de Março de 2008]? Na sua maioria estão espectaculares. O meu site está de vento em popa.

Recebe um abraço, Carlos Silva.
















Imagens digitalizadas: Cortesia de Carlos Silva (2008).



Lourenço: Outro livro de Carmo Vicente (Ed. A Chave, 1989), onde se conta o drama de um cabo pára-quedista desaparecido em combate.


2. Mensagem do Nuno Almeida, de 5 de Junho de 2008


Boa tarde, amigo Graça:

Ao consultar o nosso espaço guineense verifiquei que o camarada Leopoldo Amado (1) diz lamentar não conhecer o Carmo Vicente.

Caso possa ser útil, informo que o mesmo é sócio da ADFA e que quase diariamente aí almoça.

Poderá tentar contactá-lo através do nº telemovel da ADFA (917365219) ou pelo fixo (217512600).

A ADFA fica na Av Padre Cruz em Lisboa (quem vai do estádio de Alvalade para a Calçada de Carriche) logo a seguir ao Instituto [ Nacional de Saúde Ricardo Jorge vira à direita na Av. Rainha D. Amélia e entra e contorna 3/4 da 1ª praceta à esquerda, passa por baixo do prédio, segue em frente e à sua direita fica a ADFA.

Espero ter contribuído para o encontro de mais uma tertúlia guineense.

um abraço do Nuno Almeida (também sócio da ADFA)
Nuno
_________

Nota de L.G.:

(1) Vd. postes anteriores desta série:

4 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2915: Com os páras da CCP 122/ BCP 12, no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (1): Aquilo parecia um filme do Vietname

5 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2917: Com os páras da CCP 122/BCP 12 no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (2): Quase meia centena de mortos... Para quê e porquê ?

12 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2933: Com os páras da CCP 122/BCP 12 no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (3): Manuel Peredo, ex-Fur Mil Pára, hoje emigrante

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2933: Com os páras da CCP 122/BCP 12 no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (3): Manuel Peredo, ex-Fur Mil Pára, hoje emigrante

1. Mensagem, de 8 de Junho, do nosso camarada Manuel Peredo, um português da diáspora, emigrante em França, e que foi Fur Mil Pára-quedista, na CCP 122/BCP 12 (Guiné, Brá, 1972/74), o mesmo é dizer: camarada do Carmo Vicente (CCP 122), do Victor Tavares (CCP 121) e do Manue Rebocho (CCP 123).

Fixação e revisão do texto: Carlos Vinhal.


Caros responsáveis do blogue:

Depois de muito pensar, lá me decidi a exprimir algumas opiniões sobre a guerra da Guiné, mais precisamente sobre os acontecimentos de Gadamael.

Primeiro, a minha apresentação ao comandante do blogue. Chamo-me Manuel do Nascimento Peredo; estive na Guiné de Outubro de 1971 a Novembro de 1973 como furriel miliciano pára-quedista. Conheci muito bem em Tancos e na Guiné o Manuel Rebocho, pertencendo eu à 122 e ele à 123.

Ultimamente tem-se falado no livro algo polémico que o primeiro sargento pára Carmo Vicente escreveu (1). Pertencíamos os dois ao quarto pelotão da 122, portanto estivemos os dois no campo de férias em Gadamael. As suas declarações talvez chocassem algumas pessoas, mas a mim nem por isso e atrevo-me a dizer que são verdadeiras, embora um pouco exageradas.

Eu também digo que o nosso comandante era temido por todos. Até os médicos cumpriam as suas instruções dando como aptos soldados com ferimentos ainda por cicatrizar. O que o Vicente diz do alferes pára C.P., origem indiana, é pura verdade. Sei o que digo porque chegou a comandar o meu pelotão. Quanto ao alferes D… não me lembro de ele se recusar a sair para o mato, a não ser que isso tivesse acontecido quando fui evacuado para Bissau, mas sei que não era um exemplo de coragem.

O facto do capitão T.M. bater nos quatro soldados, não me admiro nada, porque não foi caso único. Podia contar o que o coronel Rafael Durão [, que é uma figura pública conhecida, pelo que não vale a pena ocultar a sua identidade,] fez a um cabo da minha secção na minha presença. O bater nos soldados era moeda corrente nos páras, principalmente durante a instrução em Tancos.

Falando agora nos bombardeamentos de Gadamael, acho que o Vicente exagera um bocado. O pior talvez tivesse acontecido antes de nós irmos para lá, atendendo ao estado em que ficaram as instalações. Quando havia mais movimento no quartel, quase sempre éramos presenteados com um dilúvio de metralha, o que deixa entender que alguém estaria a dar informações ao IN.

Já agora vou descrever um pouco por alto aquilo que ainda está gravado na minha memória. Quando nos disseram em Bissau que íamos para Gadamael, informaram-nos que a situação era muito grave e que não valia a pena irmos carregados ,só o necessário para três ou quatro dias. Quando nos aproximávamos de Gadamael, recordo-me muito bem de ver muita tropa à beira do rio, com uma expressão de terror na cara.

Alguns dizem que desembarcámos em botes, mas eu quase afirmava que foi de LDM e era capaz de jurar que só a minha companhia, a 122, é que desembarcou nesse dia e não me lembro de estarem lá duas companhias de páras ao mesmo tempo. Penso que a 123 nos foi render para a 122 poder descansar uns dias em Cacine.

Mal chegámos a Gadamael, dois pelotões foram logo para a mata, onde passaram a noite. Em Gadamael apenas se encontravam lá uns quinze ou vinte homens, o resto tinha fugido. Recordo-me que veio logo uma Berliet conduzida por um açoriano muito destemido para evacuar os mortos e feridos. Soube pelo blogue que o José Casimiro Carvalho também fazia parte dos que não fugiram. O meu pelotão, o quarto, fazia parte do bigrupo que passou a primeira noite no mato e, quando estávamos a regressar ao quartel, este foi fortemente bombardeado ,originando a morte de alguns soldados do exército que tentaram fazer fogo com o obus 140, salvo erro. Estivemos à espera que os rebentamentos acabassem para poder entrar no quartel.

Um dia ou dois mais tarde morreram mais três soldados e um alferes miliciano, vítimas duma emboscada, muito próximo do quartel. Alguém devia ter um grande peso na consciência por ter mandado para o mato um grupo de apenas duas dezenas de militares, se tanto. Este ataque já foi contado pelo José Casimiro e pelo Vicente.
Aqui o Vicente deve estar enganado. Quem foi primeiro recuperar os corpos foi outro pelotão, o nosso pelotão foi enviado em reforço porque tínhamos acabado de chegar do mato. Encontrámo-nos a meio caminho e demos uma ajuda a transportar os corpos que estavam muito mal tratados : tinham o corpo queimado e ferimentos causados pelas balas. O alferes tinha um grande buraco na cara derivado a uma rajada e um soldado nem calças trazia vendo-se bem o efeito das chamas.

Quando chegámos ao quartel, os colegas dos militares mortos estavam no cais à espera e houve um pormenor que me deixou surpreendido e até chocado. Nenhum deles teve a coragem de nos ajudar a carregar os mortos para a Berliet. Os corpos eram postos no chão e o pessoal ia para as valas. Eu próprio os carreguei com a ajuda de colegas. Quando estávamos com este trabalho, o IN lançou novo ataque e eu só tive tempo de saltar do paredão do cais para me proteger. Foi a minha salvação pois uma granada caiu no local que tinha deixado. Escapei a uma morte certa por décimos de segundo.
Outro pormenor que me surpreendeu : quando íamos resgatar os corpos, um dos soldados que tinha fugido da emboscada dirigiu-se a mim, suplicando-me por tudo quanto me era sagrado, que tentasse recuperar uma medalha ou um fio que a mãe lhe tinha dado. Essa medalha ou fio devia estar no casaco que ele largou durante a fuga. Os ataques iam-se sucedendo e talvez mais espaçados e a tropa que tinha fugido ia regressando ao quartel talvez por se sentirem mais seguros com a nossa presença.

No dia dez de Junho (ninguém no mundo me convencerá que não foi neste dia ) sofremos então uma emboscada que deixou a 122 muito debilitada. Pela manhã fomos montar uma emboscada um pouco distante do quartel. Nada se passou de anormal a não ser uma tentativa do IN em abater um Fiat que voava bem lá no alto : distinguia-se perfeitamente o fumo do míssil que tinha rebentado.

A meio da tarde, iniciámos o regresso ao quartel. Estava previsto o meu pelotão e mais um pernoitarem na mata, já muito próximo do quartel e estávamos já nesses preparativos, quando se deu a emboscada. Os dois pelotões que lá deviam pernoitar encontravam-se já na mata e os outros dois seguiam pelo caminho que dava acesso ao quartel. Os dois bigrupos encontravam-se em posição paralela o que podia ter custado muito caro. Claro que foi um erro de quem dirigiu a manobra. Os dois pelotões que iam para o quartel é que deviam ir na frente. Eu por acaso apercebi-me do erro e disse aos meus homens para não dar fogo. Aquilo nunca mais acabava. Quando os caças Fiat vieram em nosso auxílio ainda o combate não tinha acabado. Não havia árvores de grande porte para nos protegermos. O meu colega do lado esquerdo tentava proteger-se atrás dum arbusto que foi ceifado por uma granada logo por cima da cabeça. O que estava do meu lado direito foi levantado pelo sopro duma granada possivelmemte dum RPG7. Acreditem que foi verdade pois vi com os meus próprios olhos. Há minutos na vida que duram uma eternidade. Resultado da brincadeira :17 feridos, todos causados por estilhaços fazendo eu parte desse grupo com um ferimento na cabeça.

Por absurdo que pareça eu fiquei bem disposto e até brinquei com os meus colegas. Quando estes me viram a sangrar da cabeça disseram-me : o meu furriel já pode estar descansado, já acabou a comissão. Mal eles imaginavam que passados oito ou dez dias estava de novo junto deles. Claro que o ferimento não era grave e, derivado ao medo que os médicos tinham do comandante, eu próprio pedi para voltar à minha companhia. Quando voltei, já a 122 estava a descansar em Cacine e mal cheguei lá fui presenteado com um ataque de paludismo. Veio logo o capitão Terras Marques dizer-me que tinha que recuperar depressa pois precisava de mim para irmos fazer uma operação à fronteira da República da Guiné.

Voltando um pouco atrás. Fomos então evacuados para Cacine em dois botes que iam superlotados e de Cacine seguimos de helicótero para Bissau. Quando eu estava no hospital a aguardar transporte para Bissalanca, chegou o homem do monóculo para ver como estavam os feridos. O médico que o acompanhava apontou para mim e disse-lhe que eu era um dos feridos. Dirigiu-se a mim e perguntou-me como se tinha passado. Quando lhe disse que foi no regresso, logo me perguntou se vínhamos pelo mesmo caminho. Pensei logo que estava ali uma armadilha e lá lhe enfiei o barrete.

Caros amigos,acho que vou ficar por aqui. Desde que descobri o vosso blogue, já perdi muitas hors de sono, para não dizer noites. Até hoje nunca tive a oportunidade de encontrar alguém que tivesse vivido as mesmas aventuras para poder desabafar. Desde que passei à disponibilidade, emigrei para a França onde ainda trabalho e ainda bem que a Internet existe para conhecer as opiniões de outros que também passaram pela Guiné.

Um abraço para todos

2. Caro Manuel Peredo, esperamos que esta tua mensagem seja a primeira de muitas, através das quais colaborarás no nosso Blogue, que todos queremos seja o depositário das nossas experiências na guerra da Guiné.

Poderás aderir formalmente ao nosso Blogue, enviando as fotos da praxe, uma dos teus tempos de tropa e outra actual, em fomato tipo passe de preferência.

Todas as tuas estórias serão bem-vindas, que poderão ser acompanhadas de fotos para as ilustrar.

Na nossa tertúlia temos pouca malta dos Páras, como constatas, pelo que a tua adesão é importante.

Recebe, em nome dos editores e da restante tertulia, um fraternal abraço com votos de bem-estar por essas terras de França.
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Nota de CV:

(1) Vd. poste de 5 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2917: Com os páras da CCP 122/BCP 12 no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (2): Quase meia centena de mortos... Para quê e porquê ?

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2917: Com os páras da CCP 122/BCP 12 no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (2): Quase meia centena de mortos... Para quê e porquê ?


Capa do livro de Carmo Vicente - Gadamael: memórias da guerra colonial. 2ª ed. Lisboa: Caso. 1985. 110 pp. Prefácio de Manuel Geraldo.


Foto: ©
Jorge Santos (2007). Direitos reservados.


1. Continuação da publicação de um excerto do livro Gadamael (Edições Ré: Cacém, 1982), de Carmo Vicente (*), ex-1º sargento paraquedista da CCP 122/BCP 12, destacado para Gadamael em Junho de 1973 (**):


1. Extracto de VICENTE, Carmo - Gadamael. Cacém: Edições Ró. 1982. pp. 97-105. 

Excerto enviado pelo historiador guineense Leopoldo Amado. De acordo com a nossa orientação editorial, optámos por não publicar as passagens em que o autor faz críticas ao comportamento humano, disciplinar ou operacional de camaradas seus... As passagens omitidas (incluindo aquelas em que o autor indentifica pelo apelido camaradas que tê, direito à reserva de privacidade e ao anonimato] vêm assinaladas com parênteses rectos: [...].

 Com devida vénia ao autor e à editora. Revisão e fixação do texto, comentários e subtítulos: LG.




(Continuação)


(ix) Mais de duas dezenas de mortos já tinham ido para as salgadeiras


O dia da chegada [a Gadamael], gastámo-lo abrindo novas valas para nos enterrarmos e aprofundando as já existentes a fim de melhorar aqueles abrigos rudimentares. Foi um trabalho difícil. Tivemos que cavar de rastos, com granadas e foguetões rebentando por todo o lado, por vezes às seis e sete de cada vez, o que não deixava dívidas sobre o poder de fogo que o PAIGC tinha no local e estava disposto a empregar contra aquele objectivo.

Encolhidos dentro das valas, procurávamos não deixar nenhuma parcela do corpo à vista, pois todo o terreno no exterior era zona de morte. Viam-se por todo o lado, animais mortos, que pertenciam à população e que deambulavam por ali, indiferentes à metralha. Mas não eram só os animais que morriam. Dentro das valas, caíam granadas que matavam homens.

Mais de duas dezenas de mortos tinham já ocupado outros tantos caixões, os mesmos que nessa manhã tinham viajado connosco de Bissau. Havia também vários feridos graves que foram evacuados para Cacine em botes de borracha ou sintex (barcos de fibra semelhantes a banheiras completamente inadequados a qualquer tipo de evacuação e só usados por ser um material extremamente barato, concebidos por alguém incapaz de pensar no bem-estar do seu semelhante), onde os esperava o helicóptero que os transportaria ao hospital Militar de Bissau.

O trajecto Gadamael-Cacine em tal transporte devia de ser terrível para os feridos. Eram mais de vinte quilómetros aos saltos pela crista das ondas. Nunca cheguei a saber se algum dos feridos graves morreu devido à maneira como fora evacuado. A nossa missão terminava no momento em que o metíamos no bote. A partir daí perdíamos-lhe completamente o rasto.

Os bombardeamentos continuavam. Os guerrilheiros faziam alguns intervales de dez, quinze minutos, começando e acabando quando menos se esperava, mantendo-nos numa tensão permanente. Era uma táctica desgastante utilizada em qualquer luta de guerrilha, que os combatentes do PAIGC muito bem conheciam, tentando tirar dela o maior partido possível.

O local que calhou ao meu pelotão era o pior de todo o quartel. Junto de nós caiam granadas de perfuração e superfície, à direita e à esquerda da vala, com as primeiras a enterrarem-se profundamente no solo para depois rebentarem, levantando aluviões de terra que nos ia cair em cima, deixando-nos parcialmente soterrados.

É difícil explicar, a quem nunca viveu a guerra, o que significa estar dentro de uma vala e por vezes fora dela, ouvindo cair granadas de morteiro de cento e vinte milímetros, sem poder evitar de pensar que a próxima nos vai cair em cima da cabeça. Só quem viveu esses momentos pode avaliar o medo que se sente a aproximação de um desses projécteis, caindo de uma altura superior a dois mil e quinhentos metros: é uma granada de dezoito quilos que ao cair produz um som agudo e prolongado que se vai acentuando à medida que se aproxima do solo. Só o autodomínio e a experiência evitam que nos levantemos e fujamos para outro local, o que poderia ser fatal. Foi assim que pereceram a maior parte dos soldados, mortos em Gadamael.

Pior do que aguentar dentro das valas, eram porém, as saídas que a companhia tinha de efectuar para patrulhar a zona. A qualquer passo, podíamos rebentar uma mina ou tropeçar numa armadilha e, o que era bem pior, apanhar com um grande grupo de guerrilheiros do PAIGC pela frente, superior a nós em número e armamento.



(x) Sem helicópteros para evacuações, e o apoio dos Fiat só acima dos seis mil pés



Por essa altura, não se fazia a evacuação de feridos através de héli. Era perigoso arriscar uma máquina que custava alguns milhares de contos, sabendo nós que a juntar a isso havia o medo do piloto que não estava disposto a entrar naquele vespeiro para livrar da morte um indivíduo qualquer. Era uma troca de que não estava disposto a fazer, mesmo só no campo das hipóteses.

Assim qualquer de nós que fosse ferido gravemente, apenas lhe restava morrer, já que o único transporte que podia contar para a sua evacuação, eram as costas dos seus companheiros até ao quartel e daí o bote de borracha dos fuzileiros até Cacine e pelo qual tinha de esperar, o que chegava a levar várias horas. Foi desta maneira que o Martins, quase morreu, apesar de ter sido ferido ligeiramente numa perna. Não era um ferimento grave, mas levou um tempo infinito para chegar ao hospital.

O apoio aéreo era quase nulo e de nenhum efeito. Os pilotos de jactos, na sua grande maioria de patente elevada, não arriscavam a descida para baixo dos seis mil pés (dois mil metros, aproximadamente). Altura que tornava o bombardeamento ineficaz, sem outro efeito para além do barulho com o qual os guerrilheiros do PAIGC não se impressionavam mesmo nada, continuando impávidos e serenos o ataque ao quartel enquanto os seis G-91 se afadigavam a largar bombas ou a metralhar lá do alto. [...] 


(xi) Uma tremenda emboscada de 45 minutos, com 18 feridos graves


Chegávamos dos patrulhamentos completamente arrasados de cansaço e com os nervos a estoirar, para de seguida metermo-nos nas valas. Era um verdadeiro inferno. Os bombardeamentos eram cada vez mais intensos e já não podíamos sair da vala para fazer as nossas necessidades fisiológicas sem correr o risco de levar com algum estilhaço ou, na melhor das hipóteses, ter de fugir para a vala com as calças na mão. A maioria adoptava então o sistema menos perigoso: fazia tudo dentro da vala e mandava depois pela borda fora, até ter possibilidade de fazer desaparecer, definitivamente, os detritos.


Um RPG-2, com o respectivo porta-granadas. Em russo: Ruchnoi Protivotankovii Granatomet (RPG-2). Uma arma temível que data do princípio dos anos 50. Deixou, entretanto, de ser usada pelo exército russo. Mas foi muito popular entre os exércitos de guerrilha em todo o mundo. Era a bazuca dos pobres... É uma arma muito leve (tubo= 2,86kg.; tubo + granada= 4,48 kg.) e de fácil manobra, ideal tanto para a guerrilha urbana como para o combate no mato. Alcance efectivo= 100 metros (LG).

Fonte: ©
The Sword of Motherland Foundation (2005), com a devida vénia.


Foi num desses patrulhamentos, quando já estávamos a menos de duzentos metros do arame farpado do quartel, que sofremos uma grande emboscada, em que a companhia ficou toda dentro da zona de morte. O contacto deu-se paralelo à coluna e a menos de vinte metros. Foi tremendo. Os guerrilheiros com armamento mais sofisticado e em maior quantidade. Os RPG-7, os RPG-2, as Degtyarev com tambores de cento e vinte munições (que nunca encravavam), os morteiros de sessenta milímetros, batiam-nos com uma precisão incrível.

No que diz respeito a esta última arma, era verdadeiramente fenomenal. Só um perito muito bem treinado poderia fazer fogo certeiro a tão curta distância, sem correr o risco de a granada cair na sua posição. Foi no entanto, o RPG-2 (***) que mais feridos nos provocaram.

Durou cerca de quarenta e cinco minutos este dilúvio de fogo e metralha. De repente a batalha acabou deixando de se ouvir qualquer ruído. Como se nunca por ali tivessem passado, os guerrilheiros retiraram em boa ordem, cumprindo à risca os princípios da guerrilha de Mao: atacar, ter o melhor êxito possível com o menor número de baixas e retirar sem deixar rasto.

Para nós, o rescaldo da emboscada foi terrivelmente desanimador: dezoito feridos graves. E só não tivemos nenhum morto por um desses simples acasos da sorte que, por vezes, acontecem em combate.

O PAIGC deve ter exultado com esta vitória, conseguida em pleno dia, quase dentro de uma base inimiga com um efectivo de mais de quatrocentos homens, entre os quais duas companhias de tipo especiais. Isto tudo sem sofrerem qualquer baixa. Esta última certeza advém do facto de, dois dias depois destes acontecimentos, termos passado pelo local e não virmos o mais leve indício de sangue, coisa que deixa sempre marcas no solo ou nas folhas inferiores dos arbustos, por mais que se deseje ocultar a sua existência.


(xii) Enfiados nas valas, com o moral em baixo


Os feridos resultantes da emboscada foram evacuados para Cacine, nos tais botes de borracha e daí para o Hospital Militar de Bissau. Nós ficámos outra vez dentro das valas com o moral ainda mais em baixo. A emboscada tinha actuado também nesse sentido, nenhum de nós acreditou até aquela dia que os guerrilheiros se atrevessem a atacar uma coluna nossa, em pleno dia, e a tão pequena distância do quartel onde nos encontrávamos.

No dia seguinte, sentado na vala como de costume, preparava-me para comer mais uma vez as habituais sardinhas em lata, quando ouvi, vindo da mata, o forte crepitar de varias espingardas metralhadoras e o rebentar de granadas. Achei estranho, porque não tinha conhecimento de haver qualquer força a patrulhar a zona. Estava a comentar o facto com um dos meus camaradas que se encontrava perto de mim, quando chegou o comandante de companhia que me disse para preparar rapidamente o meu grupo e ir socorrer um pelotão do exército que tinha sido atacado e sofridos vários mortos.

[...] Saímos rapidamente das valas e correndo dirigimo-nos para o local (guiados por um dos fugitivos), que ficava a pouco mais de um quilómetro do quartel.


(xiii) Quarto mortos do exército, três soldados e um alferes, terrivelmente desfigurados


O espectáculo que se nos deparou era deveras terrificante. No solo três soldados e um alferes jaziam mortos e irreconhecíveis com os rostos parcialmente desfeitos por rajadas disparadas à queima-roupa. Havia ossos e tecidos sangrentos espalhados pelo chão. Um dos soldados enrolara-se nos seus próprios intestinos estando os restantes parcialmente queimados pelo fogo que, acidentalmente, por acção das balas incendiárias, ou deliberadamente fora ateado ao capim.

Eu conhecia o alferes. Chegara a Gadamael três ou quatro dias antes, ido directamente da Metrópole e eu encontrara-o por acaso e estivera a falar com ele. Com os olhos dilatados pelo medo havia-me dito que abominava a guerra, que estava aterrorizado e iria fugir para longe da guerra o mais depressa possível, fosse para onde fosse, pois não podia aguentar por mais tempo aquele inferno. Agora, ao vê-lo morto pensei: «Afinal conseguiste o que querias, alferes.... Vais sair daqui... da única maneira que o recusarias fazer, se te tivesse sido dado escolher, enquanto vivo».

Carregámos com os mortos às costas e regressámos ao quartel. Ao chegarmos começou novo bombardeamento e toda a gente se atirou para o chão tentando encontrar abrigo. O soldado C [...]  que carregava o cadáver do alferes, seguindo o exemplo dos outros ou obedecendo ao seu instinto de conservação, também se atirou para o chão ficando com o morto em cima, que, por ter caído a capa impermeável onde o tínhamos embrulhado, o cobriu de sangue. Levantou-se como se tivesse sido picado por uma cobra e ficou a olhar-me de olhos esgazeados. O seu aspecto era terrível. O sangue do morto cobria-o da cabeça aos pés: tinha sangue na boca e nos olhos. Pastas de sangue coagulado caiam do camuflado. Olhou as mãos e vendo-as ensanguentadas entrou em pânico. [...]

Havia que evacuar os mortos e um ferido muito grave com um estilhaço num pulmão, que apanhara dentro do quartel. E o meu pelotão foi encarregado desse trabalho. Atirámos com os mortos para cima de uma «Berliet», única viatura que ainda funcionava em toda a Unidade e arrumámos o ferido o melhor que pudemos junto dos mortos. A altura era má para nos prendermos com ninharias e não podíamos transportá-lo de outra maneira. Imaginem o que terá sentido aquele homem ferido gravemente, mas consciente, ao ver-se no meio de quatro mortos horrivelmente desfigurados.





Cópia do título (e da primeira página) do trabalho de investigação jornalística da autoria de Eduardo Dâmaso, publicado no Público, sobre a batalha de Gadamael , em princípios de Junho de 1973, e o papel da LFG Orion, cujo imediato era então o nosso camarada Pedro Lauret, hoje capitão de mar e guerra na situação de reforma o > "A naves dos feridos, mortos, desaparecidos e enlouquecidos: a história secreta do navio Orion, que há 32 anos salvou centenas de soldados na Guiné contra as ordens de Spínola" (****).

Fotos: ©
Pedro Lauret (2006). Direitos reservados.


(xiv) Os fuzileiros, com botes de borracho, vêm fazer as evacuações de mortos e feridos


Partimos para o cais de recurso a cerca de quatro quilómetros do quartel a toda a velocidade que a picada cheia de calhaus e buracos dos rebentamentos nos permitia, debaixo de um bombardeamento intenso de foguetões [,de 122 mm,] que caíam à direita e à esquerda da picada e que só por sorte não nos atingiram.

Chegámos ao cais mesmo a tempo de ver os botes de borracha dos fuzileiros que vinham proceder à evacuação, darem meia volta e desaparecerem pelo mesmo caminho em direcção a Cacine. Isto transtornou-me de tal modo que desatei a chamar  nomes [...] .


Mas que podiam fazer os fuzileiros? O bombardeamento era muito forte e o medo de serem atingidos era ainda maior. Talvez que eu no lugar deles tivesse feito precisamente o mesmo. Porém, naquela altura eu queria ver-me livre dos quatro mortos e do ferido grave já quase moribundo. Por isso toda a minha revolta, o meu fechar de punhos que infelizmente não fizeram voltar os botes dos fuzileiros [...].

Pela rádio entrei em contacto com o comandante da Companhia e contei-lhe o sucedido. Este, no entanto, nada podia fazer, o problema transcendia-o em absoluto. Restava-me pois esperar e foi o que fiz, enchendo-me de uma grande dose de paciência. Passadas duas horas, os fuzileiros apareceram com dois botes.

A maré tinha baixado, entretanto, deixando a descoberto um lamaçal de mais de seiscentos metros por onde, enterrando-nos até a cintura, tivemos de carregar com os mortos e o ferido. Este esforço durou mais de meia hora e quando finalmente chegámos junto dos fuzos metemos dentro dos botes cinco mortos e não os quatro iniciais. O ferido morrera ali mesmo, a meia dúzia de metros dos botes que o deviam transportar ao hospital.


(xv) Desertores do exército tomam de assalto os zebros


Os botes que evacuaram os mortos foram literalmente assaltados por uma avalanche de desertores que começaram a aparecer de todos os lados e que tentavam fugir àquele inferno. Alguns conseguiram o seu intento pois os tripulantes dos zebros foram impotentes para se livrar de imediato de toda aquela gente que sobre eles se precipitou. Valeu-lhes sair rapidamente dali, de contrário não sei o que poderia ter acontecido aos barcos e mesmo aos próprios tripulantes.

Todos estes factos vieram fazer transbordar a taça e, se já havia muitos de nós com os nervos a estoirar, a partir destes acontecimentos, ficaram ainda pior. Os soldados já não queriam sair do quartel. Preferiam ficar ali dentro das valas, aguentando os bombardeamentos mas onde sabiam ter algumas probabilidades de escapar, a ir para o mato onde a incógnita do que poderia acontecer era demasiado grande. O medo tomou pouco a pouco conta de alguns espíritos e tornou-se mais forte do que qualquer outro sentimento.[...]

 (xvi) Proibido aos paraquedistas adoecer...


Em dada altura o meu pelotão recebeu ordem de marchar para uma missão de patrulhamento em que iria estar envolvida toda a companhia. Tínhamos de dormir no mato e regressar no dia seguinte. Transmiti as ordens do capitão aos meus homens e alguns deles disseram-me que não podiam ir para o mato porque se encontravam doentes, o que na realidade acontecia com alguns deles, e um pouco com todos nós. Que havia mais de um mês comíamos sardinhas e atum em lata e dormíamos enrolados dentro das valas, quase sem pregar olho.

Naquela porca guerra era, no entanto, proibido aos soldados adoecer. Tinham de marchar para o mato de qualquer maneira. [...] 


Segui para junto do meu pelotão e limitei-me a informar que, por ordem do capitão, toda a gente iria para o mato e, sem esperar qualquer resposta, equipei-me e mandei equipar o pelotão.

A companhia possuía quatro pelotões e o meu recebeu ordem de tomar o último lugar na coluna. Coloquei-me à frente dos meus homens e iniciei a marcha sem olhar para trás, confiante que todos me seguiriam, como lhes ordenara. Penetrámos na mata cerrada e ao olhar para trás verifiquei que nem todos me tinham acompanhado. Fiz a contagem e faltavam-me quatro homens, aqueles mesmos que, antes de partir, me tinham informado, estarem doentes. Como não podia deixar de ser, transmiti essas faltas ao comandante que, como resposta, me disse para mandar esses homens comparecer na sua presença, mal terminasse a operação. [...]


 (xviii) Quase meia centena de mortos em Gadamael em quarenta dias


E a guerra de Gadamael continuou. Foram mais de trinta dias de bombardeamentos, com muitos mortos e feridos. Os soldados aguentavam como podiam, uns com maior ou menor coragem, outros entrando em pânico e que fugiam para o cais e tentavam meter-se nos barcos que nos vinham trazer víveres e munições.

Foram quarenta longos dias, quase sem comida, deitados nas valas sem dormir mais que uma ou duas horas por noite, batendo-nos contra um adversário invencível que nos matava sem sofrer uma única baixa.

Mas Gadamael foi também a certeza de que jamais poderíamos vencer os guerrilheiros do PAIGC. Gadamael serviu sobretudo para a tomada de consciência de muitos de nós, e não me desviarei da verdade se afirmar que em Gadamael o PAIGC travou a batalha decisiva na sua luta pela independência, que quer tivesse havido ou não o 25 de Abril teria conduzido o povo da Guiné a uma rápida vitória.

Em Gadamael tombaram, para sempre, quase cinquenta irmãos nossos, que não queriam combater e que abominavam a guerra. Quase cinquenta homens que, se o pudessem ter feito, teriam gritado antes de morrer:
-Entreguem a Guiné aos Guineenses!...


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Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 11 de Fevereiro de 2007 >
Guiné 63/74 - P1515: Antologia (58): A batalha de Bissau em Janeiro de 1968: boinas verdes contra boinas negras... Saldo: 2 mortos (Carmo Vicente)

(...) "1º Sargento Paraquedista Carmo Vicente (...) participou em três comissões de serviço nas frentes de combate da Guiné e Moçambique.

"O testemunho do Sargento Carmo Vicente [sobre os tristes acontecimentos de Bissau, em Janeiro de 1968,] consta na obra Gadamael de sua autoria, das Edições Caso (2ª edição), de Julho de 1985 (páginas 25 a 30).

"Para além da referida obra, Carmo Vicente é também autor de Grades de Novembro, Gritos de Guerra, A Sentença, Era uma vez... 3 guerras em África, entre outras.

Na badana do livro pode ler-se:

"Carmo Vicente é 1º sargento paraquedista, tem 38 anos, e participou em 3 comissões de serviço nas frentes de combate da Guiné e Moçambique. Gadamael é uma narrativa apaixonada, mas profundamente crítica, dessa experiência, constituindo mais uma achega importante para a construção histórica do itinerário colonial de parte significativa da juventude portuguesa, entre 1961 e 1975.

"Sobre Carmo Vicente escreve em prefácio Manuel Geraldo: Ao contrário de vários autores que até agora se debruçaram sobre o mesmo tema, Carmo Vicente possui a vantagem de ter sido mobilizado pela 1ª vez como soldado, acabando por chegar a 1973 na situação de 1º sargento, no comando de um pelotão, precisamente em Gadamael. Logo, viveu o conflito em toda a sua plenitude, como 'actor' em escalões progressivos e com graus de sensibilidade diversa. Embarcado para a Guiné em 1966, com a mentalidade de 'cruzado', Carmo Vicente acabaria por descobrir a verdadeira face dos interesses em jogo e do papel que lhe tinham reservado no palco das operações.

(**) Vd. poste anterior de 4 de Junho de 2008 >
Guiné 63/74 - P2915: Com os páras da CCP 122/ BCP 12, no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (1): Aquilo parecia um filme do Vietname


(***) Certamente por lapso ou gralha, no texto (digitalizado) que recebemos do Leopoldo Amado, vem RPG 3 quando, na minha opinião, deve ler-se RPG 2... Mas não tenho a certeza: no meu tempo (1969/71), na zona leste, nunca ouvi falar do RPG 3... Só havia o RPG 2 e o RPG7.  No blogue já apareceram mais referências ao RPG 3 (Nuno Rubim, Manuel Lema Santos). Será gralha ? É também possível que seja uma versão superior do RPG 2, existente em 1973. Possivelmente com mais alcance, fiabilidade e poder destrutivo... Se alguém puder esclarecer, agradeço.


(****) Vd. poste de 14 de Junho de 2006 >
Guiné 63/74 - P876: É revoltante o silêncio em torno da guerra colonial (Pedro Lauret, imediato do NRP Orion, 1971/73


(*****) A Ordem da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito é a mais alta condecoração portuguesa, podendo ser conferida em três casos: (i) Por méritos excepcionalmente relevantes demonstrados no exercício de funções dos cargos supremos que exprimem a actividade dos órgãos de soberania ou no comando de tropas em campanha; (ii) Por feitos de heroísmo militar e cívico; ou (iii) Por actos excepcionais de abnegação e sacrifício pela Pátria e pela Humanidade.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2915: Com os páras da CCP 122/ BCP 12, no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (1): Aquilo parecia um filme do Vietname


Guiné > Região de Tombali > Posição relativa de Cacine, Gadamael e Guileje, na bacia hidrográfica do Rio Cacine, junto à fronteira sul com a Guiné-Concacri (pormenor). Topónimos assinalados a verde.


Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Cacine > Simpósio Internacional de Guileje > Visita dos participantes ao Cantanhez > 2 de Março de 2008 > Cais de Cacine, ao fim da tarde... Cacine é hoje uma povoação decadente... Por aqui passaram importantes contingentes das tropas portugueses, e nomeadamente tropas especiais, como os fuzileiros e os pára-quedistas, nomedamente em Maio, Junho e Julho de 1973, quando o PAIGC lançou uma grande ofensiva contra as nossas posições no sul, em especial no corredor de Guileje: Iemberém, Guileje, Gadamael...

Foto (e legenda): © Luís Graça (2008). Direitos reservados.


Capa do livro de Carmo Vicente - Gadamael: memórias da guerra colonial. 2ª ed. Lisboa: Caso. 1985. 110 pp. Prefácio de Manuel Geraldo (*).

Foto: © Jorge Santos (2007). Direitos reservados.


1. Mensagem do Leopoldo Amado, datada de 7 de Abril de 2008:

Lendo hoje algo sobre Gadamael, apressei-me a reencaminhar-vos o texto de Vicente Carmo que em tempos enviei ao Pepito e que penso que deve ser publicado, pelo menos rcialmente, no nosso blogue, pois dá uma ideia do que foi Gadamael, depois de Guiledje. Leopoldo Amado



2. Mensagem de Leopoldo Amado, de 17 de Outubro de 2007, enviado ao Pepito:


Assunto: Gadamael, de Carmo Vicente

Caro Pepito,

Segue em anexo o prometido texto de Carmo Vicente,  inquestionavelmente, dos autores mais ousados da grande gama de literatura de guerra existente sobre a Guiné. Ainda há dias, li uma outra coisa dele sobre os crimes de guerra e fiquei estarrecido.

O texto dele traz-nos inclusivamente alguns nomes que nos são familiares como o do nosso compatriota D... (provavelmente parente do jovem sportinguista e Director da Escola de Formação Profissional da AD, esqueço-me do nome) e ainda do nosso Coutinho e Lima [ex-comandante do COP3, à data do abandono de Guiledje, em 22 de Maio de 1973].

Lamento não o conhecer pessoalmente o Carmo Vicente, pois seria uma presença necessária no Simpósio [Internacional de Guiledje], até pela sua frontalidade e sensatez.

Tentei em vão pôr-me em contacto com ele e descobri, através de uma pequena pesquisa na NET, que o homem é agora empresário do sector da construção civil, possuindo, inclusivamente, uma ou várias empresas que laboram no sector do fornecimento de pedras diversas.

Para além de ser extremamente factual, o texto que agora envio é de tal acutilância que também dá uma ideia aproximada da determinação com que o PAIGC, no Sul, teria conduzido o processo que visava desalojar o Exército português de todo o corredor fronteiriço com a República da Guiné.

Não seria provavelmente má ideia colocar este no blogue [Luís Graça & Camaradas da Guiné] e ficar a espera de reacções que certamente enriqueceriam ainda mais os testemunhos sobre o Sul em geral e sobre Guiledje, Balana e Balana Cinho, em particular.

Talvez devêssemos e pudéssemos criar no site do Simpósio uma secção com textos afins, à semelhança, por exemplo, de alguns outros de Idálio Reis, e a transcrição da entrevista de um ou outro ex-combatente do PAIGC (Umaro Djalo, por exemplo), os quais poderiam ir ajudando a balizar as intervenções, tornando-as mais ricas, na medida em que, a partir daí, certamente os intervenientes teriam de fazer um maior esforço para se distanciarem das evidências e dos lugares-comuns.

Abraço,
Leopoldo Amado



3.  1. Extracto de VICENTE, Carmo - Gadamael. Cacém: Edições Ró. 1982, 1ª ed.,  pp. 97-105. .

Excerto enviado pelo historiador Leopoldo Amado. De acordo com a nossa orientação editorial, optámos por não publicar as passagens em que o autor faz críticas ao comportamento humano, disciplinar ou operacional de camaradas seus, incluindo superiores hierárquicos. As passagens omitidas (incluindo aquelas em que o autor indentifica pelo apelido camaradas que têm direito à reserva de privacidade e ao anonimato] vêm assinaladas com parênteses rectos: [...].


Com devida vénia ao autor e à editora. Revisão e fixação do texto, comentários e subtítulos: LG.


Aviso à navegação:

Chega-nos às mãos, graças ao nosso historiador e amigo Leopoldo Amado, mais uma peça para o dossiê Gadamael... Temos aqui falado muito de Guileje e até de Guidaje, mas pouco de
Gadamael

É sabido que estes três G estão associados à escalada da guerra, que se seguiu ao assassinato de Amílcar Cabral, em 20 de Janeiro de 1973 e precedeu a declaração (unilateral) de independência da Guiné-Bissau em 24 de Setembro de 1973. 

Maio, Junho e Julho de 1973 foram três meses terríveis para as NT, cercadas em Guidaje, Guileje e Gadamael (**).

Este testemunho sobre os acontecimentos de Gadamael são de um 1º sargento paraquedista, Vicente Carmo, da CCP 122/BCP 12 (Guiné, Bissalanca, 1972/74). 

O Vicente Carmo era(é) amigo do Manuel Rebocho, sargento pára-quedista da CCP 123. E é conhecido do Victor Tavares, ex-1º Cabo da CCP 121, que também esteve em Gadamael, entre Junho e Julho de 1973. O Manuel Rebocho (CCP 123) e Victor Tavares (CCP 121) são membros da nossa tertúlia e já aqui nos deixaram testemunhos dramáticos da sua actividade operacional. Parte dos seus depoimentos, relativamente a Gadamael, podem ser cotejados com os do Carmo Vicente (CCP 122). Todo o batalhão, o BCP 12, esteve envolvido na batalha de Gadamael (entre 2 de junho e 17 de julho de 1973).

Ainda não tive acesso ao livro do Vicente Carmo, Gadamael - Memórias da guerra colonial. A última edição, a 2ª, é de 1985 (Editora Caso, Lisboa). Não faço, por isso, uma recensão do livro que não li, limito-me apenas a rever e a fixar o texto que me chegou, e a torná-la mais legível, através da inserção de subtítulos.


 Agradeço ao Leopoldo Amado a sugestão bibliográfica. Devo apenas corrigir uma informação (errónea) que ele nos transmite: a empresa Carmo Vicente Lda, com sede no concelho de Santarém, não tem naada a ver com o nosso camarada paraquedista, cujo paradeiro desconheço. Sei que é DFA. Conforme confirmei pessoalmente, o fundador e sócio-gerente desta firma é um homem muito mais novo (na casa dos 40), que nunca esteve na Guiné e muito menos nos paraquedistas.

O testemunho do Carmo Vicente deve ser lido como mais um contributo, em primeira mão, para o conhecimento de um dos momentos cruciais da Guerra na Guiné, a ofensiva do PAIGC contra o corredor de Guileje, e que começou com a Op Amílcar Cabral, levando à retirada de Guileje pelas NT em 22 de maio de 1973.

Gadamael (bem como Guidaje, a norte) vergaram, mas não caíram. É nosso dever lembrar aqui os combatentes, de um lado e de outro, que morreram nestes ferozes combates... A defesa de Gadamael terá custado cerca de meia centena de mortos, para além de dezenas feridos.

Recorde-se o que na badana do livro, acima citado, se pode ler (*):

"Carmo Vicente é [era em 1985] 1º sargento pára-quedista, tem 38 anos, e participou em 3 comissões de serviço nas frentes de combate da Guiné e Moçambique. Gadamael é uma narrativa apaixonada, mas profundamente crítica, dessa experiência, constituindo mais uma achega importante para a construção histórica do itinerário colonial de parte significativa da juventude portuguesa, entre 1961 e 1975.

"Sobre Carmo Vicente escreve em prefácio Manuel Geraldo: Ao contrário de vários autores que até agora se debruçaram sobre o mesmo tema, Carmo Vicente possui a vantagem de ter sido mobilizado pela 1ª vez como soldado, acabando por chegar a 1973 na situação de 1º sargento, no comando de um pelotão, precisamente em Gadamael. Logo, viveu o conflito em toda a sua plenitude, como 'actor' em escalões progressivos e com graus de sensibilidade diversa. Embarcado para a Guiné em 1966, com a mentalidade de 'cruzado', Carmo Vicente acabaria por descobrir a verdadeira face dos interesses em jogo e do papel que lhe tinham reservado no palco das operações".
.



Na página não oficial do Batalhão de Caçadores Pára-quedistas nº 12 – Unidade e Luta (que ironia: era uma expressão muito querida a Amílcar Cabral...), pode entretanto ler-se o seguinte excerto relativamente à actividade operacional das três CCP, no sul da Guiné, no período em referência:


(...) "Apesar dos esforços a situação na Guiné continua a degradar-se. A pressão que os guerrilheiros vinham exercendo sobre os aquartelamentos no Sul do território começou a dar resultados. Em Maio de 1973 os guerrilheiros desencadeiam fortes ataques a Guileje, obrigando mesmo ao abandono do aquartelamento dos militares do Exército. Nas proximidades, Gadamael Porto fica em posição delicada com flagelações frequentes de armas pesadas.

"A 2 de Junho as CCP 122 e CCP 123 são enviadas para Gadamael, seguindo-se no dia 13 a CCP 121. O próprio comandante do BCP 12, Tenente-Coronel Araújo e Sá, tinha assumido o comando das forças que com a guarnição do Exército constituiram o COP 5.

"A posição de Gadamael Porto é organizada defensivamente com abrigos, trincheiras e espaldões, simultaneamente são desencadeadas acções ofensivas sobre os guerrilheiros. A resistência e a determinação das Tropas Pára-quedistas acabaram por surtir efeito e o ímpeto inimigo foi quebrado - Gadamael Porto não caiu.

"A 7 de Julho as CCP 121 e 122 regressam a Bissau e a 17 é a vez da CCP 123, a operação DINOSSAURO PRETO tinha terminado" (...).


Neste excerto sobre Gadamael, da autoria de Carmo Vicente, fala-se também das misérias e grandezas dos nossos paraquedistas... que não eram deuses nem super-homens, eram apenas homens com o resto das NT (os arre-machos, a tropa-macaca...) e os guerrilheiros do PAIGC. Noutro poste publicaremos algumas mensagens, sobre o livro e o seu autor, que nos mandaram alguns dos nossos camaradas da Tabanca Grande (a começar pelos ex-paraquedistas do BCP 12, o Victor Tavares e o Manuel Rebocho), a quem pedi conselho nestes termos:


"Junto vos envio um excerto do livro do Vicente Carmo sobre Gadamael. É já antigo, esse livro. Chegou-me às mãos, ou melhor, foi-me enviado por e-mail pelo Leopoldo Amado, com a sugestão de ser publicado, no todo ou em parte, no nosso blogue... Acontece que tenho reservas, devido à críticas, muito pessoais, que o autor faz ao comandante do seu batalhão (BCP 12) e a alguns dos seus camaradas... Não sei se são justas ou não... Mas vão contra o espírito do nosso blogue.

"Não conheço o livro nem o autor (de quem já publicámos em 11 de Fevereiro de 2007 uma versão sobre os distúrbios ocorridos em Bissau, em Janeiro de 1968). Gostava de ouvir a opinião dos nossos páras, o Victor e o Rebocho, nossos camaradas do BCP 12 (o Vicente era sargento da CCP 122), mas também daqueles que conheceram, de perto, Gadamael, na época em causa (Maio/Julho de 1973): caso do Casimiro Carvalho, do Jorge Canhão, do Hugo Guerra, do Coutinho e Lima... Mas também do Pedro Lauret... Enfim, também solicito o parecer do A. Marques Lopes e do Nuno Rubim, nossos assessores, bem como do Leopoldo, e dos meus queridos co-editores.

"Interessa-me sobretudo o relato (objectivo, isento ?...) sobre os acontecimentos de Gadamael, e não propriamente os juízos de valor sobre os homens... Podem-me dar-me uma ajuda ?"

Acabei por decidir publicar este excerto, em duas partes, omitindo apenas os nomes dos camaradas (do BCP 12) que são alvo de crítica do autor. Segui, no essencial, os preciosos conselhos dos camaradas a quem pedi opinião (incluindo o Victor Tavares e o Manuel Rebocho, que pertenceram a essa unidade e foram dois valorosos combatentes e orgulhosos pára-quedistas).

O depoimento de Carmo Vicente, em livro sob a forma memorialística, é demasiado precioso e importante para ficar por aí, perdido, nas prateleiras de algumas bibliotecas públicas ou nos armazéns dos alfarrabistas. Divulgando este pequeno excerto, homenagemos o autor, os paraquedistas e os demais combatentes, de um lado e de outro, que estiveram na batalha de Gadamael. E sobretudo os mortos, todos os militares e civis que lá perderam a vida, portugueses e guineenses...

Espero que o autor e o editor sejam condescentes connosco e que aceitem a nossa sugestão de uma nova edição. A 2ª edição remonta a 1985. Sugere-se uma 3ª edição, revista e melhorada. A 1º edição tinha diversos erros e gralhas, por falta de um bom revisor de texto. Gralhas, erros ortográficos e pontuação foram agora corrigidos, nesta versão bloguística (mais uma vez, com a devida vénia...). Uma 3ª edição teria seguramente o apoio do nosso blogue.

Segundo o Victor Tavares, o Carmo Vicente terá sido ferido em Gadamael. Ele leu o livro, mas não conheceu operacionalmente o seu camarada, que pertencia a outra companhia do batalhão (a CCP 122). Não estiveram juntos em Gadamael na mesma altura [a CCP 122 e a CCP 123 foram a 2 de Junho de 1973, partindo de Cacine; a CCP 121 foi mais tarde, a 13; e possivelmente cada companhia do BCP 12 ia com missões distintas]. 

Por seu turno, o Hugo Guerra (que também passou por Guileje e Gadaamel) diz que só conheceu o Carmo Vicente, em Lisboa, na ADFA. "Acho que partiu as duas pernas ao saltar dum heli e é DFA". 

O Manuel Rebocho, por sua vez, diz que é amigo do Carmo Vicente, não leu o livro e está em desacordo com ele em relação a críticas que faz aos seus comandantes.

Se alguém souber do paradeiro do Carmo Vicente, que nos contacte.


GADAMAEL PORTO -Parte I, por Carmo Vicente 

(Com a devida vénia ao autor e à editora)
Ficha do livro:

Titulo do livro: Gadamael
Autor: Carmo Vicente
Editora: Edições Ró
Ano de Publicação: 1982
Local de publicação: Cacém
Páginas referentes ao extracto (I e II Partes), enviado pelo Leopoldo Amado.: pp. 97 à 105.



Gadamael (**) era uma pequena aldeia, situada ao sul da Guiné-Bissau, entre Cacine e Guileje, a escassos três quilómetros da fronteira com a Guiné Conacri. Todo o aldeamento era fortificado. Fora construído pelas forças ocupantes, com a finalidade de controlar a população que, assim, ficava a fazer parte do quartel e sujeita a um regulamento rigoroso, quase militar.

À noite, ninguém podia sair ou entrar no aldeamento. O recolher obrigatório era permanente e começava ao anoitecer, para só acabar com a manhã. Nesse espaço de tempo, quem se aproximasse, podia ser morto, por ser considerado inimigo.

Era, por assim dizer, uma população resignada à sua sorte. Permanecia ali, porque sabia por experiência própria que a vida lhes era mais fácil apesar de tudo, ali do que no mato, onde toda a gente era considerada inimigo, sujeitando-se a ver destruídos os seus haveres, ou ser queimada pelo napalm, que os aviões despejavam todos os dias, sobre a terra mártir da Guiné.

Para além disso, se caíssem prisioneiros, iam sem dúvida parar as mãos da PIDE, coisa nada agradável, pois o tratamento dado por aquela polícia aos prisioneiros era simplesmente brutal.

O facto de se sujeitarem à protecção da tropa, não os transformava contudo em gente dócil e de maneira nenhuma conivente com ela. E muitas vezes era através da população civil que o PAIGC tomava conhecimento de todos os nossos movimentos: saídas para patrulhamentos, efectivos existentes, armamento usado, nomes dos militares mais graduados e por vezes, até, a sua situação familiar.


(i) CCP 122/BCP 12: Os pára-quedistas na segurança da nova estrada asfaltada entre Cadique e Jemberém


Quando em abril  de 1973
 [lapso de memória do autor, deve ser junho de 1973]   cheguei a Gadamael, integrado na Companhia de Caçadores Paraquedistas n.º 122, toda a população tinha fugido para o mato ou talvez, e isso é o mais plausível, para a vizinha Guiné, abandonando o aldeamento-quartel, devido aos bombardeamentos constantes do PAIGC. No quartel haviam ficado apenas os militares que constituíam o batalhão ali destacado: uns duzentos homens, entre combatentes e pessoal dos serviços.

Era assim Gadamael Porto. Um local nada agradável, onde eu e mais algumas centenas de camaradas passámos os quarenta mais longos dias, das nossas vidas. Onde muitos caíram para nunca mais se levantarem e outros se estropiaram física e moralmente para o resto dos seus dias.

A minha companhia tinha regressado de uma missão de combate que durara três meses. Em Cabochanque e Cadique tínhamos sofrido alguns mortos e feridos enquanto fazíamos a protecção dos trabalhadores que construíam a nova estrada asfaltada entre Cadique e Jemberém. Uma distância de pouco mais de treze quilómetros que nos ficou à razão de um morto por quilómetro. Ali, vários bons camaradas pagaram, com a vida, aquela obra de fachada estratégica mais que duvidosa, de Spínola.

Entre os mortos, contava-se o meu amigo Teixeira, de Carrazedo de Montenegro [ Valpaços, Vila Real] [...] (***).


(ii) Ordem para partir para Gadamael

Encontrávamo-nos terrivelmente cansados, depois daqueles três meses de mato e como seria lógico iríamos descansar. Era o que nós pensávamos. Porém, não era o que pensava o nosso comandante de Batalhão [...].

 Quando chegamos a Bissau, encontramos o comandante à nossa espera. Disse-nos sem grandes rodeios, que nos preparássemos para ir imediatamente para Gadamael Porto. A tropa ali estacionada precisava de nós e não podíamos, nem devíamos, regatear essa ajuda.


(iii) Sabíamos que Guileje tinha caído


Sabíamos o que se estava a passar em Gadamael Porto. Depois da queda da nossa posição fortificada de Guileje, o PAIGC, explorava agora aquele ponto, tentando varrer-nos progressivamente daquela zona que considerava libertada.

Sabíamos que Guileje tinha caído. Nem um só dos nossos homens o ignorava, apesar das informações nesse sentido serem o mais camufladas possível. Sabíamos que o major [ Coutinho e Lima,] que comandava a força ali estacionada, depois de várias apelos a Spínola para lhe mandar ajuda e ter recebido deste, apenas negativas e porque verificou que se ficasse mais um dia que fosse, naquele local, seria massacrado inutilmente, resolveu por sua conta e risco poupar a vida dos seus homens e a sua, abandonando aquela zona, transportando consigo apenas o material de guerra que uma tropa arrasada física e moralmente podia humanamente transportar, através de uma mata rasteira e extremamente cerrada.

Todos os militares que na Guiné davam o corpo ao manifesto apoiaram moralmente a atitude corajosa do comandante do aquartelamento do Guileje. No entanto, Spínola parece não ter sido da mesma opinião, ao mandar prender aquele militar que mais não fez do que livrar de morte certa ou do aprisionamento os militares que comandava, não os deixando morrer pela pátria, nem entrar na galeria dos heróis mortos e esquecidos.


Guiné >Região de Tombali > Gadamael - Porto > s/d [anterior ou posterior a Maio/Junho/Julho de 1973 ? ] > Tabanca, reordenada pelas NT.

Foto: Autores desconhecido. Álbum fotográfico Guiledje Virtual. Gentileza de: ©
AD -Acção para o Desenvolvimento (2007).


(iv) Bico calado: tínhamos mais medo da prisão do que dos guerrilheiros do PAIGC


Era realmente necessário, ajudar de qualquer maneira, os nossos camaradas de Gadamael. Tinham sofrido já vários mortos e feridos que era preciso evacuar o mais rápido possível. Nós sabíamos tudo isso e não podíamos, como militares e combatentes que éramos, negar-lhes essa ajuda. [...]

 Ninguém de entre nós, estava esclarecido politicamente, o estritamente necessário, para esboçar sequer o mais leve indício de recusa. Todos os camaradas tinham mais medo da prisão do que dos guerrilheiros do PAIGC. Apesar de com estes terem mais probabilidades de morrer, havia sempre a possibilidade de escapar e com a PIDE, nunca se sabia, o que poderia acontecer. Era deste medo colectivo, de desobedecer a uma hierarquia retrógrada, que os grandes senhores se iam governando. Aumentando louvores e galões de mistura com cruzes de guerra e torres espadas, que ultimamente eram distribuídas a indivíduos que nunca tinham posto uma mochila às costas e nunca saíram do ar condicionado dos quartéis-generais.


Guiné > Bissau > A LGF Lira > Os danos no convés, no rufo da casa das máquinas e nos botes de borracha (zebros) dos Fuzileiros... "Em 13 de Janeiro de 1968, a LFG Lira que escoltava a LDG Alfange, depois de ter transportado 3 companhias de FT de S. Vicente para Binta, foi violentamente atacada no Tancroal com RPG, sendo atingida na ponte e no rufo (cobertura) da casa das máquinas. O resultado, além dos estragos materiais, foi dramático: 1 morto e 8 feridos, alguns deles em estado grave, sendo 2 evacuados de helicóptero e 3 de Dornier" (MLS).

Foto e legendas: ©
Manuel Lema Santos (2007). Direitos reservados.


(v) De noite, de LDG, de Bissau a Cacine com 30 salgadeiras a bordo…


Saímos de Bissau, numa lancha de desembarque grande (LDG) com rumo a Cacine. Levámos connosco apenas o equipamento necessário para quatro dias. Tempo previsto para a operação que, segundo nos informaram à partida, se destinava a evacuação de toda a tropa e equipamento existente em Gadamael Porto. Tínhamos, segundo a voz do comando, que aguentar a segurança do aquartelamento até a completa retirada do último soldado do Exército. Findo esse trabalho, regressaríamos a Bissau e poderíamos então descansar.

Poucos de nós, acreditavam ainda, nas lindas promessas que nos vinham de cima e na parte que me toca, confesso, que não acreditava mesmo nada.  [...] Por isso também daquela vez, não acreditei que a estadia em Gadamael iria ser tão curta como nos queriam fazer crer.

O trajecto entre Bissau e Cacine, foi feito de noite, com todas as luzes apagadas para maior segurança. Os ânimos iam bastante exaltados. Talvez contribuísse para isso a proximidade de três dúzias de salgadeiras (urnas funerárias) que, sem nenhuma preocupação para ocultar a sua presença, viajavam, silenciosamente macabras, no mesmo transporte e apenas a alguns passos de nós. As urnas, ali naquele local e em tão grande quantidade, constituíam a prova irrefutável que as coisas em Gadamael Porto, estavam mesmo feias, levando alguns de nós, se não todos, a pensar que dentro de poucos dias ou até horas poderiam ir ocupar tão sinistras habitações.


(vi) Perdida a ilusão da superioridade de se ser pára-quedista


Ainda durante a viagem, começaram os protestos dos soldados, por não lhes ter sido dado tempo de descanso prometido. Na sua esmagadora maioria, estavam-se absolutamente nas tintas para a vitória ou a derrota de uma guerra onde tinham sido integrados contra a sua vontade e não lhes interessava mais do que safar a pele, o mais inteira possível. Estavam-se nas tintas para as condecorações e louvores. Foram voluntários para os pára-quedistas, porque lá na aldeia onde sempre viveram lhes tinham dito que lá é que era bom. Que havia boa comida e que teriam uma farda muito bonita e uma boina verde. Que saltariam de paraquedas e que as raparigas se pelavam pelos páras. 

Agora, porém, perdida a ilusão da superioridade (alimentada por vezes, até ao ridículo, pela hierarquia) em relação aos seus camaradas das outras armas a quem chamavam arre-machos, arrependiam-se de não ter optado pela farda verde azeitona e pela boina castanha dos homens do Exército. Se ainda lutavam, era simplesmente animado pelo afã de não morrer. Borrifavam-se nos amores pátrios e para uma guerra que não sentiam como sua, feita numa terra estranha que não tinha nada a ver com a sua verdadeira Pátria.

Nos últimos anos de guerra, deram-se condecorações e louvores, a combatentes e não combatentes e forjaram-se, criaram-se inventaram-se heróis. A Ditadura estava aflita e as medalhas eram o material mais barato para comprar o sangue e as consciências. E houve tantos que venderam a consciência e o sangue dos outros por um miserável pedaço de metal ou mais uma estrela, ou mais um risquinho amarelo nos ombros...


(vii) De Cacine para Gadamael, em LDM e zebros, e de capacete!


Depois de várias horas de LDG, chegamos a Cacine e ai começámos a aperceber-nos do perigo real que nos esperava no local para onde inexoravelmente nos estavam a empurrar. Ouvia-se nitidamente, o bombardeamento a que Gadamael estava a ser sujeito, provocado pelas armas pesadas que o PAIGC possuía em abundância. Ao ouvir aqueles rebentamentos, que nos soavam aos ouvidos de forma quase ininterrupta, os soldados vinham perguntar-me:
- Meu sargento, acha que este fogo é nosso, ou dos turras?

À esta pergunta eu dava invariavelmente a mesma resposta, dizendo que não, que aqueles rebentamentos, não eram provocados pelos turras, mas por nós, que eram os nossos obuses 14 em acção. Eu sabia que estava a mentir. Mas que podia eu responder àqueles homens assustados, se lhes dissesse o que pensava daquela situação? Ficariam de certo ainda mais aterrorizados.

Eram aproximadamente dez horas da manha quando saímos de Cacine com rumo a Gadamael. Desta vez o transporte foi feito em LDM (lancha de desembarque médio), que por serem mais pequenas eram mais facilmente manobráveis no rio que ia estreitando à medida que penetrava em terra. Conforme nos aproximávamos ia-se também acentuando o nosso nervosismo que, em alguns de nós, era já perfeitamente visível. Levaríamos connosco, o equipamento necessário para dois dias. Tudo o resto ficou nas LDM.

A quatro ou cinco quilómetros de Gadamael Porto, passamos ordenadamente das LDM para os Zebros (botes de borracha com motor fora de borda) dos fuzileiros. A partir dali, era extremamente perigoso continuar nas lanchas. Os Zebros, muito mais pequenos e de fácil manobra, permitiam-nos um desembarque rápido debaixo de fogo.

Pela primeira vez, desde há muitos anos, foi ordenado o uso do capacete, que apenas tinha sido usado nos primeiros meses da guerra em Angola. Fiquei irritado com esta ordem. O capacete é, neste estilo de luta, um apêndice que não se justifica de modo nenhum e que não compensa o esforço que o combatente despende para o aguentar. Pensei, com uma certa dose de humor negro, que a ordem para usar capacete mais não servia senão para nos dar um aspecto mais viril e mais guerreiro, frente aos militares que em Gadamael, perfeitamente desorganizados, corriam em todas as direcções e tentavam meter-se à força nos barcos que nos levavam a nós.


(viii) Gadamael parecia um filme do Vietname, com o aquartelamento e a tabanca praticamente destruídos


Chegámos ao cais uns atrás dos outros, e desembarcámos debaixo de uma saraivada de morteirada de cento e vinte milímetros, correndo sempre em direcção às valas que circundavam o quartel que, apesar de mal feitas e pouco profundas, sempre ofereciam mais abrigo do que o terreno plano junto ao cais.

De relance analisei a situação: todo o quartel e aldeamento circundante estavam praticamente destruídos. As granadas de morteiro de cento e vinte milímetros, os foguetões de cento e vinte e dois, que continuavam a explodir por todo o lado tinham dado ao quartel um aspecto quase lunar com crateras por todos os lados. Das instalações do quartel, apenas um ou dois edifícios ainda se mantinha teimosamente de pé, apesar de muito danificados. O que vi nos primeiros minutos deixou-me impressionado. Nunca até aí eu vira nada semelhante, nem sonhara sequer que aquilo fosse possível, naquele tipo de guerra. Parecia um filme rodado no Vietname.

Entretanto, os bombardeamentos continuavam sempre com redobrada intensidade, obrigando-nos a permanecer na vala, quase sem hipótese de pôr a cabeça de fora sem correr o risco de a perder. A experiência que já tinha de situações anteriores dava-me a certeza de que tínhamos ali uma bota difícil senão impossível de descalçar.

Os soldados estavam aterrorizados e só poucos ainda mantinham um certo sangue-frio, frente a situação. A contestação era geral. Não contra os guerrilheiros que nos combatiam, mas sim contra quem nos tinha metido naquela embrulhada. Contra os que tinham ficado em Bissau na sombra agradável dos gabinetes, indiferentes à nossa sorte. Contra os que diziam que uma guerra não pode ser feita sem baixas esquecendo-se que se na realidade nas guerras tem que morrer soldados, sargentos e capitães, também logicamente terão de morrer coronéis e generais. Naquela, infelizmente isso não acontecia e só por essa razão durava já havia doze longos anos.

Os soldados perguntavam o que faziam ali, numa guerra estúpida, lutando contra um inimigo que nunca viam e nem sequer odiavam. Não obtinham resposta. Aqueles que lhe podiam responder, tinham ficado na retaguarda como abutres a espera de poder saborear os louros da vitória ou enjeitar a derrota. Culpando-nos, se a última acontecesse, de falta de combatividade, de coragem, ou eu sei lá que mais para assim poderem fugir aos fracassos de operações mal planeadas.

Que poderiam perceber de contra-guerrilha, homens que nunca tinham posto os pés no mato e cuja teoria e táctica da mesma não ia além da aprendida num casarão da Gomes Freire ou da Amadora ou ainda em alguns manuais feitos pelos generais da brigada do reumático, agarrados possivelmente a normas antigas de fazer a guerra que pouco tinham evoluído desde a batalha do Buçaco. É que muito possivelmente nem saberiam distinguir muito bem, entre o efeito destruidor de uma bomba de foguete desses utilizados nas romarias e uma granada de morteiro de cento e vinte milímetros? E para que haviam os nossos generais-guerrilheiros-improvisados responder a um simples soldado que, apesar de contestatário, lá ia combatendo, dando a vida para que eles pudessem comprar mais um automóvel de luxo e as mulheres e amantes pudessem continuar nas canastradas com as mulheres e amantes dos ministros e outros quejandos?


(Continua > Gadamael - Parte II >
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Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 11 de Fevereiro de 2007 >
Guiné 63/74 - P1515: Antologia (58): A batalha de Bissau em Janeiro de 1968: boinas verdes contra boinas negras... Saldo: 2 mortos (Carmo Vicente)

(...) "1º Sargento Paraquedista Carmo Vicente (...) participou em três comissões de serviço nas frentes de combate da Guiné e Moçambique.

"O testemunho do Sargento Carmo Vicente [sobre os tristes acontecimentos de Bissau, em Janeiro de 1968,] consta na obra Gadamael de sua autoria, das Edições Caso (2ª edição), de Julho de 1985 (páginas 25 a 30).

"Para além da referida obra, Carmo Vicente é também autor de Grades de Novembro, Gritos de Guerra, A Sentença, Era uma vez... 3 guerras em África, entre outras.


(**) Sobre Gadamael, vd. os seguintes postes:

2 de Julho de 2005 >
Guiné 69/71 - XCI: Antologia (6): A batalha de Guileje e Gadamael (Afonso M.F. Sousa / Serafim Lobato)

2 de Dezembro de 2005 >
Guiné 63/74 - CCCXXVIII: No corredor da morte (CCAV 8350, Guileje e Gadamael, 1972/73) (Magalhães Ribeiro)

15 de Junho de 2006 >
Guiné 63/74 - P878: Antologia (42): Os heróis desconhecidos de Gadamael (Parte I)

(...) Trabalho de investigação do jornalista Eduardo Dâmaso (Público, 26 de Junho de 2005) (...)

(...) A revolta do navio Orion, da Marinha portuguesa, no dia 2 de Junho de 1973 foi decisiva para salvar a vida de centenas de soldados e população que fugiram dos bombardeamentos do PAIGC na batalha de Gadamael. Este episódio de desobediência a ordens de Spínola, desconhecido até hoje, é indissociável da resistência travada por meia dúzia de soldados no interior do aquartelamento de Gadamael. As suas histórias são aqui contadas por alguns dos seus protagonistas, como o comandante da Marinha Pedro Lauret, o coronel dos comandos Manuel Ferreira da Silva e o grumete Ulisses Faria Pereira. Eles são, com outros, os heróis desconhecidos de Gadamael. (...)

...) "Seriam uma oito da manhã de 2 de Junho [de 1973] quando a Orion chegou ao largo de Cacine. Foi a essa hora que também chegaram as notícias dos acontecimentos que tinham estado na origem daquela missão.

(...) "O major Pessoa, do batalhão de pára-quedistas [BCP 12] que se encontrava em Cacine, subiu a bordo da Orion e explicou o que se estava a passar: a guarnição de Guileje, um quartel situado numa zona próxima da fronteira com a Guiné-Conakri, tinha sido alvo de ataques fortíssimos e o comandante da unidade, [major] Coutinho e Lima, sem reforços, sem apoio de tropas especiais, sem meios de evacuação de feridos e mortos, decidira retirar do quartel e evacuar todo o pessoal para Gadamael. Foi imediatamente preso e enviado para Bissau às ordens de Spínola. Gadamael estava agora debaixo de fogo intenso e de alta precisão.

"O retrato da situação em Gadamael feita pelo major Pessoa era caótico. 'As últimas indicações indicavam que de um conjunto de efectivos de quase três companhias, só se encontravam no quartel a defender aquela posição cerca de 30 homens. Os restantes e a população encontravam-se em fuga pelas margens do rio', recorda Pedro Lauret.

"A reacção de Spínola à deserção anunciava-se tremenda. O major Pessoa informou então os comandantes do Orion que tinha estado de manhã em Cacine e Gadamael por brevíssimos instantes e tinha proibido o socorro a quaisquer militares em fuga, considerando-os 'uns cobardes'.

(...) "Apesar das ordens de Spínola, a disposição do major Pessoa era outra. 'Informou-nos da urgência de ir socorrer esse pessoal devido ao elevadíssimo risco em que se encontravam. Frisou-nos que se não estivéssemos dispostos a ir contra a determinação do general ele próprio tentaria recuperar os militares, nem que fosse em canoas', afirma Lauret.

"A determinação do major Pessoa, que volvidos trinta e dois anos não quer falar sobre os acontecimentos de Gadamael, percorreu todo o navio. O Orion partiu de imediato em auxílio das tropas fugitivas e nada comunicou ao Comando da Defesa Marítima " (...).

15 de Junho de 2006 >
Guiné 63/74 - P879: Antologia (43): Os heróis desconhecidos de Gadamael (II Parte).

(...) Um momento alto do encontro do nosso 1º encontro na Ameira [em 2006] foi a evocação da LFG Orion por parte do ranger Casimiro Carvalho: foi através do nosso blogue que ele soube, trinta e três anos depois, que, além dos pára-quedistas [do BCP 12], houve outros anjos da guarda no princípio do mês de Junho de 1973, a guarnição da LFG Orion, representada na nossa tertúlia e no encontro da Ameira pelo comandante Pedro Lauret, na altura oficial imediato do navio (...).

(...) "Quem deu algum ânimo aos poucos que estavam foi desde logo o 1º cabo escriturário Raposo, açoriano, que se voluntariou para fazer o arriscadíssimo trajecto até ao paiol. Enfiou-se numa Berliet e foi buscar munições debaixo de fogo intenso. Gadamael estava cercado, sem artilharia, sem apoio aéreo, sem capitães, sem médico, sem rádio, sem munições de morteiro 81, tinha por companhia apenas três ou quatro militares na linha da frente.

"A bravura do cabo Raposo e do furriel Carvalho, porém, foi um encorajamento para todos. Com o morteiro 81 municiado pelas granadas trazidas na Berliet, com uma metralhadora que conseguiram montar e os tais três ou quatro militares passaram o resto da noite de 1 para 2 de Junho a lançar umas morteiradas e umas rajadas de metralhadora de tempos a tempos. Só no dia 2 de Junho é que se apercebeu que uma parte significativa dos militares que tinha fugido para a tabanca, se tinha deslocado com a população para junto do rio Cacine" (...).


5 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1151: Resposta ao Manuel Rebocho: O papel do Orion na batalha de Guileje/Gadamael (Pedro Lauret)

19 de Março de 2007 >
Guiné 63/74 - P1613: Com as CCP 121, 122 e 123 em Gadamael, em Junho/Julho de 1973: o outro inferno a sul (Victor Tavares, ex-1º cabo paraquedista)

(...) "Depois de regressada do inferno de Guidaje, a CCP 121 encontrava-se estacionada em Bissalanca, gozando um curto período de descanso, após a desgastante acção que tivera no norte da província.

"Daí o Comando Chefe entender que os 4 a 5 dias de descanso concedidos já eram demais e ser necessário o reforço das nossas tropas aquarteladas em Gadamael por se encontrarem em grandes dificuldades. Acaba, por isso, por dar ordens para rumarmos a Gadamael, para onde partimos a 12 de Junho de 1973.

"Partindo de Bissau em LDG [Lancha de Desembarque Grande] com destino a Cacine, lá chegámos a meio da tarde deste mesmo dia. Como a lancha que nos transportava, não conseguia atracar ao cais por falta de fundo, fomos fazendo o transbordo por várias vezes em LDM [Lanchas de Desembarque Médias] para aquela localidade.

(...) "No dia 13 de Junho, de manhã cedo, preparámo-nos para rumar a Gadamael, sendo transportados em Zebros do Destacamento de Fuzileiros Especiais Africanos nº 21, dois grupos de combate sendo colocados nas margens do rio nas proximidades de Gadamael para onde seguimos em patrulhamento depois de serem desembarcados os outros dois grupos de combate da 121 que foram deslocados em LDM. No regresso, as embarcações seguiram para Cacine com os pára-quedistas da CCP122, aonde iriam recuperar durante um curto período" (...).

25 de Março de 2007 >
Guiné 63/74 - P1625: José Casimiro Carvalho, dos Piratas de Guileje (CCAV 8350) aos Lacraus de Paunca (CCAÇ 11)

18 de Junho de 2007 >
Guiné 63/74 - P1856: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (5): Gadamael, Junho de 1973: 'Now we have peace'

25 de Janeiro de 2008 >
Guiné 63/74 - P2481: Guileje: Simpósio Internacional (1 a 7 de Março de 2008) (11): Malan Camará... e a maldição dos 3 G + 1 J (Manuel Rebocho)

27 de Janeiro de 2008 >
Guiné 63/74 - P2483: Estórias de Guileje (3): Devo a vida a um milícia que me salvou no Rio Cacine, quando fugia de Gadamael (ex-Fur Mil Art Paiva)

7 de Abril de 2008 >
Guiné 63/74 - P2729: Estórias de Guileje (10): os trânsfugas de Guileje, humilhados e ofendidos (Victor Tavares, CCP 121/BCP 12, 1972/74)

30 de Abril de 2008 >
Guiné 63/74 - P2801: Fotos e relatos de Gadamael, Maio / Julho de 1973, precisam-se (Nuno Rubim)

(...) "Como estou, como é vulgo dizer com a mão na massa, também penso realizar algumas pequenas pesquisas sobre outra saga, desta vez Gadamael.

"Já tenho o levantamento de todas as unidades que por lá passaram, mas naturalmente o que mais me vai ocupar é o período de Maio a Julho de 1973.

"Também seria muito interessante tentar fazer um esboço do que teria sido o aquartelamento nessa altura, sem abrigos blindados como os que houve em Guileje e Gadembel ...Só valas e trincheiras a céu aberto !" (...)

(***) David Ferreira Teixeira, Sold Pára-quedista, da CCP 123/BCP 12, morto em 14 de Abril de 1973.