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quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4961: Histórias de Juvenal Candeias (4): Há periquitos no Quitáfine


1. O nosso Camarada de Juvenal Candeias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3520 - Cameconde, 1971/74 – enviou-nos mais uma história das suas memórias da guerra:

Camaradas,

Para rentrée, aqui vai mais um retalho das minhas recordações de Cacine!

Seria interessante se conseguísseis juntar uma carta da região que é mencionada - Cacine, Cameconde e Cassacá.

Os especialistas sois vós, eu não sei fazer isso.

Fico-vos a dever uma cervejinha ou mesmo uma bazuca!

Anexo também duas fotos do "Desembarque da LDG “Montante” em Cacine" para acompanhar esta história:

Fotos do desembarque da LDG "Montante" em Cacine

Anexo também duas fotos do "Desembarque da LDG “Montante” em Cacine" para acompanhar esta história:

HÁ PERIQUITOS (*) NO QUITÁFINE

A região do Quitáfine, a Sul de Cacine, era considerada o santuário do PAIGC, que aí estava fortemente instalado e provido de dispositivos de segurança, que tornavam os nossos movimentos impossíveis, salvo com utilização de meios excepcionais.

Trilhos minados e sentinelas avançadas, permitiam-lhes uma tranquilidade apenas quebrada pelos obuses de 14 cm, disparados do nosso destacamento de Cameconde!

Os efectivos de que dispunham com um grupo especial de 20 lança-granadas, responsável pelas constantes flagelações a Cameconde, apoiado por um bigrupo disperso pela zona de Cassacá e Banir (onde se supunha estar o comando), eram reforçados por uma vasta população armada em auto-defesa, distribuída, entre outras, pelas tabancas de Ponta Nova, Bijine, Dameol, Cassacá, Banir, Campo, Cassebexe e Caboxanque.

O PAIGC furtava-se sistematicamente ao contacto, optando por uma estratégia defensiva de protecção às populações que controlava, privilegiando as flagelações e a colocação de engenhos explosivos!

Quem circulava a Sul de Cambaque (que distava cerca de 3 Km de Cameconde) tinha como certo algumas surpresas no trilho! Provavelmente um campo de minas e a seguir (algum humor-negro), munições de Kalash espetadas no chão formando a palavra PAIGC!

O Quitáfine permitia ainda ao PAIGC, um reabastecimento regular e seguro, processado a partir da República da Guiné, através de vários rios, em especial o Caraxe e o Camexibó!

Ao dispositivo militar juntava-se uma mata densa intransponível!

Os pára-quedistas, após uma operação no Quitáfine, só à noite conseguiram chegar a Cameconde, com grande dificuldade e orientados pelo clarão da queima de cargas de obus, em cima dos abrigos!

O grupo de Marcelino da Mata, largado de helicóptero, fez um golpe de mão a Cabonepo, a base do PAIGC mais a Norte do Quitáfine, onde estaria instalado um posto transmissor. Quando chegou, após lenta progressão através da mata… não havia lá nada… a base tinha sido abandonada momentos antes!

O Quitáfine era, efectivamente, o santuário do PAIGC, desde o início da guerra! Foi ali que se realizou, na tabanca de Cassacá – a 15 Km de Cacine e a 8 Km de Cameconde -, em meados de Fevereiro de 1964, o 1º Congresso do PAIGC, com a presença de Amílcar Cabral, Luís Cabral, Aristides Pereira e outras individualidades do Partido!

ACÇÃO PERIQUITO

A CCaç 3520 tinha chegado ao porto de Cacine, a bordo da LDG Montante, em 24 de Janeiro de 1972, para render a CCaç 2726 – companhia açoriana comandada pelo Capitão Magalhães -, o homem que retorcia as pontas do bigode com cera e a quem o tabaco nunca faltava! Dizia-se mesmo, à boca pequena, que, quando o tabaco acabava em Cacine, o PAIGC deixava, no mato, uns macitos para o Capitão! Rumor ou realidade… ninguém sabe! Ficou por provar!

Decorria ainda o período de sobreposição, que se prolongou até 22 de Fevereiro, quando foram recebidas instruções de Bissau, para ser preparada uma operação ao Quitáfine – Cabonepo e… Cassacá!

Seríamos, então, ainda bastante inexperientes, mas nunca aquilo a que alguém chamou um verdadeiro bando, embora a preparação que recebêramos para a guerra fosse bastante incipiente, com uma IAO feita no Cumeré, que pouco valor guerreiro nos acrescentara.

A formação garantida pelos oficiais e sargentos da companhia, essa sim permitia que o pessoal se apresentasse bastante bem preparado!

Os comentários e interrogações começaram a surgir entre as poucas pessoas que tinham conhecimento da operação!

Como vamos entrar no Quitáfine, com tudo minado e com sentinelas avançadas?

Qual será o grupo de combate eleito, quem serão os milícias que o acompanham?

Porque vamos intervir a nível de grupo de combate, quando estão estacionadas duas companhias em Cacine, enquadradas por capitães do quadro?

Será que com mais efectivos e um comando experiente e profissional, não poderíamos tentar um assalto frontal à base de Cassacá?

Parece que uns sentiam que a comissão estava terminada e o embarque estava à vista, enquanto outros, recém-chegados, temiam que a sua estreia no teatro de operações não fosse a mais auspiciosa… pelo que ninguém considerava ser o melhor momento para pôr em prática uma operação de grande envergadura!

Assim sendo, avançou um grupo de combate de periquitos, reforçado por alguns milícias, para um terreno totalmente hostil e com efectivos IN muito superiores!

Enfim, o moral das tropas era elevado e os madeirenses eram gente de muita coragem!...

Cassacá, 16 de Fevereiro de 1972

Exactamente no 8º Aniversário do 1º Congresso do PAIGC, exactamente no mesmo local! Se alguém o pensou… ninguém o confessou!

A lotaria contemplou o 1º Grupo de Combate do Alferes Alexandre Margarido (mais tarde Spínola viria a graduá-lo como Capitão), uma escolha certa, seria aquele que estaria melhor preparado, tanto pela sua formação em Operações Especiais, como pelas suas características pessoais!

O 1º Grupo de Combate seria apoiado por um grupo de milícias, formado pelos melhores elementos da respectiva companhia!

A operação foi preparada em detalhe, vindo mesmo um Major de Operações de Bissau que a comandaria o pessoal desde… Cacine! Haveria apoio aéreo de dois helicanhões! Sabia-se, então, que a abordagem ao Quitáfine se faria através do Rio Cacine primeiro, e do seu afluente Rio Poxiuco depois, dada a impossibilidade de o aceder por terra e a necessidade de não perder o factor surpresa!

Hora de partida… havia apenas dois sintex para transportar o pessoal ao longo dos rios! Nada de grave! Tudo se desenrasca! O restante pessoal será transportado em canoas gentílicas!

A viagem é lenta! Os sintex puxam as canoas para que se ganhe algum tempo! A organização é impecável e os meios fazem inveja aos exércitos melhor equipados!

A Armada Invencível chega, finalmente, ao ponto previsto para o desembarque! Os operacionais, depois de camuflarem os barcos, para reutilizarem no regresso, penetraram na mata, tentando chegar de surpresa à base do PAIGC, em Cassacá!

Andam, andam, andam… até que é avistado, já perto de uma tabanca, um solitário nativo armado! Um dos milícias, contra todas as instruções recebidas, faz fogo… o alarme estava dado!...

O cagaçal feito pela população da tabanca, incitando à descoberta e captura do grupo, é enorme!

Quebrara-se o efeito surpresa, o PAIGC poderia organizar-se e os efectivos com que contava na zona eram muito superiores e, naturalmente, melhor conhecedores da zona de acção!

A ocorrência é do conhecimento imediato do comando, em Cacine, que decide sobrevoar o local da operação numa avioneta Dornier 27, que após verificar a situação no terreno, ordena a retirada!

O pequeno grupo constata, porém, que a retirada não seria fácil!

Em pouco tempo a maré baixara, a armada estava atascada na bolanha, o rio era apenas um fio de água, insuficiente para garantir o reembarque e a retirada dos candidatos "a apanhar o IN pelas costas".

Um daqueles pequenos pormenores que, a falharem na hora “h”, transformam muitas operações planeadas ao detalhe em autênticos desafios de sobrevivência e desenrascanço!

O pequeno grupo encontrava-se assim entre a espada e a parede ou… pior, entre uma armada atolada na bolanha e 10 Km de terreno hostil, ocupado por largas dezenas de guerrilheiros e centenas de habitantes armados!

Que fazer então?

O alferes conferenciou com os seus graduados e com os elementos da milícia mais experientes, excelentes caçadores e determinantes neste terreno, não apenas para evitar o contacto com o inimigo, mas também para detectar e evitar as minas e armadilhas colocadas nos trilhos!

Acabaram por decidir criar uma manobra de diversão!

Iniciaram, então a progressão, como se o objectivo fosse chegar à base de Cassacá, para evitar que o inimigo descobrisse as embarcações, entretanto guardadas por uma secção e, simultaneamente, ganhar o tempo necessário para que a maré subisse e a armada pudesse navegar!

Não foi preciso caminhar muito para se pressentir uma emboscada de um grupo numeroso, mas barulhento, o que permitiu aos periquitos mergulharem na mata!

Com os dedos nos gatilhos mergulhados em absoluto silêncio - determinado pelo medo ou pelo treino? – o pequeno grupo, assistiu ao desencadear de forte tiroteio a uns 100 metros, não traindo a sua posição, facto este que constitui condição essencial para evitar um previsível desastre!

A situação, contudo, estava a tornar-se insustentável! A pouca experiência de movimentação na mata iria, certamente, acabar por denunciar as suas posições no terreno!

Entretanto o tempo decorrido permitiu, certamente, que os sintex e as canoas pudessem flutuar, pelo que não foi necessário simular mais o falso avanço para Cassacá!

Mas como chegar às embarcações sem ser detectado, com guerrilheiros e população armada em sua perseguição?

O alferes solicitou o apoio aéreo, que com umas valentes bujardas largadas cirurgicamente pelos helicanhões, criaram uma verdadeira confusão entre os guerrilheiros, permitindo aos piras, já então detectados e perseguidos de perto, chegarem às embarcações, entretanto já a flutuar!

Uma autêntica saga!

O reembarque foi um sucesso, mas o regresso iria representar uma nova aventura!

Avariou-se o motor de um dos sintex, o que obrigou à formação de um comboio naval indescritivel! À cabeça desse "comboio" seguia o único sintex com
motor que rebocava o outro sintex e ainda meia dúzia de canoas. Esta formação arrastou-se penosamente ao longo do Rio Cacine, por longas horas, com a pequena ondulação a ameaçar permanentemente o seu afundamento.

Completamente ensopados e exaustos, os homens desta operação de periquitos, tinham, no cais de Cacine, todos os restantes elementos das duas companhias à sua espera! Com tanto rebentamento e explosão, ninguém acreditava que todos ali chegassem… sem um arranhão!

Da nossa parte acabou assim, deste modo frustrante, com um indigno fogo de artifício (de apenas um tiro), a comemoração do 8º Aniversário do 1º Congresso do PAIGC em Cassacá!

À noite, com pompa e circunstância a Maria Turra (nome por que era conhecida a locutora IN da rádio oficial do PAIGC), anunciava o aniquilamento completo do grupo que tentara o assalto a Cassacá!...

Pois é… poderia mesmo ter acontecido…

Um abraço do,
Juvenal Candeias
Alf Mil da CCAÇ 3520

Nota 1: (*) Na Guiné, os periquitos ou piras, era a designação dada aos tropas recém-chegados ao território.

Nota 2: O relato desta história teve a colaboração directa do Alexandre Margarido, que ainda hoje não sabe como saiu vivo do Quitáfine, e a quem agradeço com um grande abraço.

Fotos: © Juvenal Candeias (2009). Direitos reservados.
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Notas de M.R.:

Vd. último poste da série em:

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4623: Histórias de Juvenal Candeias (3): Um Manjaco em chão Nalú



1. Terceira história de Juvenal Candeias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3520, Cameconde, 1971/74.

UM MANJACO EM CHÃO NALÚ

A estória seguinte gira à volta da Palmeira Dendê (ou dendém) e de um dos seus principais produtos: o vinho de palma.

O vinho de palma é a seiva da própria palmeira e obtêm-se com incisões transversais na árvore, a partir do topo, de forma a libertar a seiva que escorrerá para um recipiente devidamente acondicionado e preso à palmeira com cordas.

Bebido fresco, logo pela manhã, é uma bebida irrecusável. Passadas algumas horas, sujeito ao calor tórrido, fermenta e transforma-se numa bebida do diabo, capaz de fazer desprender a língua ao homem mais calado.

A exploração intensiva do vinho de palma apresenta, contudo, o inconveniente de enfraquecer a palmeira, provocando o seu envelhecimento precoce.

Da palmeira dendê é possível extrair ainda outros produtos:

Dos cachos (chabéu) extrai-se o óleo de palma, produto saboroso utilizado nos mais diversos pratos.

Das sementes - o coconote - obtém-se o óleo de coconote (ou de palmiste) e o sabão, sendo os resíduos usados como combustível.

As folhas da palmeira servem para fazer cordas, cestos e vassouras e o tronco utiliza-se na construção de casas e canoas.

A região de Cacine dispunha de enormes recursos em vinho de palma, embora a etnia Nalú, predominante na zona, efectuasse uma tímida exploração deste produto. Razão suficiente para que, esporadicamente, aparecessem membros de outras etnias que viam no vinho de palma de Cacine, uma oportunidade de negócio a explorar.

Assim surgiu um Manjaco em chão Nalú!

Etnias diferentes eram recebidas em chão Nalú, com pouca simpatia e alguma indiferença, o que não impedia que pudessem ter alguma actividade - como no caso da nossa estória - ou realizar algum comércio.

Havia mesmo comércio através da fronteira, desenvolvido pelos gilas, oriundos da Guiné Conacri, algumas vezes Nalús – o chão Nalú estendia-se para lá da fronteira – muitas vezes de etnias diferentes, que vinham negociar os seus produtos em Cacine e, – quase sempre?! – Utilizar esta actividade como pretexto para recolher informações para o PAIGC.

Mas voltemos aos Manjacos!

Os Manjacos eram os maiores especialistas na exploração da Palmeira Dendê, em todas as suas vertentes! Nesta perspectiva, o nosso manjaco iniciou a sua actividade subindo às palmeiras, mais rápido e seguro do que um macaco, permanecendo no topo apenas auxiliado por uma corda que o envolvia, a si e ao tronco da palmeira, extraindo o vinho que negociava em plena tabanca de Cacine!

O negócio progredia sem crise! Até ver!...

Em Cacine havia um PIDE – eles andavam por todo o lado – que mantinha uma má relação com o Exército e que não gozava da simpatia da população. Dispunha de um grupo especial, operacional, de nativos – os GE’s – que efectuavam operações, normalmente sem conhecimento do exército.

O líder deste grupo, um matulão vaidoso e arrogante, ter-se-à apercebido dos ganhos do manjaco e que estaria ali a oportunidade de sacar uns significativos pesos, sem grande risco!
Terá preparado cuidadosamente a acção e, quando o manjaco se encontrava em cima de uma palmeira, no mato, perto da tabanca, G3 em punho… pum! Já está! Manjaco redondo no chão de uma altura de 10 metros, pesos a mudarem de bolso e ala que se faz tarde!...

Só que… a cena tinha sido presenciada por dois nativos, que mostrando a sua indignação, mas sobretudo a antipatia que tinham para com o matulão GE, de imediato denunciaram o ocorrido à Administração Civil e ao Exército!

O GE foi ouvido, confessou, embora considerasse que não tinha cometido qualquer crime uma vez que apenas tinha morto um manjaco, foi preso e enviado para Bissau!

Depois de alguma indecisão sobre quem deveria continuar o processo concluiu-se que seria a Administração Civil – o crime tinha, efectivamente, sido cometido por um civil – com o apoio do Exército!

Foram ouvidas as testemunhas… faltava apenas a autópsia! Não havia médico em Cacine!... Ele só passava por lá de vez em quando…como iríamos resolver este problema para podermos concluir o processo com sucesso?

Foi enviada uma mensagem ao Comando, em Catió, onde havia médico, solicitando a sua presença em Cacine para realização do acto em falta!

O médico nunca mais chegava! O manjaco tinha sido enterrado provisoriamente, isto é, com uma folha de zinco a proteger o cadáver, não havia outra forma de conservar o corpo, e já lá iam dois dias!

Ao fim do terceiro dia chegou, finalmente a resposta:

- Façam a autópsia com os vossos próprios meios!

Porra! Porra! O que é isto?! Estes gajos estão malucos! Foram estas as melhores expressões! As outras… inibo-me de as referir!...

E agora?! Que vamos fazer?

Bom! Tratando-se de um processo civil cabe à Administração Civil garantir a situação! (parece-me que me vou safar desta!). Só há uma possibilidade: o enfermeiro civil!...

O enfermeiro civil – o Armando – era um nativo de cerca de 35 anos, estatura média, pele muito negra, atlético, olhar esperto, simpático, comunicativo, não tinha o curso de enfermagem nem teria sequer a 4ª classe, mas tinha aprendido bem a profissão ao longo de muitos anos de experiência! Ele tinha todas as especialidades… era parteiro, dentista, gastro, grande especialista na arte de tratar o paludismo, enfim, um verdadeiro médico de clínica geral!

Cabia agora ao Administrador de Posto, o bacalhau (magricela cabo-verdeano de quem não consigo lembrar o nome!) o trabalho de convencer o Armando a completar a sua formação com a especialidade de medicina legal!... O bacalhau desfez-se em desculpas, que era mais fácil o Armando não recusar ao exército e tal… bréu… bréu … (caraças que não me safo!).

Chamemos então o Armando! Apresentado o problema com a maior diplomacia e jeito que jamais pensei ter, foi mais fácil do que imaginei! Veio de lá, apesar da originalidade da situação, a sua simpática habitual resposta: conta comigo nosso 2º comandante!

Marcou-se então a autópsia para a manhã seguinte. O acto deveria ser testemunhado pelas autoridades civil e militar (quem teria inventado esta?), pelo que, cerca das 10H 30M lá vamos nós: o bacalhau, o Armando – completamente equipado de bata, luvas, máscara e as ferramentas necessárias – dois ajudantes nativos e este vosso humilde contador de estórias!

A operação iniciou-se com o desenterrar do morto, e logo aí as camisas saíram das calças para poderem tapar o nariz! O cheiro era horrível, pestilento, pior que suinicultura, e apenas o Armando tinha máscara!

Apesar disso o acto continuou… o Armando cortou… cortou… cortou… falou… falou… falou… numa linguagem técnica que, provavelmente, só ele perceberia!...

Finalmente ouvimos o nosso técnico de medicina legal dizer, com pompa e circunstância, o que melhor percebemos: e agora vamos suturar!

A nossa odisseia chegara, enfim, ao seu epílogo!

Pela tarde, depois de muito bem preparado, o Armando apresentou o relatório da autópsia a anexar ao processo!

Era um manuscrito delicioso, com erros naturais em indivíduo com escolaridade elementar, recheado de termos técnicos, certamente nem sempre bem aplicados e que hoje lamento não ter copiado por não ser capaz de transcrever!

Contudo, jamais esquecerei a conclusão do relatório da autópsia:

O morto, foi, efectivamente morto com um tiro, disparado de baixo para cima, tendo a bala atravessado o fígado e o baço, provocando muitas feridas esquirilosadas.

Ah grande Armando! És um dos meus heróis! Homens como tu deveriam viver eternamente!

Juvenal Candeias
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Notas de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em:

domingo, 17 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4363: Convívios (132): Pessoal da CCAÇ 3520, no dia 2 de Maio de 2009 no Funchal, Ilha da Madeira (Juvenal Candeias)

1. Mensagem de Juvenal Candeias, com data de 15 de Maio de 2009:

Olá Carlos, espero que estejas bem!

Envio-te uma pequena reportagem sobre o 35.º Encontro da nossa Companhia e algumas fotografias do acontecimento!

Que tenhas um bom fim de semana!

Um grande abraço.
Juvenal Candeias


35.º ENCONTRO DA CCAÇ 3520

A Companhia de Caçadores 3520 era uma Companhia independente, com origem no Batalhão Independente de Infantaria 19, actual Regimento de Infantaria n.º 3, do Funchal, que prestou serviço na Guiné, de Dezembro de 1971 a Março de 1974.

Denominados os “Homeopáticos de Cacine” passaram sucessivamente pelo Cumeré, Cacine/Cameconde e Quinhamel/Biombo. Um dos seus GCOMB esteve também em Guileje.

Celebram, desde sempre, o seu Encontro Anual, normalmente no Continente, donde eram oriundos os Oficiais, Sargentos e Praças Especialistas, e raras vezes na Madeira, onde pertencia a generalidade dos operacionais.

Em 2009, o 35.º Encontro ocorreu no Funchal, no passado dia 2 de Maio!

As celebrações, que, entre antigos militares e familiares, mobilizaram quase uma centena de pessoas, começaram cedo, com os habituais abraços à porta do quartel, hoje integrado em zona residencial, bem diferente dos bananais que o envolviam há 38 anos!

Seguiu-se uma visita ao Museu da Unidade, onde, naturalmente, as peças em destaque só poderiam ser… o Guião da CCAÇ 3520 e a imagem de Nossa Senhora – a "Senhora" como a tratavam os madeirenses – que nos acompanhou nos vinte e oito meses de viagem à Guiné!

Imagine-se o número de fotografias captadas!

De seguida celebrou-se uma missa em memória dos camaradas já falecidos, na vizinha Igreja do Rosário, para onde tinha sido deslocada a imagem de Nossa Senhora da CCAÇ 3520, que recebeu uma coroa, oferecida pelo camarada Pestana e benzida pelo Padre.

Da celebração constou ainda uma homenagem aos mortos em combate da Unidade, com deposição de flores e uma visita às instalações do quartel, onde verificámos as benfeitorias ali realizadas!

Finalmente dirigimo-nos para o rancho, que era hora de atacar o almoço melhorado, que o 2.º Comandante da Unidade teve a gentileza e simpatia de nos proporcionar e a bonita 1.º Sargento Vagomestre de nos preparar – como são diferentes os tempos!...

As fortes emoções continuaram! Histórias imensas! Uma mistura de riso - lágrimas pairava no ar!


O pior e o melhor!

Os ataques aos aquartelamentos com RPG7 e mísseis ou as futeboladas dominicais;

as frequentes minas nas picadas e nos trilhos ou os mergulhos no Rio Cacine;

o arroz com cavala de conserva (experimentem, é nouvelle cuisine!) ou o guisado de porco – espinho;

a evacuação dos mortos e feridos de Gadamael e Guileje ou a sorte de termos um grupo de combate na retirada de Guileje e não termos baixas…

Gente que não se via há 35 anos! O Pestana, o outro Pestana (a velhinha) o Spínola (que não é o Caco), o Santos, o Nunes, o Faria, o Canastra, o Vicente, o Viveiros, o Saturnino, o Max, o Jesus, o Fernandes, o outro Fernandes (o cozinheiro)… grandes madeirenses, grandes homens…

Falava-se dos vivos, dos mortos, dos que emigraram! Alguns vieram de propósito do estrangeiro! Do Brasil, de Inglaterra…

O Margarido, Capitão da Companhia, fez o habitual discurso à Castro – desta vez mais Raul e menos Fidel – com a eloquência e o sentimento habituais!

Outros discursaram também, era dia para todos falarem e serem ouvidos com interesse e aplauso!

A tarde já ia avançada e a festa terminou com o bolo enfeitado com o crachat da 3520 e o vinho Madeira.

As despedidas foram difíceis! Houve mesmo quem saísse sorrateiramente, sem coragem para despedidas!

Para o ano há mais… desta vez no Continente!

Alguns dos participantes

Museu do RI3 - Funchal > Estandarte da CCAÇ 3520 em primeiro plano

Bolo comemorativo do 35.º Encontro da madeirense CCAÇ 3520


2. Comentário de CV:

Aproveitando o facto de ter publicado a notícia deste Convívo e, em nome dos Editores, deixo esta pequena achega.

Esta época, coincidente com um elevado número de Convívios, causa um enorme afluxo de correspondência ao Blogue. Os camaradas, e muito bem, querem dar notícia dos Encontros das suas Unidades e enviam muitas fotografias dos eventos, muitas vezes sem o acompanhamento de qualquer texto.

Assim, vamos combinar o seguinte:

- A partir de agora só anunciaremos e publicaremos Encontros de Unidades a pedido a dos nossos Tertulianos, desde que a elas pertençam.
- Todas as notícias devrão trazer um texto contando o essencial do Encontro.
- Publicaremos no máximo 3 ou 4 fotos (devidamente legendadas) do acontecimento (como neste poste) que serão seleccionadas pelo próprio e não por nós.
- Sempre que possível mandem o emblema, crachá, brasão, etc. da Unidade para encimar a notícia.

Agradecendo a vossa compreensão, continuamos ao dispôr.

Pelos Editores
Carlos Vinhal
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4349: Convívios (129): Pessoal do BCAÇ 2884, em S. Pedro do Sul, no dia 9 de Maio de 2009 (José R. Firmino)

terça-feira, 12 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4323: Histórias de Juvenal Candeias (2): Incêndio no Rio Cacine

1. Segunda história de Juvenal Candeias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3520, Cameconde, 1971/74.


INCÊNDIO NO RIO

Desconheço estatísticas referentes a acidentes ocorridos na Guiné, durante a guerra, nem mesmo o número de mortes que terá tido essa origem. Não sei mesmo se existe esse tipo de estatísticas.

Porém, quem por lá passou, está seguro que o número de acidentes foi significativo.

Se um militar limpa a G3 em posição de fogo e coloca a ponta do cano no sovaco é provável que, na melhor das hipóteses, nos meses seguintes, apenas consiga transportar a arma no ombro do sovaco oposto…

Se um operacional está de sentinela à porta de armas, dispõe de uma mesa para jogar sueca com os amigos, encosta ao pé da mesa a FBP (Fábrica Braço de Prata – extraordinária pistola metralhadora portuguesa que mesmo em posição de tiro a tiro constitui uma verdadeira surpresa, pois nunca se sabe se de lá vem uma rajada…) e vem um cão que a deita ao chão… aí está a referida rajada, que tem, na melhor das hipóteses, o efeito de fazer saltar das cadeiras os quatro parceiros de sueca para que possam dançar uma versão improvisada do kuduro

Se um atirador de infantaria está na praia a fazer treino de tiro, dispara um dilagrama (adaptação que permite lançar longe uma granada defensiva através da espingarda G3) a uma distância de três metros, é provável que todos os camaradas mergulhem para trás das três canoas gentílicas que estão por perto… a granada, na melhor das hipóteses, não rebenta… e não rebentou mesmo!... (às vezes os defeitos de fabrico até dão jeito!).

Negligência, distracção, inconsciência da juventude, factores incontroláveis, são, entre outras, razões justificativas.

Pesca artesanal no Rio Cacine


01 JANEIRO 1973

Dia de Ano Novo! Seria um dia igual a tantos outros passados no mato! Mas não o foi!

A tarde estava quente e húmida, como era habitual nesta altura do ano, a pele mantinha-se permanentemente pegajosa e a melhor solução era estar na água ou muito perto dela!

Cacine era frequentemente visitada pela Marinha, que patrulhava o rio, permanecendo vários dias e ancorando ao largo, mesmo em frente do aquartelamento!

Eram dias que permitiam também algum convívio Exército - Marinha, com jogos de futebol em que a discussão e rivalidade Sporting - Benfica pouco tinham de comparável, tal era o entusiasmo gerado!

Os almoços, ora no exército, ora nos barcos da Marinha, ocorriam, pelo menos uma vez em cada visita!

Uma amizade forte caracterizava esta relação!

Neste 1.º de Janeiro de 1973, uma LFG (Lancha de Fiscalização Grande) - não querem que seja capaz de dizer o nome, 36 anos depois, pois não? Ainda bem!... - Ou seria uma LDG (Lancha de Desembarque Grande)? Talvez a “Montante”!... Talvez a “Bombarda”!... Seja, portanto, a LFG que terminava a missão em Cacine e voltava a Bissau!

Uma boa oportunidade para uma despedida adequada!

Coincidência das coincidências!... Nesse mesmo dia estava planeada uma patrulha fluvial, pelo que alguns voluntários prepararam o respectivo sintex.

Importa dizer que a Companhia de Caçadores 3520 estava equipada com dois sintex, barcos em fibra de vidro, com motor fora de bordo, que dispunham de dois bancos longitudinais com capacidade para não mais de 10 pessoas.

Barco preparado, entraram a bordo, para além do necessário operador de sintex, três operacionais, devidamente fardados de calção e T-shirt e óculos escuros!

Transportavam, naturalmente, material de guerra diverso, nomeadamente, duas espingardas G3 (chegava e sobrava!), um depósito de combustível de reserva (não fosse a operação prolongar-se!), uma máquina fotográfica (imprescindível numa perigosa operação de patrulhamento!), cigarros SG Filtro e um isqueiro Ronson!

O material foi distribuído, depósito de combustível no chão, restante nos bancos, já que a lotação estava longe de esgotada!

Importa, contudo, e antes de mais, dizer que o território da Guiné é bastante plano, pelo que, na maré cheia, o mar entra pelos rios, provocando a inundação das margens pantanosas, submergindo uma significativa parcela do território – cerca de 8000 Km2 dos 36.000 Km2 que constituem a superfície da Guiné.

O Rio Cacine, bastante extenso e largo, obedece a esta realidade, com fortes correntes e margens pantanosas repletas de árvores anfíbias – o tarrafo.

O rio proporciona às populações ribeirinhas o enriquecimento da sua dieta com peixe (desconheço os correspondentes em português para as denominações em dialecto local, mas destaco uma espécie de tubarão, inofensivo, que, qual golfinho, costuma acompanhar os barcos!) e marisco (ostras e camarão).

Constitui ainda uma óptima via de comunicação, num território em que as estradas, no interior, eram, praticamente inexistentes.

Foi nesta importante via de comunicação que iniciámos o nosso patrulhamento, que deveria levar-nos a um dos seus inúmeros afluentes!

Mas antes disso, havia que acompanhar, por algum tempo, a LFG, rumo a jusante, o que constituía a nossa despedida!

Com quase todo o pessoal da Marinha no convés, e depois de algumas acelerações, abandonámos a LFG, que continuou a ser acompanhada pelos tubarões, e tomámos o caminho de montante, para procurarmos o afluente, objectivo da nossa patrulha.

Na confluência dos rios, e porque os preliminares haviam consumido bastante combustível, decidiu-se transferir alguma gasolina do depósito de reserva para o depósito do motor.

Operação complicada que provocou o transbordo de combustível para o fundo do barco!

Nem todos, porém, estavam atentos ao transvase, preocupando-se mais com as fotografias!

E se ao passatempo da fotografia associarmos o vício de fumar, que nem sempre mata, mas pode provocar prejuízos colaterais, temos os ingredientes suficientes para uma grande confusão!

Foi o que aconteceu!... O fotógrafo retira um SG, dispensa a utilização do Ronson, acende o cigarro com os seus fósforos - típico do crava – e atira o fósforo aceso para o fundo do barco. O calor e a ausência de qualquer aragem, provoca o imediato incêndio da gasolina que tinha transbordado para o fundo do barco!

Homens ao mar, melhor, ao rio, verifica-se então que o operador de sintex… não sabe nadar – como é possível! – um outro, nada apenas o suficiente para não se afogar e – haja Deus! – há dois bons nadadores!

A cena imediata é trágica e caricata, com o operador de sintex a agarrar-se a quem pouco sabia nadar até que, finalmente, os bons nadadores colocam alguma ordem na questão, fazendo agarrar os maus, ao próprio barco e à corda de atracagem!

O plano seguinte passava por fazer chegar o barco ao tarrafo, onde nos agarraríamos às árvores e esperaríamos que alguém fosse em nosso socorro!

Não estava fácil! Por muito que nadássemos, a corrente não permitia a mínima deslocação!

As chamas eram cada vez maiores! A gasolina dos depósitos, deixados abertos, começara já a arder! As munições da G3, por acção do fogo, rebentavam por todo o lado!

O receio de explosão dos depósitos – provavelmente, abertos não poderiam explodir – começou a pairar!

As chamas dificultavam já mantermo-nos agarrados ao barco!

Que iria acontecer?

De repente, vindos do nada, surgem dois zebros dos fuzileiros, que nos içam em peso, lá para dentro, que as forças já não davam para entrar de outro modo!

Salvos!

As chamas tinham sido vistas do quartel e, rapidamente, os fuzileiros, que tinham, nessa altura, aquartelamento em Cacine, colocaram os barcos no rio, e foram em nosso socorro!

Desta estávamos safos! Mas como iríamos justificar tanto material danificado ao Exército? O tio Jaime – amigo com influência em Bissau – resolveria mais essa situação!

Não houve apoio psicológico! O trauma foi grande e persistiu! Ainda hoje há quem não aprecie um calmo passeio à beira-rio.
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 6 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4294: Tabanca Grande (136): Juvenal Candeias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3520, Cameconde (1972/74)

Vd. último poste da série de 7 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4299: Histórias de Juvenal Candeias (1): Pirofobia ou a mina que não rebentou por simpatia

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4299: Histórias de Juvenal Candeias (1): Pirofobia ou a mina que não rebentou por simpatia


Mina antipessoal PMD-6



Mina anticarro TM-46 

 Fotos de David Guimarães e Carlos Vinhal (editadas por Carlos Vinhal)

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 Nota de CV: 



1. Mensagem de Juvenal Candeias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3520, Cameconde, 1971/74, com data de 7 de Abril de 2009: 

 Caro Luís Graça, 

Espero que estejas bem! Não sei se ainda te lembras de mim, mas trocámos mails aqui há algum tempo, a propósito de alguém que o Nuno Rubim procurava! Na altura pediste-me para escrever alguma coisa sobre a minha experiência na Guiné! Acho que já tanta gente escreveu sobre a Guiné, com mais conhecimento do que eu, que não tive coragem!... 

Contudo, os meus filhos insistem há algum tempo, para que escreva algumas historietas, daquelas que eles sempre gostaram!... Comecei, então, a escrever, para eles... Não sei se vês algum interesse neste estilo, mas envio-te um dos textos para analisares! Se tiveres interesse, depois mando mais! Se não... não deixo de ser teu amigo! 

 Um grande abraço. Juvenal Candeias 

  PIROFOBIA 9 Março 1972 

 Cacine: derradeira povoação importante a Sul da Guiné, situada na margem esquerda do rio com o mesmo nome. Predomínio da população de etnia Nalú, convivendo com minorias Sossas e Fulas. Os Sossos, embora minoritários, tinham levado à Sossização dos Nalús, processo de aculturação que consistiu na adopção do dialecto Sosso e na conversão ao Islamismo da quase totalidade da população Nalú, que era feiticista. 

Daqui derivou a instituição do casamento por compensação e a abolição do casamento por troca. A repressão na arte Nálu, fez-se igualmente sentir, dado que o Islamismo proibia qualquer representação figurativa. À época, Mussé Camará era o único artista de arte Nalú existente em toda a Guiné e alguns dos seus maravilhosos exemplares de estatuária de madeira podiam ainda ser apreciados em Cacine, com procura elevada, mesmo do estrangeiro! 

 Cacine constituiu a base da Companhia de Caçadores 3520, um agradável aquartelamento à beira-rio, onde as casernas se distribuíam entre coqueiros, mangueiros e laranjeiras. Daqui saiu em 9 de Março de 1972, numa manhã fresca da época seca, em que, parece impensável, o frio entrava pelos ossos, um Gr Comb reforçado com uma Secção de milícias,  nativa! 

 A missão era simples, uma patrulha de rotina, ao antigo quartel de Cacoca, mesmo na fronteira com a República da Guiné-Conacri. O aquartelamento de Cacoca tinha sido desactivado há anos, dado o seu isolamento e provável ausência de interesse estratégico, mas as construções não tinham sido destruídas, não voltasse o interesse em reactivá-lo! 

 Pelas 7,30h iniciou-se a coluna auto até ao destacamento de Cameconde, donde a patrulha continuou a pé, por picadas e trilhos – a floresta era inexpugnável, salvo à força de catana, mas a uma velocidade que não ultrapassava alguns (poucos!) metros por hora! 

 O caminho foi lento, seguro e silencioso, interrompido, aqui e ali, pela algazarra dos macacos, em especial a ladração dos macacos-cão, o cantar dos periquitos e outra passarada, a rastolhada de javalis e porcos-espinho ou a corrida furtiva das gazelas! 

 Por volta do meio-dia, com o calor equatorial a fazer-se já sentir com intensidade, a segurança é montada para dar lugar ao almoço! Almoço? Que exagero! Quem pode chamar almoço ao conteúdo de uma ração de combate? Se bem me lembro… uma lata de chouriço, uma bisnaga com creme de sabor indefinido para barrar no pão, uma sobremesa constituída por gomas açucaradas e saborosas, um comprimido de café… e algo mais que a memória (oh! que tristeza, para onde foste?) já não me permite recuperar! 

 De novo a caminho, que Cacoca já não estava longe, sendo atingida por volta das 14 horas! A paisagem era desoladora! Qual farwest! Ao fundo os edifícios em completa ruína, antes deles a pista de aviação, de terra batida e completamente esburacada, o capim a crescer por todo o lado!... O tempo de observação foi curto… alguém clamou… miiiiiina! 

 A mensagem passou rápido, da frente para trás, e toda a gente parou, instalando-se em posição de defesa! Os especialistas na matéria, entre os quais o graduado dos milícias, Sarifo de seu nome, mas popularmente conhecido por “Xerife”, para quem as minas eram como ratoeiras, tal a facilidade com que as levantava, avançaram, de pica em riste, pesquisando o terreno que iam pisar! 

 O prémio era tentador! O Estado pagava 1000 pesos (o escudo da Guiné!) por mina anti-pessoal levantada, 3000 por mina anti-carro. Boa oportunidade para aumentar os parcos rendimentos! E afinal… não era apenas uma mina, havia mais, tratava-se de um campo de minas, instalado na pista de aviação, ao que consta por rumores chegados ao PAIGC de que os tugas iam reactivar o aquartelamento de Cacoca! Ai! A contra-informação a funcionar!... 

 Tratava-se, pois, de trabalho mais exigente a que, de imediato, deitámos mão!... As minas, a maioria antipessoal PMD6, foram progressivamente levantadas, mas algumas tinham surpresa, isto é, uma anticarro TM46 por baixo da antipessoal, o que, naturalmente, demorou a acção! 

 Numa destas situações, depois de levantada a antipessoal, pareceu que a anticarro estaria armadilhada, pelo que o seu levantamento provocaria o rebentamento imediato! Optou-se por não a levantar e proceder ao seu rebentamento no local! Espetou-se um pau no chão, junto à mina, no qual seria presa uma granada ofensiva, cuja cavilha seria puxada à distância, com uma corda… que ninguém tinha levado! 

 Nada estava perdido! Há sempre um mestre na arte da improvisação e alguém se lembrou que para o efeito seriam suficientes as ligaduras do cabo enfermeiro, que rapidamente chegou ao local! Presa a ligadura à cavilha da granada e escondido o mestre da improvisação atrás de um bagabaga (forte construção de terra feita por formigas), foi só puxar a ligadura e… só rebentou a granada! A mina tinha apenas o sistema de detonação danificado, pelo que se exigia uma segunda tentativa!... Não se consumou! O barulho da granada atraíra duas sentinelas avançadas do PAIGC, que foram vistas nas ruínas do quartel – atrás do quartel era a República da Guiné – o que nos obrigou a abandonar o campo de minas e a tomar posição defensiva e segura!  Tratava-se apenas de sentinelas avançadas que fugiram, não havendo qualquer contacto! 

 O caminho de regresso foi tranquilo, com alguns sorrisos irónicos em relação ao Xerife, que transportava as minas em pilha, à cabeça, como se transporta em África qualquer produto! Voltaríamos a Cacoca, mas isso é história para outra oportunidade! 

 O final foi feliz, com os milícias a aumentarem os seus rendimentos e o pessoal da companhia a beber algumas Sagres suplementares! A patrulha dava pelo nome de código PIROFOBIA! Para que conste… ninguém teve medo do fogo!

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Nota de CV:

Vd. poste de 6 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4294: Tabanca Grande (136): Juvenal Candeias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3520, Cameconde (1972/74)

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4294: Tabanca Grande (136): Juvenal Candeias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3520, Cameconde (1972/74)

Parabéns a você e bem-vindo à Tabanca

1.
Mensagem de Juvenal Candeias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3520, Cameconde, 1971/74, com data de 5 de Maio de 2009:

Caro Carlos,
Um grande abraço e que estejas bem!
Só agora te respondo, porque este fim de semana, e por mera coincidência, fui até ao Funchal, para a comemoração do 35.º Encontro da CCaç 3520!
Mais tarde tentarei escrever algo sobre as emoções vividas!

Envio-te também mais um pequeno texto, para analisares e, se assim o entenderes, poderes publicar!

Como eu já tinha dito ao Luís, os meus textos têm normalmente algumas especificações desnecessárias para os antigos combatentes, mas a realidade é que eu os escrevo, primeiro que tudo para os meus filhos e a seu pedido! Portanto, se quiseres corrigir... estás à vontade!

Quanto ao teu convite para fazer parte da Tabanca... é para mim um privilégio!

Para esse efeito seguem as fotos do artista!

Quanto ao resto aí vai!

Era Alferes Miliciano, Atirador, com recruta e especialidade em Mafra a que se seguiu Tavira durante 3 meses!

Mobilizado para a Guiné, fui formar Companhia no BII19, no Funchal, donde saí com a Companhia de Caçadores 3520 para Bissau, onde cheguei ao fim da tarde de 24 de Dezembro de 1971 (que rica noite de Natal, no Cumeré!!!)

Após a IAO no Cumeré, fomos parar a Cacine (mais o destacamento de Cameconde), onde permanecemos até final de Outubro de 1973!

Calma! Já lá vão 22 meses mas ainda não estamos de regresso!

Somos então colocados em Quinhamel, ficando cada GCOMB com um aquartelamento desta região dos arredores de Bissau!

E foram mais seis meses e meio para esta Companhia Toyota (vieram para ficar!)!

Após 28 meses e meio, regressámos em final de Março de 74, a bordo do lindo navio de cruzeiros Niassa, tendo chegado a Lisboa em 3 de Abril de 1974!

Pode-se dizer que connosco veio o 25 de Abril!

Ah! A Companhia era Independente e dava pelo nome de "Os Homeopáticos de Cacine" (O Capitão era um verdadeiro intelectual!...)!

Actualmente vivo em Lisboa, fui Bancário no Credit Lyonnais durante 25 anos e no BBVA durante 5, e estou reformado e muito feliz há quase 5 anos.

Ah! Quanto à idade, posso dizer que entro amanhã na idade do sexo - calma, passo a ser sexagenário, faço 60 anos - portanto vamos lá cantar os parabéns!

Carlos, desculpa lá a seca! Mas isto quando começa... vai por aí fora!

Um grande abraço.
Juvenal Candeias


2. Recordemos agora como o Juvenal chegou até nós:

1 - Mensagem de Juvenal Candeias, para Luís Graça em 7 de Abril passado:

Caro Luís Graça,
Espero que estejas bem!

Não sei se ainda te lembras de mim, mas trocámos mails aqui há algum tempo, a propósito de alguém que o Nuno Rubim procurava!

Na altura pediste-me para escrever alguma coisa sobre a minha experiência na Guiné!
Acho que já tanta gente escreveu sobre a Guiné, com mais conhecimento do que eu, que não tive coragem!...
Contudo, os meus filhos insistem há algum tempo, para que escreva algumas historietas, daquelas que eles sempre gostaram!...
Comecei, então, a escrever, para eles...
Não sei se vês algum interesse neste estilo, mas envio-te um dos textos para analisares!
Se tiveres interesse, depois mando mais! Se não... não deixo de ser teu amigo!

Um grande abraço.
Juvenal Candeias

2 - Nova mensagem do J. Candeias para o nosso Blogue, com data de 29 de Abril:

Caro Luís Graça,

Enviei-te há algum tempo um texto sobre a Guiné, para o teu anterior mail!
Não sei se recebeste ou se, simplesmente, não lhe viste qualquer interesse!
De qualquer modo, agradecia que me dissesses algo!

Um abraço.
Juvenal Candeias


3 - No dia 30 de Abril foi enviada esta mensagem/resposta ao Juvenal:

Caro Juvenal
Um abraço para ti e votos de boa saúde.
Estou a responder-te na qualidade de relações públicas do Blogue.
Na Caixa de Correio do Luís existe uma troca de correspondência entre ti e ele, em Maio do ano passado.

Encontrei um texto teu com data de 7 de Abril deste ano, que me passou, pois este mês a gestão da correspondência era da minha responsabilidade. Desde já as minhas desculpas.
Se te referes a ele, está referenciado e já não esquece.

Já agora, teríamos muito gosto em que fizesses parte da nossa Tabanca.
Convido-te então a enviares uma foto actual e outra do teu tempo de Guiné.
Relembra-nos o teu Posto, especialidade, Unidade a que pertenceste, data de ida para a Guiné, data de regresso e locais por onde andaste, etc.

Do foro particular, se quiseres: local de residência, data de nascimento, contactos telefónicos que podem ser do conhecimento da tertúlia ou não, tu dirás, situação profissional, etc.
Como amigos que queremos ser, devemo-nos conhecer minimamente.

Agradeço que me respondas em relação ao convite. Farei primeiro a tua apresentação à tertúlia e publicarei depois o texto de 7 de Abril.
Caso queiras continuar como simples acompanhante do Blogue, farei imediatamente a publicação do referido texto.

Um abraço para ti do camarada
Carlos Vinhal


3. Comentário de CV:

Caro Juvenal, bem-vindo à Tabanca Grande. Obrigado por teres aceitado o nosso convite para integrares a nossa Tertúlia.

Dizes ter um estilo próprio de contar as tuas histórias da Guiné. Ainda bem, porque temos muitos leitores que não são ex-combatentes e todos os pormenores, mesmo aqueles que parecem irrelevantes, são preciosos. Manda também fotos, se as tiveres por aí, mas sempre acompanhadas de legendas.

Não podíamos deixar passar esta data sem te apresentar para, ao mesmo tempo, dar-te os parabéns por mais este aniversário. A partir de hoje deixaste de ser gente para passares à sub-categoria de sexagenário.

Esperamos que resistas mais 40 anos, porque depois dos 100 morre pouca gente.

Um abraço e parabéns em nome da Tertúlia.

Carlos Vinhal
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 19 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4214: Tabanca Grande (135): Fernando Oliveira, ex-Fur Mil Rec Inf (Guiné, 1968/70)