Em princípio, poderiam exercer medicina todos aqueles que fossem diplomados (bacharéis) pela universidade portuguesa ou por universidade estrangeira, no respectivo curso. A prática abusiva da medicina por indivíduos sem a necessária qualificação levará, entretanto, D. João I (1357-1433) a ordenar, por carta real de 28 de Junho de 1392, que nenhum homem ou mulher, cristão, mouro ou judeu, pratique a arte de curar sem primeiro se submeter a um exame de provas práticas feito perante o físico-mor (um cargo de nomeação régia que só será extinto em 1836). Aqueles que eram aprovados no exame, obtinham uma carta autenticada com o selo real que lhes conferia o direito de exercer legalmente a prática da medicina. Previam-se já pesadas sanções pelo exercício ilegal da medicina, muito embora essa disposição não tivesse provavelmente grandes efeitos práticos. Esta carta real é considerada "a primeira disposição legislativa em relação ao exercício da medicina", segundo Lemos (1991, Vol. I. 73). No Regimento do Físico-Mor, de 15 de Outubro de 1476, esse exame passa a estender-se aos próprios diplomados pela universidade, portuguesa ou estrangeira, o que não deixa de ser sintomático (Graça, 1996): Estamos provavelmente perante a primeira tentativa de controlo do exercício da medicina pelos próprios médicos, sob a figura do físico-mor e, portanto, sob protecção do próprio poder régio;
Nesta época, a cirurgia era um simples ofício que se aprendia com a prática e experiência dos mais velhos, não estando o seu exercício regulamentado. Era, aliás, uma arte considerada menor, que exigia sobretudo força e destreza manuais, e como tal desprezada pelos médicos diplomados. Era praticada sobretudo pelos barbeiros (até a meados do Século XVIII). Recorde-se que, segundo o Juramento de Hipócrates (vd. tradução de Littré, cit.por Sournia, 1995. 47-48), ao médico estava interdito o uso da faca (ou do bisturi): "Não praticarei a operação de corte, mas deixá-la-ei para as pessoas que dela se ocupam". Só com o Regimento do Cirurgião-Mor, datado de 25 de Outubro de 1448, no tempo de D. Afonso V, é que passa igualmente a ser obrigatória a prestação de provas de habilitação para a prática da cirurgia. O exercício indevido da cirurgia passava também a ser punido com prisão. O ofício de cirurgião só a partir do Século XVI é que começa a ser técnica e socialmente valorizado . Por exemplo, um alvará de 26 de Julho de 1559 vem restringir o seu exercício aos que fizessem ou tirassem o curso de dois anos do Hospital Real de Todos os Santos (HRTS), com excepção dos diplomados pelas Universidades de Coimbra, Salamanca ou Guadalupe. Esta disposição não é, no entanto, confirmada pelo Regimento do Cirurgião-Mor, de 12 de Dezembro de 1631. Entretanto, no final do Séc. XVII, irão ser tomadas algumas providências relativas ao curso de cirurgia do HRTS: Em 1758, o cirurgião-mor Soares Brandão volta a reiterar as exigências para admissão ao curso de cirurgia, ministrado naquele hospital: Saber ler e escrever, ter conhecimentos de ortografia e gramática da língua portuguesa, entre outros requisitos (Mira, 1947). Recorde-se que, contrariamente aos tratados médicos que eram obrigatoriamente escritos em latim, as obras sobre cirurgia e anatomia eram publicadas nas línguas vernáculas. Daí o professor de anatomia P. Dufau, no HRTS, ter aconselhado o seu brilhante aluno Manuel Constâncio, por volta de 1750, a estudar a "língua francesa para se aproveitar das excelentes obras que nela havia escritas" (Lemos, 1991, Vol. II.77). Uma das saídas profissionais dos diplomados com o curso de cirurgia do HRTS era a marinha mercante, alistando-se como facultativos da tripulação, ou então o exército e a marinha de guerra, como facultativos militares. Além Pirinéus, em França, a evolução do estatuto dos cirurgiões irá ser mais célere e, portanto, mais favorável à reunificação da profissão médica (o que em Portugal só acontece tardiamente, muito depois da criação, em 1836, das Escolas Médico-Cirúrgicas de Lisboa e Porto): Por outro lado, e não obstante a feroz oposição da conservadora Faculdade de Medicina de Paris, os cirurgiões passam inclusivamente a ter assento na Société Royale de Médecine, criada em 1778.
Aliás, já meio século antes, por decreto real de 23 de Abril de 1723, era reconhecida, em França, a profissão de cirurgião. Em pleno Século das Luzes, P.-J. Desault (1738-1795) irá depois desenvolver o ensino da cirurgia à cabeceira do doente hospitalizado, podendo ser considerado o Boherhaave da cirurgia setecentista (Sournia, 1995). Não obstante os progressos da prática clínica, e continuará a persistir, até ao final do Antigo Regime, uma dicotomia entre teoria e prática no campo da medicina. A maior parte da prática médica não era, de resto, controlada pelos próprios médicos, mesmo em país como a Inglaterra e a França onde o associativisno médico estava mais desenvolvido. Num texto significativo, L' Anarchie médicinale, publicado por um médico de Lyon, em 1772, pode ler-se: "La plus grande branche de la médecine pratique est entre les mains de gens nés hors du sein de l'art; les femmelettes, les dames de miséricorde, les charlatans, les mages, les rhabilleurs, les hospitalières, les moines, les religieuses, les droguistes, les herboristes, les chirurgiens, les apothicaires, traitent beaucoup plus de maladies, donnent beaucoup plus de remèdes que les medecins" (cit. por Foucault, 1972. 325. Itálicos nossos). Entretanto, com a revolução francesa vão operar-se algumas mudanças decisivas no ensino e na prática da medicina e da cirurgia: Em primeiro lugar, o ensino médico e cirúrgico é unificado; Em segundo lugar, o latim cede o lugar ao francês; Depois, são criadas cadeiras de prática clínica; A atribuição de diplomas passa a depender da presença efectiva dos estudantes nas aulas de anatomia e nas enfermarias; O hospital torna-se um verdadeiro local de aprendizagem; E, last but not the least, a Igreja perde a sua secular autoridade sobre o funcionamento das faculdades e dos hospitais.
Com o laicismo abre-se o caminho à inovação, à investigação e à independência científica. A pouco e pouco os ventos revolucionários acabam por chegar a toda a Europa, mesmo com um atraso de décadas, como acontecerá entre nós. Recorde-se nomeadamente o papel das Escolas Médico-Cirúrgicas de Lisboa e Porto (Mira, 1947): À margem da Universidade de Coimbra, estas escolas (e sobretudo a de Lisboa) irão dar um decisivo contributo para a unificação e afirmação da profissão médica; Delas sairá a elite médica portuguesa da segunda metade do Século XIX.
Por outro lado, em 1841 ainda continuava o lento processo de secularização da Universidade de Coimbra, com a nomeação do seu primeiro reitor não eclesiástico... |