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sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22489: A galeria dos meus heróis (41): De companheiros de infortúnio a amigos para a vida - Parte I (Luís Graça)


Mafra > Escola Prática de Infantaria (EPI) > 1968 > Cerimónia do Juramento de Bandeira > Desfile dos novos militares, onde se integrava o Paulo Raposo, frente ao Convento de Mafra. O Paulo Enes Lage Raposo, que nada tem a ver com a história que a seguir se conta (ficcionada, mas onde os factos são verdadeiros),  foi alf mil inf, MA, CAÇ 2405 / BCAÇ 2852 ( Mansoa, Galomaro e Dulombi, Guiné,1968/70), e o organizador  do histórico  I Encontro Nacional da Tabanca Grande (Ameira,  2006). A sua companhia perdeu 17 militares na travessia do Rio Corubal, na sequência da retirada de Madina do Boé, em 6 de fevereiro de 1969 (Op Mabecos Bravios). 


Foto (e legenda): © Paulo Raposo (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


A galeria dos meus heróis > De companheiros de infortúnio a amigos para a vida 

- Parte I (Luís Graça)



1. Conheci o Bacelar em Mafra. 
Em finais de novembro de 1972.
Um mês antes do Natal.
Numa tarde fria e chuvosa...
E logo em Mafra. Logo ali, na ”Máfrica”,
como eu e outros que por lá passámos na tropa,
chamávamos àquela terra desgraçada.
Tudo por causa da EPI, 
a Escola Prática de Infantaria,
que se tornara a principal fábrica
de oficiais milicianos, alferes e capitães,
comandantes operacionais
com destino à guerra de África.


Ainda me soava aos ouvidos a frase  de uma canção de protesto, de um gajo de Coimbra, estudante de medicina, que deve ter chumbado a meio do curso, e que era do “reviralho”, cantava bem e tocava viola sofrivelmente : “Muita chuva, muito vento, muita merda… e um convento!", cantarolava ele na caserna, enlameado e estafado, depois do crosse semanal...

Por aqui passara eu, cerca de quatro anos antes, como “feijão-verde”.  Eu, o meu antigo capitão miliciano e outros camaradas de que já havia perdido o rastro.  Para mim, "criminoso" contra a minha vontade, era como voltar ao “local do crime” Foi dos regressos ao passado mais penosos da minha vida. Ao sítio onde não fora feliz, nem nunca o poderia ter sido. Foi aqui que recebi a trágica notícia da morte do meu pai.  Prematura, sem ter completado os sessenta anos.

Não me autorizaram sequer a ir despedir-me dele. Morrera na véspera do meu juramento de bandeira. Mandaram-me, da agência funerária, um telegrama em cima da hora. O tenente da minha companhia de instrução chamou-me ao gabinete e disse-me, seco e perentório, em resposta ao meu pedido para ir a Mértola, ao funeral: “O senhor soldado-cadete pode ir, o pai é seu, mas perde o juramento de bandeira, chumba no COM, vai parar ao CSM, a Tavira, às Caldas ou a Santarém, atrasa o seu embarque para o Ultramar em mais alguns meses… Enfim, a escolha é sua!”…

Sim, o pai era meu, mas a pátria era deles... Enfrentei,  nesse fim de tarde, um terrível dilema, dividido entre o meu amor filial, o meu dever de ir prestar a última homenagem ao meu pai, e a tomada de consciência,  naquele preciso momento, de que passava a estar, doravante, na “linha a frente” e, ao mesmo tempo, a ser o sustento da minha família, da minha mãe e da minha irmã, mais pequena. Por outro lado,   dava-me conta da impossível escapatória  daquele sistema totalitário, que era a “Máfrica”, representado pela nudez e a cruza daquelas paredes que me encarceravam. Não ficara em França, não ía agora fugir do meu país...

Confesso que chorei lágrimas de sangue no dia seguinte, enquanto jurava bandeira, na praça frente ao palácio, com o povinho mudo e calado ao largo… Trágica ironia, jurava defender a minha Pátria (se necessário, “até à última gota do meu sangue”), no preciso momento que descia à terra o corpo do homem que me dera o ser.

Passado pouco tempo estava em Vendas Novas, na Escola Prática de Artilharia, a meio caminho de casa, e mais perto também da minha irmã mais velha, que vivia em Almada e cujo marido, soldador,  trabalhava na Lisnave. Fui lá fazer a instrução de especialidade. Aproveitei uma licença de alguns dias  para dar um salto à minha terra e depor um ramo de flores silvestres  na campa, rasa, do meu velhote, morto pela silicose que lhe destruíra os pulmões.

Mas o Bacelar não tinha nada a ver com isto, com o meu passado recente e muito menos com os meus dramas de consciência. Ele era apenas mais um “companheiro de infortúnio”  que eu tivera o azar de encontrar em Mafra, desta vez no mesmo emprego. Claro que eu não o conhecia de lado nenhum. E, muito provavelmente, não  iria voltar mais a vê-lo,  a partir do dia em que cada um de nós fosse à sua vida, uma vez colocados noutros sítios. 

 Por estranha coincidência (ou, supersticioso  como eu era,  seriam mesmo coisas do destino ?!), tínhamos chegado, eu e o Bacelar, no mesmo dia, ao fim da tarde, com uma hora de diferença. Numa tarde fria e chuvosa, anotara  na minha agenda. Ainda a tempo, contudo, de podermos “tomar posse” (era assim que se dizia na época) do lugar do quadro do pessoal  da repartição de finanças local. Como se o lugar fosse nosso, "de pedra e cal", e para o resto da vida...

Mas eu devia estar, se não feliz, pelo menos aliviado por arranjar um emprego na função pública, com as habilitações literárias que tinha, o 7º ano do seminário que só dava equivalência para a tropa e o funcionalismo público.  Mas não!... Logo por azar meu, as finanças estavam instaladas naquele pavoroso convento, o mesmo onde funcionava, nas traseiras,  a “Máfrica”, de triste memória para mim.

Eu tinha chegado em cima da hora. O chefe da repartição, que me pareceu, à primeira vista, boa pessoa, afável, educado, com sotaque açoriano, foi quem nos apresentou um ao outro, e ao restante funcionalismo.

Mas, dado o adiantado da hora, fez questão de deixar a cerimónia da tomada de posse para a manhã do dia seguinte, com a promessa de, no respetivo termo, constar a data da véspera. Ele era a amabilidade e a calma em pessoa. E fez questão de nos dizer, no seu saboroso sotaque, que não nos queria, em caso algum, prejudicar a “antiguidade”. E carregava na penúltima sílaba com evidente deleite.

Percebi logo que também aqui, tal como na tropa, a “antiguidade” era um posto. Lixei-me com essa da "antiguidade", tive de substituir o capitão, na Guiné,  depois de ele ter sido evacuado para a “metrópole”, por motivo de doença,  que, segundo suspeitávamos, seria do “foro mental”. 

Nunca fomos chegados, eu e o meu capitão, falávamos apenas das coisas estritamente indispensáveis de serviço. Ele também não era de grandes falas. Sei que tomava algumas drogas para o sistema nervoso, almoçávamos juntos na messe de oficiais. Tínhamos uma messe só para nós, o capitão e os quatro alferes milicianos. Na prática, a messe era igual, para oficiais e sargentos, mas havia uma divisória, uma espécie de biombo, a separar as duas classes.

Alguém da companhia ainda o encontrou em Bissau, no HM 241, na “psiquiatria”. Era um verdadeiro  labéu para a reputação de um militar uma baixa psiquiátrica. Um tipo podia ser “apanhado do clima”, que se lhe desculpava tudo (ou quase tudo). Um gajo podia apanhar uma borracheira, daquelas de caixão à cova, que logo lhe acrescentavam mais uns pontos no currículo de macho. Um gajo podia até ser "cornudo", coitado, que isso não acontecia só aos outros. Um gajo podia ser “maluco”, mas nunca podia dar “parte de fraco”, "dar baixa", neste caso ir parar à “psiquiatria”… Muito menos sendo um comandante operacional.

Antes de saírem para o conforto dos seus lares, os novos colegas das finanças, solícitos, se não mesmo afáveis mas algo premonitoriamente distantes, deram-nos  indicações sobre onde  jantar e pernoitar. Que no dia seguinte logo se arranjaria melhor sítio para se ficar por uns tempos, já que quartos para alugar não faltavam naquela terra "acolhedora e hospitaleira" (sic). Confesso que não gostei da cara de alguns, que pareciam os verdadeiros “donos da baiuca”.

 


1 A. Conheci hoje o Ravasco. “Ravasco, que raio de nome!”,
pensei eu quando ele me estendeu a mão,
rugosa, de cavador…
”Será nome ou alcunha ?”,
tive a indelicadeza de lhe perguntar.
”Apelido, de família”, respondeu-me,
secamente, com cara de poucos amigos.
Na minha terra, dizia-se 
de um homem libertino, "putanheiro"...


Dormimos, nessa noite, numa pensão, rasca, numa das  ruas que atravessavam o casario frente ao canvento,  e que o meu novo colega logo reconheceu. E que cheirava a grelhados, a serradura e a mijo de gato.  Ele fizera aqui a tropa há quatro anos atrás, segundo me confidenciou. E ficara, desde então,  com um asco a Mafra.

Em conversa com ele, ao jantar, descobrimos que ambos tínhamos regressado, ainda relativamente há pouco tempo, da guerra do Ultramar. Eu de Angola, ele da Guiné. Éramos da mesma colheita, 1947, embora eu fosse mais novo uns meses.  Mas cada um, afinal, com diferentes memórias, experiências e até expectativas. As recordações que eu trazia eram até boas, as dele nem por isso, segundo percebi logo de início. 

Eu evitei, deliberadamente, falar em demasia desse passado recente que nos aproximava. Talvez por pudor. E também porque não conhecia o Ravasco, ou melhor, tinha acabado de o conhecer  há umas escassas horas. E, em boa verdade, não tinha a certeza de poder confiar nele. Tive até o pressentimento que muitas coisas nos podiam separar. Nunca fui pessoa de fazer amizades logo à primeira vista. Sempre foi uma das recomendações da minha mãezinha que era uma mulher sábia e com um formidável sexto sentido: nunca se enganava no primeiro juízo que fazia dos estranhos. Tirava-lhes logo a "pinta", pelas primeiras frases e gestos...

Para começar, o Ravasco era, seguramente, de famílias humildes. Em contrapartida, era um antigo camarada de armas, se bem que eu ainda não valorizasse muito essa condição. Agora era meu colega de trabalho. Mas eu, ao princípio.  atrapalhava-me, tratava-o ora por colega ora por camarada. Com alguma cerimónia.

E apercebi-me logo que ele não gostava de tocar na tecla da Guiné. Eu pus-me então a imaginar que ele teria passado um tempo pior, na Guiné, do que o meu, em Angola. Talvez tivesse até apanhado uma porrada, ou coisa parecida. Toda a gente sabia que a Guiné era um duro osso de roer. Mas os gajos da Guiné também gostavam de cantar o "fado da desgraçadinha", como se em Angola e em Moçambique nós tivéssemos só andado a brincar aos índios e cobóis. 

Percebi logo, também, que éramos diferentes, se calhar irredutivelmente diferentes, oriundos de diferentes regiões do País, e até de meios sociais  distintos. Eu, do Norte, ele, do Sul.

O Ravasco era alentejano de Mértola, e eu minhoto de Ponte de Lima. Do Alentejo eu só conhecia meia dúzia de anedotas, estúpidas, direi hoje. E nenhum de nós conhecia a terra um do outro. O que não admirava: naquele tempo,  há meio século atrás, ainda era fraca a mobilidade espacial dos portugueses, viajávamos pouco, dentro (e fora) do País, embora eu já tivesse carro. Mas o mais longe aonde já tinha ido, a Sul,  era até Lisboa, quando prestei serviço no RI 5, nas Caldas da Rainha.

O Ravasco confessava que o mais a Norte aonde já tinha ido fora a Aveiro. Fora lá, de comboio, com uns camaradas, mobilizados para a Guiné, comer um ensopado de enguias. Um deles era da Murtosa ou coisa parecida.

Estivera menos de dois meses no Campo Militar de Santa Margarida, a formar companhia. Fora mobilizado para a Guiné pelo RI 2, o Regimento de Infantaria 2, em Abrantes. E não teve pejo em dizer-me que não sabia exatamente onde ficava Ponte de Lima, “lá no mapa do Minho”. O que para mim era imperdoável...

De facto, para mim, o Minho era a “joia da coroa” deste país à beira-mar plantado, o meu país. Era no Minho que começava Portugal, o Portugal do Minho a Timor, como havia aprendido na escola. Sempre tive muito orgulho no meu Minho e, claro, no meu torrão natal, Ponte de Lima, que, segundo me ensinaram os meus avoengos maternos,  era a terra, a vila,  mais antiga de Portugal.


2.Vi logo que o Bacelar era mais viajado do que eu. 
Viera de Mini, de Viana do Castelo até Mafra, 
um dia inteiro a conduzir. 
Tinha um Mini Morris 850,
com jantes especiais, em segunda mão. 
Mas também não fazia a mínima ideia 
onde ficava Mértola, a minha terra natal. 
Disse-lhe que ficava na margem direita do rio Guadiana, 
e que já vinha do tempo de fenícios, romanos, visigodos e mouros. 
Não mostrou curiosidade em saber mais.


Na primeira noite, em que nos conhecemos, por sinal desagradável por causa do frio e da chuva, falámos sobretudo do tempo- Falar do tempo é sempre uma solução airosa quando um gajo  não  tem assunto para conversa, ou não está afim de conversar, ou não quer mostrar logo o jogo, a sua maneira de ser e de estar, a sua história de vida, os seus pontos fortes e fracos… Falámos pouco das nossas terras e das nossas andanças pelo país que nos calhara na rifa.

Simpático, o Bacelar mandou vir duas aguardentes velhas de vinho verde, que fez questão de pôr na sua conta. E estivemos ali os dois a falar, afinal amenamente, evitando, todavia,  tocar  em assuntos da tropa  e da guerra. O que era dfícil, convenhamos...

Na realidade, era como se estivéssemos ainda em África, a resguardarmo-nos do paludismo e a contar as noites e os dias que nos faltavam para a “peluda”. Em geral, eu era muito reservado, nunca ou raramente falava da tropa e, muito menos, da Guiné. Por outro lado, sempre nos tratámos por você, até pelo menos até ao 25 de Abril de 1974. Ele também era cerimonioso, talvez mais por educação do que eu. 

Fiquei depois com a ideia de  que lhe ficara o "bichinho de África" e que hoje ainda estaria arrependido de não ter aceite uma boa oferta de trabalho em Luanda. No Banco de Angola, gabava-se ele.  De resto, não terão faltado outras propostas de emprego, menos aliciantes,  como por exemplo a de escriturário numa fazenda de café, em Camabatela, se não erro. 

Não me explicou as razões por que voltou para a santa terrinha, ele que se gabava de ter alguns “grandes africanistas” na sua ascendência, do lado materno, um dos quais, militar,  ainda conhecera o Zé do Telhado no exílio, em Luanda, a caminho de Malanje. 

Mas as saudades, às vezes, falam bem mais alto do que a razão. Disse-lhe que fizera bem, que haveria de continuar a fazer a sua vida na sua terra, e que o futuro de Angola era incerto, tal como o de toda a África Austral, últio reduto dos brancos, o mesmo era dizer, do colonialismo. E não me enganei, o velho “apartheid” branco haveria de ruir em 1994, tal como já tinha antes ruido o muro de Berlim  e tudo o que ele representava, dividindo o mundo em duas partes como uma laranja…

Deitámo-nos cedo, estávamos ambos cansados, o Bacelar tinha vindo a conduzir desde Viana do Castelo. Eu viera de mais perto, de Almada, onde pernoitara na casa da minha mana mais velha. (Era casada com um operário da Lisnave, como já atrás referi. Tinham-se casado há pouco, estavam a montar a casa, viviam com dignidade mas com muito aperto, como as famílias operárias da época.) Vim de cacilheiro para Lisboa para depois apanhar, na Rua da Palma, uma camioneta da Mafrense, se bem recordo, ao fim destes anos todos.

Tínhamos guia de marcha para nos apresentarmos até às cinco horas da tarde desse dia, para a “tomada de posse”. Reparei no olho azul do Bacelar. Soube, mais tarde,  que era oriundo de uma família de pequenos senhorios, donos de terras de um antigo morgadio com direito a brasão. 

(Sempre invejei, diga-se de passagem, quem tinha algo de seu, casas e/ou terras. O meu pai construíra uma casinha de paredes de tabique no couto mineiro. Nada a que ele pudesse chamar seu. Nós, os do Sul, não tínhamos raízes telúricas e muito menos “pedigree”, brasão, árvore genealógica... E quem não tem raízes na terra nem árvore genealógica para mostrar aos outros, é mais propenso às depressões, ouvi essa teoria ao alferes miliciano médico do meu batalhão, que deve ter seguido psiquiatria, era mais “apanhado do clima” do que nós, operacionais.)

O primeiro emprego que o Bacelar arranjara, depois do regresso de Angola, fora numa repartição de finanças do distrito de Viana do Castelo. Um tio (ou tio-avô, materno, não fixei o grau de parentesco) tinha (ou tivera) um cargo importante na Direção Distrital de Finanças do Porto. Teria sido, ao que parece, condiscípulo de diretor-geral das contribuições e impostos, o dr. Vitor Duarte Faveiro. Por isso, no gozo, eu chamava-lhe  “filho de Ansião”… E o apodo ficou, quando os outros sacanas dos colegas mafrenses descobriram… “Dor de corno!”, pensei eu. Quem tinha “cunhas” para entrar na DGCI, era logo apodado de “filho de Ansião”, a terra do director-geral que toda a gente reverenciava e temia, sendo tido como um grande fiscalista. 

Eu não lhe disse, por vergonha,  que também tivera uma cunha, essa eclesiástica. De um cónego do cabido da sé-catedral de Beja. Meu antigo professor. De qualquer modo, tanto eu como o Bacelar, havíamos feito, com sucesso, um concurso de provas públicas, como era norma do Estado Novo.  Éramos já “concursados”… Consolava-me a ideia de ter entrado, por mérito, não tendo roubado o lugar a ninguém. (Ou roubara ?... É uma dúvida que, então, se não me dilacerava, pelo menos me incomodava um pouco.)

O Bacelar tinha a secreta esperança de ainda poder ser chamado para o Banco Nacional Ultramarino ou para o Banco de Portugal, se bem percebi. Ou de vir a ficar mais perto de casa, no caso de  continuar nas finanças.

Se ele tinha defeitos que saltassem logo à vista, era essa de se gabar do seu “capital de relações sociais”, como se diz hoje…. A matriz  da sociedade portuguesa era ainda na época muito clientelar, nada se conseguia (empregos, negócios, casamentos, tropa, etc., ou um simples internamento nos Hospitais Civis de Lisboa…) sem “conhecimentos”, o mesmo era dizer, sem “cunhas”. Mas não precisava de ser “cunha” de gente muito importante, às vezes até parecia que quem mandava mais neste país era a criada, o motorista, a amante, o sargento, o sacristão, o caseiro, o feitor, o maioral, enfim o chefe do pessoal menor… Nas zonas rurais, o feitor era um tipo poderoso, tal como o sargento na tropa… Eu via por Mértola e Beja, onde os latifundiários, a viver na capital, raramente lá punham os pés, a não ser na época  das colheitas e da caça.

Ambos arranjámos um quarto, amplo, com duas camas, numa casa sita no centro da vila deMafra. Vivia-se, naquele tempo, do aluguer de quartos a professores primários, funcionários públicos e militares da Escola Prática de Infantaria, incluindo soldados-cadetes que tinham algum poder de compra. Era simpática, a velhota, a dona da casa, viúva de um sargento, se bem me lembro ainda.

Os quartos já não eram baratos na época e eu, tanto como o Bacelar, nos convencemos, estupidamente, que estávamos ali de passagem. Mais ele do que eu. A nossa ideia era, logo depois da tomada de posse do lugar do quadro, pedir  de imediato transferência. Eu, para Beja ou para Almada (estava indeciso), o Bacelar para Braga ou Viana do Castelo. Acabaríamos por ficar mais de 21 meses naquela "vida de ciganos", a que passei a chamar Máfrica Dois.

Confesso que detestava a Máfrica, como eu chamava  àquela terra, tomando a parte pelo todo. Estava farto da tropa. E se calhar as pessoas  de Máfrica Dois também estavam, tirando as velhotas simpáticas que viviam do aluguer de quartos. 

 O meu tenente-coronel, comandante do meu batalhão,  na Guiné, ainda me fez a cabeça para meter o chico. Deu-me um louvor, imaginem! 

(E se eu tivesse metido o chico ? Não me livraria de voltar à Guiné, agora como capitão. Secretamente, a ideia não me desagradava de todo, teria hoje um melhor pé de meia. Mas também lá podia ter deixado a meia, o pé ou até a vida. Mas os galões dourados de capitão não me deixavam indiferente, a mim que, não passando de um simples alferes miliciano,  experimentara, por breves meses, a secreta  volúpia do poder, que tinha como contrapartida o angustiante desafio de comandar 150 homens num teatro de guerra, e o risco de perder alguns. Eu que antes nunca estivera à frente de nada, nunca fora ninguém, nem sequer chefe de turma ou capitão de equipa de futebol!...)

Tínhamos apenas um reposteiro a separar as duas camas, como nos quartos de hospital. A minha cama tinha um colchão de palha (!) onde me afundava com os meus 90 quilos. (Engordei, estupidamente, depois que passara à peluda.)


2A. Para o meu gosto, feitio e educação, 
o Ravasco tinha um tipo de humor um pouco brusco e mordaz. 
Não sei se era um humor tipicamente alentejano. 
Afinal ele era o primeiro alentejano com quem eu ia trabalhar. 
E não me lembrava de ter lidado na tropa 
com alentejanos ou algarvios. 
Nós, os do Norte, já na altura os tratávamos por “mouros”. 
Por sorte, a minha companhia em Angola 
só tinha angolanos, minhotos e durienses. 
E demo-nos todos bem.


Não me importei de partilhar um quarto, com o Ravasco, afinal ainda estávamos habituados, tanto um como o outro,  ao ambiente de caserna, aos seus maus cheiros, à sua bagunça, ao seu ar opressivo, à sua promiscuidade... O meu quartel no leste de Angola também era uma espelunca, dormíamos com cobras e ratos....Sempre poupávamos algum dinheiro e, dentro em breve,  estaríamos de volta a casa. Ou, pelo menos, era essa a minha  secreta esperança. 

Vi que o Ravasco era poupado, se não mesmo forreta. Usava roupa fora de moda. O seu único luxo eram os jornais e um ou outro livro. Percebi que andava a preparar-se para fazer o exame do 7º ano do  liceu. O 7º ano do seminário não lhe valia de nada. Queria seguir letras, julgo que direito. Tinha uma obsessão pelo direito. Se calhar, era-lhe mais fácil por causa do latim. Queria aproximar-se de Lisboa para poder entrar na universidade.

Acabámos também por tornarmo-nos, se não íntimos, pelo menos mais próximos, por força das circunstâncias, como os prisioneiros que estão na mesma cela e estão condenados a, minimamente, entenderem-se. Fiquei a saber que ele tinha deixado noiva em Beja. Ora eu, nesse aspecto, estava mais à vontade, era livre como um passarinho.

Fui conhecendo-o, a pouco e pouco. Fomo-nos conhecendo. Dei conta de que, debaixo da sua aparente bonomia, e do seu verbo fácil, fluente, alegre e até folgazão, havia um homem reservado, subtilmente amargo e revoltado com a vida e com a sorte que lhe coubera a ele e à sua família e à gente da sua terra. Não esquecia a injustiça da doença e da morte do pai. E tivera uma infância difícil, segundo percebi. “Criado a migas, a toucinho de porco e a ervas do campo que agora vão à mesa do rico”, rosnava ele, mal humorado.

Tanto quanto pude apurar das nossas conversas em Mafra, onde ambos estávamos “desterrados” (a expressão era dele),  o Ravasco era neto de ganhões, e filho de mineiro, e que tirara o 7º ano do seminário, graças a uma bolsa de estudo da diocese de Beja. Julgo que por detrás dessa obra benemérita haveria uma senhora devota, de uma família de grandes proprietários agrícolas, muito conceituados na região. Foi o que ele me deu a entender, sem entrar em pormenores. Era uma bolsa para estudantes pobres, oriundos do Baixo Alentejo. 

Quiseram-no encaminhar para o sacerdócio, mas ele terá percebido, quando acabou filosofia, o 7º ano, que “não tinha vocação”. Ou talvez pior, para um cristão: terá perdido a fé ao lidar (mal) com as injustiças de que o pai fora  vítima, ainda em vida, nunca lhe tendo ocorrido que Deus poderia estar a  pô-lo à prova. Como me pôs á prova a mim, quando deixei pai e mãe e fui para Angola, não para o “bem-bom”, mas para a guerra.

No verão, o Ravasco ia sempre para França, para a região de Bordéus, fazer a campanha  das vindimas. Entretanto dera  o nome para a tropa, mas beneficiava de uma licença militar para se poder ausentar temporariamente do país. Nunca lhe passou pela cabeça não voltar a casa e ficar em França, tornando-se refratário.  Sempre se considerou um homem de palavra. E patriota. E aí a minha consideração por ele aumentou, apesar de eu o continuar a chamar “mouro”. Não levava a mal. Tal como eu, também não, quando no gozo me chamava “morgadinho” e, depois do 25 de Abril, "pequeno-burguês". 

Ainda chegou a ser “aliciado” por um comité luso-francês, católico, contra a “guerra colonial” que dava apoio a desertores e refratários portugueses na região de Bordéus. Mas ele nessa altura não queria saber nada de “política”. E era agarrado à família. E, em boa verdade, temia represálias contra o pai, já doente, se ele  não regressasse de França. O que, sabendo o que sabemos hoje, não houve represálias contra as famílias de exilados, desertores e refratários. 

Segundo ele me contará, mais tarde, o pai tinha sido mineiro nas minas de São Domingos, entretanto definitivamente encerradas  em meados dos anos 60. Vem a morrer quando ele estava aqui, em Mafra, a fazer o COM. De silicose, ao que parece, uma doença  então muito comum entre os mineiros. Mas só tardiamente fora diagnosticada e reconhecida, ao pai, essa doença profissional, com direito a reparação médico-legal, segundo ele me explicou.  De pouco lhe terá valido a “miserável pensão de invalidez” que lhe fora atribuída, a expressão era do Ravasco.

Eu ainda comentei que no Norte ainda era pior, os rendeiros e os pequenos lavradores, ao fim de um vida dura de trabalho, morriam de miséria num catre, numa cabana de madeira,  só com a ajuda da família, quando a tinham.  E chamavam o médico só na hora da morte. Ele endureceu a expressão do rosto e respondei-me com veemência: “É porque você não sabe o que é um ganhão nem nunca engoliu o pó de uma mina!”… E eu aí tive que reconhecer que ele tinha razão, eu sabia lá o que era um ganhão e muito menos uma mina ou um mineiro e essa coisa da silicose. Nalgumas coisas eu tinha sido um privilegiado da sorte, embora nunca tendo sido rico, fiz questão de lhe frisar. 

O Ravasco tinha ajudado a família com o vencimento de alferes miliciano de artilharia, enquanto estivera na Guiné. Era frugal, não se metia em tainadas. Bebia  de vez em quando o seu uísque. Não fumava. Nem sequer veio de férias para poupar o dinheiro da passagem. Saberei mais tarde, quando ganhámos mais confiança, que terá optado por ir uma semana a Bubaque, nos Bijagós.  Tencionava arranjar um pé de meia para se poder casar. Mostrara-me, ao fim de uns meses,  uma fotografia da rapariga que lá deixara em Beja. Não fixei o nome. Só reparei que não era lá muito bonita: era trigueira, de olhos de cor de azeitona, não fazendo o meu género. 

Senti, isso sim, que a morte prematura do pai, antes dos sessenta  anos, deixara-o muito abalado e revoltado. Percebi logo que ele era do “contra”, como diria o senhor meu pai. Não gostava de Salazar nem de Caetano. E referia-se à guerra do Ultramar como “guerra colonial”, expressão que era então proibida nos jornais. E, pior,  também não frequentava a igreja. Fazia-me confusão, sendo ele um ex-seminarista.

Depois de vir da guerra, começou a interessar-se pela política e lia o “Diário de Lisboa”, além do “Comércio do Funchal”, de que eu nunca tinha ouvido falar antes. Era um jornal cor de rosa. Cheguei a dar uma vista de olhos, mas não me despertou a curiosidade.

Em suma, as nossas afinidades eram puramente acidentais ou circunstanciais. Fôramos parar àquela terra que, tal como a conhecemos hoje,  não existiria se o nosso  Dom João V, para mim de boa memória,  não mandasse ali construir aquele monumental palácio e convento, um dos mais grandiosos da Europa,  que o Ravasco teimava em qualificar de “monstruoso”. 

A repartição de finanças estava lá instalada, tal como a EPI, e julgo que mais repartições públicas, já não me lembro ao certo, até por que convivia com pouca gente da terra, sempre que podia dava uma escapadela pelos arredores, sobretudo ao fim de semana.  

No inverno rapava-se frio de rachar. Eu, que vinha do Norte, onde também faz frio, lembro-me de ter de usar ceroulas no inverno e grossas camisolas de lã em Mafra. Eu e o Ravasco dávamo-nos mal com aquela humidade marítima que nos chegava do Atlântico e se entranhava nos ossos. Não havia aquecimento central, nem uns simples aquecedores a gás.  Mas Mafra tinha belas praias, com destaque para a Ericeira. Comecei a gostar da Ericeira, e da Foz do Lisandro, e sobretudo das miúdas estrangeiras que começavam a parar por lá.


3. Bom, lá fomos tomar posse no dia seguinte, logo de manhã. 
No gabinete do chefe, que mandou chamar o resto do pessoal 
para assistir à cerimónia. 
Ficou só um funcionário, ao balcão. 
Para o caso de chegar algum contribuinte por causa da “décima”... 
Mas nessa manhã estava tudo muito calmo.

 

O termo de posse já estava pré-preenchido, com os dados de cada um de nós, era só precisa a nossa assinatura, no final,  depois de lido o famigerado juramento de lealdade ao Estado Novo.

 Repeti mecanicamente a fórmula, como quem rezava o Padre Nosso, no último ano do seminário, depois de ter perdido a fé e a vocação. Olhei, com um misto de temor e de desdém, para os retratos,  pendurados na parede, dos três mais altos magistrados da Nação (os vivos, Américo Tomaz e Marcelo Caetano; e o morto, Salazar, o “pai da Pátria”, ou o “refundador da Nação”, que ainda ninguém tivera a coragem de mandar retirar) e disse, firme e em voz bem alta:

 “Declaro por minha honra que estou integrado na ordem social estabelecida pela constituição de 1933, com ativo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas”. (Dizem-me que o juramento dos funcionários públicos fora  aprovado pelo decreto-lei nº 27 033, de 14 de Setembro de 1936, mas eu nunca chegara a ler esse diploma, tal como nunca lera a Constituição de 1933.)

E, de repente, lembrei-me do meu juramento de bandeira na “Máfrica”  e indignei-me por, na altura, nem sequer ter questionado as palavras que, mesmo em voz baixa, atabalhoadamente e a medo, proferi na parada… Regressado de uma guerra, repugnava-me ter aceite, no passado,  o dever absurdo de jurar “obedecer cegamente aos meus chefes”. Afinal, eles poderiam ser todos cegos, conduzindo todo um povo, também de cegos,  à beira de um precipício… 

Tivera um pesadelo nessa noite. Voltaria a tê-lo quatro anos depois...

(Continua)


© Luís Graça (2021)

Nota do autor: Neste conto, os nomes são fictícios, mas os factos são verdadeiros. Acontece que este país é demasiado pequeno.

__________

Nota do editor:


Último poste da série >  27 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21585: A galeria dos meus heróis (40): O meu amigo Doc - II (e última) parte (Luís Graça)

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21289: Notas de leitura (1299): “Capitães do Fim… Uma radiografia estatística”, por António Inácio Correia Nogueira; Chiado Editora, 2017 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Junho de 2017:

Queridos amigos,
O assunto dos Capitães do Fim não é propriamente uma novidade para ninguém, quem combateu a partir de 1970 sabe perfeitamente que em Mafra se fizeram fornadas de oficiais milicianos, fazia a recruta e a especialidade, eram promovidos alferes, lançados num teatro de guerra durante quatro meses, regressavam como tenentes e iam formar companhia.
A radiografia estatística que António Nogueira publica traz uma maior claridade sobre as origens, a escolaridade, a idade, o agregado familiar e eventuais profissões desenvolvidas, à data da incorporação. Ficamos igualmente com a informação se desenvolveram, ou não, contestação à guerra do Ultramar, o que pensam da instrução e dos instrutores que tiveram em Mafra, os critérios que foram utilizados para a sua seleção, como atuaram num teatro de guerra, quais as formas de protagonismo, como foram, na hierarquia militar, reconhecidos o seu trabalho.

E ficamos a saber um pouco mais das consequências da guerra para os capitães do fim, o que deles pensam os seus subordinados.

É uma radiografia que não deixa indiferentes. O que a Academia Militar não fornecia foi colmatado por eles. Centenas de mancebos têm toda a legitimidade em clamar, com orgulho, que não faltaram ao dever.

Um abraço do
Mário


Uma radiografia dos capitães do fim

Beja Santos

António Inácio
Correia Nogueira
“Capitães do Fim… Uma radiografia estatística”, por António Inácio Correia Nogueira, Chiador Editora, 2017, apresenta-se como uma obra complementar a que o autor dera à estampa no ano anterior sobre a história de capitães milicianos submetidos a uma formação acelerada. 

Como observa o autor, nos anos terminais da guerra colonial, a Academia Militar deixara de cumprir, por falta de candidatos, a sua missão capital: formar as elites militares intermédias de combate. Como a política do Estado Novo era intransigente na defesa do Império, custasse o que custasse, um dos expedientes encontrados foi a dos capitães do fim: em cerca de 14 meses fazia-se de um mancebo, muitas vezes em estádio avançado de licenciatura ou já licenciado, um capitão combatente para atuar num dos três teatros de guerra. 

Com ironia cáustica, alguns apelidavam estas novas elites 
de “capitães de proveta” ou de “aviário”. Reconheça-se que António Nogueira é mais justo ao recorrer à expressão “capitães do fim”.

De um modo geral, esta geração respirou outros ares bem diferentes dos oficiais milicianos que combateram ao longo da década de 1960. Vêm mais experimentados pelas lutas estudantis, coabitam, com maior ou menor intensidade, com agentes contestatários à guerra, da esquerda à extrema-esquerda. Enquanto uns desdenhavam a formação destes jovens capitães, a instituição militar apostava seriamente neles: o comandante de companhia tinha um papel fulcral na guerra, a guerrilha mostrava-se cada vez melhor apetrechada e com material de combate mais evoluído, enquanto as forças armadas permaneciam mal equipadas e pouco adaptadas ao crescimento da nova realidade miliciana. O autor preambula com eixos teóricos da guerra, mostra os períodos e fases do fenómeno subversivo, tal como eles eram apresentados aos cadetes em Mafra.

A base da obra de António Nogueira tem a ver com a construção de questionários, inquéritos que foram enviados e que obtiveram um considerável acolhimento, permitindo uma base aceitável de trabalho para a obtenção de uma radiografia de quem eram e em que se transformaram estes capitães do fim.

Vieram de todo o país, com preponderância para Coimbra, Lisboa, Porto e concelhos limítrofes, eram jovens com origens sociais, culturais e económicas muito diversas, jovens predominantemente nas idades entre 24 e 27 anos, nada de anómalo, os oficiais oriundos da Academia Militar eram promovidos a capitães com idades próximas. 

As habilitações académicas destes capitães eram díspares, essencialmente todos com frequência de cursos universitários, mais de 50% estavam entre o terceiro e o último ano de um curso superior. 70% eram solteiros e 30% casados. Exerciam a profissão de engenharia 13% dos incorporados, profissão prestigiada devido à industrialização iniciada na década anterior.

Fala-se detalhadamente da incorporação na EPI – Escola Prática de Infantaria (instrução, instrutores, ambiente, contestação à guerra). Não deixa de ser uma curiosidade o que se fica a saber sobre a seleção e formação de capitão: 

(i)  44,3% respondem desconhecer o motivo por que foram selecionados;

(ii) 18,3% declaram ter sido por já possuírem uma licenciatura;

(iii)  14,8% indicam ter sido escolha do instrutor;

(iv) 11% estão convictos de que foi por ocuparem os primeiros lugares da seriação psicotécnica;

(v) 5,2% por terem mais idade;

(vi) 4% pelas competências já adquiridas na vida civil. 

O autor comenta: 

“É estranho este conhecimento fracionado e superficial dos modos de seleção. É lacuna grave a forma como se comunicava na instituição militar. Mas surpreendente é a indiferença com que os questionados permaneciam desinformados sobre factos que condicionariam a sua vida militar futura”.

Após o círculo formativo de seis meses na EPI, a continuidade do processo era um estágio num dos teatros de guerra, com a duração de quatro meses, com o posto de alferes, e na qualidade de adjuntos dos comandantes de companhia do local onde eram colocados: 66% estagiaram em Angola, 28% na Guiné e 6% em Moçambique. 

De acordo com o inquérito, cerca de um quarto dos estagiários enfrentaram situações de guerra muito difíceis. Depois de regressarem do estágio, os futuros capitães do fim, agora promovidos a tenentes, frequentavam um curso de comandantes de companhia, também na EPI.

A radiografia estatística incide também sobre a formação e instrução da companhia, como decorreu esse comando em teatro de guerra, se houve protagonismos na guerra, se os capitães de algum modo participaram na conquista da democracia ou nos atos finais da descolonização. Um número elevadíssimo de capitães (mais de 90% foram louvados, cerca de 9% tiveram a atribuição de uma medalha ou de uma condecoração).

E temos agora as consequências da guerra para os capitães do fim: 

(i) 65% considera ter sido a participação na guerra gravosa para a continuidade dos seus estudos;

(ii)  para cerca de 13% o reatamento foi impossível;

(iii)  36% consideram que a guerra lhes acarretou problemas de saúde e instabilidade emocional que prejudicaram os seus relacionamentos familiares, na profissão e com os amigos. 

Mas há respostas afirmativas, quanto ao enriquecimento humano e profissional, reconhece-se valor à experiência das relações humanas, enriqueceu-se com a chefia de homens em situações adversas, houve enriquecimento cultural e sociológico. Quanto à passagem à disponibilidade, o grosso das respostas é eloquente: “Um imenso alívio”.

Nesta radiografia estatística também se procurou obter o contraditório dos comandados. 83% manifestam-se agradados com os desempenhos do seu capitão do fim.

Ao findar, o autor dá como comprovado que os capitães do fim tiveram desempenhos e protagonismos meritórios na guerra, na obtenção da paz e da democracia, e conclui com uma parte do poema de Ary dos Santos intitulado Retrato do Herói: Homem é quem tombando apavorado / dá o sangue ao futuro e fica ileso / pois lutando apagado morre aceso.
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21262: Notas de leitura (1298): A política económica e social na Guiné-Bissau, por Carlos Sangreman, Doutor em Estudos Africanos (1974-2016) (2) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 21 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21189: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (121): com a ajuda do José Martins (, o nosso "Sherlock Holmes"), o João Crisóstomo, a partir de Nova Iorque, acaba de reencontrar, mais de 50 anos depois, o seu camarada de Mafra, Lamego e Beja, Luís Filipe Galhardo Lopes Ponte, hoje ten cor ref


Imagem nº 1 > Lamego, CIOE, 1964, turma B


Imagem nº 2 > Lamego, CIOE, 1964, turma A

Lamego, CIOE > 1964 > Turmas A e B do curso de operações especiais: o João CRISÓSTOMO  pertencia à turma B (imagem nº 1); e o Luís Filipe GALHARDO Lopes  Ponte à turma A (imagem nº 2) 


Imagem nº 3

Excerto da carta, de 22/5/2020, do capelão militar do RI 3, Beja, padre João Diamantino, ao João Crisóstomo: (...) "Sei que portaste muito bem em Lamego, pelo Luís Filipe da Ponte que está aqui no RI 3" (...)


Fotos (e legendas): © João Crisóstomo (2020). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem do nosso colaborador permanente José Martins [, ex-fur mil trms, CCAÇ 5, "Gatos Pretos", Canjadude, 1968/7o; tem mais de 410 referências no nosso blogue; vive em Odivelas; revisor oficial de contas reformado]

Date: segunda, 20/07/2020 à(s) 18:40
Subject: Mensagem ZULU: Em busca do "Luís Filipe"
Boa tarde

Tive o grato prazer de receber uma chamada do João [Crisóstomo], ontem à tarde.

Estivemos a falar o que foi extremamente agradável. 

Terminada a chamada coloquei o nome de Luís Filipe Galhardo Lopes  Ponte (*) e a pesquisa encaminhou-me para a Federação Portuguesa de  Automóveis e Karts. 

Foi piloto durante anos.

Enviei mensagem solicitando informação se se encontrava ainda ligado  àquela federação e que pedia que me contactasse. Hoje recebi indicação  do seu contacto.

Já lhe telefonei, mas não tem memória, pelo menos de imediato, do João  Crisóstomo. Esteve em Mafra e por lá ficou, continuando a tropa no  Quadro Especial de Oficiais. É tenente coronel reformado. 

O contacto do telemóvel é [...].

Espero que tenhas encontrado o homem.

Abraço, Zé Martins


2. Mensagem de João Crisóstomo [luso-americano, natural de Torres Vedras, conhecido ativista de causas que muito dizem aos portugueses: Foz Côa, Timor Leste, Aristides Sousa Mendes... Régulo da Tabanca da Diáspora Lusófona, foi alf mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67): vive desde 1975 em Nova Iorque],  dirigida ao Luís Filipe Galhardo Lopes Ponte, através do e-mail do seu filho Francisco Ponte:

Date: segunda, 20/07/2020 à(s) 20:50

Subject: Hello de Nova Iorque!....

 Meu Caro Luís Filipe,

Permito-me apelidar-te assim, baseado na nossa amizade de há cinquenta anos atrás: Mafra, Beja, Lamego…

Vejo que temos muito em comum, entre elas o de termos esquecido muitas coisas,  o que me sucede mais frequentemente do que eu desejaria… Neste caso porém parece que eu me lembro de mais coisas do que tu, pois nem o meu nome te lembravas já...

Mas eu nunca te esqueci, e muitas vezes me tenho dito: quero encontrar o Luís Filipe,  nunca mais esqueci o abraço (e lágrimas) que me deste (dentro do comboio) em Vila Franca de Xira, quando vinha eu do Porto para Lisboa. Tu,  ao veres-me , ficaste muito espantado e agarraste-te a mim num abraço que jamais esqueci … E que te tinham dito que eu tinha morrido na Guiné…

Bom, vamos com certeza falar mais, para já falamos pelo telefone e oxalá um dia o possamos fazer pessoalmente.

Estou neste momento um pouco apertado (tenho um encontro marcado) mas quero-te enviar aqui estão algumas fotos de que te falei (dentro do contexto duma mensagem que enviei, andando à tua procura…) 

Tu na foto do curso de  Lamego [, de operações especiais,]  estás na turma A, o 3º a contar da esquerda, na última fila, de apelido Galhardo…  A carta do P. Diamantino, que também anexo, menciona o teu nome Luís Filipe Ponte… 

Na outra foto eu estou na turma B, o 3º a contar da esquerda, na última fila...

Um grande abraço e até breve, que eu telefono-te brevemente outra vez!

João


PS - Por favor DIZ AO TEU FILHO PARA FAZER UM "REPLY" ( um simples "OK recebido" é suficiente!), para confirmar o endereço e eu ficar a saber que recebeste...

3. Mensagem do João Crisóstomo, enviada na mesma data e hora ao nosso editor:

Caro Luís Graca,

Depois do post 21079 fiquei a matutar como é que havia de consultar os Arquivos Militares mencionados pelo nosso colega José Martins. Queria dizer-lhe o meu muito, muito obrigado pelo interesse e trabalho de investigacão, mas preferia ( como sempre!) fazê-lo por telefone. Daí a minha chamada de hoje.

Sucede que ao procurar alguns documentos relacionados com a CCaç 1439, vim a descobrir também fotos, cartas, aerogramas, etc.,   que sabia ter guardado como recordações dos meus tempos da Guiné. 

 Mas,  "saído da tropa", levei estas recordações comigo para a Inglaterra, e depois andaram sempre comigo: Paris, Stuttgart, Rio de Janeiro , Nova Iorque … Todavia, com tantas mudanças e endereços,  eu pensava que se tinham já "extraviado".

Que grande satisfação ao reencontrar tanta coisa que já tinha dado por perdido!
Interrompo para te dizer que acabo de falar com o José Martins a quem pude dar pessoalmente o meu grande abraço de gratidão pela sua ajuda. Graças ao "teu/nosso" blogue e a indivíduos como ele,  conseguimos encontrar camaradas há muito tempo perdidos! (**)

Isto é melhor que o Facebook (que também tentei consultar, mas fiquei logo perdido sem chegar a parte nenhuma).

Bom, continuando: Uma das cartas que encontrei, escrita a 22 de Maio de 1965, foi-me enviada pelo P. João Diamantino, na altura capelão militar do RI 3, de Beja por onde passei e onde, saído de Mafra, "preparei" um pelotão. 

Nesta carta ele menciona o Luís Filipe da Ponte, que lhe tinha dado notícias minhas: tínhamos estado juntos e feito o "curso de Rangers" em Lamego; mas a minha memória de gato já não se lembrava disso. 

E encontrei então uma foto desse curso , onde vem um indivíduo ( na turma A, o 3º a contar da esquerda, na última fila) que até me parecia o Luís Filipe, mas o nome não condizia: era Galhardo..."Que semelhança", pensei eu. 

Mas há tanta gente parecida e já me têm sucedido situações até embaraçosas… Mas se ele fez o curso comigo … E  fui de novo à foto: reparei então que o nome "Galhardo" que identifica o indivíduo que "se parecia" com o Luís Filipe,   é um dos nomes do seu nome completo… 

Tem que ser ele!

Agora fico esperançado de ainda poder encontrar o meu camarada amigo que chorou de comoção por me "encontrar vivo", depois de lhe terem dito que eu tinha morrido na Guiné.

Ao meu "camarada salva-vidas" José Martins, peço mais um favor: mencionaste três arquivos; sabes em qual deles encontraste o Cap Luís Filipe Galhardo Lopes Ponte? 

E a quem quer que me possa ajudar … fico antecipadamente grato por qualquer dica ou ajuda em como encontrar/saber a sua morada, etc.,  etc.,  etc… Oxalá seja possível. 

A minha vida está cheia de momentos destes, de reencontros de amigos a quem a separação ocasionou a perda de contactos. E se o "perder" um amigo é sempre uma experiência traumática para mim, o reencontrá-los é sempre uma experiência exilariante.

Sei bem que isto é uma experiência que muitos de nós temos vivido e, sabe Deus, com quanta emoção também. Portanto sabem bem do que estou a falar.

A todos um grande abraço do

João Crisóstomo, Nova Iorque

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de:

10 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21063: Tabanca da Diáspora Lusófona (11): Procuro, desde 1967, o Luís Filipe, que foi meu camarada, no COM, 1º turno de 1964, 3ª Companhia, 5º pelotão, EPI, Mafra... Encontrei-o na estação de caminho de ferro de Vila Franca de Xira, deu-me um grande abraço, julgava-me morto na Guiné, passámos um fim de semana no Algarve, tenho ideia que era alentejano, de boas famílias... Quem saberá o seu nome completo, e outros dados que me permitam ainda poder encontrá-lo ? (João Crisóstomo, Nova Iorque)

15 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21079: Consultório militar do José Martins (51): Fontes arquivísticas para o João Crisóstomo, que vive em Nova Iorque, procurar o nome (e, eventualmente, o paradeiro) do Luís Filiipe, que foi soldado-cadete, do 1º turno de 1964, COM, EPI, Mafra: Escola Prática de Infantaria, Arquivo Geral do Exército, Arquivo Histórico-Militar, Liga dos Combatentes... Há três capitães milicianos com este nome, Luís Filipe Fernandes Tavares (BART 6524/74, Angola); Luís Filipe Rolim Oliveira (BCAV 8323/74, Angola); e Luís Filipe Galhardo Lopes Ponte (CART 3572, Moçambique)

Último poste da série > 27 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20780: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (118): A COVID-19 não passará!... Felizes reencontros de 3 camaradas, que estão à distância de um clique... mas fisicamente separados e agora confinados... Falamos de: (i) José Joaquim Pestana, gravemente ferido em combate em 9/3/1970, no Xime, quando era fur mil da CART 2520, e que vive em Torre de Moncorvo, sua terra natal; (ii) José Nascimento (em Faro, a 671 km, de carro); e (iii) Paulo Salgado, amigo de infância e vizinho do Pestana, a 400 metros da sua porta...

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21079: Consultório militar do José Martins (51): Fontes arquivísticas para o João Crisóstomo, que vive em Nova Iorque, procurar o nome (e, eventualmente, o paradeiro) do Luís Filiipe, que foi soldado-cadete, do 1º turno de 1964, COM, EPI, Mafra: Escola Prática de Infantaria, Arquivo Geral do Exército, Arquivo Histórico-Militar, Liga dos Combatentes... Há três capitães milicianos com este nome, Luís Filipe Fernandes Tavares (BART 6524/74, Angola); Luís Filipe Rolim Oliveira (BCAV 8323/74, Angola); e Luís Filipe Galhardo Lopes Ponte (CART 3572, Moçambique)

1. Mensagem do José Martins, nosso colaborador permanente, ex.fur mil trms, CCAÇ 5, Gatos Pretos (Canjadude, 1968/70), ex-técnico oficial de contas, reformado, residente em Odivelas, com mais de 4 centenas de referências no nosso blogue:


Data: 10/5/2020
Assunto - Em busca do Luís Filipe, soldado-cadete. CMO, 1º turno de 1964, EPI, Mafra

Caro João Crisóstomo (*)

Votos de que tudo esteja bem contigo e família.

Acerca da busca que fazes há 50 anos relativamente ao Luís Filipe [, sold cadete, CMO, 1º turno de 1964, EPI; Mafra,], só com os elementos de que dispões é um pouco curto para iniciar uma busca.

Há as seguintes hipóteses:

A – Escola Prática de Infantaria (EPI)

Foi desactivada a 1 de Outubro de 2013 para dar lugar à actual Escola das Armas, que se mantém nas antigas instalações da EPI em Mafra.

Se ainda conservarem as Ordens Regimentais, poder-se-ia pedir o nome completo e naturalidade de todos os elementos que incluam no nome completo “Luís Filipe”.

Se já não as tiverem em seu poder, devem estar no Arquivo Geral do Exército, faltando saber se já se encontram tratadas arquivisticamente, e com possibilidade de consulta.
https://www.exercito.pt/pt/quem-somos/organizacao/ceme/cmdpess/df/ea

B – Arquivo Geral do Exército 

Além de possuírem uma secção para a recolha e tratamento das Ordens Regimentais, têm a responsabilidade do arquivo dos processos individuais de todos os militares que serviram no exército desde meados do Século XIX, à excepção dos oficiais do quadro permanente.

Porém, para se poder consultar os processos, é necessário ter o nome completo, data de nascimento e naturalidade, elementos que, entretanto, se procuram.

https://www.exercito.pt/pt/quem-somos/organizacao/ceme/vceme/dhcm/arqgex

C – No comentário ao post, o Luís Graça dá a entender que o Luís Filipe, em 1967, não tinha ido ao ultramar. Nesse caso, poderia ter sido chamado como capitão.

Dei uma passagem pelos livros das unidades enviadas para Angola, Guiné e Moçambique, que só referem nomes a partir de Capitão, e encontrei os seguintes Capitães Milicianos cujo nome próprio é LUIS FILIPE e com os sobrenomes de:

Fernandes Tavares (BArt 6524/74, Angola)

Rolim Oliveira (BCav 8322/74, Angola) e

Galhardo Lopes Ponte (CArt 3572, Moçambique)

Será algum destes?

Caso tenha servido no ultramar, como Alferes ou Capitão, temos o AHM:

D – Arquivo Histórico Militar

Como, muito provavelmente, o Luís Filipe serviu no Ultramar integrado num batalhão ou companhia, se se souber qual foi a unidade, poder-se-ia consultar a História da Unidade, onde se registavam todos os factos, inclusive, a constituição dessa unidade.

Registe-se que nem todas as unidades elaboraram a história ou resumo de factos.

https://www.exercito.pt/pt/quem-somos/organizacao/ceme/vceme/dhcm/ahm

E – Liga dos Combatentes


Esta associação criada em 1924 e tutelada pelo Ministério da Defesa Nacional, após o golpe do 28 de Maio de 1926, agregou os combatentes da Grande Guerra, expedicionários no tempo da II Grande Guerra e combatentes do Ultramar.

É de inscrição facultativa e, mesmo nas três hipóteses colocadas, nem todos aderiram à organização. Se o Luís Filipe se tivesse inscrito na Liga, sempre se poderia ter um contacto com o Núcleo em que se inscreveu que, naturalmente, seria o mais perto do seu local de residência.

https://www.ligacombatentes.org.pt/contactos

Estas são algumas dicas, mas a base de partida é muito estreita.

De qualquer forma, dispõem.

Abraço do Zé Martins (**)

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Notas do editor:


(**) Último poste da série > 3 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20702: Consultório militar do José Martins (50): Par de duas condecorações de um Capitão do Regimento de Caçadores

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21063: Tabanca da Diáspora Lusófona (11): Procuro, desde 1967, o Luís Filipe, que foi meu camarada, no COM, 1º turno de 1964, 3ª Companhia, 5º pelotão, EPI, Mafra... Encontrei-o na estação de caminho de ferro de Vila Franca de Xira, deu-me um grande abraço, julgava-me morto na Guiné, passámos um fim de semana no Algarve, tenho ideia que era alentejano, de boas famílias... Quem saberá o seu nome completo, e outros dados que me permitam ainda poder encontrá-lo ? (João Crisóstomo, Nova Iorque)


Ministério do Exército > Praças nas Fileiras > EPI [, Escola Prática de Infantaria,] > Bilhete de Identidade militar do João Francisco Crisóstomo, soldado cadete nº 1064/64, emitido em 20 de abril de 1964. Nº de matrícula: E-86804. O Comandante, assinatura ilegível [, Manuel Ribeiro de Faria, foi cor inf, foi o comandante da EPI, de 8/1/1963 a 25/9/1969] [Anotações: Grupo sanguíneo B].



Mafra > EPI > 1º Turno do COM > 3ª Companhia > 5º Pelotão > 27 de janeiro de 1964, dia de São João Crisóstomo > Cópia das notas da agenda do soldado cadete João Crisóstomo

Fotos (e legendas): © João Crisóstomo (2020) Todos os direitos reservados.  [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de João Crisóstomo [luso-americano, natural de Torres Vedras, conhecido ativista de causas que muito dizem aos portugueses: Foz Côa, Timor Leste, Aristides Sousa Mendes... Régulo da Tabanca da Diáspora Lusófona, foi alf mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67): vive desde 1975 em Nova Iorque; é casado, em segundas núpcias, desde 2013, com a nossa amiga eslovena, Vilma Kracun]

Date: sábado, 9/05/2020 à(s) 16:40
Subject: Luis Filipe, soldado-cadete do 1º turno do COM, 3º Companhia, 5º Pelotão, EPI, Mafra, 1964, 

 Caro Luís Graca,

Todos nós temos direito "a ter a nossa telha". No meu caso sou um privilegiado nesse aspecto  (ou desprivilegiado, conforme a maneira que o encararmos), pois nunca  me faltaram "telhas a necessitar cuidados". Uma delas é a mania de não gostar de estar sem saber de alguém que  em qualquer altura na minha vida foi meu amigo e com quem depois perdi contacto. E é  para mim,   e sem dúvida para muitos outros, sempre uma experiência hilariante quando reencontramos alguém.

O "destino" tem sido particularmente generoso comigo como sabes;  entre a meia dezena pessoas amigas que depois de dezenas de anos  reencontrei já,   de  vários conhecimentos/amizades feitos em Paris, Londres e Stuttgart , o melhor acontecimento foi reencontrar a que é  agora a minha esposa. Vilma Kcracun. Este  caso de  de tão invulgar  até levou o New York Times a escrever/contar  a "nossa história" para os seus leitores  em longo artigo  que foi depois reproduzido nos quatro cantos do mundo.

Aliado aos muitos "encontros organizados por antigos combatentes,  o teu/nosso  blogue tem proporcionado  a muitos de nós reencontrar   camaradas/amigos   de quem, não fora este blogue   talvez  nunca teríamos mais ouvido falar. No meu caso não só reencontrei velhos amigos, como o Lopes e  o Zagalo - recordas-te da campanha que foi para finalmente o encontrar? -   como  directa ou indirectamente vim a fazer novas amizades, hoje muito queridas para mim e que enriquecem agora tanto a minha vida!

Mas ainda há pessoas a quem ainda não consegui chegar e a quem não desisti reencontrar. Entre estas conta-se um indivíduo que fez o curso de cadetes em Mafra comigo. Deixa-me contar-te:

 Entrei para o quartel de Mafra  onde fiz a preparação de cadete em Janeiro de 1964.  A minha "memória de gato"  há  muito  perdeu  quase tudo:  Lembro o entrar: a fila; e o "exame"; lembro ter recebido um conjunto de "farda";  e, vagamente já,  o que foi depois durante seis meses  esse período de preparação… mas de resto pouco lembro já, incluindo os nomes dos meus colegas cadetes, excepto um, por um inesperado  acontecido mais tarde que te vou contar a seguir.

Recordo que o comandante/instrutor do meu pelotão era um alferes  de nome Cera;  e do capitão da Companhia não lembro muito,  excepto que pela sua apresentação sempre esmerada,  pela  "dedicação" e  exigências  sem o mínimo de desculpas fosse para o que fosse, nós o alcunhávamos de "tesão de mijo militar"…

Acabado o curso, feitos "aspirantes"  cada um seguiu o seu rumo. Eu fui parar à Guiné. E passados dois anos, em 1967,  regressámos a Portugal.  Eu resolvi ir "dar uma volta pela Europa" para aperfeiçoar línguas. O meu primeiro poiso  foi em Londres, onde iria a permanecer dois anos e onde voltei para casar em 1971  depois de ter feito estágios em  Paris e em Stuttgart.

Na minha primeira ida, de férias,   a Portugal um dia fui ao Porto; e de regresso a Lisboa,  tomei o comboio. Lembro que estávamos parados na estação de Vila Franca de Xira e eu vim ao corredor . E de repente vejo à minha frente o Luís Filipe…

Reconheci-o como  um antigo cadete de Mafra do meu pelotão: alto, magro, olhou para mim, cara e olhos esbugalhados… e só disse: "João Crisóstomo"!…. ao mesmo tempo que se agarrava a mim e me apertava com um abraço sufocante…

Quando ele me libertou e eu olhei  para ele, confuso e espantado, vi que as lágrimas  lhe caiam, ao mesmo tempo que dizia:  "Eh pá..., disseram-me que tinhas morrido na Guiné!"….  e então compreendi e fui eu que o abracei emocionado…

Sei que me convidou e fui  ao  Algarve com ele. Tenho a ideia de que ele era alentejano, mas que a família tinha  residências / quintas  no Algarve… onde passei um fim de semana com ele.

Depois voltei a Inglaterra e até hoje nunca mais soube dele. Quando a ocasião se apresenta,  tenho "perguntado" por ele… depois que entrei no teu/nosso blogue surgiu-me a esperança, mas até ao momento sem qualquer resultado: há lá vários nomes "Luís Filipe " , mas nada que me leve a agreditar que seja ele ( há um capitão, mas as datas não coincidem…); mesmo sem  fé no Facebook, já andei lá muitas vezes divagando/investigando  naquele labirinto, sempre perdido… 

Como vês os dados são poucos… mas às vezes o "destino"  acontece com ainda com menos  bases… Andei à procura de alguma coisa que pudesse ajudar  e encontrei o meu  primeiro "Bilhete de Indentidade", ( emitido em Mafra a 20 de Abril de 1964)  cuja foto junto.

E encontrei também uma velha agenda que junto  igualmente   ( eu tenho a mania de guardar "micheroquices" que me ajudam a lembrar e reviver o meu passado…) na qual eu apontei  os dados do dia da entrada em Mafra e o relato do nosso  primeiro dia (que por pura casualidade era o dia de S. João  Crisóstomo, como se pode ler na velha agenda).

João Francisco Crisóstom,o, soldado-cadete,
 EPI, COM, 20/4/1964
Menciono esta agenda porque nela eu escrevi,  no dia 26 de janeiro de 1964, Domingo:

"Às  16.00 cheguei a Mafra. Às 11.30 da noite dei entrada na E.P.I., Mafra. COM. 3ª Com. 5ª Pel.".


E na página seguinte está o horário e descrição das actividades desse nosso primeiro dia [, 27 de janeiro de 1964,], onde menciono ter chegado atrasado para o pequeno almoço e ter apanhado o meu primeiro raspanete…

6,15 - Levantar
7.10 - Pequeno almoço (atrasado) e 1º [raspanete]
7.35 - 1ª instrução
12.10 - 1º almoço (ótimo)
13.20 - Instrução da tarde
16.20 - Fim da instrução da tarde
19.00 - Jantar (ótimo)
21.30 - Cama

Talvez estas datas (o meu número de soldado cadete nº  1064/64 ); a data de emissão deste ID ( 20 de Abril de 1964) ;  como  eu e o Luís Filipe  pertencíamos ao mesmo pelotão ( 5º  pelotão da 3a Companhia) deste pessoal ingressado no dia 26 de Janeiro de 1964… Será que alguém tem alguma idéia de como "chegar" a algum arquivo militar com estes dados?  

Se fôr o caso, por favor digam-me. Muito dificilmente poderei ir pessoalmente  fazer alguma investigação, mas creio que através do velho telefone, apoiado com e-mails,  e o mais que for preciso, eu poderei chegar  a saber o nome completo do Luís Filipe, sua antiga  morada , e outros detalhes  que me permitam reencontrá-lo…

Um grande abraço. A Vilma esteve-me há pouco a lembrar que a não esquecesse num beijinho para a Alice também!

João C. (*)

2. Nota do editor LG:

João, como te disse uma vez o futuro cardeal patriarca de Lisboa, o João Policarpo, tu és um "berbequim", uma verdadeira força da natureza, persistente, teimoso, perseverante... Vamos, com a ajuda dos nossos camaradas da Tabanca Grande, e demais leitores, encontrar o teu amigo "Luís Filipe" (ou Felipe?)... A única coisa que eu  até agora descobri foi o nome do comandante do EPI do teu tempo, o que assinou o teu BI militar: era o cor inf Manuel Ribeiro de Faria... (, foi o dono da Máfrica, de 1963 a 1969).

Mas sobre o EPI e o COM tens muitos postes no nosso blogue. Dá uma vista de olhos a estes, para refrescar a tua "memória de gato" (**)... Sei que não desistirás facilmente, mais difícil foi encontrar, no Velho Mundo, a tua querida Vilma Kracun, ao fim de mais de 40 anos...

Bom dia 10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. Abraços e chicorações meus, da Alice e demais malta da Tabanca de Porto Dinheiro / Lourinhã, em particular o Joaquim Pinto Carvalho e o Jaime Bonifácio Marques da Silva, com quem me tenho encontrado na Lourinhã, nestes tempos de pandemia da COVID-19...
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Notas do editor:
  
(*) Último poste da série > 5 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20943: Tabanca da Diáspora Lusófona (10): Notícias da pandemia de COVID 19, em Queens, Nova Iorque, e dos meus camaradas da CCAÇ 1439 (João Crisóstomo)

(**) Vd. postes de:

18 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P13003: Mafra, EPI, COM: Instruções para os instruendos (Mário Vasconcelos): Parte I: Finalidade, Funcionamento, Provas de aptidão, classificação e Faltas

25 de abril de 2014 > Guiné 63774 - P13041: Mafra, EPI, COM: Instruções para os instruendos (Mário Vasconcelos): Parte II: Averbamentos; Serviço interno; (...); Salas de estudo; Comportamento; Saídas do quartel; Passaporte de dispensas ou licenças; Cartas de recomendação, pedidos feitos por interpostas pessoas, etc.. etc., [vulgo, "cunhas"].

28 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P13055: Mafra, EPI, COM: Instruções para os instruendos (Mário Vasconcelos): Parte III :vi - Serviço interno; vii -Dispensas, pretensões; viii- Fardamento; ix - Uniformes, equipamento e armamento; x- Revista de saúde e curativos

2 de julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13355: Mafra, EPI, COM: Instruções para os instruendos (Mário Vasconcelos): IV (e última) Parte: A Máfrica como "total institution", no sentido sociológico forte do termo...