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quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7682: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (17): Algumas conversas para melhor perceber o PAIGC

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Janeiro de 2011:

Queridos amigos,


Já estamos na despedida.
Quero agradecer a todos aqueles que contribuíram para clarificar impressões de viagem que deixaram o Tangomau intrigado. Não há nada como descobrir que a viagem ficou incompleta, havendo necessidade de regressar, um dia. Em nome das amizades inigualáveis, em nome do lugar que se habitou e que se grudou ao coração.


Um abraço do
Mário


Operação Tangomau (17)

Beja Santos

Algumas conversas para melhor perceber o Outro, o PAIGC

Despedidas e promessas

1. É uma reunião muito estimulante com mulheres e homens predominantemente entre os 50 e 70 anos. Já se percebeu que não há nenhuma historiografia oficial, formal ou informal, tanto na posse do PAIGC ou dos seus dirigentes históricos. Há arquivos incompletos, há os trabalhos de Luís Cabral, Aristides Pereira, Mário Pinto de Andrade, as prosas laudatórias da propaganda, de um modo geral inúteis para se obter a panorâmica de como o PAIGC se inseriu junto das populações e delas obteve apoios incondicionais ou as abrigou a colaborar na luta; há muita documentação na Fundação Mário Soares, serve para esclarecer alguns ângulos, mas não todos; desapareceram documentos secretos, correio entre dirigentes, ordens de batalha, até comunicados políticos.

Continua a ser tabu o relacionamento entre os dirigentes cabo-verdianos e os quadros militares guineenses. Ninguém usa como referência o Livro Branco do PAIGC, ninguém tem ilusões que é uma historiografia oficial datada, a história não é feita de declarações incontestáveis. É por todos admitido que foi no Congresso de Cassacá (1964) que o poder político se sobrepôs ao poder militar, orientando-o durante e após a independência, até 1980. Eram os comissários políticos que superintendiam as operações militares, os comandantes prestavam permanentemente contas.

A partir de 1980, com a era de Nino, deu-se uma demarcação, com o agravamento da situação económica e financeira, os militares sentiram-se livres de contestar e de se orientar nos negócios. Quando se sentiram ameaçados, como Ansumane Mané, reagiram. Até hoje. Os altos comandos vivem permanentemente à espreita de serem liquidados, desde a época do conflito político-militar de 1998.




O Tangomau já esgotou praticamente o seu stock de imagens. Nas reuniões por onde anda, nem lhe passa pela cabeça tirar fotografias. Socorre-se de fotografias não publicadas. Neste caso, uma panorâmica do cemitério de Bissau, o talhão dos combatentes da guerra da pacificação, rodeado do talhão dos combatentes da guerra que perdurou até 1974. Estava tudo relativamente bem arranjado, a Liga dos Combatentes determinara uma boa limpeza. Estava um dia luminoso, o Tangomau sentiu-se impelido a estranhas orações, quase conversas, entre o céu e a terra, era uma evocação errática e difusa em nome de todos os mortos.


2. O Tangomau muda de registo e pergunta à assistência como é que os quadros do PAIGC sentiam o crescimento do pensamento nacional, houve comentários variegados, alguns deles mereciam aprofundamento e até registo para um qualquer historiador procurar direcções de análise desse PAIGC aparentemente coeso e militarmente indómito. Um dos comentários lembrou ao perguntador a singularidade do desencadear da guerrilha: primeiro, a formação dos agitadores, quadros que foram lançados na subversão, quer nas barbas das autoridades, quer aproveitando a insignificância da sua presença, como foi o caso do Sul; esses agitadores conduziram à mobilização de populações, mesmo à custa do terror e da separação das famílias, em escassos meses, em 1963, o Sul foi transformado em parcelas atomizadas que reduziram a capacidade de manobra das tropas portuguesas.

Cabral era um ideólogo incontestado, nos primeiros anos; os choques virão mais tarde, se bem que permanecessem discretos, entre cabo-verdianos e guineenses, estes últimos frequentaram escolas de formação e foram confrontados com outras formas de racismo. Uma guerrilha que se expande tão rapidamente entre 1963 e 1964, populações a viver sempre em risco e, de um modo geral, a aceitar esses riscos e os sacrifícios no transporte de munições, armamento, comida e medicamentos, tudo acaba por se saldar numa combatividade de âmbito nacional, basta pensar no hino e na bandeira.

Alguém da assistência pede para fazer um comentário: é verdade que hoje o pensamento nacional é difuso, mas no conflito político-militar a população insurgiu-se contra a presença estrangeira, contingentes senegaleses e de Conacri foram severamente reprimidos por exércitos ad hoc, compostos por gente de todas as etnias. E foi lembrado ao perguntador se era possível não haver uma consubstanciada crença no PAIGC quando, em 27 de Abril de 1974, andavam grupos nas ruas de Bissau a gritar vivas ao MFA e ao PAIGC. O Tangomau a todos agradece, amanhã terá um encontro com Filinto Barros e Chico Bá para falar sobre a evolução da guerra de 1973 para 1974, ouvi-los sobre o que devíamos fazer conjuntamente para se estudar melhor o Outro, antes e depois da guerra que findou em 1974.

É a última fotografia que resta de Ponta Varela. Permite verificar a natureza do Geba estreito, que aqui começa ou aqui finda. Neste exactíssimo ponto, dentro da vegetação, os guerrilheiros do PAIGC flagelavam batelões e até lanchas da Armada. O Tangomau sentiu-se compensado da passeata em companhia de gente moçoila, intrigada com o velhote que caminhava despachado aqueles quilómetros ida e volta, encantado com hortas, cabaceiras, poilões e o marulhar da corrente desse Geba, que é o rio da sua vida.


3. Anoitece, o Tangomau despede-se das pessoas que amavelmente cederam a conversar com ele. Regressa à Pensão Central, vem com muita precisão de tomar um banho de caneco, pôr o corpo na horizontal, sentir o fresco de uma ventoinha trepidante. Encontra Patrício Ribeiro, combinam ir jantar num restaurante de comida portuguesa. Antes, conversa com a Avó Berta, conta-lhe o que andou a fazer pela região de Bambadinca. A Avó Berta aproveita para lhe falar de como, com o marido, num oceano de dificuldades, montaram a Pensão Central, como ela sobreviveu a todas as carestias, ali se recebeu professores, ali se manteve a sede viva da cooperação portuguesa e internacional. O Tangomau embevece-se com o fulgor desta senhora exemplar que se recusa a abandonar a grande obra da sua vida.

Refrescado e com o corpo menos moído, vai prestar contas e dar graças ali ao pé, na catedral. Dar graças por o coronel Jales Moreira ter pedido ao Daniel Nunes para encontrar uma solução de acolhimento na região de Bambadinca, foi ele quem apresentou o Tangomau ao embaixador Inácio Semedo, depois este pôs o irmão em acção; dar graças ao Fodé à família, dar graças a quem o reconheceu e o quis rever, com a alegria estampada no rosto, dar graças pela imensidade destas relações indestrutíveis, até ao último alento da sua vida.



Era assim a Pensão Central em 1997, fora retocada, pintada de branco imaculado, agora está de azul e há muita ferrugem à mostra. Ainda é possível andar num destes táxis azuis, com um ou até quatro passageiros. Importa não esquecer o bem que aqui se fez a quem chegou com fome e à procura de abrigo, de todas as partidas do mundo (foto retirada do site: www.guinee-bissau.net, com os devidos agradecimentos).


4. Vão jantar, o Patrício Ribeiro e o Tangomau, num restaurante decorado à portuguesa, até ali há enchidos, cebolas e alhos decorativos. Para surpresa do empregado, o Tangomau pede dois ovos estrelados, umas batatinhas fritas e uma boa salada, tudo a regar com uma cerveja gelada. A assistência grita frenética, o Barcelona esmaga o Real Madrid, há claques furiosas pró e anti-Cristiano Ronaldo. O Real Madrid sai dali desfeiteado, o Tangomau despede-se de Patrício Ribeiro, cai de sono, já está informado que aí pelas 23 horas se apaga a luz com o corte de energia, quer fazer as últimas leituras, preparar-se para os últimos encontros de amanhã, vai entregar cartas a Tumlo Soncó, que dentro em breve parte para o Cuor.

Na cama, folheia os elementos que compilou sobre o MFA da Guiné, o golpe militar que ele desencadeou em Bissau logo a seguir ao 25 de Abril, até o plano de ali fazer uma sublevação caso falhasse o 25 de Abril em Lisboa. Nunca entendeu porque é que os protagonistas não documentaram claramente estes factos, os movimentos, as tensões ideológicas e depois o entabulamento de relações, mais ou menos informais, com o PAIGC e como, logo em 1 de Julho de 1974 centenas de militares exigiram ao Governo de Lisboa o reconhecimento da República da Guiné-Bissau, no fundo se a Guiné o berço do MFA e este conspirou e descolonizou por conta própria no território, que diálogo se estabeleceu com os quadros do PAIGC. E assim adormeceu, mesmo sentindo a pressão do calor e depois de olhar, assombrado, o volteio dos carros na Avenida Amílcar Cabral, a fugir dos buracões do alcatrão, na noite escura.



Este é o Zé Pereira que viajou de Bissorã para me abraçar. Era o 1.º cabo mais culto e desempenado do Pel Caç Nat 52. Foi um exemplo de coragem quando, com Missirá em chamas, foi salvar uma criança esquecida numa morança. O que o Tangomau lhe deve não cabe num possível título de dívida e quando lhe disse: “Zé, deixa-me tirar-te uma fotografia, quer que todos saibam quanto te admiro!” ele logo respondeu: “Sim, mas com o teu livro na mão, este é meu e vou levá-lo para Portugal, quando for visitar o meu filho”. Um pai orgulhoso por ter conseguido dar estudos médios a todos os seus filhos, o Aillton é avançado no Atlético Clube Oriental e está a acabar a licenciatura.


5. De manhã, não há tempo para o devaneio de leituras, é importante escrever ao régulo Carambá, ao Príncipe Samba e ao Fodé. O ambiente escolhido é o do Centro Cultural Francês, é fresco e silencioso, o Tangomau escolhe uma mesa na zona da banda desenhada, bem fornecida e tentadora, sem perda de tempo escrevem-se saudações e promessas.

Que o régulo Carambá veja o Cuor desenvolver-se, do Geba estreito até Madina de Gambiel. Que o régulo esteja descansado, o Tangomau sente impulso para voltar, a velha estrada abandonada de Gambaná atrai-o, percorreu-a vezes sem conta, corta-lhe o coração vê-la reduzida a um caminho alcantilado de pouco préstimo, quer voltar à Aldeia do Cuor que ele encara como uma civilização perdida, nunca decifrou aqueles muros tão altos, houve quem lhe dissesse que ali se pensou criar a povoação mais importante, desistiu-se, sabe Deus porquê, foi assim que nasceu Bambadinca, era por Aldeia do Cuor que se pensava escoar as madeiras exóticas e os produtos agrícolas do Gambiel.

Ao Príncipe Samba desejou-se as maiores felicidades, agradeceu-se o encontro comovente, aquela tradução para crioulo, cheia de intenção e sentimento, aqueles pedidos de ajuda a que ele gostaria de corresponder e lamentavelmente não pode, o Tangomau recorda e acentua a gratidão pela dedicação recebida. Ao Fodé, o muito obrigado por ter convocado tanta gente, ele foi o anjo de S. Gabriel que anunciou a vinda do Tangomau.

Aproveita-se o agradecimento para fazer tábua rasa das diferentes tensões entre ambos, aguarda-se agora reencontro em Lisboa. Escritas as missivas, faz-se a sua entrega no Bairro Missirá, Tumlo lembra ao Tangomau que tem um filho com muito jeito para a bola, pede-lhe encarecidamente ajuda, o Tangomau volta a chorar, de impotência, não pode corresponder a tanto pedido.

Tumlo Soncó sentado, parece que está à espera calmamente que o futuro seja pródigo, lhe traga algumas benesses. É nestas coisas que o Tangomau revela a incipiência própria dos fotógrafos amadores, deixa sombra da Maria Fausta, a mulher de Abudu Soncó, e do Sr. Sabino, o motorista da Embaixada de Portugal.


6. Entregues as cartas, o Tangomau parte para um café onde se vai encontrar com Filinto Barros e Chico Bá, ou Francisco Silva, que foi comissário geral das frentes Norte e Sul. Ambos autorizam que o Tangomau tome notas. A primeira pergunta incidiu sobre o modo como se radicalizou a luta, exigindo, logo após o 25 de Abril uma independência total e irrestrita. Os interlocutores responderam que se temia também com o futuro de Angola e Moçambique: se a independência da Guiné empanasse, haveria consequências para as outras colónias. Era preciso que tudo começasse claramente na Guiné.

Ao contrário do que se tem dito, os negociadores guineenses pediram às autoridades portuguesas para ficarem transitoriamente na Guiné, cedo se aperceberam que não havia condições nem militares nem políticas. Os quadros do PAIGC sabiam não dispor de uma estrutura administrativa capaz para as novas realidades da independência. Os gestores que se prepararam vieram de escolas muito rígidas, como a RDA, uma outra realidade. Filinto Barros lembrou que a confraternização em Bissau teve muito poucas arestas, logo a seguir à chegada do PAIGC, por pura coincidência, encontrou do lado português um oficial da Armada que estudara com ele no Colégio Nuno Álvares. O erro não esteve em exigir a independência, esteve em não partilhar por mais alguns anos com os portugueses a aprendizagem da administração.

Falando dos acontecimentos de 1973 e 1974, estes dois importantes quadros políticos foram consensuais: não havia pressa quanto ao fim da guerra, sentia-se e sabia-se da erosão que a guerra estava a provocar e que a perda de supremacia aérea trouxera uma profunda desmotivação. Mesmo que, por absurdo, os aleados da NATO dessem provisoriamente um equilíbrio militar, a capacidade do PAIGC estava imparável, agora não era só o facto das tropas mal saírem do arame farpado, já se combatia com carros de combate e escolhiam-se alvos como Canquelifá que, tudo previa, iria ser cercada em Maio, em termos semelhantes ao de Guidage, como no ano anterior.

Os informadores do PAIGC em Bissau também sabiam que ia haver abandono de vários quartéis junto da fronteira e com graves consequências para o moral das tropas, essas populações ao abandonarem as suas tabancas iriam concentrar-se à volta de Bissau, agravando todos os problemas. Outra informação digna de nota: quando se proclamou o Estado em 24 de Setembro, a partir dessa data deu-se uma sangria de estudantes já adolescentes que se foram oferecer para a guerrilha. Era uma quantidade impressionante. A direcção do PAIGC ao comentar o facto concluiu que a juventude guineense irreversivelmente se pusera do lado do PAIGC. A relação de forças entrara em desequilíbrio, estes jovens marcavam a diferença. Discutiram-se ainda projectos sobre as relações com o Outro, de ambos os lados. Todos prometeram manter-se em contacto.



O Tangomau voltou à Madina do Gambiel à procura do paraíso, das palmeiras de Samatra. Tudo mudou, mantém-se luxuriante mas aquela beleza esmagadora desapareceu. Foi um dos momentos de decepção. Felizmente que o Tangomau fora reconhecido por Ieró Baldé, não há paisagem que substitua um momento de tanta beleza nos corações.


7. Amanhã haverá despedidas, algumas delas comoventes. E depois terminará este diário composto a trouxe-mouxe. O Tangomau vai às compras, para si e à procura de lembranças para os outros. Será a circunstância para mostrar as últimas fotos e convidar todos os confrades a voltar à Guiné.
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 26 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7676: Ninte Kamatchol: a história da capa de um livro (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 21 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7650: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (16): Até Bissau num toca-toca e conversas sobre a história do PAIGC

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Guine 63/74 - P6428: Estórias cabralianas (60): O manifesto do nosso alfero (Jorge Cabral)

 1. Este texto do ex-Alf Mil Art Jorge Cabral,  comandante do Pel Caç Nat 63 (Fá Mandinga e Missirá, 1969/71) já foi publicado há mais de quatro anos, na I Série do nosso blogue, sob a forma de um carta aberta. Um texto, portanto, desconhecido da maioria dos nossos leitores. Na altura comentei (*):

"Esta carta (aberta), dirigida à minha pessoa, honra-me e sensibiliza-me. Prendem-me, ao Jorge, laços de amizade e de cumplicidade. Orgulha-me tê-lo cá, nesta tertúlia, entre amigos e camaradas. Obrigado, Jorge, pela tua (corrosiva) lucidez e sobretudo pela tua (generosa) abertura de espírito à aventura humana e à descoberta do outro bem como pelo teu arreigado anti-etnocentrismo. Poupa-me as palavras. Por mim, disseste tudo"...

Eu, que gostaria de ver publicadas este ano, em livro, as  Estórias Cabralianas, e estou indigitado como prefaciador-mor das ditas, acho que este naco de prosa (ou de poesia, como queiram) tem de ser recuperado, lido, divulgado, debatido e se possível inserido na mesma publicação como posfácio. É um texto descomplexado, de um homem a corpo inteiro, sem alibis nem subterfúgios, onde muitos de nós reconhecem...  Foi revisto por mim, nesta data, recuperei-lhe o ritmo discursivo. É dirigido, através de mim, às centenas de camaradas que nos lêem, e que em Fevereiro de 2006 ainda eram umas escassas de dezenas. É um texto que eu gostaria de ter conseguido escrever. Vou chamar-lhe simplesmente "O Manifesto do Nosso Alfero". Que o Jorge me perdoe a ousadia,  os atropelos e os abusos.

Caro Luís,
nunca será demais enaltecer o teu blogue,
o qual nos tem permitido, principalmente recordar.

Como tu dizes,
fui um tropa desalinhado,
marginal
e quase sempre provocador,
características que mantive ao longo da vida.

Sempre procurei realçar os aspectos ridículos das pessoas e situações,
gozando e criticando,
às vezes com um humor demasiado ácido…

Sobre a Guerra Colonial na Guiné,
sei que lá estive,
e procurei ver.

Não sinto nem orgulho, nem vergonha.
Não fui herói, nem cobarde,
limitei-me a garantir a minha sobrevivência,
bem como a dos que comigo se encontravam.

Tratava-se obviamente de uma guerra absurda
e previsível,
logo evitável,
para a qual nos mandavam mal preparados,
num estado de absoluta ignorância
sobre o país, sua gente e cultura
(contei-te daquele soldado periquito,
que apresentado em Missirá,
me pediu para ir ver o jogo do Sporting
que dava na televisão naquela noite,
na Tasca da Muda,
ali mesmo à esquina…).

Se alguma qualidade intelectual possuo
é a curiosidade,
que me leva a tentar compreender tudo e todos,
ciente que as diferentes formas de estar e ser
são legítimas e sempre explicáveis.

Assim, na Guiné,
quer em Fá, quer em Missirá,
procurei entender,
e através de longas conversas com Homens e Mulheres Grandes
aprendi alguma coisa.

Dessa forma me inteirei da excisão
(a qual depois presenciei)
e do infanticídio ritual,
dois temas de que, há mais de vinte anos,
falo nas minhas aulas.

Percebi que uma Guiné idílica e pacífica,
de negros portuguesismos,
nunca existira…
Todo o território ao longo dos séculos
foi palco de imensas guerras,
sangrentas repressões
e alguns desastres das nossas tropas.

Perante o meu espanto,
indicaram-me em Fá,
o local onde no tempo, dos avós, dos avós deles,
havia sido aprisionado o Governador,
que teve de pagar resgate aos beafadas (#).

E em Missirá levaram-me a conhecer o campo
onde as forças portuguesas e seus ajudantes
estiveram longo tempo entrincheirados,
preparando a conquista de Madina/Belel,
na luta contra o grande guerreiro Unfali Soncó,
no princípio do século XX (##).

Foram também os velhos que me falaram de Abdul Injai,
régulo do Cuor e do Oio,
companheiro de Teixeira Pinto,
herói tão amado quanto odiado,
caído em desgraça no fim da vida,
e degredado para Cabo Verde.

Chegado a Lisboa,
e desde então tenho tentado estudar,
convicto que é impossível compreender a guerra colonial
e o que se seguiu,
sem reflectir na história do país
e nas múltiplas acções de resistência armada contra os Portugueses.

Claro que o PAIGC,
ao iniciar a Luta Armada,
pretendeu aglutinar todas essas resistências sectoriais,
num projecto global de Libertação,
que simultaneamente edificasse o Estado Nação.
Pelo menos a Libertação foi conseguida…

Tendo estado sempre com tropa africana e milícias,
não fiquei indiferente ao que aconteceu aos meus soldados,
uns obrigados a fugir
 e outros fuzilados.

Alguns ainda hoje lutam por uma pensão,
e há poucos anos,
tive de confirmar,  por escrito,
que um servira no exército português.

Discutir agora quem foi o responsável pelos fuzilamentos,
se foi o Nino ou o Luís Cabral,
parece-me supérfulo.

A responsabilidade cabe por inteiro aos Portugueses,
que não souberam garantir a segurança dos militares africanos.
Procederam como os seus antepassados,
pois o destino dos aliados dos portugueses
foi sempre o mesmo.
Abandonados à sua sorte,
vitimas das represálias dos vencedores…

Ás autoridades negociadoras competia proteger
todos os que lutaram integrados no Exercito Português
e mesmo assegurar,  aos que quisessem,
a nacionalidade portuguesa.

Isso sim, teria sido uma atitude revolucionária.
Foram conservadores.
Contradições características
de uma descolonização tardia e apressada…

Desculpa a seriedade deste arrazoado,
mas considero importante contribuir
para a destruição de certos mitos e equívocos,
naturalmente persistentes numa ex-potência colonial.

Um grande abraço

Jorge

(#) Ocorreu em 1861 no âmbito de uma “campanha” contra os Beafadas de Badora, os quais prenderam o Major Correia Pinto, encarregado da Administração da Província na ausência do Governador. Também nessa altura foram hasteadas bandeiras britânicas, em Bambadinca, Fá e Ganjara.

(##)  Tratou-se de uma das mais importantes "operações" ocorridas antes da Guerra Colonial. Os efectivos das NT eram para a época impressionantes. Estando 50 marinheiros destacados em Bambadinca, a coluna comandada pelo Governador Muzanty, compreendia:

- 7 oficais do estado maior,
- uma companhia da marinha (4 oficiais e 132 marinheiros),
- uma companhia de infantaria metropolitana (5 oficiais e 251 sargentos e soldados),
- uma companhia mista de infantaria (3 oficiais e 101 atiradores),
- uma bateria de artilharia (3 oficiais e 69 sargentos e soldados),
- mais sete oficiais (médicos veterinários e de intendência),
- a que é preciso acrescentar o “exército” de Abdul Injai (2 oficiais, 2 chefes e 100 cavaleiros) e
- ainda a nona companhia indígena de Moçambique.

Pois toda esta tropa  atravessou o rio frente a Bambadinca, tendo conquistado todas as tabancas, até junto de Missirá, onde em Carenquecunda acampou, cavando trincheiras, e preparando a conquista de Madina, que veio a ser tomada em 9 de Abril de 1908, tendo tido papel determinante Abdul Injai e os seus 100 cavaleiros.

Também eu entrei em Madina em 1971, sem cavaleiros, mas à custa de um decisivo apoio aéreo.

P.S. – O desastre do Cheche, tem um antecedente histórico,  ocorrido em 30 de Dezembro de 1878 na Ponta de Bolor, entre os Felupes. Porém deste, em que morreram mais de 50 militares, conhecem-se os que pela sua incompetência, foram responsáveis: o Governador António José Cabral Vieira e o Tenente Calisto ~
dos Santos.

_____________

Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 15 de Fevereiro de 2006 Guiné 63/74 - DXXXVI: Carta (aberta) ao Luís (Jorge Cabral)

terça-feira, 6 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6116: O Nosso Livro de Visitas (85): Maria Helena Carvalho, filha do Pereira do Enxalé, localidade onde nasceu há 60 anos, hoje residente nas Caldas da Rainha (Luís Graça)




Guiné-Bissau > Região do Oio (Mansoa) > Jugudul > Abril de 2006 > O antigo aquartalemento das NT, em Jugudul, cujas instalações foram cedidas, a seguir à independência, ao Sr. Manuel Simões, guineense branco de Bolama, para a sua fábrica de aguardente de cana (*). Também no Enxalé havia, até 1962, uma destilaria de aguardente de cana, pertencente ao sr. Pereira, pai da Maria Helena Carvalho. Segundo a filha, o Pereira do Enxalé era um colono branco, ntural de Seia, conceituado,  respeitado pela população da região.

Foto : © A. Marques Lopes (2006). Todos os direitos reservados


1. Texto do editor Luís Graça:

Na sequência do encontro da CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole, Missirá, 1965/67) , em Coruche (**), contactou-me, por telefone,  a Maria Helena Carvalho, nascida no Enxalé, e actualmente casada, residente nas Caldas da Rainha, onde tem um um estabelecimento comercial  (Telef. 262 842 990).

Seu pai, Amadeu Abrantes Pereira, natural de Seia, era um conhecido comerciante, o Pereira do Enxalé. Era dono de uma importante destilaria de aguardente de cana, bem como de outras instalações e casas, que ainda hoje estão de pé. A família era muito estimada pela população local. 

A Maria Helena nasceu no Enxalé em 1950, se não erro. Saiu cedo de lá, creio que com sete ou oito anos, por volta de 1958, para ir estudar em Bissau e depois na Metrópole. Mas regressava nas férias grandes. As suas memórias de infância (e os seus amigos de infância) estão indelevelmente ligados a esse tempo e a esse lugar. 


Os pais acabaram por sair do Enxalé, fixando-se em Bissau, em 1962. Já havia nuvens negras que prenunciavam a chegada da borrasca da guerra. A matéria-prima (a cana de açúcar) que abastecia a destilaria começou a escassear. Os caminhos tornavam-se perigosos. O PAIGC fazia o seu trabalho de sapa. Entretanto, a mãe morreu e a Maria Helena ficou definitivamente entregue aos cuidados dos padrinhos, das Caldas da Rainha.

O património da família ainda lá está, no Enxalé, arruinado. Também tinham prédios em Bissau. Em 1989, a Maria Helena voltou aos lugares da sua infância. Ainda encontrou, no Enxalé, gente que trabalhara para o seu pai bem como amigos de infância.

Ela ainda fala do Enxalé e da Guiné com emoção. Em Coruche teve ocasião de falar, por uns breves instantes, com o Beja Santos (Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) que nos seus livros tem bastantes referências ao Enxalé. Também ouviu falar do nosso blogue, mas ainda não o conhece, não se sentindo muito à vontade na Internet. Através dos serviços da Junta de Freguesia da Lourinhã, donde sou natural, acabou por localizar-me e telefonar-me.

Aqui fica o apelo, aos nossos camaradas que passaram pelo Enxalé (incluindo o Abel de Jesus Rei, autor de Entre o Paraíso e o Inferno: De Fá a Bissá: Memórias da Guiné, 1967/69), para nos fazerem chegar mais informações sobre a família Pereira e, se possível, fotos das instalações civis do Enxalé, ocupadas pelo Exército.


Outro camarada nosso que conheceu bem o Enxalé é o Henrique Matos, primeiro comandante do Pel Caç Nat 52 (1966/68) . Aqui ficam os contactos do nosso camarada, já tornados públicos no blogue, para a eventualidade de a Maria Helena querer falar com ele:

Residência actual: Rua dos Lavadouros, n.º 46, 2.º Esq.
Edifício República
8700-442 Olhão
Telef. 289 714 748
Telem. 963 334 811
e-mail: henrique.matos10@sapo.p

Infelizmente não temos muitas imagens nem histórias passadas no Enxalé (teremos cerca de 30 referências)… No final dos anos 60 e princípios de 70, o Enxalé, na margem direita do Rio Geba, em frente ao Xime, tinha um heliporto e um cais acostável (só utilizado na época seca).  A própria Maria Helena tem poucas fotos desse tempo.

Do ponto de vista do dispositivo militar, o Enxalé passou a  pertencer ao Sector L1 (com sede em Bambadinca, Zona Leste), a partir do último trimestre  de 1969, se não me engano: nessa época, só havia duas destilarias de cana de açúcar no sector, uma em Bambadinca e outra em Ponta Brandão ( a escassos 5 quilómetros de Bambadinca, à esquerda da estrada para Bafatá).  Por outro lado, a sua extensa e rica bolanha continuava a ser cultivada. A localidade pertencia ao regulado do Enxalé, onde a população recenseada, sob controlo das NT , era de 400 balantas e 350 mandingas e beafadas. Na localidade do Enxalé, onde existia uma loja comercial,  a população residente (cerca de 300) era considerada "colaborante na defesa".

O Enxalé era frequentemente alvo de ataques e flagelações do PAIGC.  O destacamento era apoiado pelo fogo de artilharia do Xime, aquartelamento que ficava na outra margem do rio Geba.

Em Junho de 1970, quando o BART 2917 substitui o BCAÇ 2852 no Sector L1, no destacamento do Enxalé havia um Grupo de Combate da CART 2715 (a unidade de quadrícula do Xime) bem como um esquadrão do Pelotão de Morteiros 2106. A partir de Outubro de 1971, passou a ter o GEMIL 309 e, em Dezembro de 1971, o GEMIL 310 (ambos pertencentes à Companhia de Milícias de Porto Gole). 



Fizemos (nós, a CCAÇ 12 e outras forças que integravam o dispositivo militar do Sector L1) várias operações na região compreendida pelos regulados do Enxalé e do Cuor, algumas bem duras e dramáticas, com terminus no Enxalé,como a Op Tigre Vadio (Março de 1970).

_______________

Notas de L.G.:


(**) Vd. postes de:

domingo, 22 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5317: Historiografia da presença portuguesa em África (32): O que José Henriques de Mello viu no Cuor e em Bissau (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos, (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Novembro de 2009:

Carlos e Luís,
Findo assim a apresentação do maravilhoso álbum fotográfico do José Henriques de Mello.
Basta ver as fotografias que junto para se perceber que este livro é um tesouro ainda ao alcance de todos.

Um abraço do
Mário


O primeiro fotógrafo de guerra português:
O que José Henriques de Mello viu no Cuor e em Bissau

Por Beja Santos

Chegou a altura de acompanhar José Henriques de Mello, o primeiro fotógrafo de guerra português, nas campanhas do Cuor, Antim e Antula, região de Bissau. Os factos históricos estão devidamente registados, como segue.

O imposto de palhota nunca foi bem aceite pela população guineense. Até 1904, a cobrança era irregular e tinha muitas isenções. O seu produto revertia sobretudo para as despesas militares. É no Cuor que irá dar a primeira insubordinação, bem violenta. O residente de Geba, 2.º tenente Proença Fortes, dirigiu-se à tabanca do régulo Infali Soncó, em 1907, aqui vou desrespeitado, espancado e preso. O Governador da Guiné, Oliveira Muzanty, declarou em estado de guerra a região do Cuor. Ficou proibido o comércio naquela região do Geba. A insubordinação alastrou e incluiu Bissau, Cuor, Oio, Churo, Costa de Baixo e Pecixe. As operações visavam: bater a região de Bissau, subjugando os Papéis, sobretudo em Antula; fazer uma demonstração de força no território balanta; desembarcara em território de Infali Soncó e obrigá-lo a manifestar fidelidade; marchar sobre Mansoa, criando um posto militar na povoação; bater a região do Oio; percorrer o rio Cacheu até Pelundo e bater a região dos Manjacos até à Costa de Baixo.

Algumas das operações começaram em Novembro de 1907, Muzanty foi até ao Xime e conseguiu obter apoio de vários régulos. Subindo o rio Geba na lancha-canhoneira Cacheu, foi atacado pela gente de Infali Soncó, houve baixas de parte a parte. Infali Soncó fugiu aos combates, Muzanty também não tinha contingente para o perseguir. Muzanty foi seguidamente combater um levantamento de Felupes na região de Varela, os régulos submeteram-se, a situação melhorou, temporariamente.

Lisboa decide criar uma dotação para uma grande expedição na Guiné. No final de Fevereiro de 1908, o general Costa Monteiro comunicava à Secretaria de Estado da Guerra que a Companhia Expedicionária de Infantaria 13, armada com a espingarda Kropatschek estava pronta. O navio “Angola” embarcou 200 mil cartuchos, granadas, lanternetas, peças de artilharia, comida para os humanos e comida para os muares de artilharia montada. É interessante verificar o tipo de víveres destinados às tropas expedicionárias: champanhe e vinho do porto, conhaque e rum, bacalhau, vinho branco e vinho tinto, manteiga e marmelada, queijo da serra e flamengo, leite condensado e águas minerais. Mário Matos e Lemos descreve com copioso pormenor as peripécias do embarque em Lisboa e desembarque em Bissau, refere o diário de campanha de Nunes da Ponte (que eu aproveitei em alguns episódios da Mulher Grande) quanto à campanha do Cuor e às operações na ilha de Bissau. O repositório fotográfico é espantoso na qualidade dos registos: Infali Soncó e a sua comitiva recebendo os visitantes antes das hostilidades; sessões na carreira de tiro; muares desembarcando no Geba, na região do Xime, vemos a preparação do rancho e uma formatura de carregadores Fulas; temos depois o embarque no Geba e o seu desembarque, provavelmente na região de Mato de Cão; as tropas em bivaque em Caranquecunda e o ataque a Canturé; depois as tropas na fortaleza da Amura e a seguir as operações de Antim, vemos gentios mortos e um conjunto impressionante de fotografias das tropas a pousar para a posterioridade. Para quem colecciona fotografia de alta qualidade, para quem quer viajar à Guiné de um século atrás, para quem, sobretudo, se quer deixar maravilhar por fotografias que ninguém suspeitava existir, este livro é um surpreendente achado. Aliás, basta ver as fotografias que juntamos.

Antes da guerra, o Régulo Infali-Soncó e sua gente, recebenco visitantes

Regresso das Forças que acompanharam o enterro d'uma Praça

No porto de Sambal Santrá, a canhoeira Cacheu e o Capitania

Destruição: queimada da tabanca Gan-Turé, em 5-4-1908, guerra do Cuhor

A retaguarda d'uma trincheira abrigo construída pelo inimigo
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5312: Historiografia da presença portuguesa (31): José Henriques de Mello, o primeiro fotógrafo de guerra português (Beja Santos)

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3172: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (42): Cartas de um militar de além-mar em África... (5)


Texto de Beja Santos
ex-Alf Mil,
Comandante do Pel Caç Nat 52,
Missirá e Bambadinca,
1968/70

Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


Operação Macaréu à vista

Episódio XLII

CARTAS DE UM MILITAR DE ALÉM-MAR EM ÁFRICA PARA AQUÉM EM PORTUGAL (5) E OUTRAS PARAGENS EM ÁFRICA

Beja Santos

Para Comandante Avelino Teixeira da Mota, em Luanda


Sr. comandante e meu querido amigo,

Cá recebi as suas notícias, vejo que está asfixiado em papel e sempre a investigar nas poucas horas disponíveis. Surpreende-me vê-lo tão indiferente com as atracções de Luanda. Peço-lhe que não se esqueça de contactar o meu primo José Augusto Gândara de Oliveira, ele está ansioso por o conhecer. Estou agora nos Nhabijões, o reordenamento é enorme, mais de mil e seiscentas pessoas estão envolvidas, a obra de engenharia é de grande fôlego, estamos a fazer policiamento, tem havido raptos, roubos e episodicamente os nossos vizinhos de Madina lançam umas canhoadas da outra margem do Geba. Não percebo muito bem para quê, é puro fogo de vista, eles sabem que nós sabemos que é aqui que se abastecem, aqui têm familiares que lhes dão informações. Depois dos policiamentos, aproveito as últimas horas de luz, leio o que posso.

Venho revelar-lhe o meu espanto quanto a um documento de que já me tinha falado, confessando-lhe que a sua leitura foi uma feliz surpresa. Trata-se do relatório do administrador da circunscrição de Geba, Vasco Calvet de Magalhães, referente a 1914. Foi uma neta do régulo Mamadu Sissé que mo emprestou através de uma professora de Bambadinca. Nunca li nada igual, o desassombro, o recorte literário, o entusiasmo das descrições tanto dos usos e costumes como das lutas entre etnias; Calvet de Magalhães fala inclusivamente de termos linguísticos locais e até da maneira como se deve resolver o assoreamento do rio Geba.

É evidente que não lhe estou a dizer nada que não saiba, quem foi apanhado de surpresa fui eu. Pergunto-me se este relatório é único, tal o inédito destas informações. Por exemplo, fico a saber que o régulo do Cuor, na época, se chamava Abdul Jujaz (não era Abdul Indjai?). Ele escreveu este relatório para o governador em Bolama ou queria fazer chegar as suas preocupações a Lisboa, candidatar-se a um qualquer cargo político? Não acredito que fosse comum na época escreverem-se coisas como estas: "O corpo de guardas é insuficiente! Não chegam mesmo para policiar a população; daí resulta que esta administração tem constantemente de encarregar diversos indígenas para irem desempenhar funções inerentes aos guardas, sem receberem remuneração alguma"; "Estes indivíduos recebem apenas uma instrução superficial e quando já sabem soletrar e juntar duas letras dão por finda a sua instrução, sendo, no futuro, uns descontentes, porque não vêem realizadas as suas aspirações, na escola não lhes criaram hábitos de trabalho"; "Os sírios começaram a aparecer em 1911 e são hoje uma elevadíssima colónia... O indígena é uma vítima nas mãos destes indivíduos que sem consciência nem escrúpulos o exploram". Estes são exemplos avulsos da linguagem crua de Calvet Magalhães. Penso que no futuro não se poderá estudar a situação da Guiné nesta época sem o ter em conta. Tomei nota do que ele escreve sobre os empregados aduaneiros: "Quando tomei posse do lugar de residente nesta circunscrição, em 1909, havia apenas um posto fiscal a que se chamava posto fiscal do Boé. Nunca houve, porém, posto algum no Boé, pois o que havia era em Pai-Ai, muito aquém do Boé. O aspirante ali destacado fazia o que queria. Apreendia borracha, mercadorias e dinheiro aos indígenas do nosso território, enfim, um verdadeiro salteador de estradas e nunca um funcionário da Alfândega. O que é, porém, uma verdadeira lástima, é o corpo de guardas fiscais. São recrutados entre indivíduos que já têm longa permanência na província, cheios de vícios e de uma indisciplina inacreditável. O guarda que estava em Bambadinca embriagava-se todos os dias, acabando por querer agredir o chefe de posto daquela localidade com um faca. O que estava em Che-Che encontrei-o no caminho a chorar, dizendo-me que ia para Bafatá, porque não podia viver sozinho no mato! O que foi para Che-Che substituir o primeiro não vem a Bafatá quando é chamado pelo chefe de posto fiscal e cada mês apresenta apenas o rendimento de cinquenta a sessenta centavos... Isto é para que V. Exa. possa avaliar a qualidade de pessoas que existe na classe de guardas fiscais!" Ele devia ser esforçado, procurou conhecer os rudimentos da etnografia e da antropologia. Fala da raça fula como formada por nómadas que vieram residir para os territórios dos mandingas e beafadas. E escreve: "A cor do fula varia entre a cor do bronze florentino e o negro mais carregado. Reputam-se brancos, a estatura é regular, têm a fronte bem desenvolvida, nariz aquilino, boca grande, os incisivos proeminentes, os membros perfeitamente bem modelados. Uma diferença enorme existe entre a mulher fula e a mulher fula-preta. A primeira tem glândula mamária perfeitamente esférica enquanto que a segunda tem-na em forme de pêra... Os mandingas têm as espáduas altas, o pescoço mais curto, o esqueleto mais forte do que os fulas". Decididamente, ele tinha pendor por estes estudos etnográficos, escreve sem hesitar, como se dominasse a matéria. "Todos os fulas-pretos ou fulas cativos da região Geba guardam respeito aos fulas forros. Todos os fulas-pretos da região são descendentes de mandingas, beafadas e soninqués... As crianças, criadas de pequeninas no meio dos fulas, e vivendo com eles em comunidade, herdavam-lhes todos os hábitos e esquecendo as suas línguas primitivas só falavam a fula. Daí resulta o chamar-se-lhes fulas pretos porque sendo os fulas forros de tez acobreada e não se julgando pretos fizeram esse distinção". Desculpe estar a ser enfadonho, até pretensioso, falando-lhe do que conhece muito bem. Mas tomei este Calvet Magalhães como um funcionário raro na observação, na crueza da narrativa, embalado por encontrar soluções, por combater a corrupção, por querer conhecer a religião, a organização social, a língua dos povos que administra.

Para lhe ser sincero, sinto que a minha missão aqui está prestes a findar. Vi partir os meus camaradas com quem convivi praticamente vinte e três meses, os que acabam de chegar parece que não precisam da minha experiência. Muitos dos meus soldados partem também, o contingente actual não tem praticamente nada a ver com aquele que eu conheci em Agosto de 1968. E é ingrato repetirmos dia após dia, semana após semana, as mesmas colunas de reabastecimento, as idas ao correio, as emboscadas nocturnas, a protecção das populações. Não é cansaço que sinto, é falta de aproveitamento. Ninguém nos pergunta como tem evoluído a guerra, como responder à implantação do inimigo no terreno. Não o incomodo mais com os meus desabafos, vou pôr agora os meus aerogramas a Bambadinca e passo a noite a montar segurança na ponte de Udunduma, sempre com o meu pelotão repartido. Até breve e, por favor, continue a escrever-me.

O comandante Teixeira da Mota, em aerograma de Agosto de 1969, falou-me pela primeira vez nos sónôs, perguntou-me se já vira alguma e se não me importava de perguntar junto das gentes do Cuor. Ele escreve numa comunicação que apresentou em 1963: "Objectos constituidos por hastes de metal com cerca de 1,20m de altura e com a parte inferior adelgaçada ou terminando em ponta de seta. Ao longo da haste há por vezes braços laterais, terminando frequentemente em pequenas figuras de bronze, quase sempre representando fuguras humanas. No topo da haste principal estão encaixadas esculturas de bronze representando cavaleiros. São simbolos da realeza ou da chefia, antes da islamização". Contituem um património de incalculável valor sobre a velha arte animista, bem gostava de ter um.


Teixeira da Mota vive afogado em papéis, no Comando Naval, em Luanda, viaja pelos rios Zaire, Zambeze, Cuíto e Cuanza. Fala da sucessão de Amílcar Cabral e suspira por regressar ao Centro de Estudos de Cartografia Antiga, onde, aliás, irá produzir as suas últimas magníficas obras de investigação.


Para Ruy Cinatti

Ruy, Dear Father,

Chegaram os seus livros, comecei logo a ler "Cien años de soledad", de Gabriel García Márquez. Meu Deus, que livro assombroso, mesmo não percebendo eu muitas da expressões deste castelhano da Colômbia. Já devorei quase cem páginas, a família Buendía e a povoação de Macondo vão ficar na literatura universal, estou absolutamente certo: magia , feitiço da palavra, a atmosfera das Caraíbas, gente retirada da literatura das fadas e dos génios de encantar. Muito obrigado por tudo.




Capa dos estúdios das Publicações Europa-América, tradução de Eliane Zagury. O exemplar que li devolvi-o ao Ruy Cinatti em 1970, era edição em espanhol, bem sofri mas deslumbrei-me. É um dos livros da minha vida, embora prefira Amor em tempos de cólera, a paráfrase do amor eterno. Todos os elogios apoucam ouvir falar deste colosso literário e não o devorar, primeiro, saboreando-o, a seguir: Muitos anos depois,diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo... Penso que o livro surgiu entre nós aí por 1971, continua êxito imparável.



O que se passa por aqui tem pouco interesse: estou nos Nhabijões, vejo uma nova povoação crescer, ando entretido com várias lides, desde destruir canoas do inimigo, a fazer autos de justiça militar, regresso às tarefas de professor, às emboscadas e apoio, quando me pedem, com informações o novo batalhão que acaba de chegar a Bambadinca. Em princípio será assim até ao fim do mês, parece que depois irei montar a segurança de uma estrada que está a ser alcatroada a partir do Xime, até Bambadinca.

Todo o tempo que posso reservar aos meus cadernos é destinado a leituras sobre a Guiné, aqui não há bibliotecas, nem mesmo em Bafatá encontro publicações que permitam conhecer o meio local, leio o que me emprestam. Imagine que eu já tinha a separata que me ofereceu sobre a casa timorense, comunicação que V. apresentou num congresso internacional de etnografia, em 1963. Pois as actas desse congresso foram-me agora emprestadas, reli o seu artigo que vem junto à comunicação de Teixeira da Mota, a dele sobre os bronzes antigos, os sónôs. O comandante já me tinha escrito em Agosto do ano passado a pedir-me para eu perguntar no Cuor e aqui em Bambadinca se havia vestígios de sónôs. Ninguém tinha visto essas esculturas que são ferros com mais de um metro e vinte de altura que têm braços laterais, também de ferro, que terminam frequentemente em pequenas figuras de bronze, quase sempre representando figuras humanas. De acordo com o nosso comum amigo, são símbolos da realeza ou de chefia antes da islamização. Certos actos importantes para a vida colectiva, como fazer a guerra, não eram decididos sem previa consulta ao sónô. Estas esculturas entraram em declínio no século XIX, com a islamização dos soninqués. Estes registos que vou fazendo despertam-me para a realidade dos meus estudos, se é verdade que ainda tenho deveres com os meus soldados, os Nhabijões têm metas próprias, não me provocam o fascínio de Missirá, não são a minha gente. Qualquer dia estou por aí, tenho muitas saudades suas, não pode imaginar como a sua presença é poderosa, as suas cartas têm sido um dos pilares da minha resistência. Mais uma vez muito obrigado por tudo e que Deus cuide da saúde do Dear Father.


Tinha estado a ler o livro de Apollinaire, que Ruy cinatti me enviara. É poesia sem interesse nenhum, é mesmo a última incursão no género. Retive 2 ou 3 imagens com alguma expressão intrínseca: «abicagem da galáxia numa cabana»; «falo do amor no açude dos tímpanos»; «ano versado, na parede brota um palavrão: guerra», nada mais. Mas senti os meus 25 anos, queria recomeçar a vida, estava apreensivo pela separação em marcha da solidariedade cimentada com os meus soldados.


Foi indiscutivelmente um grande poeta, inclassificável, um ilustre antropólogo, um amigo devotado de Timor. Deu-me uma companhia exemplar nos dois anos da Guiné, tenho legítimo orgulho em referir as suas cartas, os seus poemas que ali recebi, guardo a profunda saudade dos seus cuidados, comigo e com os meus soldados feridos. Encarou com o maior estoicismo a sua morte, em 1986, no Hospital de Santa Marta. Legou todos os seus bens à Casa do Gaiato.

Para Cristina Allen Santos

Meu adorado amor,

Bambadinca mudou muito com a partida destes amigos a quem tanto devo. Penso que o David Payne em breve vai para Lisboa, levei ao Xime o Augusto e o Calado, foi a segunda e a última leva do BCaç 2852. Não me perguntes como vai ser o meu futuro, aguardo instruções do novo comando. Por ora, a minha base está nos Nhabijões, mas não penses que são férias, as idas ao Xitole, as noites na ponte de Udunduma, as patrulhas às populações em autodefesa fazem parte do meu quotidiano. Também o pelotão começa a estar irreconhecível: partiu o Queirós, perdi um dos meus colaboradores mais preciosos, o Cruz, que viera substituir Alcino, baixou ao hospital com doença tropical. O Domingos já tinha partido, não resta nenhum dos cabos do tempo em que aqui cheguei.

Esta atmosfera não é a de Missirá, embora as populações do Cuor não percam uma visita a Bambadinca para me cumprimentar. Aliás, vieram convidar-me a ver a instalação eléctrica, o gerador está finalmente em funcionamento. Disse inicialmente que não, depois disse que sim, trouxe aquele gerador a ferros da engenharia de Bissau. O Mamadu Camará e o Queta Baldé vão partir para os Comandos, o Cherno já me informou que também partirá quando eu abandonar o pelotão, o mesmo me disse Adulai Djaló, o Campino. Fazemos toda a rotina mas aqui não há a chama de todo o regulado do Cuor, não me sei explicar. Leio muito, mas as tarefas de rotina também têm o seu peso: quase uma vez por semana vamos ao Xitole, ando a tratar do processo de Bacari Soncó para receber o prémio "Governador da Guiné", o processo de atribuição da Cruz de Guerra ao Mamadu Camará foi-me devolvido para dar informações complementares, voltei a ir a cerimónias de condolências. Desta vez, fui cumprimentar Fatu, a minha lavadeira, está inconsolável com a morte do seu Zé, um furriel dos Comandos que chegou a andar em operações comigo, pertencia ao pelotão do Saiegh, nos Comandos em Fá, ficou despedaçado por uma mina anti-pessoal na bolanha de Ponta Varela.

Bom, sigo agora para os Nhabijões, fico lá dois dias. Depois vou combinar com a D. Leontina dos Correios e telefono-te. Os meus soldados Serifo Candé e Ussumane Baldé foram premiados e vão passar férias a Bolama, podes imaginar o orgulho que sinto.

Depreendo da tua carta que não tens parado de procurar casa para nós. Sei que vais ser bem sucedida, vamos ter uma casinha muito bela e tu vais fazer milagres com o teu talento de decoradora. Mil beijos, toda a devoção, toda a minha saudade, está próximo o nosso sonho de Agosto, o nosso reencontro.

Para Emílio Rosa, em Bissau

Meu querido Padrinho,

Só duas palavrinhas para te agradecer tudo: a casa que nos emprestaste com a Elzira, a companhia que nos ofereceste com os Payne, os pequenos mas tão agradáveis passeios a Ponta Biombo, a Safim, a Nhacra. Foste um padrinho exemplar, tornaste a nossa lua-de-mel aprazível nessa cidade fardada. Por aqui o tempo corre, oiço música, acabo de ler "De Profundis", de Oscar Wilde, um Simenon memorável, estou a ler um colombiano de nunca ouvi falar, Gabriel García Márquez, toma notas dos livros que me emprestam sobre a Guiné (acalento o sonho de escrever sobre ela, mais tarde ou mais cedo), o resto é rotina, há mesmo um certo marasmo na actividade operacional de parte a parte, parece que o PAIGC está a avaliar o novo batalhão que chegou a Bambadinca.

Perguntas-me quando é que passo por Bissau. Recebi hoje uma convocatória do tribunal militar, vai ser julgado o meu soldado Quebá Sissé, por homicídio involuntário de outro, o Uamsambo. Será uma viagem muito rápida, não deixarei de te comunicar, vamo-nos encontrar, para mim é sempre uma grande alegria estar contigo. Fica a aguardar as minhas notícias, recebe a profunda estima do afilhado a quem forneceste toneladas de material de construção civil e toneladas de cordialidade e apreço.

Para Ângela Carlota Gonçalves Beja

Minha querida Mãezinha,

Obrigado pelas suas notícias, folgo que esteja muito melhor do seu reumático. Está ansiosa por me ver, que direi eu? É previsível que em Agosto, na pior das hipóteses Setembro, eu esteja de regresso. A guerra por aqui está muito calma, houve mudança de tropa em Bambadinca, passo a maior parte do meu tempo numa povoação que está a ser construída na margem esquerda do Geba, Nhabijões. Obrigado pelas notícias que me dá do Paulo, do Fodé e do Alcino. O estado de saúde do Paulo é muito preocupante, o Fodé adapta-se á prótese, o Alcino coxeia, penso que vai ficar com deficiência para toda a vida. A Cristina continua a procurar casa para nós, está a fazer exames, sei que tudo vai correr muito bem. Penso que dentro de dias vou de fugida a Bissau, terei o cuidado de lhe telefonar. Um dos meus camaradas de Bambadinca que dentro de dias segue para Lisboa ofereceu-se para lhe levar umas lembranças, espero que goste dos tecidos que lhe mando e uma pulseirinha em prata. Não esteja preocupada comigo, gozo de saúde, voltei a fazer ginástica, sinto o prazer de dar aulas aos meus soldados sempre que é possível. Prometo-lhe escrever amanhã uma carta mais longa, vou para os Nhabijões, à noite tenho um petromax e conto-lhe com mais tempo tudo quanto tenho feito Receba muitos beijinhos deste filhos que nunca a esquece e que tento lhe deve.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3120: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (41): Um mês nos Nhabijões

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3150: In Memoriam (7): Bacari Soncó, ex-Comandante do Pel Caç Nat 52, Régulo do Cuor (Beja Santos)

Guiné-Bissau > Janeiro de 2008 > Fotografia de estúdio de Bacari Soncó, antigo comandante de milícias de Finete, na altura em que o Beja Santos era o comandante do Pel Caç Nat 52, e estava em Missirá (Agosto de 1968/Outubro de 1969), e actual régulo do Cuor.

Foto: ©
Beja Santos (2008). Direitos reservados.

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos, (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1), de hoje:

Bacari , Meu Querido Irmão,
Acabo de saber que te perdemos para sempre, em 23 de Agosto.

Com o teu desaparecimento, perco o último Soncó guerreiro da minha geração.

Recordo-te intrépido, resoluto, sempre pronto para seguires a meu lado nas operações e patrulhamentos de mais elevado risco.
Recordo o que aprendi contigo acerca do nome de árvores, culturas, a história do nosso Cuor tão amado.
Recordo a reconstrução de Missirá, as nossas viagens diárias a Mato de Cão, o desvelo que tiveste quando uma mina anti-carro me ia destruindo, em Outubro de 1969.
Recordo o nosso último abraço, em Dezembro de 1991, a partir daí só escrevemos um ao outro, fugíamos do telefone, até porque um régulo não pode chorar ou emocionar-se ao telefone, a autoridade não se compadece com lágrimas.

Acontece que te enviei pelo teu sobrinho uma semana antes do teu desaparecimento a derradeira carta que terminava com a saudação de sempre:

- Recebe um abraço e beijos do teu mano, Mário.

Seguiu igualmente o livro que escrevi sobre a nossa vida no Cuor, onde tive a dita de combater a teu lado. Agora, só posso esperar que tenhas o eterno descanso ao lado dos Soncó, os mais ardorosos guerreiros da Guiné.

Recebe sem mais explicações a minha saudade e gratidão pelo que fizeste por eu ser quem sou,

Teu mano,
Mário
_________________

Nota de CV

(1) - Vd. Poste de 19 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2778: Álbum das Glórias (45): Bacari Soncó, ex-comandante do Pel Mil Finete e actual régulo do Cuor, Janeiro de 2008 (Beja Santos)

sábado, 24 de maio de 2008

Guiné 63/74 - P2880: Memória dos Lugares (7): Missirá, Cuor, região de Bafatá, 2006 (Jales Moreira / Beja Santos)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bambadinca > Cuor > Missirá > A povoção de Missirá em 2006.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Cuor > Missirá > Pel Caç Nat 52 (1968/69) > A mesquita de Missirá, no tempo em que o Alf Mil Beja Santos esteve a comandar este destacamento e esta povoação (1)...

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.


1. Mensagem de do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70):

"Em 2006, o tenente-coronel Henrique Jales Moreira, 2º comandante do BArt 3873 (penúltima unidade militar em Bambadinca, até ao início de 1974), com a sua mulher, Maria Teresa, visitaram o Cuor e foram até Missirá.

"Vemos aqui Maria Teresa na companhia das viúvas de Quebá Soncó, primogénito do régulo Malã Soncó.

"Ao fundo, com tecto em chapa, a mesquita, que vem do meu tempo. Houve um grande desbaste neste perímetro, mas esta era a parada do aquartelamento/povoação, este chão pode falar pelo sangue derramado, casas incendiadas, de 1966 em diante, muito sofrimento, nem sempre contido. Para que conste" (BS).


Foto: © Jales Moreira / Beja Santos (2008). Direitos reservados.


2. Comentário de L.G.:

O tenente-coronel de artilharia na situação de reforma Jales Moreira (que é do mesmo curso do Cor Art Ref Coutinho e Lima) teve a gentileza de me convidar, na qualidade de fundador e editor do blogue, e antigo residente em Bambadinca (CCAÇ 12, 1969/71), para estar presente no próximo convívio do seu BART 3873, o que infelizmente não me vai ser possível por total indisponibilidade na data em causa.

Aqui ficam no entanto o anúncio do encontro, que nos chegou através do nosso camarada Jorge Santos, com votos de uma boa jornada de convívio e confraternização para todos os nossos camaradas:

BART 3873
Guiné, Bambadinca, 1971/1973


Dia 31 de Maio realiza-se o 20º Convívio na Quinta da Mariazinha – PAMPILHOSA DO BOTÃO (Mealhada), com concentração pelas 11H30 no local.

Contactos:

Edgar Soares > 232 437 542 – 965 062 520
Henrique Moreira > 218 403 343 – 914 345 148


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Nota de L.G.:

(1) Vd. poste anterior desta série:

27 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2486: Memória dos lugares (5): Bambadinca, 2006 (Rui Fernandes / Virgínio Briote)

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Guiné 63/74 - P2861: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (32): Operação Pavão Real

Guiné-Bissau > Bissau > Cemitério Municipal > Talhão Militar Central > Abril de 2006 > Obelisco de homenagem aos soldados portugueses, mortos nas diversas campanhas de pacificação da Guiné. Nesta face, encimada por um medalhão com o busto da República, pode ler-se: Campanha do Cuhor (1907-1908), Campanha de Samocé (1908), Campanhas de Oio e Bissoram (1913), Campanha de Manjacos (1914).

Foto: © Hugo Costa (2006). Direitos reservados.


"No tempo em que o Geba estreito era navegável até Bafatá... Encontrei esta preciosidade no Anuário da Guiné de 1946, p. 544(houve ainda uma edição em 1948), uma iniciativa do Governador Sarmento Rodrigues, quando Teixeira da Mota era seu ajudante. Quando vi a fotografia fiquei a imaginar a beleza de um passeio de Bambadinca a Bafatá,acenando aos agricultores a fainar em ambas as margens...não vivemos esse mundo de paz"...

Na mesma página, há uma referência à Paróquia Missionária de Bafatá, de que eram Párocos os Padres Septimio Munno e Artur Biasuti,sendo Coadjuvtor o Padre Espartaco Marmugi e Auxiliar (leigo ?) Vicente Menasi...Italianíssimos, como se vê. Também há uma referência à Missão de Geba, de que era Superior o Padre Efrem Estevanin e Coadjudores os Padres Felipe Croci e Luiz Andreoleti.

Já agora, e não menos curiosa, é a composição da Direcção do Sporting Clube de Bafatá: Presidente - Carlos Caetano Costa; Vice-presidente - Dr. Fernando Luís Leite de Sousa Noronha; 1º Secretário - Carlos Elbling; 2º Secretário - Armando Avilez de Basto; Tesoureiro - Francisco Malheiros; Vogais - Arif Elawar e Carlos Menezes Ferreira; Suplentes - Adriano Augusto e Francisco Paulo... Tentand advinhar, o Arif deveria ser sírio-libanês, comerciante ou filho de comerciantes; os suplentes poderiam ser guineenses, assimilados, ou cabo-verdianos, emptregados do comércio local ou pessoal menor da administração local... (LG)


Foto (e legenda): ©
Beja Santos (2008). Direitos reservados.


Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1), enviado em 25 de Fevereiro de 2008:

Luís, as propostas de ilustração já seguiram. Ainda esta semana, assim o espero, te enviarei o episódio n.º 33, se tudo correr bem o segundo livro está concluído no final de Julho. Terei alguns exemplares do primeiro livro na próxima sexta-feira. Não sei exactamente quando partes, vê lá se me esclareces. Gostaria muito que levasses um livro contigo, para mostrar à comunidade luso-guineense e outros participantes. Um abraço do Mário

Operação Macaréu à vista - Parte II > Episódio XXXII > OPERAÇÃO PAVÃO REAL
por Beja Santos (1)



(i) No rescaldo da operação Tigre Vadio

De 2 a 6 de Abril [de 1970] iremos permanecer em vigilância frente ao Xime, na ponte de Udunduma. Esta é a nossa principal tarefa, mas não deixámos de ir numa coluna ao Xitole e continuámos a apoiar o recenseamento das armas nas tabancas na órbita de Bambadinca.

A 7 escrevo à Cristina:

“Capitulei com o paludismo, é daqueles que não dá tremores nem vómitos, põe só a pele a gotejar, teve dias a fio com arrepios, continuo a beber litradas de água para não desidratar, tapo-me com dois cobertores nestes dias e noites quentíssimos. Mas agora já me sinto melhor, quase convalescente, roubo na enfermaria frascos de vitamina C e complexos multivitamínicos que tomo às grosas, como cereais, e agora os arrepios estão finalmente a passar. Não sei se apanhei este paludismo no Poidom ou em Belel.

"Quando regressámos em 1 de Abril, depois da 'Tigre Vadio', recebemos felicitações de todos pelos resultados operacionais alcançados, se bem que com um grande sofrimento das tropas. Foi meia hora de fogo, houve surpresa total, na nossa aproximação do acampamento dos guerrilheiros, um dos meus soldados que é caçador, Cibo Indjai, tinha descoberto um trilho, depois a avioneta indicou-nos o caminho certo. Este acampamento de Belel estava no meio de uma horta de mandioca e fundo, as habitações em colmo e adobe estavam perfeitamente dissimuladas pela vegetação.

"Infelizmente, no regresso vim buscar água a Bambadinca, na soalheira das três da tarde, o helicóptero foi atingido por tiros que estilhaçaram vidros, julguei ao princípio que se tratava de uma emboscada, agora estou convencido que foi nervosismo e precipitação das nossas tropas que alvejaram a aeronave.

"O regresso teve de tudo: ataque de abelhas, insolações, um corta-mato infernal à procura de Enxalé. Regressei com os pés muito feridos, agora já estou melhor. Chegou entretanto o Pires de férias, deu-me as tuas notícias, e trouxe os livros e discos, quando eu partir para Bissau deixo o pelotão entregue ao Cascalheira, ao Pires e ao Ocante.

"Imagina tu que na noite de 2, já estávamos na ponte de Udunduma, houve um ataque brutal ao Xime, donde partimos na véspera, durou cerca de uma hora, trouxeram canhões sem recuo e morteiros 82, provocaram destruição, elevados danos materiais, felizmente só houve feridos ligeiros.

"Na coluna entre Bambadinca e Xitole tudo nos correu bem, mas as tropas de Mansambo, durante o reconhecimento à estrada, detectaram e levantaram minas anti-pessoais, altamente reforçadas.

"Tenho agora informações a dar-te sobre o nosso casamento. O David Payne escreveu, casaremos em 16 de Abril, pelas seis e meia da tarde. Ficaremos em casa da Elzira e do Emílio Rosa, durante esse tempo eles serão hóspedes dos Payne. A seguir ficaremos no Grande Hotel. O jantar de casamento será num restaurante de nome 'Pelicano', frente à baía de Bissau. Estou a preparar a lista dos convidados, alguns dos meus soldados estarão lá. Escrevi hoje ao meu primo José Augusto Gândara de Oliveira, para Luanda, para o Eduardo Canto e Castro e para o Paulo Simões da Costa, sei que eles vão ficar muito contentes com a participação no nosso casamento. Combinei com a D. Leontina procurar telefonar-te amanhã, a partir de Bambadinca. Se eu falhar à hora aprazada, ela tem uma mensagem para ti. Recebe toda a minha devoção”.

À hora aprazada não se conseguiu a ligação e eu tinha de ir a Samba Juli. No dia seguinte, D. Leontina informou-me com o seu sorriso escancarado:
-Falei à sua prometida logo que os telefones começaram a funcionar, e disse para ela não se esquecer da camisa com as mangas acrescentadas ao tamanho dos seus braços e para trazer as meias de algodão fino. E em seu nome dei-lhe um beijinho e no meu desejei-lhe as maiores felicidades. É tão bonito casarem na Guiné!

(ii) Notícia dos documentos preciosos que me emprestou D. Violete

É na ponte de Udunduma que começo a ler os livros e revistas que foram emprestados à D. Violete pela neta do régulo Mamadu Sissé, um aliado muito leal de Teixeira Pinto. Encontro um comentário de Ramos da Silva, datado de 1915, nos Subsídios para a História Militar e da Ocupação da Guiné, que transcrevo para o meu caderninho:

”Descrever a desgraçada situação política em 1878, definir o que é a Guiné, o seu território: presídio de Zeguichor, praça de Cacheu, presídio de Farim, vila de Bissua, ilhéu do Rei, presídio de Geba, ilha de Bolama e Rio Grande. E nada mais”. O autor fala na criação recente de Sambel-Chior, na margem direita do Geba, onde não há bandeira nem autoridade portuguesa.

Leitura empolgante é a que permite Frederico Pinheiro Chagas em A Guerra da Guiné, vejo que são textos muito sumidos dos Anais do Club Militar Naval, um relato publicado em 1909. Anoto o seguinte:

“Houve há pouco tempo uma guerra entre os biafadas do Cuor, região da margem direita do Geba, e os balantas seus vizinhos, causada, como sempre, pelas incursões destes últimos no território dos primeiros, a fim de roubar mulheres e gado, constante origem das discórdias”.

Confirma-se, pois, o que já lera algures. As ofensas às autoridades começam quando o 2ª tenente da armada José Proença Fortes fora de Geba a Sambel Nhantá, tabanca de Infali Soncó e aqui humilhado. No entretanto, Infali intrigava, arranjara uma inventona sobre a cessão de Badora. Pinheiro Chagas observa que Infali fora imposto pelas autoridades portuguesas aos biafadas. Ele tinha-se revelado um precioso auxiliar na primeira guerra do Oio, mas depois bandeara-se para o inimigo, apoiando os oincas contra os portugueses. Os homens de Infali deram luta.

Quando a lancha-canhoneira Cacheu subia o Geba depois do Xime, para trazer os cristãos de Geba, “mal entrou na parte do rio onde começa a região do Cuor, foi atacada violentissimamente de entre o mato que esconde a margem direita... O fogo do inimigo era constante e a ele respondia a Cacheu com a fuzilaria dos seus marujos e com os tiros de duas metralhadoras Nordenfeld e de uma peça Hotchkiss...

Durava o combate havia horas, a canhoneira seguia devagar, serenamente, para serem os tiros eficazes. Numa volta apertadíssima, junto de Sambel Nhantá, de repente, apareceu um cabo muito grosso de arame farpado. Infali Soncó, que esperava assim impedir completamente a passagem à canhoneira, concentrara aí toda a gente que dispunha, e na ocasião em que a Cacheu aparecia na volta do rio, rebentou da margem direita uma fuzilaria medonha que fez numerosos feridos”.

Eu leio tudo febrilmente, tenho que contar tudo isto ao régulo Malã, vou aproveitar as horas vazias da noite, aqui no Udunduma, para contar estas histórias aos soldados. Durante a leitura, vou anotando dúvidas: fala-se aqui da Ponta Joaquim da Costa, a seguir ao Xime, na margem direita do Geba. Para mim é forçosamente Mato de Cão. Mas será?

Mais adiante escrevo: “Nesta época o régulo mais rico da Guiné era o do Gabu, o regulado tem uma população muito densa e só em imposto de palhota rende anualmente ao governo dezoito contos de reis”. Sambel Nhantá não devia ser uma povoação muito pacifica, em 11 de Outubro de 1885 tinha havido um ataque a esta tabanca comandado pelo capitão Caetano Alberto da Costa Pessoa, também por motivos de desobediência.

Continuo a ler a campanha do Cuor, tenho que devolver amanhã estes documentos à D. Violete, ela vai visitar Fatumana e promete trazer mais papéis. A campanha do Cuor envolveu soldados de Infantaria 13, que vieram de Vila Real. Tudo decorreu em Abril de 1908, sem artilharia, sem cavalaria, sem engenharia, sem material rolante. O governador Muzanty decidiu cambar em Bambadinca numa grande lala (pensei para mim que ele estava a falar de Finete), daqui as tropas marcharam para Ganturé (certamente a Canturé actual) e incendiaram Sambel Nhantá.

Em Gã-Sapateiro (mais tarde chamada Caranquecunda, por onde eu passava praticamente todos os dias) construiu-se um posto militar. Entretanto, Infali Soncó fugiu para Madina, a quinze quilómetros de Caranquecunda, as tropas foram no seu encalço e incendiaram a tabanca. O narrador escreve que então se ergueu no Cuor a bandeira portuguesa ao som de vinte e um tiros de peças de artilharia, os régulos revoltados pediram perdão, que lhes foi concedido.

O posto de Caranquecunda ficou guarnecido por 60 macuas (soldados moçambicanos) comandados por um tenente e por um alferes. E o relato termina assim: “O imposto que os habitantes destas paragens estavam com relutância em pagar começou a entrar rapidamente nos cofres da Província, cobrando-se logo em pouco tempo nas residências de Geba quarenta e seis contos de réis”.

Procuro adormecer, imagino o que foi aquela campanha do Cuor, os soldados de Vila Real a caminhar pelas matas, os macuas em Caranquecunda. O meu caderninho vai-se enchendo com coisas que me entusiasmam. Quando encontrar Gibrilo Embaló vou dizer-lhe que o seu nome Djibril tem a ver com o anjo Gabriel que revelou a Maomé a vontade de Alá. Que uma jibóia na Guiné é conhecida por irã-cego. Que no registos das espécies aladas me esqueci do maçarico, da andorinha do mar, do frango de água, da viuvinha, do noitibó balanceiro e do papa-figos dourado. Que tinha em falta, na minha relação de mamíferos, o rato da bolanha, o macaco do tarrafe e a cabra cinzenta.

Agora estou mesmo exausto, o Lion Brand já está aceso, vou procurar adormecer, mesmo com o zumbido permanente dos mosquitos.


Capa de A Fronteira de Deus, de Martìn Descalz

A Colecção Atlântida, da Editora Ulisseia,incluíu títulos importantes de Vergílio Ferreira,Manuel da Fonseca,Graciliano Ramos,Dinah Silveira de Queroz e Miguel Delibes, entre outros.O capista foi um grande artista do seu tempo, Marcelino Vespeira, como aqui se pode verificar.Não indica tradutor nem ano da edição.

Martín Descalzo recebeu com este livro o Prémio Nadal 1956. Temos a história de fazedor de milagres que vai suscitar anticorpos sociais,políticos e religiosos, a tal ponto que o liquidam.Ele,um simplório guarda de passagem de nível que fora chamado pela população para fazer chover,ao ser assassinado vai convocar a misericórdia de Deus:o seu sacrifício é assinalado com a chegada da chuva.

Foto (e legenda): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.



(iii) Os preparativos da Pavão Real

Em 8 de Abril, um pouco antes do almoço no gabinete do major Herberto Sampaio, tem lugar a última reunião com os oficiais que vão participar na batida à foz do Corubal: CCaç 12, Companhia do Xime [CART 2520]e o Pel Caç Nat 52.

O oficial de operações começou por recordar os resultados das duas últimas operações, não deixando de referir as canoas que foram avistadas na outra margem do rio Corubal, as flagelações que sofremos, a tremenda dificuldade em surpreender as populações que trabalham e vivem cercadas por bolanhas e lalas extensíssimas. Pelas informações disponíveis, o inimigo dispõe de um bigupo a actuar entre a foz do Corubal e a Ponta do inglês. O incêndio das habitações na bolanha do Poidom, durante a operação Rinoceronte Temível, de modo algum intimidou os guerrilheiros (2).

Nesta batida, com a duração prevista de dois dias, um dos destacamentos sairia do Xime e iria buscar entre Madina Colhido e Gundaguê Beafada, o outro iria progredir de Ponta Varela flanqueando o Geba, em direcção à foz do Corubal. Com o apoio aéreo, ao amanhecer do dia 10, e de acordo com os itinerários previamente acordados, os dois destacamentos iriam convergir para a Ponta do Inglês, regressando em colunas separadas pelo rio de Buruntoni e passado por Gundaguê Beafada até chegar ao Xime. Acertaram-se pormenores quanto ao apoio de artilharia, transporte de morteiros e apoio de carregadores. Dada a pressão que o inimigo estava a exercer sobre o Xime, era importante partir imediatamente a seguir ao almoço, no dia seguinte, para a operação.


O apartamento fatídico, por A.A.Fair.

Está danificado,pois apanhou as chuvas e humidades das idas ao Xime e os maus tratos da ponte de Udunduma. Nº119 da Colecção Vampiro,uma bela capa de Lima de Freitas , tradução de L.de Almeida Campos.

A parelha Bertha Cool-Donald Lam em todo o seu fulgor: ela, pronta a cortar nas despesas supérfluas,sempre comilona,ele imaginativo,mentalmente ágil,uma outra abordagem de Perry Mason( A.A.Fair era o pseudónimo de Erle Stanley Gardner).Foto (e legenda): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.




(iv) Os ensinamentos da Pavão Real

Os dois destacamentos envolvidos abandonaram o quartel do Xime ao princípio da tarde de 9, os grupos de combate da CCaç 12 dirigiram-se para Gundaguê Beafada, nós e os grupos de combate da companhia do Xime partimos para Ponta Varela. Confirmámos a passagem recente de forças do inimigo, talvez as que tiveram a atacar o Xime no passado dia 2, talvez gente que andasse à procura de flagelar embarcações à entrada do Geba. Mais uma vez, beneficiando de uma noite enluarada, progredimos por um ponto alto da bolanha do Poindom e quando amanheceu avistámos repentinamente à distância dois cultivadores desarmados que vinham na nossa direcção, o que não constituía surpresa já que a bolanha estava cultivada. Fugiram e devem ter-nos denunciado junto dos outros cultivadores.

Saímos do trilho e a corta-mato entrámos nos palmeirais e depois dentro de uma mata densa onde descobrimos onze casas sobre estacaria com indícios de presença recente, e dois depósitos cheios de arroz, mais adiante um outro conjunto de casas. Nada de armas, nada de munições, eram certamente habitações de quem andava a lavrar a bolanha. Com toda a discrição possível, destruíram-se os víveres e prosseguiu-se a batida.

Pela uma da tarde, com auxílio do PCV, deu-se a convergência das forças e continuou a batida a toda a região até à Ponta do Inglês. O que já tínhamos assinalado na Jaqueta Lisa voltava a confirmar-se: uma ampla rede de trilhos, muito provavelmente utilizados pelos agricultores e seguramente as forças do bigrupo que lhes montava segurança.

Entrámos no aquartelamento da Ponta do Inglês, em completo estado de ruína e, mais adiante passámos pelas tabancas que tinham sido destruídas durante a operação Safira Única, pelas forças da CCaç 12 (3). Sem nenhum contacto e, estranhamente, sem termos sido sujeitos a qualquer fogo de reconhecimento, entrámos no Xime ao fim do dia.

Regressámos a Bambadinca a 11 de manhã, informei o comando que o Poindom estava para dar e durar, impunha-se procurar outros tipos de contacto, desde operações de pára-quedistas até a deslocação de tropas a partir de Moricanhe para pressionar os grupos à volta do Buruntoni. Ainda voltarei uma vez mais à região e para descobrir que o inimigo estava reforçado e possuidor de uma economia própria.

A Toca do Lobo, de Tomaz de Figueredo

2ª Edição, 1964. A capa denota a influência do maior designer gráfico do seu tempo, Sebastião Rodrigues. Impressionou-se a riqueza deste português castiço,ímpar e sincero,nada alquímico.

Diogo Coutinho não tem paralelo naquela literatura fabulosa de Aquilino ou Ruben A. Refugiado na Toca, cercado de memórias, é um morgado de estilo, incapaz de conviver com as burguesias petulantes. Por amor da terra, por amor da tradição, apaga-se na sua inteireza,fidalgo que não capitula nos princípios. Comovem as conversas com os familiares, os criados,os amigos de infância. O arranque do romance tem a magestade rural que permanece até ao fim: «Acima do portão,na verga quase vestida pela hereira que já amortalhara a pedra heráldica, a valer de baetão que a amantasse de lutos,ainda lá se lia uma data,1654, avivada pelo caseiro,por mimo,no tempo da poda a riscos de caco.» É um dos meus livros obrigatórios, quando ponho em dúvida que possuímos uma língua sublime.

Foto (e legenda): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.(
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(v) A Fronteira de Deus e A Toca do Lobo

É um tempo de boas e suculentas leituras, ler é indispensável para quem tem os pés muito feridos, preenche as pausas entre as cansativas operações a Belel e à Ponta do Inglês. Li sobretudo dois livros inesquecíveis: A Fronteira de Deus, de Martín Descalzo, e A Toca do Lobo, de Tomaz de Figueiredo.

O primeiro tem a ver com um milagre que surpreende as poucas centenas de habitantes de Torre de Muza. Um milagre que desencadeia outros milagres, operados por um guarda de passagem de nível, a pedido de uma população que suplica chuva quando todas as colheitas parecem perdidas. O guarda, Renato, é um homem simples que vai sentindo as mudanças operadas na Torre como um pesadelo. Os milagres alteram os comportamentos das pessoas, vai chegar o turismo religioso, Renato torna-se incómodo e será assassinado.

O que há assim de tão poderoso neste livro? A simplicidade que roça a sinceridade. As descrições e os diálogos são plausíveis, o entramado de diálogos é vital para entendermos o estado de espírito do cacique, dos inocentes, dos desesperados, dos que têm sede de justiça. Depois, Martín Descalzo burila vigorosamente o pesadelo de fazer milagres e o incómodo político, religioso e social que eles acarretam. Não chove, os milagres sucedem-se, só se fala do guarda da passagem de nível, os ódios sobem em espiral. Ele será assassinado e Deus parece ter misericórdia do povo da Torre, sobre a aldeia começou a chover quando uma criança fechou os olhos do mártir.

A toca do lobo, de Tomaz de Figueiredo, é assombroso no seu português castiço, na sua incursão pela ruralidade minhota, pela criação de um morgado exilado na sua quinta, incompatibilizado com as vaidades dos políticos e burgueses da vila. Diogo Coutinho vive rodeado de sombras do passado e dos últimos criados fiéis, volta à Toca e aviva todas as suas lembranças: dos pais, das tias, da malta com quem brincou, da prima Aninhas, das caçadas, dos animais, dos livros, das músicas.

É um grandioso português castiço, é um ensaio antropológico ímpar, são recordações forçosamente afectivas, um ajuste de contas com a incompreensão das novas classes face aos morgados de cepa. Leio e releio, reparo que Tomaz de Figueiredo tem mais livros, vou já pedir á Cristina que me traga Uma noite na toca do lobo. Mal sabia eu que iria ficar enfeitiçado para sempre por tão grande escritor.

E li também O apartamento fatídico de A.A. Fair, pseudónimo de Erle Stanley Gardner. Apresenta uma dupla de detectives, Bertha Cool e Donald Lam, ela ávida de dinheiro e comilona, ele imaginativo e tão ágil e cerebral com Perry Mason. São contratados para descobrir uma rapariga desaparecida, o pretexto dado é de que o marido abandonado quer o divórcio. Tudo se passa em Nova Orleães. Afinal não há uma rapariga há duas, a teia torna-se complexa com um assassinato em casa de uma delas. Uma menina de cabaré sabe mais do que diz, e o mesmo se pode dizer do marido que procura a sua esposa desaparecida. Por detrás de tudo isto, está muito dinheiro e um crime praticado há alguns anos atrás. No final, tudo se desembrulha e Donald Lam parte para a guerra. É uma dupla divertida, uma ambiciosa e um observador exímio.

Escrevo e procuro deixar meticulosamente organizada a vida do Pel Caç Nat 52 para as próximas semanas. Vou partir a 14, a Cristina chegará a 15. Cheio de ufania, como se fosse o primeiro homem a deslumbrar-se por uma mulher, confidencio a minha alegria aos outros. De repente, descubro que falo da Cristina, de Lisboa, dos meus estudos, nos serões às escuras na ponte de Udunduma. É uma sensação inexplicável, estou a misturar dois mundos, aquele em que vivi e em que sonho para depois da guerra, tudo dentro deste teatro de operações. Mal sabia eu que ia viver esse paradoxo nas semanas seguintes, ao lado da mulher amada, em Bissau.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. poste anterior, desta série > 10 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2831: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (31): Tigre Vadio: Um banho de sangue no corredor do Oio

(2) Vd. poste de 18 de Abril de 2008 >
Guiné 63/74 - P2771: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (28): A euforia de comandar cem homens na Op Rinoceronte Temível

(3) Vd. poste de 19 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXLI: Ponta do Inglês, Janeiro de 1970 (CCAÇ 12 e CART 2520): capturados 15 elementos da população e um guerrilheiro armado (Luís Graça)

(...) "Seguindo um dos trilhos, avistou-se um homem desarmado que seguia em direcção contrárias às NT. Capturado, informou que ia recolher vinho de palma, que a tabanca ficava próxima, que não havia elementos armados e que a maior parte da população estava àquela hora a trabalhar na bolanha.

"Feita a aproximação com envolvimento, capturaram-se mais 2 homens, 5 mulheres e 6 crianças. Um dos homens capturados disse chamar-se Festa Na Lona, de etnia Balanta, estar alí a passar férias e pertencer a uma unidade combatente do Gabu. Foi-lhe apreendido uma pistola Tokarev (7,62, m/ 1933) e vários documentos" (...).