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segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P10979: História da CCAÇ 2679 (60): Ir ou não ir para a vala... eis a questão (Cândido Morais)

1. Importa fazer uma espécie de introdução a mais esta História da CCAÇ 2679, apresentando uma troca de mensagens entre os camarada José Manuel Matos Dinis e Cândido Morais, este muito recentemente entrado para o nosso convívio:

Assim, em 5 de Janeiro dizia Zé Dinis ao Cândido:

Viva Morais,
[...]  Entretanto, lembro-te de que prometeste enviar duas estórias da tua passagem pela heróica 2679.
Cá fico a aguardar para lhes dar a relevância que os heróis merecem.

Um abraço
JD

E, ainda no mesmo dia, a resposta foi:

Pois, meu caro,
Vou escrever isso neste fim de semana.
Uma de cada vez...
[...]
Um abraço
CMorais

******

2. O resultado veio no dia 8 de Janeiro

Pois és. Tu sempre foste um sacana dum amigo. Mas aqui vai, em traços largos, para tu poderes fazer o relato segundo os cânones do blog. 
A história é verdadeira e, curiosamente, alguns deles lembram-se dela, mas outros não. 
Já lá vão 40 anitos bem contados...
CMorais

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HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (60)

IR OU NÃO IR PARA A VALA... EIS A QUESTÃO

Por Cândido Morais, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71

Durante toda a minha comissão de serviço, sempre passada na zona leste da Guiné-Bissau, que detinha maioritariamente fronteira com a Guiné Conakry, tive oportunidade de comandar três pelotões da minha Companhia, uma Companhia de Caçadores cujos pelotões operacionais eram compostos por madeirenses, com graduados do Continente.

Obviamente que sempre estive englobado num Pelotão, mas, por ausência dos oficiais e sargentos do 2.º e 4.º Pelotões - fossem eles de férias ou estivessem adoentados -, tive ensejo de contactar mais intensivamente com os dois citados. E foi no comando efectivo do meu Pelotão, o 1.º que se passou o episódio que vou relatar e que ainda hoje me impressiona e marca, pela lealdade dos homens que tive a honra de comandar.

Os outros Pelotões, na altura, estavam todos comandados por alferes, sendo eu portanto, na minha condição de furriel, o menos graduado de todos os comandantes. Ora, na altura, era necessário abrir uma vala na frente norte, constituindo-se essa tarefa de extrema dificuldade, dado o calor que se fazia sentir. Por esse motivo, os homens descansavam nos abrigos e nas casernas, aproveitando todas as sombras e locais mais frescos que pudessem encontrar.

Contudo, o Comandante da Companhia resolveu lembrar-se que seria nessa precisa altura que a vala seria aberta, e por isso mandou chamar-me ao seu gabinete, dando-me ordem para reunir os homens e iniciar os trabalhos. Respeitosamente, disse-lhe que seria mais adequado iniciar os trabalhos noutra altura do dia, aproveitando o tempo mais fresco e menos desmotivador, e lembrei-lhe também que, na respectiva escala, não era ao meu Pelotão que competia tal tarefa, indicando-lhe aquele a quem pertencia essa responsabilidade no momento.

A resposta foi peremptória e também muito irritante:
 - Eu disse que é agora que se vai fazer esse trabalho, e disse que são os seus homens que terão de o fazer!

Na verdade, eu sempre alimentei uma grande admiração e empatia por aqueles homens e a experiência dizia-me que, quando enfrentavamos um trabalho do mesmo género, bastava eu chamá-los e, pegando na picareta ou na pá, exemplificar-lhes o que pretendia. De imediato me retiravam esse instrumento da mão, atirando-se ao trabalho de modo a completá-lo com a maior brevidade possível. E eu sabia disso.

Ora, talvez fosse por isso mesmo e por que o tom do nosso Comandante foi bastante irritante, que resolvi insistir:
- O meu Comandante desculpe, mas será um mau exemplo para os homens prejudicá-los na escala de serviço, ainda para mais dando-se a circunstância de eu ser um furriel e demonstrar, assim, fraca resistência a uma ordem que não se afigura justa. O meu Comandante sabe que eu tenho de lhes transmitir a máxima confiança, para poder contar com eles nas alturas difíceis.

E a resposta, não trouxe qualquer espécie de vacilação:
- O senhor faz porque eu mandei e não admito mais contestação!

Disse-lhe eu então, no mesmo tom e na mesma velocidade:
- Saiba o meu Comandante que não o farei, porque acho injusto o seu posicionamento!
- Pois, se não reunir já os homens para efectuar o trabalho, pode ficar certo que será alvo duma valente "porrada"! - informou-me ele de imediato.
- Pois, saiba o meu Comandante que eu respeito os meus homens acima de tudo, e nunca lhes pregarei tal partida. Fará o favor de mandar proceder disciplinarmente contra mim.

E saí do gabinete, confesso que visivelmente irritado, dirigindo-me para a caserna onde me deitei a descansar, cogitando nas injustiças que podem acontecer por força de um Comando que se afirmava prioritariamente junto dos menos graduados.
Passado cerca de um quarto de hora o Cabo da Secretaria veio ter comigo dizendo que o Comandante queria saber se continuava com a mesma ideia, ao que eu respondi que sim, e logo adormeci, pouco preocupado.

Não sei quanto tempo passou, quando novamente o Cabo escriturário me acordou, dizendo que o nosso Capitão queria que eu lá fosse. Disse-lhe que não valia a pena, a minha resolução era inabalável e ele que procedesse conforme entendesse. E foi aí que o Cabo me disse, algo agitado:
- Mas é que não é por isso, é por causa dos seus homens!
- Dos meus homens? E que têm eles a ver com isso?
- Por favor, venha comigo e já vai ver! - disse-me ele, ostentando certa preocupação.

Fiz-lhe a vontade, e ainda meio ensonado dirigi-me às instalações do Comando do Quartel de Bajocunda - pois foi aí que isto aconteceu -, pensando para comigo o que estaria a acontecer. E não foi preciso andar muito para ver o que se passava: o meu Pelotão estava todo formado em frente ao Comando, armado até aos dentes, com todo o armamento que, habitualmente, levava para o mato, desde dilagramas, HK, morteiro, bazooka... E creio que foi o Cabo Freitas que me dirigiu a pergunta fulcral, depois de eu lhes perguntar o que estavam ali a fazer:
- Disseram-nos que o meu furriel vai levar uma "porrada" por defender o nosso Pelotão. É verdade?
- Parece-me que é, disse eu. Mas não se preocupem, eu saberei defender-me disso e só tomei esta atitude porque a considerei justa.
- Pois então, vai fazer o favor de dizer ao nosso Comandante que nós não sairemos daqui, até sabermos se o nosso furriel vai levar uma "porrada". E diga-lhe também que, se a porrada sair, a caserna do Comando vai levar com tudo isto em cima, e hoje não ficará em pé.
- Oh rapazes, disse eu já bastante preocupado. Eu posso dizer-lhe isso, mas acho que é melhor vocês irem embora, o problema é meu e vou ser eu a resolvê-lo. Por favor não se metam nisto.
- Meu furriel, vá para dentro e diga isso ao nosso Capitão!

E lá fui. Logo que entrei, o Capitão deu-me ordem para mandar dispersar os homens, ao que eu respondi que já o tinha feito, mas eles desobedeceram-me. O Capitão insistiu e eu voltei a dizer-lhe que me achava incapaz de os obrigar a retirar, pelo que sugeria que fosse lá ele, pois certamente lhe obedeceriam melhor.

Mantivemos ali uma acesa troca de argumentos durante fartos minutos, ambos com posições inamovíveis, até que ele cedeu e disse para dizer aos homens para se retirarem, que ele reconsideraria a "porrada". Eu disse-lhe que nunca gostei de mentir ao Pelotão e perguntei-lhe se havia "porrada" ou não havia. Ele reflectiu algum tempo e, depois, disse-me:
- Pode ir e dizer-lhes isso. Tem a minha palavra.

Saí então e dirigi-me aos homens, dizendo-lhes:
- O nosso Capitão garantiu-me que não me atingirá com nenhum castigo e manda-os ir para a caserna.
- Tem a certeza disso, meu furriel?
- Tenho. e agradeço a vossa atitude, que eu não pedi, mas registo.

E foram mesmo para a caserna. Entretanto, não foi o meu Pelotão a fazer o trabalho que nos eras requerido - também já não me lembro qual foi - e, mais tarde, já na ausência do Capitão e quando a Companhia era comandada pelo Alferes do meu Pelotão, fui surpreendido com um significativo louvor. Não com o fundamento deste relato, mas por ouitras ocorrências que lá se encontravam devidamente descritas.

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Finaliza a conversa com esta troca de mensagens:

Lindo menino!
Às vezes precisas de ser espicaçado, mas depois compensas-nos com belos resultados.
Ainda assim, faço dois reparos à descrição: esqueceste-te de citar a fronteira com o Senegal, afinal aquela onde se situava Bajocunda e onde permanecemos mais tempo?

"Os outros Pelotões, na altura, estavam todos comandados por alferes" - referes a seguir. 
Se a acção decorreu entre a deslocação para Bajocunda e Setembro de 70, então não há nada a alterar, mas se foi noutra ocasião posterior, devo dizer-te que o Foxtrot já não estaria nessa situação.

São apenas dois pormenores, porque o que é relevante é o conteúdo da tua descrição.
Com um abraço agradecido
JD
______

Olá meu velho 
Na verdade, eu não posso localizar isso no tempo, e apenas fiquei com a ideia de que os outros eram todos alferes, na altura. De qualquer modo, podes "ajeitar" à tua maneira, de modo a que não ocorra contestação, falando, talvez, em termos gerais. 
Quanto ao que dizes sobre a fronteira, quando me refiro à zona leste, estou convencido de que ela é maioritariamente ligada à Guiné Conakry. Sobre Bajocunda, vou revelar-te a minha inteira ignorância sobre se ainda é com o Senegal ou não. Mas podes alterar o que quiseres. O miolo da história é esse. 
Depois, se quiseres, conto-te a do soldado Vieira e do reforço nocturno. 

Um abraço 
CM


3. Cabe agora um comentário do editor para esclarecer que das duas histórias referidas, sendo a de hoje a segunda, a primeira foi publicada no P10947.

Esperemos que o Cândido não esmoreça e nos continue a brindar, assim como o "velho" Zé Manel Dinis, com histórias para a História da CCAÇ 2679.
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Nota de CV:

Vd. poste anterior da série de 15 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P10947: História da CCAÇ 2679 (59): Grande farra no Funchal (José Manuel Matos Dinis / Cândido Morais)

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P10947: História da CCAÇ 2679 (59): Grande farra no Funchal (José Manuel Matos Dinis / Cândido Morais)

1. Neste episódio da série da História da CCAÇ 2679 é pré-apresentado o camarada Cândido Morais, ex-Fur Mil desta Companhia, que irá brevemente aderir à nossa tertúlia, apadrinhado por José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71) que até agora era o único contribuinte para esta narrativa.

São publicadas duas fotos e nelas inspirada sai esta história contada pelo nosso camarada Zé Dinis, que chegou ao Blogue em mensagem sua do dia 9 de Janeiro de 2013.


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (59)

O Cândido Morais é a figura que nesta fotografia, com o pessoal a reluzir as "namoradas", se apresenta à direita da terceira linha, num grande plano do retrato.

Nesta fotografia do desfile, o Morais é o primeiro da direita atrás do aspirante, e não parece ostentar as divisas amarelas. Assim, este desfile pode ter sido o do final do IAO, pois o desfile para o embarque, num bailinho a passo trocado e a trocar olhares com as prostitutas que nos confortaram a noite da despedida, foi quando já se exibiam alferes e furriéis, de amarelos reluzentes.

Fotos: © de Cândido Morais (2013). Direitos reservados. Legendas de José Manuel M. Dinis


GRANDE FARRA NO FUNCHAL

Foi uma noite de grande farra no Funchal, e começou cedo, no Café Indiana, em frente à Sé, no passeio mais concorrido da cidade, onde fechámos o café Indiana, e as pessoas espreitavam para o interior, onde os furriéis, verdinhos e amarelados, serviam atrás do balcão, utilizavam a caixa do graxa, manipulavam bandejas e tiravam imperiais, tudo com muita espuma e exuberância.

A Indiana, numa foto dos anos 60, sita na cidade do Funchal, mesmo ao lado da Sé. (CV)

Depois, demandaram por um estabelecimento de serviços noturmos, requintado, com orquestra, gentis meninas, tudo abrilhantado com jogos de luzes que mentalmente preenchiam as lacunas do lugar de má recomendação. Aproximou-se o pessoal pelo declive empedrado, e tocou-se a campainha com insistência. O concierge entreabriu a porta, olhou-nos com surpresa, e pediu um momento. Passaram alguns minutos e fazíamos a farra na rua, quando o concierge reapareceu, perfilou-se na casaca negra, e apontou-nos o caminho, uns degraus acima do nível da porta.

Apresentava-se um esplendor: uma mesa comprida, pela reunião das mesas individuais, as assistentes abertas em decotes e sorrisos aguardavam-nos com evidente felicidade. enquanto dois empregados aguardavam ordens. E das ordens encarregou-se o Marino, que não pede meças a tomar decisões.

Enquanto os alarves cirandavam nas escolhas, o Marino convencia os clientes afastados do festim, com apreciável determinismo, a encarar com naturalidade a situação criada. A noite era nossa. Mas era ainda o Marino quem ordenava o serviço, champanhe, pois claro! Para começar, que a noite seria de calores.

E o cavaquinho arrancava os primeiros acordes para uma noite de gaúdio. Já havia quem fizesse a auto-avaliação física através de uns passos de dança superiormente desempenhados, que os artistas da 2679 não eram de uma Companhia qualquer.

A bem dizer, foi até entrar o dia, quando o pessoal se lembrou de defender a Pátria.

Desfilou-se na estrutura portuária, representaram os seus papéis a autoridade eclesiástica e o comandante militar. As hostes, em formatura, não os ouviram, antes procuravam localizar as namoradas, trocarem olhares de desejo e ansiedade, enquanto os imigrantes cubanos da 2679 se desfaziam em sinais e sorrisos com as elegantes e generosas assistentes da noite passada.

Só faltavam dois aninhos para o regresso e a continuação da libido.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 6 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P10904: História da CCAÇ 2679 (58): Fisicamente recuperado (José Manuel Matos Dinis)

domingo, 6 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P10904: História da CCAÇ 2679 (58): Fisicamente recuperado (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 4 de Janeiro de 2013:

Bom dia Carlos,
Acabo de regressar de umas mini-férias no Alentejo profundo, de um local a 2Km da aldeia mais próxima, servido por uma picada sem minas, sem água da rede, sem rede para o telemóvel, mas com diferentes tipos de passarada que me proporcionam alvores de diferentes chilreios, e regresso farto de amanhar ervas, de compor o nível da entrada para que o carro não tropeçasse no batente do portão, de apanhar umas tângeras de muito bom paladar, de me sentar com vacas e ovelhas nos terrenos verdes e ondulados, enfim, venho bucólico.

Contra isso, para me adaptar depressa à guerra da cidade, hoje envio novo fragmento sobre a História da 2679, desta vez dedicado ao nosso ilustre camarada Hélder V. de Sousa, não porque contenha muitos pontapés nos cuzes, a acção violenta que ele tanto aprecia, mas porque retrata cenas caricatas, condicionadas por tensões de ordem amorosa e ruptura do dever de camaradagem. Nada que não tivesse tido a solução adequada e afectasse as relações no Foxtrot, pois ainda este Natal recebi uma mensagem de um dos intervenientes (infelizmente, o outro, há anos que nos deixou) e falei com ele ao telefone.

Para ti, e para o Tabancal, com renovados votos de bom Ano Novo, envio um grande abraço
JD

Vista aérea de Bajocunda 
Foto ©: Amílcar Ventura


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (58)

Fisicamente recuperado

No regresso de Bissau onde dei baixa ao hospital e passei vinte e seis dias em tratamento, fui logo informado com alguma insolência, que o pelotão abandonara Tabassai, a aldeia onde fora colocado em auto-gestão durante aquele período. Ouvi e fui averiguar junto de alguns Foxtrot, sobre a veracidade e razões para o que teria acontecido. Fiquei a saber que o pessoal recebia as refeições naquela tabanca, por deslocação de uma viatura, diariamente, com os alimentos confeccionados.

Durante os primeiros dias, pouco depois das doze horas a comida chegava à tabanca. Ao anoitecer, com o reforço chegava o jantar. Mas começaram os atrasos com a chegada do almoço, e o pessoal protestava com recados, ora transmitidos aos condutores, ora transmitidos aos comandantes das escoltas e do pessoal dos reforços. Aquelas reclamações, porém, não mereceram especial atenção, e os almoços continuavam a ser disponibilizados já pelo entrar da tarde, pouco antes da chegada do jantar, chegando ao ponto de quase jantarem sem acabar a digestão dos "almoços".

Como diz o povo, a cantarinha vai tantas vezes ao poço, que um dia parte. E foi o caso: a canteirinha, ou seja, a paciência do pessoal esgotou-se com a manifesta situação de desprezo a que estavam votados. Um belo dia tomaram a decisão, e todos os elementos rumaram a Bajocunda pelo meio-dia para tomarem a refeição a horas normais no refeitório. Foi um banzé. Toda a gente quis assistir à querela que se estabeleceu entre o Trapinhos, provavelmente apoiado por outros quadros, e o Foxtrot que não vacilou na defesa das suas razões. Ainda perguntei se tinha havido alguma punição, mas não, não tinha havido, apenas ameaças disto e daquilo. O pessoal ainda reafirmou a sua disposição para repetir a atitude, se a façanha de servir o almoço a horas tardias voltasse a repetir-se. Mais tarde o Morais foi deslocado para Tabassai onde permaneceu a exercer o comando.

Não achei razões para qualquer reprimenda, e como a coisa tinha tido um final feliz, nem percebi a insinuação que me fizeram sobre a indisciplina que alguém atribuiu reincidentemente ao pelotão, que, aliás, devia ser contraposta à indisciplina e à falta de solidariedade de quem tinha a responsabilidade sobre a preservação de um ambiente harmonioso na companhia. Logo referi que apoiava a atitude do Foxtrot, e deixava o recado de que quem quer ser respeitado, também tem obrigação de respeitar. Ficou assim. Recentemente o Morais disse-me que não teve qualquer problema enquanto esteve com o meu pelotão. Naturalmente, o Morais foi sempre uma simpatia, ponderado e competente.

Algum tempo mais tarde estavam os diferentes pelotões a alternar uma semana em Tabassai, mas com autonomia para cozinhar numa panela improvisada de meio tambor de gasolina. Para ali foi deslocado um cozinheiro, e os artigos de despensa necessários. Os dias corriam numa pacata modorra, e à noite chegava uma secção de reforço. A minha actuação era no sentido de alterar na distribuição de tarefas, com vista a contrariar as rotinas. Um belo dia destaquei dois elementos para a orla da mata, na estrada para Pirada, onde deviam observar os movimentos de pessoas e o que transportavam. Quando o almoço foi servido pelo cozinheiro, cada um atacava o respectivo "tacho". Eu apresentei-me mais tarde e perguntei se aqueles dois vigilantes já tinham comido. O cozinheiro levou as mãos à cabeça pois tinha-se esquecido deles e já não havia nada preparado. Mas à sombra de uma árvore estavam dois pratos cheios. Aliás, todos tinham comido substancialmente. Eram os pratos de dois outros elementos.

Mandei chamar os vigilantes, e disse ao cozinheiro para dividir aquela comida e a que me estava atribuída pelos cinco, eu, os vigilantes, e os que estavam identificados para quem aqueles pratos se destinavam. Logo após a minha ordem apareceram os dois destinatários da comida guardada, alertados por alguém, que vinham reclamar os seus direitos. Pois foi de direitos que lhes respondi: que por um azar o almoço fora mal distribuído, mas que todos tinham direito a comer, e assim devíamos dividir a quantidade remanescente pelos cinco. A reacção de um deles não podia ser pior, que não, ninguém mexia no prato dele e que não tinha culpa do que acontecera. Voltei a referir que tinha que partilhar, que era preciso satisfazer a todos, tanto mais que àquela hora já não havia solução. Aquele Foxtrot não mostrava compreensão nem bom senso. Dei-lhe ordem para não comer sem se proceder à divisão. Mas aqueles dois pratos cheios destinavam-se a partilhar refeições com as namoradas, e ele obstinava-se, enquanto o outro, visivelmente aborrecido, aguardava pelos acontecimentos. Quando o mais incompreensivo esboçou intenção de agarrar no prato, aproximei-me e disse-lhe para se afastar e aguardar a redistribuição, e disse-o já farto da conversa sem vacilar.
Respondeu-me com ar de desafio:
- Meu furriel não me bata!

Respondi no mesmo tom para lhe fazer saber que haveria pancadaria se ele não obedecesse:
- Pois então não mexas!

A alimentação foi dividida pelos cinco e o caso resolvido no momento. Mas não ficou resolvido na mente dele. Aqui há uns anitos veio ao continente, e visitou-me em minha casa, onde jantou comigo e com a minha filha. Lembrou-se, ou já trazia na ideia, de referir o episódio, deixando uma observação de que eu não o tinha respeitado, ao que lhe respondi com a devolução da apreciação. Depois, sozinho, reconstituindo as coisas, cheguei à conclusão de aqueles dois bons elementos tinham sido influenciados pela atracção do belo sexo, pelo carinho que trocavam com as bajudas da aldeia, não sei em que condições, nem com que convencimentos.

Ainda nesse período aconteceu outro episódio, quando durante a tarde chegou uma secção de outra companhia para reforço do mini-pelotão Foxtrot. De repente aconteceram umas rajadas, três ou quatro, da metralhadora que cobria as entradas da estrada, nos sentidos de Pirada e de Bajocunda. Irritei-me com aquilo e fui averiguar o que acontecera. Quando cheguei ao espaldar em abrigo cavado para a metralhadora, estava um elemento da secção de reforço a quem interroguei sobre os motivos das rajadas. Respondeu que estava a experimentar a arma. Disse-lhe que ali ninguém experimentava nada sem a minha autorização, e que ele devia ter tido em consideração que podia haver gente civil ou militar na orla do mato. Que imaginasse se ali estivesse um camarada dobrado sobre os joelhos. Calou-se. Mas quando voltei costas e iniciava o regresso ao interior da aldeia, ouvi-o dizer entre dentes que quando os turras atacassem havia de lhe dar autorização para reagir.

À insolência e cobardia, reagi lançando-me para ele que não aguentou o impacto. Estava a ver no que dava, quando veio muito aflito o furriel daquela tropa. Disse-lhe só que não admitia abusos, que repetisse essa mensagem ao atirador, e que em futuras circunstâncias lhe daria dois murros. Esta cena que pode mostrar alguma brutalidade da minha parte, quero ressalvar, que foi provocada por uma insolência daquele militar, impreparado e imprevidente, que não fora capaz de medir as consequências do seu acto, e cobardemente desconversava com desprezo sobre a minha chamada de atenção. Só que eu ouvi, e não fingi o contrário.

Não vou agora falar daquela disciplina das paladas e de suas excelências, mas da disciplina que era fundamental para quem usava armas e estava em ambiente de guerra. Sempre me fez muita confusão o gosto de disparar em rajada, pois não só não treinava nada em especial, como não significava uma acalmia ao stress que a guerra provocava. Se alguém pretendia experimentar uma metralhadora, antes, devia desmontá-la, limpá-la, e pedir autorização para a experiência, prevenindo riscos desnecessários.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 DE DEZEMBRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10786: História da CCAÇ 2679 (57): Encontro com a má fortuna (José Manuel M. Dinis)

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10786: História da CCAÇ 2679 (57): Encontro com a má fortuna (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 7 de Dezembro de 2012:

Olá Carlos,
Aqui vai mais um trecho insólito da história da minha Companhia.
Dedico-o ao nosso amigo Chico, ou Tcherno Baldé, que tão bem tem colaborado com o blogue a partir da Guiné. Pois há alguns dias o Chico referiu ter encontrado um puto, que como ele, andava pelo aquartelamento e estava a desempenhar funções na messe de Bajocunda.
Era um puto, talvez de 12 a 14 anos entre 1970/71, mas que se desembaraçava como gente grande, com competência e alegria, até que uma vez, há sempre uma vez, teve um encontro com a má fortuna.
Oxalá que a má fortuna lhe tenha proporcionado a ocasião para singrar na vida.

Hoje anexo uma espécie de documento em que ele intervém.
Para um, como para o outro, envio um abraço afectuoso, com votos de que sejam muito felizes, e que pelo Natal tenham bastantes motivos de alegria.

Votos natalícios que também te dirijo, Carlos, e à Tabanca.
Quem dera que houvesse uma trégua nas incomodidades, que, em boa verdade, poderia durar de um Natal até ao próximo, continuadamente, se não fosse uns moralistas estarem a fazer-me pagar por actos que não cometi. Nem indirectamente, pois há muitos anos que não voto.

Abraços fraternos
JD


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (57)

Encontro com a má fortuna

Corria o ano de 1971 em Bajocunda, localidade da fronteira nordeste da Guiné, e a tropa ali estacionada vivia com a rotina habitual, no que poderia parecer um ambiente pacífico, até harmonioso, onde o capitão Trapinhos e dois sargentos, sem sangue, nem suor, nem lágrimas, pacata e serenamente levavam a carta a Garcia, que nas circunstâncias, equivalia à justa partilha das mais-valias que resultavam de venda de bens de mercearia e de carburantes, que entrariam por via deles no retalho comercial.

Aqueles senhores, de quando em vez faziam o favor de dispensar artigos que tinham em stock's excedentários, a um ou dois comerciantes locais que os vendiam no mercado. Os bens eram do Estado para benefício exclusivo do pessoal militar ali deslocado, e os stocks tornavam-se excendentários, pelas frequentes reposições sempre que era dada notícia de destruição por via de algum ataque, tanto em Bajocunda, como em Copá, um destacamento sob comando da Companhia. Eram flagelos de praticamente 100% da existência, resultantes de manobras ilegítimas, ilegais, e de enriquecimento doloso e traiçoeiro pelo açambarcamento da coisa pública, que nem sequer tinha em conta os perigos para a saúde do pessoal, que se sujeitava a uma alimentação pobre, repetitiva, descuidada, e desmerecedora da qualidade mínima.

Já no que respeita ao negócio relativo à gasolina, consubstanciava-se por um pacto estabelecido entre aqueles senhores e o empregado da Casa Gouveia no Gabu, onde o carburante era adquirido e pago mediante requisição. O combustível chegava a Bajocunda através das colunas regulares que se organizavam àquela localidade. Alguém dirigia-se ao armazém, apresentava a requisição, carregava os tambores, e ficava em conta-corrente a liquidar uma ou outra vez, quando algum membro da "sociedade" se deslocava. Às vezes, em atitude que disfarçava a tramóia, o funcionário dizia que só tinha metade, e que o restante seguiria na próxima coluna. Para desenrascar, seguia aquela quantidade.

Quanto ao parque automóvel da Companhia, esse encontrava-se em estado lastimoso, e raramente havia disponibilidade superior a duas viaturas para as colunas, e chegaram a estar todas inoperacionais. Muitas vezes recorria-se a viaturas de empréstimo. O parque parecia o de uma sucata, e os mecânicos extraíam peças de umas para remediar outras. No entanto, nos mapas para Bissau, as viaturas funcionavam plenamente e com elevados consumos, em vez de se declarar que um pelotão era arrumado a monte sobre um ou dois Unimogues, com os riscos que advinham da falta de segurança. Arranjar dinheiro é que não era problema.

A messe situava-se no edifício que comportava os quartos dos furriéis e a enfermaria. Na messe serviam dois rapazes, o Alberto, um puto expedito de olhar esperto, e o Muntagá, mais velho e mais alto, que fazia de chefe. Os dois faziam uma boa equipa, e em dias de festa como o Natal, a Páscoa, ou algum aniversário, abrilhantavam a mesa com flores colocadas em garrafas de refrigerante, ou de água Perrier, em manifestação de naif juvenil. Também garantiam a limpeza dos quartos e da casa-de-banho. Eram prestáveis, dedicados, e bem educados, e como remuneração recebiam meia-dúzia de pesos, alimentação, e alguma sobra para as famílias.

Uma noite aconteceu um crime horrendo de elevadas consequências e perigo eminente para a segurança nacional: o sargento D... surpreendeu o Muntagá a "roubar" um bocadinho de petróleo. Aquele sargento, senhor de elevadas qualidades morais, que roubava o Estado e atraiçoava a tropa nos termos antes descritos, conseguiu impressionar toda a gente presente com a descompostura passada ao jovem Muntagá, e despediu-o das funções que exercia na messe. Se calhar nem estava a roubar, pois todos sabiam que ele levava garrafinhas de petróleo para iluminação doméstica, o que seria um luxo na aldeia.

O exagero foi comentado entre a malta, que não nutria amizade pelo sargento.

No outro dia chamei o Muntagá, e depois de saber por ele o que se passara, e ele confirmava, disse-lhe para ficar ao meu serviço na limpeza do quarto, pois condoía-me a forma desproporcionada do tratamento, mais a mais, provindo donde provinha. Pois ainda nesse dia fui surpreendido com uma chamada ao capitão Trapinhos, que algo incomodado dava-me a ler um rascunho de participação contra mim, apresentado pelo sargento D..., e que basicamente referia ser intolerável que eu o tivesse desautorizado.

Respondi que não o tinha desautorizado, pois nem sequer tinha assistido à cena do dia anterior, e que apenas chamara o Muntagá para meu empregado e a minhas custas. Não podia ser! O capitão Trapinhos referiu que o Muntagá estava definitivamente proibido de entrar na área aquartelada, e quanto a mim, voluntária, ou involuntariamente, tinha feito uma provação ao nosso Segundo por uma atitude de desobediência. Não me recordo em pormenor da conversa, mas concluía o capitão, que ou eu aceitava a situação como ela se apresentava, ou ele teria que considerar a participação. Sorri, pois se o capitão havia decretado a proibição de o Muntagá frequentar o quartel, e estava a transmitir-me essa sanção, como é que eu poderia contrariá-la sem incorrer numa pena que ele me aplicaria? Confirmei que tinha percebido a questão e tranquilizei-o, apesar de discordar da decisão.

Pedi-lhe o rascunho, e o capitão, obviamente distraído deu-mo. Por isso hoje reproduzo-o para conhecimento da Tabanca, com os retoques esclarecedores que sirvam para boa ilação: os grandes malfeitores protegem-se e têm capacidade para se ajuizarem uns aos outros; os pequenos malfeitores têm que evitar confusões, para que não caiam sob a alçada dos grandes malfeitores, que não perdem oportunidades para pregar a moral e os bons costumes.

Tal como nas comunidades de animais em que os mais fortes marcam territórios, onde os mais fracos não podem exercer concorrência.

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10635: História da CCAÇ 2679 (56): A evacuação insólita (José Manuel M. Dinis)

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10635: História da CCAÇ 2679 (56): A evacuação insólita (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 5 de Novembro de 2012:

Carlos,
Aqui te envio o relato de um episódio relativo aos feitos e gandes perigos que enfrentei na Guiné.
Não fiquei para a história registado como herói, mas tive direito a férias na capital provincial durante 25 dias, e fui sempre muito bem tratado.
Podia ter sido melhor? Pois podia, mas naquele tempo ainda a expressão da publicidade não tinha sonoridade, pelo que não é plausível qualquer comparação. Foi o que foi, e safei-me.

Para ti e para o Tabancal, vai aquele abraço.
JD


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (56)

 A EVACUAÇÃO INSÓLITA

No largo da parada em frente ao meu quarto ouvia-se a agitação costumeira aos dias de coluna a Nova Lamego, designação que a acção colonial e civilizadora atribuiu à povoação de Gabú, um lugar que nem pelo clima, nem pelo relevo, nem pelas tradições, nem pela gastronomia tinha comparação com a velha Lamego, a nossa, a da Beira-Alta. Por vicissitudes a que a situação de guerra não era alheia, Nova Lamego tornou-se um local de passagem obrigatória para os movimentos rodoviários do leste mais leste da Guiné. Portanto, naquele dia o destino traçara essa viagem para o Foxtrot.

Depois das formalidades do embarque, que correspondiam ao enchimento de viaturas com sacos de artigos agrícolas, ou panos costurados, alguidares, galinhas e cabritos, numa panóplia de negócio ou oferenda a familiares distantes, seguiam-se as formalidades do desembarque, pois o capitão Trapinhos havia determinado a sua desresponsabilização pelo transporte de civis, e cá o rapaz, medroso das consequências de eventual acidente com algum daqueles cidadãos, para não cair sob a judiciosa alçada da "psico" mandava-os descer e remover as mercadorias. Havia uma resistência inicial que quebrava com dois berros mais determinados com valor de lei vigente. Após estas diligências e uma verificação geral ao pessoal e viaturas, o deslocamento iniciava a marcha.
Até Pirada a estrada já estava picada, e dali para Nova Lamego, a picagem era da responsabilidade de Pirada. Por isso, era quase sempre a abrir, e atingia-se a vertiginosa média de 40 quilómetros por hora.

No Gabú, destinavam-se tarefas e eu apresentava-me a um major insignificante que uma vez se pegou com o meu atavio de militar pouco cuidado, uma estória já aqui contada, das que servia para moralizar certas patentes nos seus "munús" disciplinadores. Depois de uma ronda pelos bares para confraternização com eventuais conhecidos, por norma dirigia-me ao restaurante na saída para Sónaco, onde se servia um excelente coelho ou gato guisado. Servido quentinho, com o molho a acusar a malagueta, acompanhava com duas ou três cervejas frescas, que o regresso ainda correspondia a mais de uma hora sob sol torrencial.

Algures depois do cruzamento de Sónaco para Pirada havia uma pequeníssima represa onde algumas mulheres marcavam presença a ensaboar e a lavar panos. A inquietude dos corpos que trabalhavam dentro de água, mais o escasso sabão utilizado, agitavam e misturavam a água quimicamente alterada com areias e lodos postos em circulação. Eu sabia disso. Mas a água quente do cantil já se esgotara sempre que chegava àquele lugar. Parava a coluna e dava o mau exemplo: pegava numa cabaça, enchia-a do líquido alterado, e bebia... bebia grande quantidade até me saciar da sede horrível. Depois, até Bajocunda, era outra vez a andar, que os corpos reclamavam por mais cervejinha.

Tomava um merecido banho, e deixava-me a ver a maré das horas até ao limite do jantar. Durante esse período havia sempre conversas animadas, maledicência, invenções sobre situações improváveis da nossa passagem por África, assentavam-se uns aperitivos e, porque na Guiné anoitece e amanhece cedo, a maioria deitava-se para sonos repousantes. Mas havia meninos que ainda exercitavam a chulice de uma cartada, pretexto para o vencedor, ou os vencedores, pagarem uma rodada de boas-noites. Quando me deitei, recusei o convite para integrar uma partida que se desenrolava no meu quarto. Estava cansado e com sono, tchau!

Adormeci profundamente e alheado do ambiente. Subitamente, porém, e meio inconsciente, comecei aos saltos na cama com tremendas dores no corpo que me tiravam a vontade de viver. Chamaram o Vítor que, sempre prestável, quis saber do que me queixava, do que tinha comido, enfim, feito coscuvilheiro a querer saber da vida alheia. Devo ter respondido disparatadamente enquanto pedia morfina para acalmar. O meu ar devia ser de desespero, pois todos se inquietavam com o que viam, e com a impossibilidade de descansarem perto deste impaciente. O Vítor aproximou-se de agulha em riste, qual cavaleiro de uma ordem de poderosos vencedores, e, enquanto afinfava na nádega, dizia, confortando-me, que depois daquela merda eu ia dormir que nem um anjo. Qual quê? Ainda levei mais três ou quatro picadelas por via das dúvidas, mais para limpar a consciência do que inteirado sobre os resultados, e só suspendeu o tratamento quando alguém lhe disse que, por aquele caminho, ainda me matava pela cura.

O eficaz Marino já tinha pedido uma dessas evacuações que não podem acontecer durante a noite, que passei em brados de dor. Quando o DO se soltou da pista de Bajocunda, eu ainda me contorcia com o sofrimento. Fosse por que fosse, quando cheguei a Bissau já me sentia porreiro. Subi para uma viatura que me levou ao HM. A quem fazia a triagem queixei-me de nada, apenas referi as lembranças de uma noite de insónia. Despojado da roupa verde, fizeram-me entrar como vim ao mundo numa sala logo à mão de semear, a SO, um local amplo, com oito camas, artificialmente fresco, onde me colocaram na última do lado da entrada, a que estava vaga. Uma enfermeira e um médico voltaram a seguir para recolha de elementos para análise.

 HM 241 de Bissau

Era um local de desgraças, com vítimas da guerra ou de acidentes, todos muito mal tratados, a maioria a aguardar evacuação para Lisboa. Que me lembre, só falei com o da frente, que estaria com um problema de coluna, aparentemente condenado a uma cadeira. Os restantes, sedados, emitiam uns esgares quando a droga se tornava insuficiente e acordavam. Eu era o único que estava ali a aguardar resultados, sem dores, com o corpinho preservado, quase sentia vergonha dos restantes. Ao terceiro dia chegou o veredicto: sofria de uma amibíase. As amibas entraram no organismo e alimentaram-se de glóbulos vermelhos, pelo que urgia reequilibrar e tonificar o metabolismo.

Transitei para o primeiro andar, e fiquei no primeiro quarto, cuja varanda sobressaía sobre a porta principal, e tinha como companheiro o médico de Piche, que se batia a uma hepatite. Tomava mata-bichinhos, alimentava-me do que quisesse, e ainda tinha um suplemento diário de sumos italianos e frutas sul-africanas, que só não sobrava, porque outros ajudavam-me à extinção de stocks.

Quase diariamente havia visitas das senhoras do MNF ou da CV. Por norma eu e o médico íamos para a varanda dando ar ostensivo de desdém perante as visitas. Às vezes tínhamos a sorte de encontrar sobre as camas uns maços de tabaco, umas santinhas, ou outras coisas de utilidade premente. Mas entre os utentes do HP faziam-se reuniões de camaradagem. Logo nos primeiros dias da minha hospedagem apareceu um furriel piriquito que tinha sucessivos ataques de asma. Então, depois do horário normal de trabalho, com o pessoal em número reduzido, os fumadores juntavam-se em redor dele e conspurcavam o ar até que acontecesse um daqueles ataques, e quando já estava a dar sinais de grande aflição, corríamos em busca do médico de serviço para tratar da ocorrência. Em poucos dias foi evacuado. No quarto ao lado aconteceu um óbito consternante: o de um sargento da marinha que não resistiu a uma operação ao sistema cardio-vascular, e foi já à porta do quarto que alguém se atravessou perante a esposa que ali ia em visita. Outra ocorrência de relevo, foi o internamento do comandante militar de Bissau, o célebre onze, que era conhecido pelas suas façanhas nas guerras da cidade, e que as complementava no ambiente doméstico. Constava-se. Mas do que me lembro, é que ocupou um quarto que dava para trás, e mantinha duas sentinelas permanentes à porta do quarto, no corredor, de onde anunciavam as visitas que à tarde iam prestar vassalagem e batiam os calcanhares no lajedo.

Em 1971 a psiquiatria debatia-se numa espécie de selecção ariana. No HP havia um psiquiatra que ganhou má fama. Por um lado constava-se que aos utentes do mato que se apresentavam com bom ar, batia-lhes para ter a certeza de que não voltariam se estivessem no seu juízo, constava-se; por outro, assisti a dois casos de morte lenta: um soldado que teria encontrado o pai e a mulher envolvidos, e tê-los-ia morto; outro, um furriel do contra, desertor, que teria sido vítima da PIDE antes de embarcar para a Guiné. Eram dois casos de amedrontar. Dizia-se que levavam injecções de muitos centímetros cúbicos, que os deixavam abananados por dois dias. Mas nos outros dias já não conseguiam manter frases completas, e não revelavam nexo de raciocínio, enquanto o olhar perdido e desinteressado parecia um testemunho complementar. Parecia-me que estavam sujeitos a tratamentos criminosos, mas ali o psiquiatra zelava pela Pátria, e os que no mato faziam a guerra, não deviam saber de casos bem sucedidos por consultas daquele ramo.

Um dia aperaltei-me com a farda número dois e fui a pé para a cidade. Cheguei cansado ao Pelicano, mas banqueteei-me soberanamente. Deambulei pela cidade. Quando decidi regressar ao HM, sempre a pé, fui interceptado por uma patrulha da PM constituída por um furriel e uma praça. Adiantou-se o furriel e pediu-me a identificação. Tomou nota de elementos e quando me devolveu os documentos, pedi-lhe a identificação, e esferográfica para anotar. Surpreendido, perguntou-me para que queria os elementos, ao que lhe respondi com a mesma interrogação. Disse que os meus sapatos não eram da ordem. Pois não, não eram, mas eu ia participar dele por não ter cumprimentado militar e educadamente um superior. O piriquito desfez-se em desculpas, que não tinha reparado, e propôs que esquecêssemos a situação. Ainda o fiz sofrer pela arrogância do encontro, não por me apanhar em falta. Depois cada um seguiu o seu caminho. Valera-me a antiguidade.

Ao vigésimo quinto dia veio o médico conversar comigo porque, se estava estabelecido que com aqueles dias de baixa hospitalar o paciente deveria ser evacuado para Lisboa, no meu caso tal evacuação não se justificava, mas propunha-me protecção pelo prolongamento da hospitalização por mais alguns dias. Compreendi que poderia beneficiar da oferta generosa, mas já estava "cansado" do HM, e com saudades e preocupações sobre o pelotão. Pedi alta. Poucos dias depois já alinhava nos caminhos do nordeste. À minha chegada o pessoal gozou bravamente comigo por ter passado 3 períodos de férias em tão curto espaço de tempo. Invejosos!

P.S. solicita-se aos interessados no encontro do dia 15 da Magnífica Tabanca da Linha, que façam as marcações com a brevidade possível.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 29 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10592: História da CCAÇ 2679 (55): A mina do acaso - Pauleiro, o feeling do combatente (José Manuel M. Dinis)

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10592: História da CCAÇ 2679 (55): A mina do acaso - Pauleiro, o feeling do combatente (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 27 de Outubro de 2012:

Olá Carlos,
Hoje envio-te outro pedaço da história da CCaç 2679, uma ocasião de grande felicidade para mim.
É uma estória sobre esses engenhos traiçoeiros, que constituem verdadeiros riscos. Daqueles que dois camaradas, embora em circunstâncias muito diferentes, já aqui deram muitos testemunhos de fazer arrepiar; e a quem dedico o presente texto. Refiro-me ao António Matos e ao Luís Faria.
Para o Foxtrot, um excelente grupo de combate, vai a minha admiração e apreço.

Para ti e para o Tabancal envio um grande abraço
JD


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (55)

A mina do acaso
Pauleiro, o feeling do combatente

A época seca já durava há muito, corria lenta e escaldante, às vezes sentia-se uma brisa quente do deserto. Nós entráramos no segundo ano de permanência e de hábitos em relação ao clima e ao relevo. As reservas físicas compensavam as assaduras do sol, mas os cantis eram indispensáveis nas bagagens individuais. Naquele dia saímos cedo para uma coluna a Copá.

Tratava-se de uma acção vulgar, apesar de termos a "obrigação" de picar um pouco mais além do que meio caminho. A picada arenosa, levantava uma escassa e fina poeira à nossa passagem, por meio de uma vegetação de capim amarelado e seco, e algumas árvores de pequeno e médio porte, umas vezes espaçadas, outras em definhada mata, marginavam a "estrada" durante quase todo o percurso. O chão evidenciava uma vegetação rala, quase limpo sob as copas das árvores. Agradava-me o calor matinal.

A coluna alongava-se pelos vagares da caminhada. e acompanhava as ligeiras curvas que desviavam a picada de árvores mais volumosas, que não apaziguavam os calores de cada um, porque, naquela região, a luz solar incidia na vertical. Caminhei durante algum tempo, mas depois de iniciar uma conversa com o condutor da Mercedes que seguia após os picadores, decidi subir e sentar-me a seu lado. Distraía-me do que estava a fazer, e o ramerrão daquelas viagens dava "confiança" para descurar. Mas não vou contar-vos nada que se possa imputar a uma distração, além de que outros cumpriam as suas funções, e eu não tinha lugar certo no dispositivo, andava por onde achava que devia andar.

Picadores em acção. Foto: © Jorge Teixeira (Portojo) (2009). Direitos reservados.

A velocidade da deslocação seria de uns cinco/seis quilómetros por hora, conforme as pernas permitiam e a determinação do momento. Não se ouvia mais do que o suave ruído dos motores, uma ou outra pica bater em solo mais rijo, um ou outro chamamento das aves. De súbito, ligeiramente à frente e a partir da orla da mata, ouviu-se com estrondo. Há minas!

As reacções eram as que tínhamos treinado e intuído. Não havendo tiros, cada um dos que seguiam na frente aguardava no lugar pela minha aproximação, que de pica, e lentamente, descobria caminhos da saída. Depois de uma olhada pelas bermas, verificou-se que não havia cordões detonantes. A mata apresentava-se serena, não havia turras emboscados. O Pauleiro permanecia no local de onde soltara o brado. Aproximei-me: - Por que é que há minas? Respondeu-me apontando para uma porção de terra seca, que eu achei que seria o resto de algum pequeno baga-baga. Mas o Pauleiro estava determinado de que se tratava de terra removida da picada. Mexi na terra quase solta e a dúvida estava instalada.

Andei em frente da Mercedes a avaliar a situação. Depois pedi aos picadores para picarem densamente e com toda a atenção desde a viatura. Eles fizeram-no sem resultados. No entanto, dei-me conta de que havia um espaço entre a roda e o extremo do pára-choques onde as picas não iam. Pedi ao condutor para engatar a marcha-atrás, mantendo a direcção, e que movimentasse a viatura cerca de um metro. Sem alteração da trajectória, não aconteceu nada. Voltei a pedir aos picadores para usarem as picas desde as rodas a cobrir aquela zona onde nada víramos. Agachei-me a olhar atentamente para o trabalho que desenvolviam. A um dos picadores pedi para recomeçar, porque andara depressa em relação aos outros e tinha-me distraído. Reiniciou-se a operação. O resto do pessoal estava disposto ao longo da estrada e fazia segurança. Ouvia-se o silêncio, apenas quebrado pelo picar o chão.

Ao bater de uma das picas, fiquei com a sensação de se ter projectado um pedacinho de madeira. Alto, fiz sinal. Não via qualquer pedaço de madeira, mas sabia de onde o imaginava ter partido. Saquei da faca e actuei. As primeiras tentativas revelaram um solo duríssimo, mas, de repente, novo indicio de madeira. Mais uns movimentos de remoção e a mina estava identificada, talvez a escassos quinze centímetros da roda da Mercedes sobre a qual eu seguia sentado. Com a faca fiz uma avaliação do terreno envolvente e não havia outros engenhos. Os picadores foram avaliar a situação em redor da viatura e até à terceira.

Eu esgravatava no solo, pedi ajuda a alguém para remover a terra de um lado, enquanto eu o fazia do outro, mas os progressos eram lentos, pois o chão afigurava-se rijo, rijo demais para um terreno argiloso. No entanto, a tampa do caixote já estava a descoberto. A transpiração escorria e os olhos acusavam o salitre com grande incómodo. Quase me esfarrapei para cavar até à dobra inferior do caixote. Talvez uma hora depois, limpei as zonas envolventes, o braço direito a acusar o esforço, e a mina apresentava-se esplendorosa e exercia o magnetismo de atracção. Apesar de cansado, apesar da ajuda, estava tranquilo do que devia a fazer.

Nunca me tinha acontecido uma tarefa tão difícil. Os turras estavam a evoluir na técnica, e fora um milagre que o Pauleiro se tivesse deslocado da picada para uma mijinha, tivesse olhado para a terra removida e suspeitado do que vira. Era um militar com faro e com muitas provas dadas de excelentes capacidades. Concluí que ao colocarem a mina terão feito uma massa de argila e água, que depois serviu para a cobrir. Em seguida cobriram-na com uma camada de areia fina, e depois o sol e o calor completaram a intenção de dissimulação. Aquela devia estar armadilhada, a avaliar pelos cuidados, desconfiei.

Uma equipa de minas e armadilhas neutralizando uma mina AC. 
Foto: © Carlos Vinhal (2012). Direitos reservados.

Pronto, só faltava retirar a mina. Mandei a todos que se afastassem e deitassem no terreno, quando fiz um laço em torno do caixote, pelas faces laterais. e puxei, puxei com força por mais duas ou três vezes, movimentando-a. Do meu conhecimento só havia um disparador por descompressão - o célebre rato, que funcionava subitamente quando era aliviado do peso. Aproximei-me do buraco levantei a corda, e pedi para a puxarem pela extremidade, o que conferia novo ângulo de movimentação. A mina deslocou-se sem que dali viessem indesejáveis barulhos. Não estava armadilhada.

Foi um dia de muita sorte para mim, seguramente dos mais afortunados. Aquele engenho tinha sido astutamente instalado, com recurso a nova técnica, que consistia no recurso à lama que cose ao sol e fica como cimento, mas o grupo de combate, mais uma vez conseguiu dar a resposta adequada. Prosseguimos viajem e imaginava a decepção do artista que colocou o minão. Seguia a pé junto dos picadores, mas aquela era uma mina solitária.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10530: História da CCAÇ 2679 (54): Quatro tiros para o Pedro (José Manuel M. Dinis)

domingo, 14 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10530: História da CCAÇ 2679 (54): Quatro tiros para o Pedro (José Manuel M. Dinis)

1. Mais uma história do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), desta vez contracenando com o seu amigo e camarada Pedro Nunes.


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (54)

QUATRO TIROS PARA O PEDRO

O final da comissão aproximava-se. Naturalmente, a nossa motivação estava toda direccionada para o regresso. Alguns já tinham passado maus bocados, não só do ponto de vista da ruideira e ansiedades da guerra, estrito senso, como também da guerra psicológica que era discricionariamente servida a uns e outros. O Pedro pertencera a este último grupo, desde que a companhia entrou em quadricula, e ele não se mostrou disponível para o negócio da gasolina. Foi tão perseguido e penalizado, que ninguém percebeu o louvor final que a "trika" lhe atribuiu. Alguma espécie de arrependimento? Teriam tido conhecimento das boas relações familiares do Pedro? Ou pura hipocrisia para compensar o elevado número de porradas que comprometiam a carreira do capitão?

Naquelas circunstâncias o Pedro, por vezes, mostrava-se alterado, exprimia a sua legítima revolta. Comigo mantinha bom relacionamento, pleno de camaradagem e solidariedade. Lembro-me de quando recebia queijos da metrópole, feito menino queque cortava as partes bolorentas, que o Pedro imediatamente agarrava e levava à boca, dando vivas à penicilina.

Um dia fui acordado muito cedo com uns traques na cara, e quando me dei conta, enquanto ele fugia pela porta, atirei-lhe uma bota que não atinou com a trajectória, e embateu suavemente na cara de outro camarada que também dormia. O Pedro escapou em frente à minha janela e ria-se com estrondo. Ele fazia a festa e lançava os foguetes.

O Pedro dormia no abrigo dos auto-rodas, mesmo ao fundo, onde havia segurança máxima. Mas era dos primeiros a acordar, pois todos os dias havia movimentação de viaturas para diferentes deslocações. Ao contrário, eu dormia quando não estava comprometido com saídas matinais. Por isso, um dia ou dois a seguir, o Pedro voltou a entrar no meu quarto a horas incertas da madrugada, aproximou-se da cama, e voltou a peidar-se na minha cara. Acordei com a detonação, muito a tempo de o ver a sumir-se no outro quarto ao lado, até atingir o alpendre da casa, e correr à frente da janela, enquanto ria alarvemente. Contava aos que por ali cirandavam a acção valente que empreendera. E já era pela segunda vez.

O sono não me permitia pensar em vinganças, mas, no íntimo, eu achava que a aleivosia ia sair-lhe cara. Ora, como diz o ditado, tantas vezes a bilha vai à fonte, até que parte. A cena ainda se repetiu para gáudio do Pedro, um sacana gabarolas, que depois se ragalava a contar e a fazer filmes que desmoronavam a minha reputação. Uma noite alguém me alertou ao deitar, para dormir em corrida, a ver se não era acordado com ataques já esperados, mas sempre surpreendentes. Fez-se luz. Peguei na minha namorada, pu-la em posição de tiro-a-tiro, e encostei-a à beira da janela que dava para o alpendre por onde ele se safava em busca de protecção, e na direcção dos espectadores que já granjeara, onde era aclamado, e se fazia a festa. Grande coiro! Ia pagá-las.

Fatal como o destino. Agora não me ocorre se já esperava por ele, se ele ainda me acordou. Lembro-me de que cumpriu o talentoso plano de me aterrorizar com flagelações, e fugiu pelo caminho do costume que já conhecia tão bem, e lhe conferia o êxito de que carecia para elevar o moral. Levantei-me. Peguei nela. Apontei-a para o exterior. E quando ele passou em correria esfuziante, puxei o gatilho uma vez. PUM! Puxei o gatilho outra vez. PUM! E ainda puxei o gatilho mais duas vezes. PUM! PUM! Os tiros foram para a parada onde não havia ninguém, direi que para uma altura que não atingia os pedestres, se lá houvesse.

Mas não houve festa. Antes, sucedeu um silêncio que muito apreciei. Como aquelas pausas na música, que lhes dão profundidade ou continuidade. O Pedro sentiu a morte a rondar-lhe. Logo argumentou que eu estava maluco, que não queria mais conversas comigo, e que eu era um perigoso assassino em potência. E, na verdade, passou cerca de 15 dias até voltar a falar-me. Mas à defesa. Sem confianças. Até que as relações voltaram ao normal, e hoje mantemos estima recíproca.

Semana de campo no Caniçal - Madeira > Pedro, Dinis, Gonçalves, Marino e Calvo

Bajocunda > Recepção aos piras

Piche > Rebenta-minas usado 

Piche > Oficina da ferrugem

Bajocunda > Crianças celebram as primeiras chuvas

Piche > Abrigo concluído pela ferrugem da 2679
Fotos de Pedro Nunes
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10517: História da CCAÇ 2679 (53): "Ataque" muito certeiro (Jose Manuel M. Dinis)

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10517: História da CCAÇ 2679 (53): "Ataque" muito certeiro (Jose Manuel M. Dinis)

Vista aérea de Bajocunda
Foto: © Amílcar Ventura, com a devida vénia

 
1. Em mensagem do dia 9 de Outubro de 2012 o nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), enviou-nos mais um pouco da história da sua Unidade, desta vez um perigoso ataque à Messe de Bajocunda.


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (53)

"ATAQUE" MUITO CERTEIRO AO EDIFÍCIO DA MESSE EM BAJOCUNDA

O edificio da messe em Bajocunda, era uma antiga casa colonial, que ainda abrigava a enfermaria e os quartos da furrielada. Ficava a uns cem metros, a partir das traseiras (norte), da vedação de arame. Algumas árvores frondosas o alguns arbustos, escondiam o edificio do exterior do aquartelamento. A frontaria (sul) dava para a parada, e era contigua à entrada principal para a zona aquartelada, delimitada por uma precária protecção de arame. Sob o alpendre do limite oeste da área militarizada, funcionava a messe, conquanto as refeições fossem preparadas longe, na cozinha. Do lado oposto à messe, funcionava a enfermaria, e junto a ela a oficina mecânica e o abrigo dos auto-rodas. Depois deste, situava-se o morteiro 60, protegido por um muro-abrigo. Depois, num alinhamento a 90 graus, surgia a capela, um espaço aberto, com um pequeno altar e uma cruz. Seguiam-se os edificios da cantina e transmissões, e a secretaria. Do lado sul da parada, de forma afunilada, situavam-se os quartos dos oficiais, e o edificio onde funcionava a secção de armamento. Uma vedação de arame, acompanhava a rua principal até à entrada principal, já assinalada. No meio ficava o pau de bandeira e o submarino, designação de um paiol pela semelhança com um submersível.

Depois desta descrição parcial sobre a urbanização bajocundense, vamos à estória.

Em Africa o sol põe-se cedo e quase regularmente pelas dezoito horas. Era a hora do jantar, apesar de não ter sido prática o horário inglês. Às vezes atrasava-se a manja, quando o pessoal operacional se atrasava um pouco no regresso ao aquartelamento. Sem luz durante a maior parte das noites, mas com candeeiros de pitrol, o pessoal recolhia cedo, na medida em que pelas seis da manhã já fervilhava o dia.

Uma noite, pelo menos eu e o Pedro, ficámos à conversa despreocupadamente e sem cuidar das horas. Tenho a dúvida sobre a eventual participação de um terceiro. Da conversa, nem a mínima recordação. Nos quartos, os furriéis ali presentes já dormiam. Até que surgiu uma extraordinária ideia, a de desencadearmos um ataque à messe, e pregarmos um cagaço aos dorminhocoss. Se bem pensado, e logo decidido, foi melhor executado. No essencial, consistiria no arremesso de garrafas para o telhado de zinco, que reproduziria metalicamente os ruídos dos impactos, enquanto um de nós atravessaria os quartos gritando que era um ataque. Pensávamos nós que a barulheira e os gritos, induziriam o pessoal na busca de protecção.

Fomos então recolher algumas garrafas vazias que, em ambiente de grande respeito pela naturaza, estavam espalhadas por toda a parte. Reunimos um municiamento adequado, mas, entretanto tinha-me ocorrido uma paródia suplementar, um cagaço de prémio aos mais queridos camaradas, que eram aqueles que estavam mais a jeito, em sono profundo e descontraído. Consistiu a iniciativa em atar os pés aos pés das camas. Não era obviamente com a ideia de os estropiar, antes para aumentar a ansiedade de cada um, e ampliar a confusão. Tudo pronto, faltava a ordem de ataque. Quando eu começasse a lançar as garrafas, o Pedro daria o alarmante alerta. Andavam ali mãozinhas de turras. Fiéis à sua combinada ideologia de um por todos , todos por um, os atacantes não se pouparam a esforços, deram tanta intensidade ao ataque quanto possível, e... os resultados revelaram-se diferentes: uns levantaram-se indignados com a brincadeira e mandavam-nos passear, para Espanha, para a Côte d'Azur, e para outros sítios normalmente muito agradáveis. Eram os de sono leve, que distinguiam bem a saída de uma granada, da explosão de uma garrafa. Outros levantavam-se em cuecas, e apresentavam-se de armas em punho, prontos a fazer frente a qualquer afronta. Eram os mais perigosos, daqueles que poderiam abater o inimigo, qualquer que fosse, dentro das instalações do quartel. Finalmente, havia uns gajos, pró mal educado, que berravam no bréu dos quartos, compelidos pelo instinto de defesa, mas, também, sem a necessária consideração pelos camaradas que lhes facultavam a título gracioso um treino tão necessário quanto oportuno. Depois, feitos mariquinhas, ainda se mostravam zangados por, às escuras, verem uns vergões à volta dos tornozelos, em resultado da teimosia de quererem sair sem se libertarem previamente das guitas. Não lhes posso perdoar. Esse registo, por ser absolutamente impróprio a narrativas neste espaço, recuso-me a relatá-lo.

Do evento não resultaram baixas, nem para as NT, nem para o humaníssimo IN. Felizmente, não houve ocasiões posteriores para comprovar a oportunidade do exercício de treino, como a apreensão da melhor forma de reagir naquelas circunstâncias. E voltaram a dormir, os calinas!

Houve mais tarde um episódio quase familiar com este, mas teve origem em delírios paranóico-etílicos. Acho que o relatarei um dia.

Bajocunda > Tabancas ardidas durante flagelação

Bajocunda > Roquetadas entre portas

Bajocunda > Roquetada no telhado mesmo edifício
Fotos de  Pedro Nunes
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10339: História da CCAÇ 2679 (52): Vietnam (José Manuel M. Dinis)

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10339: História da CCAÇ 2679 (52): Vietnam (José Manuel M. Dinis)

1. Em mensagem do dia 31 de Agosto de 2012 o nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), enviou-nos mais um pouco da história da sua Unidade que é também a história da sua vivência enquanto combatente da Guiné:


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (52)

VIETNAM

Sentara-me sobre a mesa de ping-pong (ténis-de-mesa para os puristas) encostada à parede e à janela do meu quarto, sob o alpendre do edifício da messe, chinelinhos enfiados nos dedos dos pés, e tronco nu. Era ali que costumava aguardar pelo crepúsculo, pois tratava-se de um lugar privilegiado para ver o pôr-do-sol, numa direcção que a partir dali passava entre a saída para Pirada e o edifício do comando. Havia dias em que me regalava a ver riscos de luz amarela e rosa a salpicar o fundo azul do firmamento.

Tinha assistido à chegada da coluna,e ao habitual movimento de gente em torno das viaturas, que descarregavam civis e militares, aqueles atafulhados de sacos de pano ou alguidares coloridos, onde faziam transportar os seus bens adquiridos nos armazéns do Gabú, os militares que se sacudiam, e de armas a tiracolo, ou ao ombro, carregavam as cartucheiras e demandavam os abrigos para banhos merecidos. Afluíam outros militares à secretaria para a distribuição do correio, que, de tão desejado, se fazia antes que tudo. Do lado de fora do arame, sob as mangueiras, alguns civis faziam perguntas a quem chegava sobre amigos, familiares, condições de comércio, etc, e davam sonoras risadas que mostravam as cremalheiras de onde sobressaíam os dentes brancos, enquanto dobravam os corpos reflexamente, ou, perante algum regressado depois de longo tempo, ficavam de mãos dadas e conversavam afável e curiosamente.

Os meus camaradas, depois das saudações e aldrabices habituais, tinham ido para o interior, para o banho e preparação para a janta.

Sem me ter dado conta, aproximou-se um militar bem aprumado, da minha estatura, magro mas bem constituído e muito moreno, de nariz aquilino, algo rude, e olhar encovado, que perguntou por mim. Era eu, respondi. De imediato, o recém-chegado bateu o tacão, perfilou-se, levantou a perna direita esticada a noventa gaus, voltou a juntar os pés com novo batimento, e começou a apresentação, enquanto eu me colocara na posição de sentido em correspondência àquele cumprimento. Era o soldado Lapa, proveniente da 26.ª CComandos, que passava a integrar o segundo pelotão, o Foxtrot, inicial de muitos significados. Foi no dia 17JAN71.

Cumprimentei-o civilmente em seguida, perguntei-lhe se precisava de alguma coisa, pedi a um camarada para lhe providenciar uma cama num abrigo, e disse-lhe que de manhã iríamos à lenha, pelo que se não estivesse ocupado, poderia logo acompanhar-nos e começar a conhecer o pessoal. Ainda lhe acrescentei que o decorrer do tempo e o espírito do grupo, seria a melhor maneira de nos irmos conhecendo. De facto, quando nos calhava ir à lenha pelas redondezas, metade do pelotão folgava. Montava uma segurança próxima de uns quatro elementos, enquanto os restantes faziam a colecta. Normalmente, eu não ia. Naquela vez, porém, talvez e em correspondência a comentários sobre a rica vida, e com o sentido acrescentado de avaliar a integração do novo elemento, de manhã estava pronto a seguir. E abalámos. Chegados ao local, designei os quatro para a segurança, e iniciámos a recolha e acondicionamento da madeira na viatura. A certa altura o Lapa aproximou-se bem disposto e comentou sobre a minha actividade, a que respondi, que nem aquilo era um trabalho pesado, nem me caíam os parentes. No Foxtrot o principal era o espírito de equipa e a solidariedade.

Pelas vias normais tive conhecimento de que o Lapa viera transferido por motivos disciplinares, mas não tive interesse e até hoje não sei dos motivos em concreto. Pela malta fiquei a saber que tínhamos então entre nós um tipo valente e alcunhado de "Vietname". Mais tarde vim a considerar que o próprio teria contribuído para a alcunha com alguma auto-promoção. Nos intervalos em que conversávamos, ele manifestava uma certa admiração pelas lendas, nomeadamente pelo Ché Guevara, na época muito em voga. De uma das vezes, senti que ele gostaria de ter mais protagonismo na guerra, provavelmente, também, no sentido de conquistar créditos, quiçá abalançar-se a níveis de projecção entre a guerrilha, e que fosse temido pela bravura. Tentei explicar-lhe que entre nós e o Ché não era possível estabelecermos qualquer comparação. Em primeiro lugar, porque éramos portugueses, mobilizados pelo governo, para actuarmos na defesa dos territórios ultramarinos, e fazíamos a guerra enquadrados numa qualquer estratégia do ComChefe a que éramos completamente alheios, enquanto o Ché, de nacionalidade argentina, era um licenciado em medicina, que tinha uma visão universalista e participava na luta pelo lado dos pobres e explorados contra o poderio dos estados. Por isso combatera em Cuba, e na ocasião deambulava pela América do Sul, onde era comandante de um grupo de guerrilheiros (só muitos anos mais tarde tive conhecimento de actos da sua responsabilidade, abafados pela informação e pelas autoridades cubanas, que me causaram uma negativa perplexidade).

Outra ocasião alongou-se numa conversa sobre as minhas capacidades, e achei que tinha de lhe perguntar, se queria andar à porrada comigo. Que não! Estávamos só a falar. Estas circunstâncias levaram-me à conclusão de que aquele Foxtrot andava meio perdido, que seria capaz do melhor, como do pior, e que aconselharia a prudência andar de olho nele para me antecipar a qualquer acto mais exagerado ou inconveniente.

Depois vim a saber, que no abrigo onde dormia o Lapa, com frequência havia petiscos de galinha, e que ele costumava atravessar o arame para ir a Amedalai, a coberto da noite, para as "controlar". Preferi não tomar conhecimento disso, pois teria que o proibir dessas saídas. O risco era relativíssimo, e estou convencido que se o proibisse, ele desobedeceria e teria que passar ao papel. Mas o ambiente em redor dele era bom, e a integração não levantava dúvidas, até que um dia, seguia eu à frente de uma patrulha de combate com a finalidade de interceptar eventuais travessias da fronteira entre Bajocunda e Pirada, ouviu-se um tiro. Parei. Atrás de mim todos pararam. Mantinha-se o silêncio. Um tiro sem motivo, no ambiente do Foxtrot era pecado. Movimentei-me ao longo do pessoal, olhando-os, sem dizer palavras, apenas a avaliar. Quando me aproximei do Lapa não tive dúvidas, o seu ar zombeteiro, o corpo arqueado e o olhar de viés, denunciaram-no. Para onde atiraste? - perguntei-lhe. Respondeu que para um pássaro. Onde está o pássaro? - voltei a perguntar. Respondeu secamente que não lhe tinha acertado. O tiro, o diálogo, e alguma insolência manifestada, já me impulsionavam. Em fracções de segundo teria que resolver a situação. Levantei a arma que estava suspensa da mão direita, e apontei-a para a cabeça, enquanto lhe disse, olhos nos olhos: Se voltas a atirar sem autorização, rebento-te a caximónia.

Escuso de referir que, quando me chateava, apresentava um ar bastante persuasivo. Olhámo-nos uns segundos, baixei a canhota, virei-lhe as costas e retomei o caminho.

A verdade é que resultou. Daí para diante o Lapa era um Foxtrot alegre e companheiro, e uma mais-valia relevante em caso de sofrermos alguma surpresa da banda do IN. Nenhum de nós ficou com ressentimentos, nem na história, e hoje pertencemos à massa anónima de cidadãos, dos que labutam para viver, e faço votos, dos que movidos pela solidariedade estarão sempre prontos para ajudar quem precise, afinal, uma das lições que ingénua e romanticamente retemos do Ché.

Nota triste: Vítima do bicho-mau, faleceu recentemente o Cabral, outro elemento Foxtrot que nos deixa mais pobres. À sua família apresento sinceros pêsames.

Um grupo Foxtrot no regresso da lenha. Da esquerda para a direita: Gonçalves, Rodrigues (Mama Sono), Santos, Faria, Pauleiro (de G-3), Zip-Zip (condutor fantástico), Dinis e França
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 20 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10053: História da CCAÇ 2679 (51): Uma dívida por pagar (José Manuel M. Dinis)

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Guiné 63/74 - P10053: História da CCAÇ 2679 (51): Uma dívida por pagar (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 12 de Junho de 2012:

Caríssimo Carlos,

Para não pensares que te esqueci, aqui vai mais um nico da história da minha companhia.
Para não te castigar, é coisa pouca, mas suficiente para reflectir o ambiente que ali reinava.
Anexo ainda a resposta do Pedro ao meu pedido para confirmação dos dados. Exageradamente refere: "está mais que correcto".

Para ti e para o tabancal vai um abraço fraterno
JD



HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (51)

Uma dívida por pagar

Nos primeiros dias de Fevereiro o Pedro devia ter vindo de férias à metrópole, todavia, o Pedro andava em conflito com a corja, ou melhor, a corja conflituava com todos que lhe dificultassem a actividade de locupletanço. Ora, o Pedro tinha muitas dificuldades de relacionamento, por via das gasolinas, da aberração das constantes viaturas paradas, pelo seu feitio não aderente, razões suficientes para ter sido aleivosamente prejudicado, com a impiedosa desautorização para partir em gozo das férias que tinha planeado. O parque automóvel era o espelho da corja, mas esta fazia-o um reflexo do Pedro, o chefe dos auto-rodas, na senda dos militares implicados para desresponsabilização de quem manda. E a corja é que mandava. E convinha-lhe assim. Os mapas para Bissau davam indicações falaciosas, que justificavam os consumos de combustível, que a corja, em sociedade com o tipo da Casa Gouveia, "empochava" (termo vulgar, derivado do francês poche - bolso, referido quando alguém enche os bolsos à custa do alheio). A corja também não tinha preocupações com o pessoal operacional, que se deslocava em viatura sem quaisquer condições de segurança, pois em caso de emboscada, ou de accionamento de minas, os estragos eram tão maiores, quanto mais compactado o pessoal seguisse. Tenha-se em conta, que raramente dispúnhamos de mais de duas viaturas operacionais, ainda reflexo do material herdado da companhia anterior, e incrivelmente aceite. E a impunidade reinava, porque a máquina militar não contemplava o controle dos gastos.

O Pedro, naturalmente furioso, chispava lume, quando não foi autorizado o necessário "passaporte" para férias. Nesse dia e no seguinte, revelaram-se inúteis as tentativas de solução para aquela crise. O Pedro, com o orgulho dos sérios, recusava-se a pedir batatinhas, a mendigar por um direito que lhe assistia, e era-lhe vedado. O capitão, e os sargentos, resmungavam à guisa de justificação, que as viaturas careciam de reparação. A reparação consistia em retirar peças de umas viaturas para outras, sendo que, algumas delas, já não teriam viabilidade. E a corja, que sempre protelou a recuperação do parque automóvel, só agora, surpreendentemente, manifestava preocupação. Estariam a adivinhar alguma inspecção? Quereriam ter alguma margem de segurança perante uma eventualidade dessas?

No segundo dia o Pedro lastimava-se de ter empatado a meia-dúzia de contos do bilhete do avião, que para as férias já nem queria saber. Decidi então comprar-lhe o bilhete. Quando me dirigi ao Trapinhos a comunicar-lhe que partiria de férias, ainda me dificultou a decisão. Quem ficaria com o pelotão, questionou. Por sorte, estava o alferes Leite no gabinete, que imediatamente referiu, que se encarregaria dequela matéria. O Leite era o segundo-comandante da companhia, e o Trapinhos não teve como não aceitar a solução.

Dei uma rapadela ao cabelo, cortei a mosca, vesti-me apinocadamente de número dois, e apresentei-me em Nova Lamego, no primeiro andar, onde pontificava o comandante com a partente necessária para o passaporte. Encontrava-se no varandim do gabinete em conversa, e esperei até ter oportunidade. Mandou-me avançar, enquanto questionava sobre a minha pretensão. Quando lhe estendi o papel e leu o nome, deu um sorriso por não me ter reconhecido, o que avalisava a minha apresentação. Entrou, assinou, e despedimo-nos. Fui direitinho à pista, onde um tenente do exército, velhote, fazia a lista de embarque. Naturalmente, já muita gente se tinha apresentado. O tenente disse-me que eu só embarcaria se houvesse desistências. Argumentei sem resultados, ele "não podia fazer nada". Ora, era mais que óbvio, que ninguém dos militares e civis iria faltar ao embarque.

Desorientado e mal conformado, dirigi-me para um bar no centro, mesmo em frente ao comando, que era onde costumava encontrar malta conhecida. Quando assomei à porta, logo ouvi o meu nome, chamado de uma mesa de páras. Estavam ali alguns militares com quem me tinha relacionado no mato e, particularmente um furriel, de quem não recordo o nome, acenava para ali me sentar. Foi o que fiz. Depois das apresentações, o pára mandou-me pagar uma rodada, a que acedi, mas contei-lhe que era o segundo azar que tinha naquela manhã. A minha cabeça andava longe dali, pois enquanto eles conversavam alegremente, eu só pensava no que teria que dizer convincentemente ao tenente. Depois de umas bejécas, manifestei vontade de voltar à pista, mas o furriel convenceu-me a ficar até à chegada do avião militar. Covenceu-me a pagar outra rodada. Quando o avião já devia estar na pista, antes de me levantar e despedir, bebemos novamente em saúde de todos. O furriel levantou-se, pegou na boina, convocou o condutor que abancava connosco, e mandou-me acompanhá-lo.

A fila alongava-se, e movimentava-se vagarosamente, apesar dos escassos lugares vagos, enquanto o tenente verificava a lista de embarque. O pára mandou-me segui-lo, fez uma palada ao tenente, e disse-lhe que eu estava requisitado pela companhia de pára-quedistas e tinha que embarcar para Bissau. E foi assim que cheguei à capital provincial. Depois foi só dirigir-me ao balcão da TAP e regularizar a situação.

Embarquei de manga curta tendo em conta os calores daqueles trópicos, e desembarquei de manhã em Lisboa com três graus positivos. Lembro-me de que só a meio da tarde senti necessidade de vestir uma camisola. Tinha pedido ao meu pai para convidar dois amigos para o jantar, e comi peixe.

Daquele furriel pára-quedista que me dispensou tanta gentileza, não tenho qualquer referência, mas ainda lhe estou devedor de outa bejéca, ou de um tinto refinado.

JMMD
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 17 de Maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9914: História da CCAÇ 2679 (50): Uma motivação imprevista

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9914: História da CCAÇ 2679 (50): Uma motivação imprevista (José Manuel M. Dinis)

1. Em mensagem do dia 13 de Maio de 2012, o nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), enviou-nos mais uma memória da história da sua Unidade.


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (50)

Uma motivação imprevista

Lá longe, depois de cruzado o Geba e o Gabu, na direcção do Senegal e das brisas do deserto, cirandava uma companhia que, desde Piche, praticava muita operacionalidade, e todos os dias mantinha, a par da actividade militar propriamente dita, com picagens, patrulhas, colunas e emboscadas, ainda a actividade interna, normal de cada aquartelamento.

O pessoal, por vezes, manifestava cansaço, até revolta. Sobretudo, quando as horas do rancho suscitavam algum género de contestação. De facto, por ali comia-se mal e porcamente. O "tacho" consistia quase exclusivamente em "bianda com estilhaços", num guisado que sugeria cimento, ou massa com estilhaços.

Quando alguém se lembrava de reclamar, logo degenerava um coro de protestos, no geral inconsequentes. Mas quando, ainda revoltados e estimulados para reclamar, encontravam o capitão, um ou outro mais afoito, dirigia-se-lhe a apresentar protestos, enquanto os restantes paravam à escuta, ou largavam frases acusatórias de que havia quem enriquecesse à custa do pessoal, ou que na messe os senhores comiam bifinhos, enquanto no refeitório a alimentação era quase intragável. E havia quem, mais ou menos encoberto, como quem queria a coisa, referisse que o rebentamento de umas granadas poderia resolver o problema dos ilícitos.

Um dia a localidade foi sobrevoada por um NordAtlas, que do seu bojo soltou uma caixa de frescos. Vieram de pára-quedas, mas com tal força bateram no chão, que o caixote desconjuntou-se, o peixe espalhou-se no solo arenoso numa gemada de ovos, e nada se aproveitou.

Pata que os pôs, gritava-se entre impropérios. Parecia que estavam a gozar. Quem havia de comer aquilo? Porque é que não se fez uma coluna a buscar os géneros?

À porta da secretaria o capitão parecia ouvir os protestos. Por trás, cofiando o bigode, como quem avalia o evoluir da situação, o Primeiro mantinha-se calmo e encorajador do capitão.  

Que um dia haveria ali uma festa com mais puns-puns que a passagem de ano no Funchal, que os "xicos" é que deviam ir para o mato, e outras, directas e indirectas, mobilizavam a rapaziada na curiosidade contestatária.

Alguns dias depois aterrou um DO que trazia o Comandante Operacional. Algum tempo depois mandava-se formar o pessoal da Companhia, um pelotão de operacionais, e uma parte dos especialistas.

Houve um arremedo de formação para o senhor Comandante. O pessoal olhava para os pés, compunha o quico para evitar o sol, diziam-se dixotes baixinho a provocar graças, que talvez não chegassem ao degrau onde estava o orador, outros davam-se empurrões de surpresa a provocar desequilíbrios, enfim, passava-se o tempo, enquanto Sua Excelência discorria sobre o moral, e a capacidade do exército.

A certa altura, a propósito das reclamações sobre a alimentação e o consequente cansaço, teve a seguinte tirada: Eu também ando pela Guiné toda, e não estou cansado. Não foi preciso esperar reacção, porque um espontâneo logo replicou altissonante: de avião!... assim também eu.

Seguiu-se uma precipitação de risos, de início a conterem-se, mas logo em avalanche de bom humor. O pessoal inclinava-se, aproximavam-se alguns para comentar, de onde brotavam mais risos. A formação, deformava-se. Alargava-se. Descompactava-se. Sem ordem, que não se revelou necessária, destroçava-se.

O senhor Major considerou que já tinha falado, e também se retirou com o capitão a segui-lo. Foi uma festa, e durante dias quase não se falou de outra coisa. Mal imaginaria aquele oficial, como um simples "lapsu-linguae" poderia transformar uma tropa apática e mal disposta, num grupo de militares orgulhosos e alegres, capazes de resistirem por mais algum tempo às provações que lhes eram impostas.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9756: História da CCAÇ 2679 (49): A maneira mais prática de fazer prova de aptidão para conduzir viaturas auto (José Manuel M. Dinis)

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Guiné 63/74 - P9756: História da CCAÇ 2679 (49): A maneira mais prática de fazer prova de aptidão para conduzir viaturas auto (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 2 de Abril de 2012:

Boa tarde Carlos,
O Tito Martins é meu amigo desde antes da vida militar. Por mero acaso, fizemos a tropa sempre juntos. Sei que ele nutre por mim uma boa amizade. Dele, tenho a certeza, que é um grande camarada. O texto não o vai surpreender, porque já o conhece, mas acho interessante para publicação.
Se não houver oposição, agradeço.

Um grande abraço, extensivo ao tabancal.
JD


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (49)

 O Zé Tito Martins tinha andado em lições de condução com o Pedro, que exasperava perante a patente falta de jeito do aprendiz. Ao fim de algum tempo, atinando com as mudanças do Unimog, mais ou menos familiarizado com o funcionamento do acelerador e as funções dos travões, experimentado o ponto de embraiagem com sucesso (apesar da planura do terreno), dadas as necessárias explicações sobre as luzes de sinalização, o Zé estava considerado apto para se submeter a exame. Com sorte, passaria. Marcada a data, faltava aprazar o transporte. Por coisa do destino aterrou em Bajocunda um DO com um piloto que o candidato conhecia, e prontificou-se a levá-lo para Bissau. Autorizado, o Zé correu a buscar a mala quase enorme com as necessárias coisinhas para os dias da deslocação.

Mas a avioneta ainda se deslocou a Copá, conforme o plano de voo. E aí começou a malfadada aventura da deslocação a Bissau. No banco de trás, juntamente com alguma carga, o Zé depositou a mala, acomodou-se ao lado do piloto, e à medida que subia no ar, já se sentia no céu durante os dias de estadia em Bissau, afiambrado em mariscos convenientemente refrescados com muita cervejinha, sob os jacarandás que davam sombra e cores às esplanadas.

Em Copá, porém, apresentou-se uma evacuação urgente de uma senhora que tinha dado à luz um nado-morto e ainda tinha a placenta. Na circunstância, tinha direito a acompanhante, e à luz da política por uma Guiné Melhor, a evacuação afigurava-se prioritária. As duas pessoas ocupavam o exíguo espaço livre, pelo que o Zé Tito teve que ficar em Copá, mais longe do que Bajocunda relativamente ao objectivo de chegar à capital da província. Na urgência inesperada, foi enviado um rádio a Bajocunda a solicitar uma coluna para transporte do infeliz militar, que já tinha uma perspectiva de não chegar a tempo para o exame de condução. Em Bajocunda, o capitão Trapinhos mandou-o levar onde levam as galinhas, com a justificação de que a actividade operacional da Companhia não podia sacrificar-se às necessidades de um furriel em desvio de rota.

Com a tomada de conhecimento da resposta, o Zé vagueava pela aldeia com a esperança de dissipar pensamentos penosos. Inopinadamente, encontrou o Zé Grande, um elemento do Pel Caç Nat 65 (mais tarde cooptado pelo Marcelino da Mata), a quem indagou o que estava ali a fazer. Tinha lá catota, porque tinha esposas em dois ou três lugares. Perguntou-lhe quando regressava a Bajocunda, ao que o Grande respondeu, que no dia seguinte. Como? Viajava de bicicleta. Então, muito ajuizadamente, o Tito pediu ao Grande para lhe arranjar uma bicicleta. E arranjou.

Ao dia seguinte, o Tito, o Grande e outro elemento daquele Pelotão de Caçadores Nativos, fizeram-se ao caminho pela picada arenosa e algo esburacada que ligava as duas localidades. Eram mais de vinte quilómetros. O Tito, bom avaliador do risco vestia uma túnica fula, e com a mala atada ao selim, fazia manobras infrutíferas para se manter sobra a bicicleta, pois à dificuldade da veste, também a mala escorregava para o lado da roda neutralizando o esforço das tentativas de equilíbrio. Resultado: fez a viagem a pé, mas chegou a Bajocunda, e surpreendeu toda a gente. À chegada, dirigiu-se à cantina onde virou umas basucas para dessedentar-se. Depois foi falar com o solícito capitão, que ao pedido para o levar a Pirada, deu logo o nega. Mas o Tito não desarmava à primeira, com insistência tentava fazer ver ao capitão que tinha pressa para chegar a Bissau. O outro, mula, não parecia partilhar das mesmas preocupações. Mas o Tito, com todo o jeito do mundo, não lhe dava espaço de manobra e, delicadamente, insistia que tinha que chegar a Pirada, de onde seria mais fácil arranjar transporte. Finalmente, condescendeu o temorato capitão, talvez para evitar sugestões da atitude persistente do miliciano.

Chegado a Pirada clandestinamente começou a colher informações sobre a possibilidade de atingir Nova Lamego, na medida em que se afigurava não haver DO's a passar por ali. Mas um comerciante local deslocava-se essa noite para o Gabú, e prontificou-se a levar o candidato até àquela localidade. Sentado ao lado do camionista pensou nas virtudes de conhecer os meandros em confronto, que dispensavam picagem e escolta. Chegou a tempo para na manhã seguinte apanhar o avião para a cidade prometida. Uffa! A tropa entrou no Nord Atlas e sentou-se nas magnificas cadeiras ao longo do avião. Depois entraram os civis, homens e mulheres da população local. Sentavam-se no chão, ou ao colo dos militares. Sortudo, o Zé Tito viu uma alegre gorducha dirigir-se para ele e sentar-se sobre as pernas, provocando-lhe dores, quando frequentemente remexia o abundante corpinho, e deixando-o narcotizado sempre que lhe encostava o sovaco na cara. Chegaram bem, felizmente, e o Tito cumpriu um desígnio da psico.

Em presença do alferes examinador, companheiro de turma no Nun'Alvares, por onde os manos Tito Martins tinham feito passagem, este indagou-lhe porque não tinha requerido exames de motociclos, de pesados, de helicópteros e aviões, ao que o Zé respondeu não ter especial interesse. "Burro! Sempre foste burro, o pior da turma, que eu aqui passava-te isso tudo, e nunca se sabe!..." replicou o examinador. "Bom, vamos lá fazer o exame. Toma aí o volante". O Zé, desconhecedor das artérias viárias daquela capital, respondeu-lhe para ser o amigo a conduzir, já que mal identificava a cidade. Compreensivelmente, o alferes conduziu o Tito até à baixa. Quando passavam por uma esplanada, lembraram-se de comemorar o encontro, para mais com mariscos tão famosos como os de Bissau. Comeram e beberam com a facilidade de dois jovens de sucesso, e o grande apetite que o clima inóspito sempre provoca. Conforme o relato pagou a mais alta patente.

Depois da confraternização, e de terem pago a devastação, o examinador disse ao Tito para (finalmente) conduzir a viatura. Novamente o Tito revelou grande sensatez e sugeriu: "já agora conduzes tu".

Regressou a Bajocunda com a barriguinha cheia e a carta de condução passada pela autoridade militar e competente. Já na vida civil comprou um Honda 360 que não arriscava conduzir, até que o bondoso sogro, que não conduzia, se propôs andar com ele pelos espaços mais largos da vila, na prática das manobras automobilistas, enquanto o desmobilizado não revelasse competência para se aventurar a solo naquele género de actividade.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 9 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9723: História da CCAÇ 2679 (48): Entre as NT não havia apenas gente movida pelo espírito cristão (José Manuel Matos Dinis)