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quarta-feira, 29 de maio de 2013

Guiné 63/74 - P11649: Crónicas de uma viagem à Guiné-Bissau: de 30 de abril a 12 de maio de 2013: reencontros com o passado (José Teixeira) (2): De Bissau até ao sul: Jugudul, Xitole, Saltinho, Contabane, Buba, Quebo...


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Xitole > Maio de 2013 > Restos do forte na Ponte dos Fulas

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Xitole > Maio de 2013 > A mesquita do Xitole


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Xitole > 1 de Maio de 2013 > O Francisco Silva junto ao memorial (ou o que resta dele) aos mortos da CART 2413.

[ A CART 2413 (Xitole, 1968/70), uma companhia com quem a CCAÇ 12 fez diversas operações no seu sector Esta subunidade, que será substituída pela CART 2716 (1970/72), teve 4 mortos, a saber (e de acordo com a lápide constante da imagem acima):

(i) Sold At Manuel de Sousa Branco, natural de Areosa, Rio Tinto, Gondomar, CART 2413/BCAÇ 2852, morto em combate, 25/10/1968. Os restos mortais estão no cemitério da sua Freguesia Natal (segundo a completíssima lista publicada pelo portal Utramar Terraweb, relativa aos mortos da guerra do Ultramar do concelho de Gondomar; acrescente-se: não só a mais completa como a mais fiável da lista dos mortos da guerra do ultramar, disponível na Internet);

(ii) Sold At Joaquim Gomes Dias Vale de Ossos, natural de Fradelos, Vila Nova de Famalicão, morto por afogamento em 7/11/1968. Está sepultado no cemitério da sua Freguesia Natal (Fonte: Portal Ultramar Terraweb);

(iii) Sold At Crispim Almeida da Costa, natural de Monte Calvo, Romariz, Santa Maria da Feira, falecido por doença em 3/4/1969 doença, e sepultado no cemitério da sua Freguesia Natal (Fonte: Portal Ultramar Terraweb);

(iv) Sold At Mário Ferreira de Azevedo, nascido em Cavadas, Vermoim, Maia, falecido também por doença, em 22/12/1969, e sepultado no cemitério concelhio (Fonte: Portal Ultramar Terraweb).



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Xitole > 1 de Maio de 1974 > O Francisco Silva (e em segundo plano a Armanda e a Elisabete) com habitantes do Xitole, falando do passado.



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho  > 1 de Maio de 2013 > O Rio Corubal... Ainda um "paraíso do Saltinho"...


Guiné-Bissau > Região de Tombali  > Contabane > 1 de Maio de 2013 > O Régulo de Contabane, o Suleimane, com a sua família,  mais o  Zé Teixeira e esposa, Armanda:  amizades que perduram.


Guiné-Bissau > Região de Tombali  > Quebo > 1 de Maio de 2013 > A feira semanal, sempre colorida e movimentada.



Guiné-Bissau > Região de Tombali  > Buba > 1 de Maio de 2013  > Por aqui passou o Pel Mort  1242 (1967/69).


Guiné-Bissau > Região de Tombali  > Buba > Maio de 2013  > Memorial do Pel Mort  1242 (1967/69). Ainda legíveis os nomes e quase todo os militares portugueses que o compunham. Era seu comandante o alf mil Clemente.

Fotos (e legendas): © José Teixeira (2013). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar:  LG]


Crónicas de uma viagem à Guiné-Bissau (28 de Abril - 12 de maio de 2013) - Parte II

por José Teixeira [, membro sénior da Tabanca Grande e ativista solidário da Tabanca Pequena, ONGD, de Matosinhos; partiu de Casablanca, de avião, e chegou a Bissau, já na madrugada do dia 30 de abril de 2013]


Partimos de Bissau pela manhã do dia seguinte [, 1 de maio, 4ª feira],  bem cedinho, com destino à Pousado do Saltinho [, onde pernoitámos]. O nosso destino final era Iemberém. Por agora queríamos peregrinar pelo Xitole, terra que o Francisco Silva bem conhecia e da qual estava roído de saudades (1).

Depois continuaríamos por Quebo, Mampatá Forreá e Buba, atravessar o rio Balana, subir a Gandembel, apanhar o carreiro da morte ou estrada da liberdade e seguir até Guiledje para apreciar o museu que a AD Acção para o Desenvolvimento está a construir para memória futura dum tempo que foi de sangue suor e lágrimas, muitas lágrimas.

Pernoitámos no Saltinho, depois de uma tarde bem vivida no Xitole, onde o Francisco Silva poisou e viveu grande parte da "sua" guerra, mas antes atravessamos parte da Guiné profunda em que em cada canto há uma estória para contar. 

A pista de Amedalae, ou a estrada transformada em pista de aviação para descarga da mal fadada droga, o Matu Cão, do Alfero Cabral, a Ponte dos Fulas, ou o Sr. Manuel Simões.  do Jugudul, o senhor que geria a empresa, à qual o exército português fretava os barcos para levar os mantimentos às suas tropas no interior. Amigo do Amílcar Cabral, a cujo funeral foi, transportando a bandeira do clube onde ambos eram associados e não foi preso quando regressou a Bissau. No fim da guerra comprou ao Nino Vieira o quartel do Jugudul e montou um alambique de água ardente de cana.

O negócio está mau, também para o Sr. Manuel,  ou o Nelinho Simões,  como era conhecido nos seus tempos de menino em Bolama. Hoje o alambique está parado. Não há dinheiro para comprar aguardente. Até o "choro" aos mortos deixou de ser aquela festança de arromba. Vai-se servindo o vinho de palma e o vinho de cajú, à falta de melhor.

Esta paragem no Saltinho foi uma oportunidade para mim de visitar um velho amigo de Mampatá, o Suleimane, atual Régulo de Contabane e sua mulher,  a Náná. Companheiros da minha juventude no que foi o melhor tempo que vivi na guerra. Não, porque houvesse paz, mas porque o povo de Mampatá, melhor que ninguém soube acolher-me na juventude perdida na guerra em que não queria participar.

Saboroso acolhimento, na companhia da minha esposa, que desta vez aceitou o desafio de me acompanhar nesta peregrinação à Guiné que não me cansa. Em cada passagem ficam memórias que persistem e obrigam a repensar um regresso

Gente extremamente simpática que sabe receber com calor humano e carinho. Gosto de conversar com eles e aprendo sempre qualquer coisa de novo. Aguardo agora que venham a Portugal para os poder acolher em minha casa.

Aqui, no Saltinho,  houve tempo para dar um mergulho no Rio Corubal, com as suas margens que nos transportam ao paraíso pela verdejante beleza natural que nos permitem desfrutar e lá seguimos para Quebo à procura do Habibo, o chefe da polícia local, também ele companheiro de outros tempos. Foi só um abraço, uma passagem pela feira que decorria e partimos de novo até Mampatá, a minha segunda terra. Um saltinho a Buba para rever a bela paisagem, agora perdida numa extensa plantação de cajueiros e onde não se pode tirar uma foto, nem aos memoriais deixados pelos militares portugueses.

 Zé Teixeira

Continua)_______________

Nota do autor:

(1) Este reencontro do Francisco, no Xitole, vai merecer uma crónica especial.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7252: (In)citações (18): Branco, na volta! Branco, na volta!, repetia a Fatemá em 2005... Com a sua morte perde-se um elo de ligação com os portugueses que passaram pelo regulado de Contabane (José Teixeira)

 1. Zé Teixeira disse em comentário ao poste P7249:


Não me lembro da Fatemá [, foto à esquerda, em 2005], quando trilhei as picadas de Quebo e Mampatá [, em 1968/70]. 


Recordo o Régulo Sambel, seu marido,  e a sua dedicação e fidelidade a Portugal.

O seu filho, o nosso amigo Suleimane, actual Régulo de Contabane, esse sim, como soldado milícia partilhou comigo algum...as aventuras em Mampatá. Hoje prezo muito a sua amizade e a da sua esposa, a Ádada,  que conheci ainda bajuda. Que bonita que era e ainda é!


Tal como o Paulo Santiago, tive a felicidade de conviver com a Fátemá em 2005, quando a Ádada [, foto à esquerda, em 2005] me reconheceu, passados trinta e cinco anos (que belo e feliz momento!). 


Estava a saborear este encontro, quando vejo surgir à porta da sua morança a velhinha Fatemá, que se dirige a mim com um sorriso, para logo me abraçar e com as lágrimas nos olhos me pedir Branco na volta, branco na volta !

Por mais que lhe dissesse que agora só lá íamos para matar saudades, ela insistia: Branco na volta!... Seguiu-se uma amena conversa, interrompida aqui e além pelos seus bisnetos que queriam brincar comigo ao fotógrafo.

Voltei em 2008. Notei que estava mais parada, porque os anos não perdoam. Retenho a imagem de uma mulher linda, apesar da idade, lúcida e sobretudo, tal como o filho e outros familiares que conheço, muito ligada a Portugal e aos portugueses que por lá passaram.

Com a sua morte perdeu-se um forte elo de ligação, com os portugueses que pisaram aqueles trilhos do Regulado de Contabane.


José Teixeira
[ Esquilo Sorridente]

___________

Nota de L.G.:

Guiné 63/74 - P7250: (In)citações (17): Recordando Fatemá e Sambel Baldé, tenente de 2ª linha, régulo de Contabane (José Brás)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Sambel  (ex-Contabane) > 2005 > Da direita para a esquerda: o Paulo Santiago, a Fatemá e o João Santiago.


Foto: © Paulo Santiago  (2005). Todos os direitos reservados





1. Comentário de José Brás (ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68, foto à esquerda), ao poste P7249:


A minha memória sobre a FATEMÁ, não é tão objectivamente clara como a que aqui aparece do camarada Santiago.

Há coisas da Guiné que me escapam hoje e penso mesmo que me escaparam sempre para minha desgraça pessoal porque tenho isso como uma lástima que não me aumenta razões para a consideração de outros nem de mim por mim próprio.

Tentando entender porque terá sido isso, quero crer que se deve a uma certa rejeição pela guerra e pelas razões da guerra e, nesse tempo, mesmo pelos seus intérpretes no terreno, apesar de também eu a ter assumido.

Por isso Fatemá era apenas a mais prestigiada das mulheres de Sambel [Baldé],  tenente de segunda linha, homem que permaneceu a nosso lado, creio que até ao fim da guerra.

Dele, lembro cartas que escrevi para um seu filho que estava em Lisboa e que ele queria em Contabane para casar com uma mulher "negociada" pelo pai, coisa que gerou conflito de posturas porque o filho, tendo escolhido mulher, outra, já não aceitava a decisão do pai.

Lembro também do posto rádio que montei em sua casa com AN-GRC 9 para apoiar uma incursão da minha companhia na estrada que ligava a Madina do Boé, operação que deu apenas uma vítima, cobra com mais de 4 metros apanhada pelos soldados e cozinhada em Aldeia Formosa.

E também me lembro do embaraço desse dia, obrigado a partilhar o arroz de chabéu com galinha na mesma malga de madeira onde comiam Sambel e as suas mulheres da forma tradicional da Guiné.

Sei que muito soldado português partilhou experiências destas sem quaisquer dificuldades, mas para mim não foi agradável, coisa que, como disse já, sinto hoje como postura verdadeiramente lamentável na medida em demonstra a pouca adaptação que terei tido nesta experiência.

Abraço

José Brás

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Nota de L.G.:

Último poste desta série, (In)citações > 27 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7179: (In)citações (21): Os irmãos Turpin, José e Eliseu, "verdadeiros filhos da Guiné" (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P7249: In Memoriam (60): Morreu Fatemá, Mulher Grande de Sinchã Sambel (ex-Contabane), mãe do Régulo Suleimane Baldé (Paulo Santiago)




MORREU A FATEMÁ!


1. Mensagem de Paulo Santiago* (ex-Alf Mil do Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72), com data de 8 de Novembro de 2010:

Telefonema que recebi, às 23.00 horas de ontem, do Zé Teixeira, que recebera a mesma notícia do Carlos Nery, que, por sua vez, a recebera de um antigo milícia.

MULHER GRANDE, GRANDE SENHORA, que conheci há 40 anos, tendo-a visitado em 2005  (*) e 2008.

Viúva do Régulo de Contabane, Sambel Baldé, mãe do actual Régulo, Suleimane Baldé, ex-1.º Cabo do PEL CAÇ NAT 53, que tive a honra de comandar.

A Fatemá ficou na memória de inúmeros militares que foram passando por Contabane, Aldeia Formosa e Saltinho, onde na outra margem do rio Corubal, nos anos de 70-71, foi construído o Reordenamento de Contabane, hoje chamado Sinchã Sambel.

O meu convívio, mais intenso, com a Fatemá decorreu no período em que vivi naquele Reordenamento, Maio a Agosto de 72. Nos dias em que não havia saídas para o mato, quase sempre, a seguir ao jantar tinha longas conversas com o Sambel e a Fatemá.

Ela lembrava-me a minha avó Clementina que me enviou o bolo-rei mais delicioso que até hoje comi, apesar de muito duro quando o recebi em Bambadinca, história que já contei.

A Fatemá era dotada de grande jovialidade e simpatia. Ainda hoje quando encontro algum ex-militar da CCAÇ 2701, sabendo que estive recentemente na Guiné, vem a pergunta - e a Fatemá ainda é viva? Como é que ela está?

Em Fevereiro de 2005, acompanhado pelo meu filho João, apareci de surpresa em Sinchã Sambel, a Fatemá fez-nos uma recepção que jamais esqueceremos. Sem o saber desencontrara-me do Suleimane que tinha vindo, dias antes para Lisboa, e a Fatemá, naquele dia foi régulo e chefe de tabanca. Ela mobilizou toda a aldeia para receber os visitantes. Foi uma tarde, prolongou-se pela noite, de fortes emoções onde pontificava aquela figura matriarcal que no final nos ofereceu um cabrito.


Sinchã Sambel, 2005 > Fatemá e Paulo Santiago, ladeados por amigos. Por de trás, João Santiago, filho do Paulo, que também quis sentir as emoções de seu pai ao voltar à Guiné da sua juventude.



Na Guiné, onde a esperança de vida é muito baixa, a Fatemá era uma excepção notável, e com certeza única, tempos atrás ultrapassara os cem anos. O Suleimane, ontem, quando lhe telefonei disse-me que a mãe tinha 114 (!?) anos, e sendo assim, nasceu no séc XIX, passou pelo séc XX e vem morrer no séc XXI. Soube envelhecer com dignidade, para quem nunca soube o que era botox ou pilling, a Fatemá tinha uma pele lisa, com muito poucas rugas, e para além deste aspecto exterior, possuía uma cabeça cheia de memórias. Em 2005, falou-me dos militares portugueses que foi conhecendo ao longo dos anos da guerra, uns que eu conhecia, outros não. Curiosamente, esqueceu o comandante da CCAÇ 3490, ou fez por bem não o mencionar.

Em Março de 2008, encontrei-a muito prostrada, muito apática, e já não me reconheceu

Ontem à tarde, segundo o Suleimane, "ficou-se"... morreu de velhice.

Hoje, às 10.00 horas, seria enterrada.

Que Alá a tenha em descanso.

Aguada de Cima, 8 de Novembro de 2010
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7208: In Memoriam (59): A todos quantos deram graciosamente a sua vida (José Teixeira)

(*) Sobre a viagem de 2005, vd o conjunto de sete postes que o Paulo escereveu na notável série As emoções de um regresso:



sábado, 29 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6489: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (15): A minha homenagem à enfermeira pára-quedista Ivone Reis que ficou em Contabane a cuidar dos feridos graves (Carlos Nery)

Mensagem do ex-Cap Mil  Carlos Nery, Comandante da CCAÇ 2382, Buba,  1968/70, a propósito do seu comentário no Poste P5971:

A minha homenagem à enfermeira pára-quedista Ivone Reis que ficou em Contabane a cuidar dos feridos graves e pelas fotos que tirou antes de o helicóptero descer

É talvez difícil de explicar o importante que era para nós, combatentes, a chegada de uma mulher ao local de combate onde sofrêramos baixas e estávamos ainda sob o efeito dessa traumatizante experiência. Senti-o intensamente em Contabane (*), na tabanca destruída por um dos ataques mais violentos da Guerra da Guiné.

A enfermeira pára-quedista Ivone quando se me dirigiu, tenho de o confessar, era a Pausa, o Lenitivo, a Mãe distante, a Noiva, a Mulher... Que sei eu? A sua decisão em ficar connosco, contrariando o estabelecido, enquanto os helicópteros levavam a Aldeia Formosa os feridos ligeiros, prestando os primeiros cuidados aos feridos graves que, em seguida, seriam levados para Bissau, foi de uma importância enorme para afastar a nossa angústia, para pôr uma pausa no nosso desespero!

Trocámos umas palavras, disse-lhe que aquela tinha sido a "minha noite mais longa"... Ouvi-lhe palavras apaziguadoras, que ainda guardo no meu íntimo.

Passadas semanas, já em Buba, recebo uma cartinha sua referindo essa "noite longa" acompanhada por duas fotos da tabanca destruída, tiradas por ela do helicóptero. Não serão muito bem tiradas mas são o objecto mais precioso das minhas recordações da Guiné.

Meu Deus, não sei se retribuí como devia essa carinhosa atenção!

**********

Olhando para as duas fotos oferecidas pela Enfermeira Ivone, tenho dificuldade em perceber de que ângulo foram feitas. É perfeitamente visível, nas duas, a Mesquita. Era a única construção feita com alguma solidez em Contabane. Dentro dela se refugiaram, durante o ataque, muitos cívis e alguns militares


Nesta foto, vêem-se algumas casas poupadas ao incêndio. Para cá da Mesquita está um abrigo em princípio de construção. O solo foi cavado e, junto, estão já colocados alguns troncos de palmeira. Creio que este ponto de vista é o do lado oposto ao da instalação inimiga e, portanto, menos atingido. Julgo que o lado Norte/Nordeste da tabanca. O caminho bem marcado que se vê à direita, junto da cabeça do piloto, será o que vai em direcção ao Saltinho. Mais abaixo, do lado esquerdo da foto, para cá do abrigo em início de construção, vê-se perfeitamente uma das fiadas de arame farpado; havia duas. Esta creio que foi a lançada pela minha companhia. A outra, lançada pela 5ª. Companhia de Comandos, parece estar logo atrás, embora não tão fácil de ver, por estar mais escurecida


Esta segunda foto foi tirada de mais perto e de um ângulo um pouco diferente. É perfeitamente visível o que restou de diversas casas consumidas pelo fogo. Dispersos pela tabanca vêem-se militares e cívis examinando as consequências do ataque.

Nas duas fotos parece perpassar um ambiente de perplexidade e de angústia. Aquela Contabane plena de vida e de simpatia tinha sido ferida de morte. Porém, a Companhia de "periquitos" tinha batido o pé a Nino e aos seus morteiros e canhões sem recuo. Haveria tempo para outros recontros com o Comandante lendário.
______________

Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 27 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6479: Histórias de Carlos Nery, ex-Cap Mil da CCAÇ 2382 (2): Noite longa em Contabane

Vd. comentário de Carlos Nery no poste de 11 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5971: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (12): Ivone Reis, a primeira Enfermeira Pára-quedista que conheci (Rosa Serra)

Vd. último poste da série de 29 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6487: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (14): As primeiras mulheres portuguesas equiparadas a militares (2): Maria Arminda (Rosa Serra)

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6479: Histórias de Carlos Nery, ex-Cap Mil da CCAÇ 2382 (2): Noite longa em Contabane

1. Mensagens de Carlos Nery* (ex-Cap Mil, CCAÇ 2382, Buba, 1968/70); com data de 24 de Maio de 2010:

Camaradas e amigos,
Depois de algum trabalho aqui estou a fazer o primeiro envio de material feito com cuidado. Não quer dizer que o que enviei anteriormente o não fosse mas este é, talvez, mais elaborado. Claro que tudo isto tem várias histórias (*)...


"Noite Longa em Contabane" foi-me pedido por Carlos Fabião creio que em 1983 ou 84, não estou bem certo. Encontrei-o após a Manif do 25 de Abril, ele tinha sido o orador ali no Rossio representando a Associação 25 de Abril. Na altura trabalhava no Guia do Terceiro Mundo com outros militares ligados ao 25 de Abril. Tiveram a ideia de publicar depoimentos sobre a Guerra com a intenção de que essa recolha, um dia mais tarde, pudesse ser objecto de consulta. Isto foi-me explicado quando estranhei a escassa tiragem do livro (creio que 2500 exemplares). Pois, no que me diz respeito, esse dia chegou...


Digitalizei o texto bem como fotografias que gostaria que fossem intercaladas no mesmo.
(Terei que enviar novo e-mail com mais fotos... O sistema já me avisou que atingi a capacidade máxima...)


Até já
CNery

***

Ontem (hoje, claro) estava cansadíssimo (acabei por me deitar já passava das 06:30...) e faltou dizer algumas coisas...

Enviei, como viram, o texto "Noite Longa em Contabane", o tal que escrevi a solicitação de Carlos Fabião para ser publicado na tal colecção "Memórias da Guerra Colonial" bem como o Relatório do Ataque a Contabane, também redigido por mim, respigado da História da Unidade da CCaç 2382.
Acho engraçado comparar os dois textos, um que pretende ser literário, pleno de adrenalina, de medo e de emoção, e o do Relatório, que pretende ser objectivo, frio e técnico... Receio que a minha "encomenda" ocupe excessivo espaço mas acharia graça que viessem ambos juntos.


Pronto, era isso...
Mais um abraço para vocês.
CNery


NOITE LONGA EM CONTABANE
por Carlos Nery Gomes de Araújo

Foto 1 - Pontão dos mal entendidos, Guiné 1969

— Morteiro 60?
— Pronto, meu capitão!
— Lança-granadas?
— Presente!
— Dilagrama?
— Estou aqui!

Olhei os homens à minha frente. Trabalhadores rurais, pescadores, empregados do pequeno comércio ou indústria, estudantes.
— Meter uma bala na câmara!

O ruído das culatras das G3 introduzindo os cartuchos nas câmaras fez-se ouvir, áspero.
— Patilhas em segurança!

Os soldados obedeceram. Recém-chegados à Guiné, pouco familiarizados com as armas recentemente distribuídas, sentíamos os camuflados novos flutuando sobre a pele.
— Está «no ir»!

Procurando aparentar segurança, utilizei a expressão ouvida aos veteranos. O dispositivo desdobrou-se numa sinuosa e reticente «bicha de pirilau».

Passámos além dos homens que faziam rolar grossos troncos de palmeira para cobertura de mais um abrigo de combate ou que desenrolavam arame farpado concluindo uma segunda rede de protecção.
— Aumentar os espaços entre cada dois homens!
— Se houver contacto de fogo, não abrir de rajada! Sempre tiro-a-tiro! Disciplina de fogo!

As ordens passavam agora de homem para homem em voz baixa. Naquele início de comissão resumiam o essencial dos meus conhecimentos de contra-guerrilha. Com menos de um mês de Guiné e escassos dias na região do Forreá tudo nos parecia estranho e assustador. Fiávamo-nos nos conhecimentos de mato dos três caçadores nativos que nos serviam de guias (Caç. Nat. na documentação operacional).

Contabane, a tabanca fula à nossa guarda, ia ficando para trás.

Acordáramos sentindo o seu frémito de vida. As mulheres no pilão descascando o arroz para as refeições do dia, num ritmo marcado por bater de palmas e cantares, as crianças brincando, a ladainha na escola árabe, as saudações complicadas dos «homens-grandes» que indagavam uns dos outros o bem-estar de todos os familiares e animais domésticos.

Afastávamo-nos pois daquele agregado humano, das mulheres preparando as refeições, tratando dos filhos ou lavando a roupa na fonte, dos homens partindo para o trabalho em lavra próxima ou orando, prostrados no chão, virados para Meca.

Numa larga «pontuada» atravessávamos zonas de capim seco, de denso «mato escuro», enterrávamos as botas de lona nos cursos de água engrossados pelas chuvas que chegavam. Suspendo o movimento da coluna. O pessoal agacha-se no terreno, armas para fora, perscrutando o mato hostil. O calor é pesado. Desarrolham-se cantis, bebem-se curtas goladas. Moscas minúsculas bailam teimosas à nossa volta insistentes nos nossos ouvidos e olhos. O «ladrar» do macaco-cão ouve-se perto.

Vou à frente procurando aperceber-me da forma como é conduzida a coluna.
– Capitão, há aqui perto uma tabanca abandonada, podíamos ir ver...

Encaro o jovem Caçador Nativo. Apercebo-me que não possui, afinal, a experiência que a princípio lhe atribuíra. Sinto-o imaturo. Afinal um adolescente excitado por acompanhar a tropa, envergando camuflado igual e empunhando uma arma.

Uma tabanca abandonada. Não terá merecido a atenção do inimigo? Mas, nesta região para nós desconhecida, há que estabelecer contacto com o real.
– Vamos lá então ver essa tabanca.

******

Durante anos a guerra passara ao largo da região onde estávamos. No Quebo, baptizado pelos portugueses de Aldeia Formosa, residia o Cherno Raschid, chefe espiritual de vasta área que se estendia para lá da fronteira.

O PAIGC, atendendo, certamente, à sua presença, evitara levar ali a guerra. Mas a guerrilha era portadora de uma ideia nova que, como todas as ideias novas, vinha para dividir.

Os tradicionalistas agarrados a hábitos, costumes e cultura ancestrais recebiam-na com indisfarçável reserva. Outros, seduzidos por essa mesma ideia, desapareciam indo engrossar as fileiras do exército revolucionário.
– Isto é uma guerra entre casados e solteiros... Pessoal casado, com casa, com filhos, não pode deixar tudo.
– Rapaz novo pode abandonar... — dir-me-ia Amadu, milícia em Buba.

Mas, ao aceitar armas aos portugueses, os fulas do Forreá comprometeram a imagem de neutralidade até aí existente. O PAIGC, acusando-os, também, de veicular informações para a tropa, abriu então, violentamente, hostilidades contra as populações que haviam aceitado colocar-se em autodefesa.

Perante os ataques a Contabane e Mampatá e a emboscada a uma viatura em que são «apanhados à mão» vários militares portugueses e passados pelas armas alguns milícias considerados traidores, são deslocados à pressa efectivos para a área.

Foto 2 – Militares portugueses em patrulha

A companhia cujo comando me fora entregue interrompeu assim o seu treino operacional em Bula, a norte de Bissau, e foi enviada para o Sul onde rendeu a 5.ª Companhia de Comandos que, na emergência, ali fora colocada dias antes.

Numa curva de mato denso surge-nos o que resta da tabanca. Naquela zona de África nada é perene. Os vestígios deixados pelo homem cedo são engolidos pela natureza estuante.

Foto 3 – Patrulha do PAICC

O colmo, que cobrira as casas, apodreceu, as chuvas desfizeram as paredes de adobe, a vegetação ameaça tudo invadir. Pretendo estabelecer uma meia-lua de segurança e efectuar um reconhecimento cauteloso. De súbito perco o controlo da situação. Os soldados descobrem, à entrada da tabanca, um renque de vegetação donde pendem, abundantes, ananases maduros e sumarentos As facas de mato brilham em movimentos rápidos e os bolsos dos camuflados enchem-se da dádiva inesperada.

Sinto o perigo desta quebra de disciplina, mas não tenho tempo para actuar. O rebentamento ecoa surdo e violento. Num ápice estamos cosidos à poeira procurando descobrir se somos alvo de algum ataque.

Ninguém se lembra mais dos ananases, embora alguns os sintam esmagar-se entre os corpos e o chão.
- Capitão! Capitão! — Ouço num apelo lancinante.

Procuro descobrir donde vem o chamamento. Caído no caminho de acesso à povoação, rodeado ainda da espessa nuvem negra do rebentamento de uma mina, descubro o jovem caçador nativo que me sugerira «ir ver» a tabanca abandonada.
– Acode-me! Capitão, acode-me!

Vejo-o no seu desespero, sem o pé esquerdo, canela transformada em brutal flor de sangue.
– O enfermeiro! — A ordem percorre os homens ainda de borco.

A resposta chega-me a medo.
– Não veio...

Com os diabos, se há responsável sou eu! Como foi possível esquecer-me do enfermeiro! Ninguém se atreve, no receio de um campo de minas, a ir junto do ferido. Tenho que ir eu. Agarra-se a mim num desespero. Sinto os seus dedos enclavinhados no meu camuflado.
– Salva-me, capitão!

Puxo do meu penso individual de combate. À distância são-me atirados outros. E não sei — ai, não sei!, não, não sei! — como improviso um torniquete, como ligo aquela ferida absurda, descobrindo o que é o cheiro do sangue e sentindo o seu contacto viscoso e espesso nas mãos.

Uma porta meio queimada e duas G3 improvisam uma maca. Peço pela rádio a evacuação do ferido.
Ouço, nítidas, interferências inimigas, na rede, utilizando os nossos indicativos.

Interrompo a comunicação. A tarde cai, os helicópteros não virão a esta hora.

Regressamos, em marcha acelerada, transportando o ferido, carregados de apreensão, no amargo daquele fim de tarde de Junho de 1968.

*******

O inimigo, ultimando a cuidadosa instalação para o ataque que viera fazer, viu ser arredado o cavalo de frisa colocado à entrada de Contabane e sair uma viatura a grande velocidade.

Assistiu ao seu regresso, transportando o ferido que, abandonados os cuidados da progressão a corta mato, trazíamos pela estrada.

Viu também entrar a tropa apeada. Tudo observou sem se revelar. O planeado não sofria alteração, mesmo quando um alvo inesperado se oferecia a escassas dezenas de metros.

Instalar os canhões em posição de tiro directo, colocar-lhes junto as munições a utilizar, lançar um dispositivo de segurança, não é coisa fácil se se não quer ser pressentido.

Fizeram-no e aguardaram o sinal de iniciar o ataque.

******

Recebêramos, dias antes, a visita de Spínola. Acompanhado do seu séquito, descera dos helicópteros que haviam pousado numa aberta junto do arame farpado.

Camuflado de bom corte, botas de cabedal reluzentes, luvas negras, pingalim e monóculo penetrara na tabanca num passo rápido e decidido. As mulheres da população faziam adejar à sua volta lenços e panos coloridos. Afastou, com aparente desagrado, a manifestação de cortesia.

Vinham ainda longe os tempos da guerra psicológica e das suas tentativas de intervenção política «por uma Guiné melhor». Viera falar de guerra, com quem, em princípio, ali estava para a fazer.

Quis ser conduzido ao posto de comando, ser informado da situação. Fez perguntas de que conhecia, certamente, as respostas, tentando avaliar da minha capacidade para assumir a responsabilidade daquela posição tornada subitamente quente.

Por trás dele, Almeida Bruno fazia-me sinais encorajando as minhas respostas certamente pouco satisfatórias.

Foto 4 – Reabastecimentos portugueses. Como passar?

******

Cumprindo, em tempo de paz, o meu serviço militar obrigatório, voltara a ser chamado, dez anos depois, para frequentar um curso de comandantes de companhia em Mafra. A medida que a guerra se prolongava, mais escasseavam as «vocações» para a carreira de militar profissional. Nos últimos anos contavam-se pelos dedos de uma só mão o número de inscrições nos cursos das três armas em funcionamento na Academia Militar. Houve, então, que recorrer aos milicianos para assegurar o comando de companhias operacionais.

Abandonada a minha mesa de trabalho num banco da Baixa lisboeta, juntara-me a um grupo de «chefes de família», melhor ou pior instalados na vida que, não escondendo a sua contrariedade, iam ser preparados «à pressão» para assumir o comando de homens nas três frentes de combate em África.

Estranhamente, os nossos instrutores em Mafra só conheciam a guerra da leitura dos manuais ou dos relatos dos seus camaradas com experiência de combate.

Pertenciam ao curso do filho de um ministro de então e esta «coincidência» garantiu-lhes, durante anos, um estatuto de especialistas de contra-guerrilha sem nunca terem ouvido assobiar uma bala em combate.

Foto 5 – Coluna do PAICC

Numa casa de colmo transformada em improvisado posto clínico, o enfermeiro dá soro ao ferido. Há que esperar pelo nascer do dia para proceder à evacuação.
– Um homem de cada abrigo vem buscar as terrinas com o jantar para o seu pessoal — ouço-me dizer, numa inspiração que vai poupar muitas vidas.

Tiro o meu dólmen suado e, de tronco nu, encosto a G3 e aceito um prato de sopa onde mergulho a colher.

Subitamente o lusco-fusco acende-se num turbilhão de fogo. De diversas direcções o inimigo abre o ataque com rajadas de bala tracejante apontada aos tectos de colmo seco das casas.

Em segundos o incêndio alastra por toda a tabanca em grossas labaredas crescendo para o negro da noite que desce. Os canhões sem recuo despejam toda a munição sobre nós. A seguir, os morteiros ajustam também o seu fogo.

Consigo atingir a posição do nosso morteiro 81. Abrigados no círculo definido por bidões cheios de terra, uma mulher com um filho de colo, três rapazitos tentando ajudar no manuseamento da arma colectiva, eu e o alferes Mendes Ferreira. Combatentes inexperientes, sem possuir ainda a serenidade que nos permita detectar a zona de instalação inimiga, inclinamos a olho o tubo e vamos introduzindo, uma após outra, as munições de que dispomos.

Encosto-me inadvertidamente ao tubo aquecido e sofro no peito um vergão de fogo.

Próximo, o paiol improvisado, onde depositáramos a dotação de munições da companhia, é atingido. Aos rebentamentos das granadas inimigas, junta-se o barulho indescritível dos cunhetes de cartuchos e de granadas rebentando em girândola infernal. Balas e estilhaços assobiam em todas as direcções.

A nossa companheira do refúgio foge com o filho agarrado. Esgotadas as munições de morteiro, não faço nada ali e exponho-me a qualquer granada que possa cair próximo.
– Vou ver se encontro uma G3 e procurar atingir um abrigo de combate.

O alferes fará o mesmo, procurando outro abrigo. Corro para a cozinha de campanha onde vira uma arma encostada a um caldeiro.Agarro-a. Custa-me orientar na confusão em que tudo se transformou, perdidos os pontos de referência a que me habituei.

Abrigados junto de uma parede semi-destruída, vislumbro os vultos do jovem guia dessa -tarde e do furriel enfermeiro da companhia.
– Então, como está ele? — pergunto.
– Está porreiro, meu capitão, aguenta-se!

Corro, curvado, para o abrigo que me parece mais exposto ao fogo do inimigo, esperando poder ter aí algum controlo do que acontece à minha volta.

O meu vulto iluminado pelo clarão do incêndio é alvejado. Ouço as balas assobiar à minha volta. Enfio-me no abrigo cavado no chão coberto de troncos de palmeira e de terra batida, extensa abertura permitindo a utilização de armas individuais.

Os homens lá dentro reagem de maneiras diversas. Há quem combata, mas há também quem chore ou reze no chão. Vou para a seteira e incito estes últimos a combater também.
– Estamos a pôr balas nos carregadores... — ouço a justificação frouxa.

O espaço em frente, fortemente iluminado pelas chamas do incêndio que lavra nas nossas costas, é varrido pelos nossos olhos assustados. Sinto, mas sinto claramente, os dentes baterem enquanto disparo, dois tiros rápidos e pausa, em resposta aos clarões das armas inimigas, em frente.

Em combate nocturno fazer fogo é revelar a nossa posição, é dos livros e facilmente comprovável agora. Por outro lado, no escuro, não se vê o ponto de mira da arma, pelo que não é fácil fazer tiro com um mínimo de precisão. Ah, quem tivesse previsto a situação e posto ali um pingo de tinta branca!

Os pensamentos sucedem-se, caóticos. E se eles vêm ao arame farpado? Se o ultrapassam nalgum ponto e se se aproximam do abrigo introduzindo-lhe uma granada de mão?

Julgo ver vultos deslocando-se em direcção ao abrigo. Saio de arma em riste. São vacas que correm em pânico entre as duas fiadas de arame, acossadas pelo fogo do combate.

Volto a entrar. Não sei se consigo sorrir do meu susto. O Boiça, sargento da companhia, desloca-se de abrigo para abrigo substituindo comunicações que desapareceram no incêndio e na confusão.
– Há mortos?
– Não, meu capitão. Só alguns feridos... Há abrigos atingidos por morteiradas, mas aguentaram. Quer que transmita algumas instruções?
– Evitem o tiro de rajada. Respondam aos disparos inimigos com séries curtas de dois ou três tiros. E você não ande para aí a expor-se inutilmente.
– É só levar um pouco de ânimo ao pessoal, capitão, e ver se há falta de munições nalgum abrigo.

O perigo da situação residia, efectivamente, em ficar-se sem munições ou encravarem-se as armas se demasiado aquecidas em resultado de uma utilização sem critério.

O aparente enfraquecimento da nossa resposta encoraja uma tentativa de assalto que é repelida pelo aumento de intensidade dos nossos disparos.

A poderosa tempestade africana chegou, subitamente, feita de grossas cordas de água, relâmpagos e trovões assustadores.

O incêndio extingue-se e, agora, só a luz dos relâmpagos permite vislumbrar a faixa de terreno que nos separa dos atacantes. Em breve, a água acumulada no fundo do abrigo atinge os nossos joelhos.

O fogo dos canhões e morteiros suspende-se, finalmente, substituído pelo das armas individuais que redobra de intensidade.

Sinal de retirada, viríamos a saber.

******

Clareia o dia.

Dos abrigos e da mesquita árabe — único edifício de tijolo, cimento e cobertura de zinco — saem militares e elementos da população observando as consequências do ataque.
O incêndio, os impactes dos projécteis inimigos, tudo reduziram a ruínas.

Fatmatá, mulher grande do régulo Sambel, apoia-se no meu braço e chora em silêncio. Rapazitos vasculham procurando entre as cinzas objectos que satisfaçam a sua cobiça.

Comenta-se a precisão e a violência do ataque, contam-se os impactes dentro do recinto defensivo, avaliam-se os prejuízos materiais.

A preocupação maior, porém, são os nossos feridos. Além do Caçador Nativo, vítima da mina anti-pessoal accionada na véspera, há mais três soldados feridos com gravidade e três civis atingidos.

O reconhecimento às posições inimigas, surpreendentemente próximas do arame farpado, revela sinais de corpos arrastados e, apesar da chuva abundante que caiu, vestígios de sangue.

******

Nino, comandante da Frente--Sul, o combatente lendário, cruza a fronteira à frente dos seus homens, terminada mais uma missão.

Encharcados pela chuva, carregando canhões e morteiros, os guerrilheiros sentem, também, a dureza da guerra, dureza traduzida nas baixas sofridas. Uma vez mais tinham tomado a iniciativa, ocupando posições necessariamente mais expostas do que as da tropa instalada defensivamente, e isso tinha o seu preço, também.

******

Estamos isolados em resultado da destruição de todo o material rádio. Por outro lado, o improvisado posto clínico desapareceu, não dispondo nós, sequer, de meios mínimos para primeiros socorros.

Um civil oferece-se para levar uma mensagem ao quartel mais próximo utilizando a sua bicicleta. Não é necessário.

Somos sobrevoados por jactos da Força Aérea e, pouco depois, dois helicópteros pousam na periferia da tabanca.

Foto 6 – Exército português, Transmissões

Envergando o seu camuflado de pára-quedista, adianta-se uma mulher:
– Os helicópteros vão levar os feridos ligeiros a Aldeia Formosa, regressando imediatamente para recolher os mais graves que vão comigo para Bissau. Embora tenha ordens para nunca ficar em terra, vou abrir uma excepção e espero aqui com vocês.

Junto das quatro macas alinhadas no cenário desolado, contra o céu azul da manhã, Ivone, a enfermeira pára-quedista, é oficiante de um ritual rigoroso. Frascos de sangue vermelho-negro levantam-se ao céu facilitando a passagem do seu conteúdo para as veias dos feridos.

Paro junto do soldado Fortuna, atingido na cabeça por um estilhaço de granada que atingira o seu abrigo.
– Para vocês “isto” acabou. Vais voltar para a terra, até é melhor... ouço-me dizer.

Será evacuado para o Hospital Principal em Lisboa. Talvez tenha terminado a guerra para ele. A que preço?

Ajoelho junto do jovem africano, pouso a mão na sua cabeça, enquanto procuro palavras de conforto:
– Vais ser bem tratado, a tropa não te esquece. Vais para o hospital, vais ter um pé novo, ninguém vai notar a diferença.

As palavras soam-me tragicamente absurdas, sinto na garganta um aperto inenarrável e, com as lágrimas de revolta que me queimam a cara — as minhas últimas verdadeiras lágrimas —, sinto que muito de mim se perde, se perde irremediavelmente.

Carlos Nery Gomes de Araújo
in Memórias da Guerra Colonial,
tomo 2, 1ª Edição,
Andrómeda Publicações,
Novembro 1984


Relatório do Ataque a Contabane, também redigido por mim, respigado da História da Unidade da CCaç 2382.





Clicar nas imagens para ampliar

Fotos: © Ten. Nuno Barbieri do DFE 7 e Carlos Nery (2010). Direitos reservados

Fixação do texto: Carlos Vinhal. Vd. mais referências (14) a Contabane.
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 15 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6392: Histórias de Carlos Nery, ex-Cap Mil da CCAÇ 2382 (1): Nós e os mandingas de Buba, que colaboravam com o PAIGC, e que foram evacuados para Bubaque em Abril de 1969 (Carlos Nery)

Vd. poste de 19 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3141: Venturas e Desventuras do Zé do Olho Vivo (Manuel Traquina) (2): O ataque de 22 de Junho de 1968 a Contabane

domingo, 18 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6184: Em busca de... (126): Localização de Camaradas da CCAÇ 2382 (José M. M. Cancela)


1. O nosso Camarada José Cancela, ex-Soldado A M da CCAÇ 2382, Bula, Buba, Aldeia Formosa, Contabane, Mampatá e Chamarra, 1968/70, enviou-nos, em 9 de Abril de 2010, o seguinte apelo:


CCAÇ 2381 & CCAÇ 2382
Localização de antigos combatentes
Camaradas,

Como já foi noticiado pelo Camarada José Teixeira (em 20 de Março, no poste P6024), irá realizar-se a 1 de Maio um encontro dos antigos combatentes das CCAÇ 2381 e CCAÇ 2382 (a minha companhia).

Existem Camaradas que, até hoje, nunca deram sinais de vida.

Solicito-vos que publiquem, no nosso blogue, o nome dos mesmos, na tentativa de os reencontrar!

São eles:
 
Alf Mil António Lopes Ferreira
Sold Condutor Filipe Manuel Nogueira Martins
“ “ Agostinho dos Santos Moreira (Rio de Mina - Vila Nova da Telha)
Sold Armas Pesadas José Paiva Lopes
..“..... “........ “.... Manuel Tomé Brás
Sold Atirador José António dos Santos (Montegrão - S. Mamede - Torres Vedras)
..“....... “.... António Batista da Silva (Sintra)
..“....... “.... Manuel da Silva Teixeira
..“....... “.... Artur das Neves Pereira
..“....... “.... Armando Manuel S. Rodrigues
..“....... “.... António Carlos Pinto da Fonseca
..“....... “.... Isaltino de Almeida (proveniente da CCAÇ 1742)
..“....... “.... Joaquim Gonçalves dos Santos (Rendeu o Lavareda)
..“....... “.... Manuel Fernandes Pinto (Rendeu o Malhoa)
..“....... “.... Manuel Firmino Pinto Lima (Rendeu o Fidalgo)
..“....... “.... Manuel da Cunha Mota (Rendeu o José Paiva)
..“....... “.... Armando Neves Assunção (Rendeu o Januário Morgado Neiva)
..“....... “.... José Pinto (Rendeu o Fortuna)
2º Sargento Manuel Leitão Silvério (Rendeu o Gonçalo)
........“...... Henrique Soares Correia (Rendeu o Farracho Mota)

Um grande abraço de Buba a Aldeia Formosa, abrangendo Nhala e Mampatá
José MM Cancela
Sold A M da CCAÇ 2382
_________

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4829: Parabéns a você (18): José Manuel Moreira Cancela da CCAÇ 2382 (Os Editores)

Hoje, dia 17 de Agosto de 2009, está de parabéns o nosso camarada José Cancela que se apresentou à Tabanca Grande Janeiro deste ano.

José Cancela, ex-Soldado AM da CCAÇ 2382, Bula, Buba, Aldeia Formosa, Contabane, Mampatá e Chamarra, 1968/70.


Escrevia assim o nosso camarada na sua mensagem de 28 de Janeiro de 2009 (*):

Caros camaradas editores Luís, Vinhal e Briote

Antes de mais passo a apresentar-me:
Sou o José Manuel Moreira Cancela, fui Soldado A.M. da CCaç 2382 e sou ex-camarada do tertuliano Manuel Traquina

Estive emigrado entre 1970 e 2003 e, em todo esse tempo, e por muito que procurasse, nunca consegui encontrar qualquer camarada de armas, até que um dia recebo um telefonema de Coimbra, do meu amigo Fausto, Enfermeiro, que conseguiu encontrar-me em 2006, através da lista telefonica, tão simples quanto isso.

Claro que fiquei feliz e muito emocionado e logo no ano a seguir fui à minha primeira concentração da nossa Companhia, que se realizou em Coimbra.

Não sei descrever a alegria que senti ao ver aquela malta com quem convivi durante dois anos. Claro que tive de me apresentar, pois à parte o Fausto com quem me tinha encontrado depois do telefonema, não reconheci ninguém, trinta e oito anos mudam-nos, e de que maneira.

Fica-me em especial recordação, aquele abraço do meu amigo Vieira, que me ia partindo todo. Ele ao ver que me apertou demais, volveu-me o seguinte, com aquele sotaque à moda do Porto que eu adoro:

- Desculpa lá, carago, é da imoçom.

Depois de um lauto almoço, fomos revivendo tudo que de bom e de mau passámos na Guiné e recordando as terras por onde palmilhámos. Foram elas: BISSAU, BULA, BUBA, ALDEIA FORMOSA, CONTABANE, MAMPATÁ e CHAMARRA e, em cada uma destas, há uma história para contar, mas fica para a próxima.

Caros editores, desculpem se isto não vai conforme, mas eu sou ainda muito periquito nisto.

Um abraço grande como o mundo, para todos os ex-combatentes e em especial os da Guiné
J.M.M. Cancela


A Tertúlia deseja ao camarada José Cancela um dia de aniversário pleno de saúde e felicidade junto dos seus familiares e amigos. Este dia há-de comemorar-se durante muitos anos e deste lado estaremos aqui nós para lembrá-lo.
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 9 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3857: Tabanca Grande (113): José Manuel Moreira Cancela, ex-Soldado AM da CCAÇ 2382 (Guiné, 1968/70)

Vd. último poste da série de 10 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4805: Parabéns a você (17): Alberto Nascimento da CCAÇ 84 e Tomás Carneiro da CCAÇ 4745 (Os Editores)

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Guiné 63/74 - P3857: Tabanca Grande (113): José Manuel Moreira Cancela, ex-Soldado AM da CCAÇ 2382 (Guiné, 1968/70)

1. Mensagem de José Manuel Moreira Cancela, ex-Soldado AM da CCAÇ 2382, Bula, Buba, Aldeia Formosa, Contabane, Mampatá e Chamarra, 1968/70, com data de 28 de Janeiro de 2009:

Caros camaradas editores Luís, Vinhal e Briote

Antes de mais passo a apresentar-me:
Sou o José Manuel Moreira Cancela, fui Soldado A.M. da CCaç 2382 e sou ex-camarada do tertuliano Manuel Traquina

Estive emigrado entre 1970 e 2003 e, em todo esse tempo, e por muito que procurasse, nunca consegui encontrar qualquer camarada de armas, até que um dia recebo um telefonema de Coimbra, do meu amigo Fausto, Enfermeiro, que conseguiu encontrar-me em 2006, através da lista telefonica, tão simples quanto isso.

Claro que fiquei feliz e muito emocionado e logo no ano a seguir fui à minha primeira concentração da nossa Companhia, que se realizou em Coimbra.

Não sei descrever a alegria que senti ao ver aquela malta com quem convivi durante dois anos. Claro que tive de me apresentar, pois à parte o Fausto com quem me tinha encontrado depois do telefonema, não reconheci ninguém, trinta e oito anos mudam-nos, e de que maneira.

Fica-me em especial recordação, aquele abraço do meu amigo Vieira, que me ia partindo todo. Ele ao ver que me apertou demais, volveu-me o seguinte, com aquele sotaque à moda do Porto que eu adoro:
- Desculpa lá, carago, é da imoçom.

Depois de um lauto almoço, fomos revivendo tudo que de bom e de mau passámos na Guiné e recordando as terras por onde palmilhámos. Foram elas: BISSAU, BULA, BUBA, ALDEIA FORMOSA, CONTABANE, MAMPATÁ e CHAMARRA e, em cada uma destas, há uma história para contar, mas fica para a próxima.

Caros editores, desculpem se isto não vai conforme, mas eu sou ainda muito periquito nisto.

Um abraço grande como o mundo, para todos os ex-combatentes e em especial os da Guiné
J.M.M.Cancela


2. Comentário de CV

Caro Cancela,

Quase podeis mandar formar a CCAÇ 2382 na Parada da Tabanca Grande. Ainda bem. Entra e junta-te aos teus camaradas Manuel Traquina e Alberto Sousa e Silva.

Desculpa, mas não percebi qual era a tua Especialidade. Depois esclarece-me.
Não te acanhes pela tua pouca experiência na Informática. Com tempo e persistência ficas mestre. Além disso, nós cá estamos para dar uma ajuda numa ou outra coisita menos bem.

Compreendo a tua alegria ao ver os teus camaradas, (desculpa este aparte, eles ainda são e serão para sempre teus camaradas) porque este ano realizou-se o primeiro encontro da minha Companhia (CART 2732, Mansabá, 1970/72) e senti o mesmo que tu.

Com respeito à piadinha do à moda do Porto, vou ignorar, para não nos zangarmos logo na primeira vez que trocamos impressões. Mas, bem vistas as coisas, os homens do Norte são mesmo assim, carago e o Porto é uma naçom.

Em nome da Tertúlia deixo-te um abraço de boas-vindas.
Carlos Vinhal
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da serie de 8 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3854: Tabanca Grande (112): Alberto Sousa e Silva, ex-Soldado de Transmissões da CCAÇ 2382, Buba, 1968/70

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Guiné 63/74 - P3842: Tabanca Grande (111): José Brás, ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 1622, Guiné 1966/68

1. Mensagem de José Brás, ex-Fur Mil TRMSda CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68, com data de 2 de Fevereiro de 2009: 

Caros Luís Graça e Carlos Vinhal

Enviei a 19 do mês passado, como digo abaixo numa 2.ª via enviada a 27.01.09, um texto em jeito de “carta (entre)aberta a Joaquim Mexia Alves.

Nesse meu texto mostrava a minha visão sobre a questão da “guerra” através da oportunidade “Guilege”.

Não é um texto, segundo creio, nem ofensivo nem muito (e polemicamente) contrário ao do JMA, já que, deplorando profundamente aquela parte da história do meu (nosso) País na tendência de uma perspectiva universalista (perdoem a pretensão) do homem, do passado e do futuro do homem, que tenho tentado manter, não recuso falar dos actos militares, a bravura, o heroísmo, mesmo, de alguns, direi, da maior parte que sofreu a dureza do isolamento, do cerco psicológico e de facto, algumas vezes a fome, o choro pelos mortos e a incompreensão sobre aquilo tudo.

Nem recuso o debate sobre vitórias e derrotas, pese embora a certeza que tinha já, no terreno, da impossibilidade da vitória definitiva.

Penso que alguma polémica não faz mal a ninguém, sobretudo se soubermos guardar o respeito pelos “adversários” de circunstância, de facto amigos e irmãos.

Daí ter estranhado que, nem a 19, nem a 27, tenha visto sinais do texto ou da sua recepção.

Entretanto, na ressaca, outros textos me saíram, enviados ao Mário, camarada da Guiné e colega antigo da TAP.

Hoje mesmo recebi dele sinais de que o meu texto não havia chegado nunca ao destino certo.

Enviava também duas fotos como forma de abrir a porta e entrar na Tabanca.

Dos textos que enviei ao Mário, o Mário mesmo pode reenviá-los e vocês far-lhe-ão o que acharem mais indicado, na certeza de que não quero entrar de rompante e ocupar terrenos que só vocês sabem como gerir em equilíbrio.

Portantos (como se diz por aí à bruta), aqui vai de novo o primeiro texto que enviei, provavelmente já anacrónico na diferença das datas e das águas que já correram. 

Um grande abraço e votos de bom trabalho.
Até breve
José Brás


2. Mensagem de José Brás com data de 27 de Janeiro de 2009, a qual não encontrámos entre a correspondência recebida:

Caro Luís Graça
Enviei a 19.01.09 (ou penso que enviei) o texto abaixo junto com carta aberta a J. Mexia Alves sobre intervenção sua e editada no blogue acerca da chamada “batalha de Guilege”.

Acompanhavam tal texto duas fotos, uma antiga e outra actual, forma que julgo suficiente para ser considerado um novo “camarada” da Tabanca Grande.

Entretanto novos textos foram aparecendo sobre o mesmo tema, uns, como o de JMA, deambulando por caminhos de análise puramente militar e hipermetrópica, própria do contrário da história, outras que, como eu, não negando a análise militar (tudo é analisável), não arredam a parte mais interessante da visão universal do direito dos seres humanos a disporem da sua vida e da sua liberdade num mundo que sempre se sonha melhor no futuro.

Estive com alguns problemas no meu computador e, no exemplo do que aconteceu com outras mensagens para outros destinatários, temo que não tenha chegado ao teu correio o texto que refiro acima como enviado.

Indicia tal situação o facto de não lhe ter visto mais qualquer referência no blogue, nem ter recebido eu a acusação da recepção.

Desse modo o reenvio agora com um abraço de cumplicidade a todos os que mantém o interesse na discussão plural e aberta sobre uma página da nossa história que, como todas as histórias, individuais ou colectivas, não se fazem apenas de glórias e heroísmos mas também de muitas misérias e cobardias.

José Brás

Carta (entreaberta) para Joaquim Mexia Alves e … não só
Via Tabanca Grande


Caro amigo
Talvez não seja correcto dizer-se que não nos conhecemos, que nunca nos encontrámos por aí, nas andanças de paisanos metidos a “tropas” em circunstâncias que não desejámos, seguramente, nem eu nem o meu amigo.
Daí que talvez não fosse apropriado o tratamento de “caro amigo” e que o estranhe por o ter usado eu, aqui.
Contudo, a mim me parece não ser verdade verdadeira a afirmação de que nunca nos encontrámos, tendo estado nos mesmos lugares, caminhado nos mesmos caminhos, respirado fundo sob as mesmas árvores, suado do mesmo calor e da mesma humidade, bebido da mesma água (quem disse que o rio não corre duas vezes no mesmo lugar?), sentido as mesma angústias, sofrido as mesmas dúvidas (ao contrário do outro, nós tínhamos dúvidas e enganávamo-nos algumas vezes, não era?), visto os mesmos esgares de dor de quem partia…apenas porque nada disso foi contemporâneo.
O amigo esteve no Xitole em 71 e, provavelmente mergulhou uma vez ou outra no Saltinho, patrulhou por Contabane e Aldeia Formosa. Eu estive uns meses em Aldeia Formosa em 67 (e em Mejo depois) e mergulhei também nos rápidos, almocei e bebi uns copos com a malta do Xitole sempre que me deu na gana fazer o “passeio”, às vezes apenas dois ou três “malucos” num jipe velho.
Lembro-me de uma vez em que jogávamos à bola no “estádio” local quando as morteiradas começaram a sair da mata e a cair bem perto.
Lembro-me de uma noite passada do outro lado do Rio Corubal, ouvindo os motores do Xitole, dormindo antes do ataque a “Portugal Pequenino”, onde tivemos um morto e vários feridos.
Estou seguro que a palavra amigo não está aqui a mais.
Ainda que não estejamos de acordo sobre a questão da “Retirada de Guileje”!
Quer dizer. O desacordo não tem tanto a ver com a análise da “acção militar” que lhe deu forma, com a classificação de certa ou errada, de vitória ou derrota militar que aqui esteve presente. O desacordo tem mais a ver com “os olhos” com que se vê o acto.
O amigo quer fazer análise puramente militar, decalcar dos compêndios militares os conceitos, as definições, os princípios, os objectivos, instrumentos e ferramentas que fabricavam os futuros generais. Amílcar Cabral não frequentou os bancos de tais universidades, como os não frequentaram Ho Chi Min, nem Giap.
Eu recuso-me a um exercício desses. Se bem que não tenha recusado a guerra nem na guerra o risco do pêlo algumas vezes; se bem que nunca me tenha sido indiferente olhar para dentro da “inteligência militar” deste País e de outros em casos parelhas; se bem que sempre tenha prestado a homenagem devida à coragem individual e colectiva, tantas vezes exibida naquela terra por portugueses militares feitos à pressa ou profissionais saídos das tais escolas; se bem que isto e aquilo, eu gosto mais de pesar tudo isso à luz dos caminhos da história; à luz da legitimidade da luta de quem quer libertar-se, e nisso, aceita mesmo dar a vida; à luz do valor das vidas dos que de aqui partiam, olhando-se uns aos outros na tentativa de neles encontrar razões e alento.
E ninguém, a meu ver, ninguém, repito, tinha o direito de dispor de tais vidas e de lhes dar fim. Às vidas, veja bem, coisa única e só que a maioria deles possuía, e que, perdendo-a, tudo perdiam, irremediavelmente.
Dai que não entenda que diga, como diz “Em primeiro lugar parece-me que não podemos analisar uma situação destas de guerra, com o pensamento nas vidas humanas que se poupam ou se perdem”.
Então, analisamo-la a que luz?

- À luz dos “princípios da portugalidade multirracial e pluricontinental?
- À luz da posse legitimada quinhentos anos antes?
- À luz do sonho territorial de Afonso de Albuquerque?

Não estou seguro que o amigo tenha querido dizer mesmo o que disse, escrevendo-o.
O amigo, tanto quanto me parece era um civil, militar apenas episódico, com formação humanista que chegue para entender a universal ânsia de felicidade dos povos (se é que isto existe para além do conceito) e dos indivíduos que os compõem.
Às vezes dizemos coisas que nem queríamos dizer com o sentido que as palavras que largamos, lhe dão. Já me tem acontecido a mim.
Diz William Boyles Jr., em “Brothers in Arms”, “A melhor arma de um soldado não é a sua espingarda, mas a capacidade de ver o inimigo como uma abstracção e não como um ser humano”
Bem, vejamos. Dizíamos nós, na Guiné, naquele tempo e provavelmente com algum exagero, que em Bissau, aos chefes não importavam muito os soldados que morriam, que perdiam pernas, que perdiam braços, que perdiam a fé no mundo.
Conclusão trágica, seria essa no significado que alargava a abstracção aos próprios amigos.
No fundo, parece que é isso que o amigo mesmo diz, referindo-se ao Coronel Coutinho e Lima, quando se dispõe a, pensando alto, a analisar a sua decisão…”temos de nos “afastar” desse “rosto” e analisarmos os factos”.
Não sei se já leu o livro recente do Coronel onde ele tem a oportunidade de colocar afirmações sobre factos e situações, apoiando-se em documentos oficiais.
Pelo que li, e a mim me parece material mais seguro do que os “postes” que cita, não creio que lhe restassem a ele, na altura, grandes alternativas, mesmo numa visão militar, quando Bissau lhe recusava reforços em homens e armas imprescindíveis para aguentar mais alguns dias.
A não ser que decidisse cumprir com atraso, o acto que uns anos antes Salasar havia ordenado a Vassalo e Silva, na Índia. “Morram todos!”
Note. Digo “aguentar mais alguns dias” porque acho também incorrecto dizer-se “em Guidage e Gadamael ganhámos e em Guilege perdemos”.
Em Guidage e Gadamael ganhámos o quê, meu amigo?
Veja. Não desdigo, nem a bravura de muitos soldados portugueses, se quiser considerar apenas a decisão individual de combater com risco e sofrimento, nem desdigo o objectivo que vivia nas convicções de muitos militares que combatiam e arriscavam, apenas para dar tempo e condições aos políticos para negociarem.
Mas não perdoaria nunca a um comandante que voluntariamente e por decisão pessoal levasse à morte e à prisão de Conakri dezenas de portugueses.
Diz ainda “em certa medida uma guerra inútil e em muitas facetas injusta”.
A única guerra útil e justa, acho eu, a única guerra em que eu aceito que militares e paisanos abdiquem das suas vidas, é aquela, inevitável, que decidimos travar quando querem entrar (ou se instalam) na nossa casa sem convite.
O amigo sabe que durante os séculos de presença portuguesa em África, nunca se passaram cinco anos seguidos, sem revoltas, sem actos de sublevação dos povos locais, contra tal presença. Aceitavam uma guerra útil e justa e nela morrerem. Mesmo assim, tal oferta suprema, hoje, num quadro de globalização selvagem em que os países são apenas “défices”, “crédito inter-bancário”, capitais virtuais que “circulam” por decisões tomadas num ponto qualquer do Globo que nem eu nem o amigo conhecemos, mas que condicionam verdadeiramente a sua e a minha liberdade, e a liberdade de povos inteiros, tal oferta suprema, há que confessar, parece-se muito, hoje, com a luta de Quixote contra os moinhos de vento.
E pronto!
Chegados aqui, concluímos o quê?
Que, como o amigo diz e eu repito, provavelmente não tem, não temos, nem o amigo nem eu, razões fortes para desacordo.
O problema é que “em casa onde não há pão…”

De qualquer modo, tendo passado também, alguns meses nas matas de Mejo, no “corredor”, na estrada Gadamael-Guileje-Mejo, tendo estado presente em Guileje na abertura de Gadembel, obrigados a grandes cuidados até para despejar o lixo a poucas centenas de metros do aquartelamento de Mejo, vivendo, praticamente, nas barbas de Salancaur, crendo profundamente nas razões, nos meios postos à disposição do PAIGC e na inteligência do seu líder, sempre soube da sua vitória final, e que contra essa vitória, não bastavam, conceitos de academia militar, nem interceptar corredores, nem sacrifícios extremados, nem heroísmos espectaculares.
Tal vitória podia ter sido negociada e repartida entre os dois povos, porque vitória é sempre a de dois povos ou duas pessoas (e da humanidade) que em vez da guerra preferem conversar.
Não foi!
Não foi… e, agora, parece-me tarde e pouco saudável continuarmos a fazer análises que eram já velhas, então.
E menos ainda inquéritos a macaquear a interactividades televisivas.

Um abraço
Montemor-o-Novo, 19.01.09
José Brás

Nota:

Enviei já ao Coronel Coutinho e Lima e-mail sobre o seu livro, portanto, mais ainda, sobre a “Retirada”. Não junto aqui o texto porque, se lho enviei a ele, pessoa individual apesar de pública, o texto é dele e só ele (Coronel) pode sobre ele (texto) decidir.

Outra nota: Cumprindo o “Regulamento”, envio duas fotos, uma tirada em Aldeia Formosa e outra actual, bem como um texto escrito em Mejo, em 68

GUINÉ
CÉU


Mar longo inatingível
poço negro-rubro-azul
fornalha de mil fogos queimando encéfalos
estrada-libertação de impossíveis
cenário de um sol-tudo-quase-nada
que acende labaredas nas retinas

HOMEM

Esforço quase-sangue
tatear quase-saliva
corpo tosco e baqueante
latejar de veias-não-azuis
protesto que fica apodrecendo
no cardume de revoltas não-gritadas

MATA 

deglutinação voraz do espaço
quilolitros de esperma-verde
ovários milhões de vezes fecundados
binário vida-morte luxuriantemente entrelaçados
arena sem bancadas nem varandas
onde insuspeitos irmãos se ferem cruamente

Mejo/Chin-Chin Dari Março de 68
José Brás

3. Comentário de CV:
Caro José Brás, bem-vindo à nossa Tabanca Grande. Lamentamos que tivesses de ter batido duas vezes à porta para entrar, mas na verdade não encontrei as tuas mensagens no endereço do blogue luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com.
Não me apercebi de que fizesses referência à tua Unidade e à tua Especialidade. Num próximo contacto, conta-nos tudo.
Peço-te que esqueças esta atribulada entrada na Tabanca e que continues, já que começaste brilhantemente, com a tua parte na feitura deste repositório, destinado aos nossos vindouros. Cabe a nós, ex-combatentes, a responsabilidade desta tarefa e este Blogue é um meio excelente para o fazermos.
Para terminar, deixo-te um abraço em nome da tertúlia.
CV
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3831: Tabanca Grande (110): João Seabra, ex-Alf Mil da CCAV 8350, Guileje, 1972/73

sábado, 15 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3457: Venturas e Desventuras do Zé do Olho Vivo (Manuel Traquina) (4): Baptismo de fogo e gemidos na noite





Manuel Traquina, ex-Fur Mil da CCAÇ 2382, Buba, 1968/70, enviou-nos no dia 11 de Novembro de 2008, mais uma das suas histórias para publicação na nova série As histórias de Manuel Traquina (*).




A aldeia de Mampatá
Baptismo de fogo e gemidos na noite


Decorria o mês de Maio do ano de 1968, depois de uma curta estadia em Bissau e Bula, a recém chegada à Guiné, Companhia de Caçadores 2382, foi incumbida de dar segurança a algumas aldeias daquela região sul da Guiné, eram elas Mampatá, Xamarra, e Contabane, próximo de Aldeia Formosa.

Mampatá era uma aldeia bastante populosa, no largo central encontravam-se algumas árvores de grande porte, junto das quais se improvisou a cozinha e o refeitório. O Homem Grande da aldeia, o Alferes Aliú, oficial milícia, ao ver chegar os militares brancos desfazia-se em amabilidades, (muito embora tivesse fama de colaborar com o PAIGC), e apressou-se a ceder algumas tabancas aos recém-chegados para que ali instalassem improvisadamente o depósito de géneros, posto de enfermagem e outros.

Como dormitórios, tínhamos já aprendido que era mais seguro dormir nos abrigos, havia já alguns, outros nós construímos. Foi ali que tivemos baptismo de fogo, o primeiro ataque ao aquartelamento, felizmente sem consequências graves, porque já todos tinham o buraco onde se abrigar. Comparado com outros que viríamos a ter mais tarde, foi uma pequena amostra, para mostrar aos periquitos que ali havia guerra.

No meu caso pessoal não gostava nada de dormir no buraco, onde acordava com os tiros da G3, abafado e cheio de picadas das formigas. Certo dia decidi arriscar, e vá de arrastar o colchão pneumático para um pequeno patamar junto de uma tabanca que ficava próxima. Foi ali que decidi pernoitar, desfrutando também um pouco do agradável fresco da noite, já que o calor daquele clima tropical, quase se tornava insuportável.

Mas dentro daquela tabanca, apenas separado pela parede de bambu entrelaçado e barrado com a vermelha terra da Guiné, apercebi-me que além do cocolear de uma galinha, alguém dormia e sofria.

No dia seguinte, muito sorrateiramente fui espreitar, e só então fiquei a saber quem tinham sido os meus companheiros de dormitório: uma mulher paralítica (ou talvez mesmo leprosa), lá estava na sua esteira montada sobre quatro estacas que lhe servia de cama! Debaixo da esteira uma galinha, aconchegava carinhosamente a sua ninhada de pintainhos acabados de nascer!

Com certo humorismo ainda hoje recordo aquela noite em Mampatá, em que o sofrimento e o gemer de alguém, era acompanhado do cocolear de uma galinha, de igual modo recordo também o amanhecer em Mampatá, em que se ouvia o canto das raparigas, acompanhando o bater característico do pilar do arroz.

Manuel Batista Traquina


Mampatá > Abrigo

Foto: © Manuel Traquina (2008). Direitos reservados



2. Comentário de CV

Caro Manuel Traquina, como podes verificar, foi criada uma série para as tuas histórias. Ficas responsável por mantê-la viva. Continua a escrever porque gostamos de te ler.
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Nota de CV:

(*) Vd. postes da série de:

2 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2500: Venturas e Desventuras do Zé do Olho Vivo (1): CCAÇ 2382 - A hora da partida

19 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3141: Venturas e Desventuras do Zé do Olho Vivo (2): O ataque de 22 de Junho de 1968 a Contabane

17 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3214: Venturas e Desventuras do Zé do Ollho Vivo (3): Contabane, 22 e 23 de Junho de 1968: O Fur Mil Trms Pinho e os seus rádios