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segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23609: (D)o outro lado do combate (68): os "Armazéns do Povo", mito ou realidade ?


Guiné ou Guiné-Conacri > Possivelmente numa base do PAIGC, no sul, na região fronteiriça ou mais provavelmente já em teritório da Guiné-Conacri > Visita de uma delegação escandinava às "áreas libertadas" > Novembro de 1970 > Transporte de sacos de arroz em viaturas soviéticas. Segundo a inteligência militar portuguesa, o PAIGC dispunha, na Guiné- Conacri, de cerca de 40 camiões russos (havia dois modelos, o Gaz e o Gil) , que faziam o transporte dos abastecimentos de Conacri até a Kandiafara e, depois de retirada de Guileje, por parte das NT, em 22 de Maio de 1973, até mesmo para lá da fronteira, utilizando o corredor de Guileje... 

O "grande celeiro do sul" abastecia de arroz as populações sob controlo do PAIGC; os excedentes eram exportados, nomeadamente para a região norte. Havia uma rede de "Armazéns do Povo" que ia de Conacri até ao interior das "áreas libertadas" (o seu número não ultrapassaria as escassas duas dezenas, desde 1964 a 1974). Essa rede, mal ou bem, funcionava e terá permitido o desenvolvimento de uma "economia de guerra"  de que muitos de nós, antigos combatentes portugueses, não fazia a mínima ideia...

Até ao fim da guerra, e pelos dados disponíveis (*), provenientes do próprio rgime, não haveria mais do que duas dezenas de "armazéns do povo" nas "áreas libertadas" (desconhece-se a sua locaização), para por volta de 1978 atingirem já um total de  de 129...


Fonte: Nordic Africa Institute (NAI)  / Foto: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a competente autorização do NAI) (As fotografias, em formato jpg,  tem numeração, esta é a nº 28, mas não trazem legenda. Legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné).


1. No livro de memórias do ex-cap inf Aurélio Manuel Trindade, ex-cmdt da 4ª CCAÇ / CCAÇ 6 (Bedanda, jul 65 / jul 67)  ("Panteras à Solta", de Manuel Andrezo, ed. autor, 2010, 339 pp), a palavra "arroz" aparece, obsessivamente, ao longo dos cerca de 70 capítulos ou histórias. 

Em Bedanda, em 1965/67, a população, maioritariamente fula, refugiada da guerra,  não cultivava arroz e passava fome, segundo o cap Cristo. O  arroz que se lá se consumia, vinha de barco,  de Bissau, ou então era o que era lavrado nas bolanhas em redor pela "população do mato" (maioritariamente balanta) controlada pelo PAIGC ou sob duplo controlo, e comprado pelos comerciantes locais às "mulheres do mato" que vinham à "povoação comercial" vender o que lhes sobrava (arroz, mandioca, mancarra, óleo)  e comprar o que lhes faltava (cana, tabaco, panos). Isto queria dizer que pelo menos no setor S3 (Bedanda), não havia "Armazéns do Povo" ou, se existiam, funcionava muito mal. Realidade ou mito,  os "armazéns do povo" foram um elemento importante da propaganda do PAIGC, nomeadamente para consumo externo. 

Em termos de segurança alimentar, e nomeadamente, no pós-guerra, no tempo do Luís Cabral, a continuação da experiência dos "armazéns do povo" terá sido mais um dos "elefantes brancos" da economia planificada. A tal ponto que acabaram por ser "privatizados" (em 1992) e hoje definitivamente extintos (segundo notícia da agência Lusa, de 1 de abfril de 2022)...

Do lado das NT ("nossas tropas"), na época, ao tempo dp governador e comandante-chefe  gen Arnaldo Schulz, a missão era (e iria continuaria  a ser no início do consulado de Spínola) "aniquilar, capturar ou, no mínimo, expulsar o IN, destruir todos os seus meios de vida e recuperar a população sob o seu controlo". O arroz, muito em especial, era destruído: era a base da alimentação da guerrilha e da população sob o seu controlo. O mesmo se passava com o gado e demais animais domésticos: às vezes salvavam-se as vacas, desde que fosse possível transportá-las para o aquartelamento mais próximo. (Spínola percebeu, tardiamente, que o terror não se combatia com o contra-terror...).

Leia-se estes excertos, retirados do livro acima citado, de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do hoje ten gen ref Aurélio Manuel Trindade):

(...) Logo os pelotões do Carvalho e do Oliveira dispersaram e se espalharam pela bolanha. Alguém tinha fósforos, fizeram-se tochas e com um rapidez incrível os homens iam de monte em monte e destruíam o arroz. A bolanha ficou em chamas. Os homens libertavam-se da tensão com que estiveram toda a noite e manhã. O arroz era a principal fonte de rendimento. Destruir o arroz era como destruir as fábricas no tempo da segunda grande guerra mundial. A companhia destruía sempre todo o arroz que encontrava na sua passagem. O capitão dizia que era mais importante destruir o arroz do que as casas. Estas podiam ser facilmente reconstruídas, mas o arroz representava o trabalho perdido de um ano e era preciso esperar pela nova colheita (...) (pág. 144) (Negritos nossos).

(...) "Muito preto e pouco branco, é tropa de Bedanda e é preciso ter cuidado. Muito branco e pouco preto é outra tropa. Outra tropa não mete tanto medo à população do mato nem aos guerrilheiros (...) (pág. 146) (Negritos nossos).

(...) O Capitão Cristo nem teve tempo de dizer mais nada. O Cordeiro e os seus homens
já iam a meio da bolanha, em direcção às LDM, com as vacas. Foi debaixo de fogo que
a tropa teve que embarcar, mas os guerrilheiros tiveram que assistir à coragem da tropa
de Bedanda que, nas suas barbas, lhes surripiou 14 vacas

A Marinha, depois de muita insistência, lá embarcou as vacas, ficando onze para a companhia de Bedanda e três para os marinheiros. Tudo negócio feito pelo Cordeiro. Iriam ter carne para alguns dias. 

A nossa vacaria ficava na área controlada pelos guerrilheiros, mas nós íamo-nos
abastecendo desta forma pouco ortodoxa, não tínhamos alternativa. Ou vacas
roubadas ou nada. Chegados à Companhia, cansados física e psicologicamente, o mais
difícil de acalmar era o capitão Cristo que dizia mal da companhia de Cufar e do
Comando do Batalhão. (...) (pág. 56).

Curiosamente, não aparece, nas 4 centenas do livro, qualquer referência aos famosos "armazéns do povo" de que o PAIGC se gabava de ter, em funcionamento,   nas "áreas libertadas",e em particular no sul do território... Se eles existiam, o cap Cristo e os seus homens da 4ª CCAÇ / CCAÇ 6 nunca os viram ou lhe prestaram a mais pequena atenção...

Vale a pena reproduzir aqui um excerto do Supintrep, nº 32, de Junho de 1971 (**), documento classificado na época como reservado, e de que nos foi facultada uma cópia,   pelo nosso amigo e camarada A. Marques Lopes, cor inf DFA, na situação de reforma. 

O documento teve ampla divulgação no blogue, sob a série " PAIGC: Instrução, táctica e logística: Supintrep, nº 32, Junho de 1971".

Na altura, e por causa de alguns melindres de alguns dos nossos camaradas,  fizemos questão de sublinhar que a divulgação deste e doutros documentos sobre a organização e o funcionamento do PAIGC era meramente informativa, não implicando, da nossa parte, qualquer juízo de valor. 

Por outro lado, tivemos o cuidado de lembrar que  não se tratava  de um documento de PAIGC, mas sim das NT,  embora utilizasse fontes escritas e orais ligadas à guerrilha contra a qual  então combatíamos. A sua origem era o próprio Com-Chefe da então província portuguesa da Guiné. Tratava-se de um subintrep distribuído aos comandos das unidades do CTIG em junho de 1971 (Supintrep: Do inglês, Supplementary Intelligence Report, ou seja, Relatório de Informação Suplementar).

No Arquivo Amílcar Cabral / Casa Comum / Fundação Mário Soares, há diversa documentação fotográfica sobre os "armazéns do povo". 


2. Subintrep nº 32, junho de 1971 > AGRICULTURA, PECUÁRIA E INSTALAÇÕES COMERCIAIS (*)

(1) Produção agrícola e pecuária nas “áreas libertadas”

Em todas as “áreas libertadas” do sul da província a produção das culturas alimentares tem registado elevado crescimento, tanto como resultado do aumento das superfícies cultiváveis com ainda em consequência de melhores cuidados atribuídos a essas culturas.

Efectivamente, apesar da redução do tempo útil de trabalho motivado pela crescente actividade das NT, muitas bolanhas têm sido aproveitadas, o que se traduz num aumento de produção de arroz em percentagens que chegam a atingir de ano para ano os 20%. 

As “áreas libertadas” do sul são mesmo já autosuficientes para satisfação das suas necessidades alimentares, sendo os excedentes da sua produção de arroz enviadas para o exterior, para distribuição a outros locais onde a produção não atinge os níveis necessários.

O mesmo não acontece no norte da província. Aqui a população, tradicionalmente mais ligada a outras culturas, não produz arroz em quantidades suficientes para se abastecer, pelo que são enviadas regularmente colunas à fronteira para transporte desse produto para o interior.

Outras culturas alimentícias, tais como mandioca, batata doce, milho e legumes, subsidiárias na ração alimentar da população, têm tido também apreciáveis aumentos de produção. O desenvolvimento da cultura de féculas e legumes abre novas perspectivas para a utilização de um sistema alimentar novo, reduzindo o uso do arroz, quer na frequência quer na proporção.

Ainda nas “áreas libertadas” do sul, nomeadamente nas regiões de Catió e Cacine, as populações têm-se dedicado ainda ao desenvolvimento das culturas frutíferas, tendo os cuidados prodigalizados no tratamento permitido a obtenção de uma abundante produção de anazes, bananas, papaias, laranjas, etc.

Igualmente se refere, dada a importância de que se reveste, a especial atenção que tem sido dada ao tratamento de gado e animais de criação.

Como factores decisivos no desenvolvimento da produção agrícola e pecuária que se verifica especialmente nas “áreas libertadas” do sul, refere-se, por um lado, a existência de agrónomos especializados na Rússia e Cuba e, por outro, o intenso trabalho político levado a efeito no seio das massas rurais, convencendo-as da importância que representa o desenvolvimento agrícola das “áreas libertadas”.

A fim de recompensar os que mais se esforçam no trabalho dos campos, o Partido institui prémios para os melhores produtores.


(2) Empresa de comércio geral (Armazéns do Povo)

Em fins de 1965 afirmava Amilcar Cabral:

“Na Guiné, em dois anos e meio de luta armada, libertámos cerca de metade do país. Nas regiões libertadas estamos a construir uma vida nova, temos várias dezenas de escolas, instalámos comércio para abastecer as populações em artigos de primeira necessidade através dos Armazéns do Povo, criámos serviços de assistência sanitária e vários outros organismos que definem o novo Estado em formação”.

O objectivo do PAIGC, ao levar a cabo estas iniciativas, foi o de criar condições que estabelecessem bases de uma sociedade nova. No que diz respeito aos Armazéns do Povo teve-se em vista a sua criação satisfazer as necessidades de abastecimento das populações, fornecendo-lhes artigos de uso corrente para seu consumo em troca de produtos agrícolas que, por sua vez, são trazidos para o exterior onde são vendidos, revertendo os lucros dessas transacções para os cofres do Partido.

Verifica-se, assim, que os Armazéns do Povo permitiram a valorização do trabalho do povo, na medida em que trouxeram uma solução ao problema da comercialização, da agricultura e artesanato, já que, como se referiu, os produtos agrícolas (arroz) e, provavelmente, os artigos de artesanato funcionam como moeda de troca.

Estes Armazéns não são contudo, em princípio, destinados a auferir lucros. Dando para já uma experiência útil na futura organização do comércio, os Armazéns do Povo têm como objectivo, na hora actual, servir como elo e ligação com as massas, representando por si só uma arma poderosa ao serviço dos interesse do povo e do Partido, não só do ponto de vista económico mas também, e especialmente, do ponto de vista político.

Através deles, na medida em que evita as transacções comerciais nos nossos estabelecimentos, o PAIGC procura o nosso "isolamento" ao mesmo tempo que garante a segurança das suas "áreas libertadas"

Dum modo sumário e face aos elementos disponíveis, é a seguinte organização e funcionamento da Empresa de Comércio Geral do PAIGC, a qual depende, para efeitos de organização do Departamento da Organização e Questões Internas e para efeitos da prestação de contas do Departamento de Economia e Finanças.

Esta tem em Conacri o órgão de abastecimento central – os Armazéns Centrais – e “antenas” em todas as “regiões libertadas” – Armazéns do Povo -, designados também por Depósitos, os quais são numerados, encontrando-se à frente deles um responsável, possuidor de conhecimentos genéricos de contabilidade.

Como se referiu, os Armazéns Centrais abastecem estes Depósitos com artigos de consumo corrente nomeadamente açúcar, sal, conservas, roupas e calçado, enviando à data da expedição dos artigos uma "factura" na qual constam discriminadas as quantidades e valor da mercadoria.

Muito embora seja utilizado o dinheiro, o mais vulgar é o sistema de permuta em que os podutos agrícolas, especialmente o arroz, ou mesmo o gado, funciona como "moeda" de troca, sendo os produtos obtidos na troca enviados aos Aramazéns Centrais com nota de remessa, local onde essa distribuição é devidamente escriturada em mapas dos quais se junta o Mapa de Distribuição de arroz.

Admite-se, para facilidade de transporte, que parte desses produtos sejam enviados directamente às bases logísticas sem passar pelos Armazéns Centrais, embora estes movimentos em mapa sejam sempre feitos nestes armazéns creditando-se às Bases que directamente receberam os produtos.

Todos estes movimentos são contabilizados, sendo feitas periodicamente inspecções tendentes a verificar a “situação” em que se encontram os depósitos.

Nestes, diariamente, é elaborado um mapa relativo às receitas diárias, no qual são escrituradas as mercadorias saídas e a entrada de produtos.

Ainda se conhece, nos movimentos dos Depósitos, um documento nota de crédito. (...)

[Seleção / revisão / fixação de texto / negritos: LG] (***)


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca > Rio Udunduma, afluente do rio Geba Estreito  > 1970 >  A  economia guineense dependia também da produção pecuária que por sua vez estava dependente da prática da transumância, prática essa que a guerra veio limitar ou inviar... 

As manadas de gado dos fulas, povo originalmente de pastores nómadas, eram um sinal exterior de riqueza e de status social do seu dono. Por essa razão, os fulas tinham tradicionalmente relutância em alienar esse património... Por morte do dono, os animais eram abatidos para alimentar o choro, uma festa que se prolongava por vários dias, dependendo da posição hierárquica do defunto na sociedade fula... 

Com a guerra, a entrada de dinheiro nas tabancas fulas fazia-se fundamentalmente por duas vias: (i) o pré dos soldados africanos e das milícias (a par do dinheiro que as lavadeiras recebiam); e (ii)  e as vendas de gado vacum aos militares portuguesas, compensando a quebra da produção da mancarra, devido à guerra... 

O porco era criado pelos povos animistas e ribeirinhos: balantas, manjacos, papéis... Havia por vezes conflitos com a população local, devido a abusos dos militares (que roubavam ou matavam vacas, porcos, cabritos ou galinhas)... Durante a Operação Lança Afiada (8 a 18 de Março de 1969), as populações sob controlo do PAIGC, no triângulo Xime-Bambadinca-Xitole, sofreram grandes perdas de gado, para além da destruição de toneladas de arroz... Muitos animais foram abatidos a tiro, nalguns casos foram, inclusive, levados até ao aquartelamento do Xitole onde foram abatidos e consumidos.

Também não há referências, no relatório da Op Lança Afiada, a "armazéns do povo" no Sector L1,  nas áreas controladas pela guerrilha. A existirem, deveriam estar muito bem escondidos ou camuflados, em zonas de floresta-galeria, de difícil observação tanto aérea como terrestre.

Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

Foto: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
__________

Notas do editor:

(*)  Vd. poste de 
15 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16390: Notas de leitura (870): "Guiné-Bissau, Reconstrução Nacional", fotografias de Michel Renaudeau, Éditions Delroisse, Paris, 1978 (Mário Beja Santos)

(...) Falando do comércio interno, são referenciados os Armazéns do Povo, assim apresentados: “Nas zonas libertadas do país foram criados em 1964 os Armazéns do Povo, entidade comercial cujo objetivo era manter o abastecimento dos bens essenciais nas referidas zonas. Ao mesmo tempo, os Armazéns do Povo absorviam parte da produção gerada pelo setor agrícola. Após a libertação, os Armazéns do Povo, passaram a constituir a principal empresa do país, estendendo a sua atividade a todo o território nacional. De 20 postos comerciais em 1974, os Armazéns do Povo passaram atualmente a 129”. (...)

terça-feira, 3 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23224: A nossa guerra em números (16): A "força africana" em 1972: mais de 20 mil homens em armas, segundo o enviado especial do "Diário de Lisboa" ao CTIG



Guiné > s/l [Bambadinca ?] > s/d [c. 1971/73] > A Força Africana... O major inf Carlos Fabião, na altura (1971/73),  comandante do Comando Geral de Milícias, e o gen António Spínola, passando revista a uma formatura de novos milícias.(*)

In: Afonso, A., e Matos Gomes, C. - Guerra colonial: Angola,  Guiné, Moçambique. Lisboa: Diário de Notícias, s/d. , pp. 332 e 335. Autores das fotos: desconhecidos. (Reproduzidas com a devida vénia)


1. Estes dados  foram  retirados do trabalho do jornalista do "Diário de Lisboa", Avelino Rodrigues,  enviado em julho de 1972, à Guiné, por convite (e com garantias) de Spínola . 

Merecem o devido destaque, salvaguardadas as necessárias reservas por não se tratar de uma fonte independente... Nomeadamente, os que respeitam aos efetivos do PAIGC  e à população sob o seu controlo. Não é por acaso que o jornalista deu ao conjunto desses quatro artigos de reportagem o título de "Guiné, uma crónica imperfeita" (**)


TERRITÓRIO:

(i)  "A superfície cresce e diminui todos os dias, consoante as marés, situando-se numa média de 32 mil quilómetros quadrados, com 193 quilómetros na extensão Norte-Sul e 330 de Leste a Oeste".

(ii) "A estas condições geográficas tão difíceis para um exército tradicional, vem juntar-se uma fronteira de 750 quilómetros, completamente aberta tanto no aspecto físico como no povoamento".


POPULAÇÃO:

(iii) "Bissau afirma controlar 487 448 habitantes (foram os que se deixaram recensear em 1970), mantendo-se outros 27 174 em 'zonas de duplo controle' ".

(iv) "No Senegal vivem 60 000 refugiados, e na Guiné 20 000, segundo informa o Comando-Chefe, apoiando-se em  dados da Comissão de Refugiados da ONU".

(v) "A ser assim, 89,5 por cento dos guinéus viveriam no interior do TO (teatro de operações) e 82 por cento do total estariam sob controle português."

(vi) "Numa população que em 1970 era de 594 622 habitantes, os balantas seriam em 1963 perto de 200 mil, isto é, cerca de metade dos guinéus [ erro de cálculo do jornalista, é um  terço e não metade] . Uma maioria trabalhadora e explorada que forneceu à guerrilha os seus primeiros combatentes. Um povo dividido, combatendo, com o PAIGC os fulas, dominadores e contra o PAIGC, ao lado de outros fulas da Força Africana".


PAIGC:

(vii) "Os dois mil combatentes que (...) actuam dentro das fronteiras, manobram a partir das 'zonas sob duplo controle' (...), situadas ao longo do corredor florestal e particularmente nas proximidades de Bissorã / Mansabá / Canjambari, confluência do Geba/Corubal, e sobretudo na zona ao sul do rio Buba, à volta de Catió".

(viii) "Outra zona 'quente' situa-se perto do Cacheu, junto ao rio do mesmo nome, alastrando pelas florestas  ao norte do Bachile e do Pelundo".

(ix)  "Calculam-.se em 7 000 os combatentes do PAIGC actuando a partir de 25 bases da fronteira senegalesa e de 8 da República da Guiné, incluindo aqueles que se encontram dentro do TO".

(x) "Militarmente,  as forças do PAIGC estão estruturas em 'corpos de exército' integrados por um comandante, um comissário político, dois chefes de destacamento e três unidades: um grupo de bazookas, ou lança granadas foguete; uma bateria de artilharia, ou de armas pesadas de infantaria, como morteiros ou canhões sem recuo; e quatro bi-grupos. Cada bi-grupo é constituído por dois agrupamentos de trinta e cinco homens (agora reduzidos a vinte e cinco)".


FORÇA AFRICANA:

(xi) "Compõem a  Força Africana perto de 5 mil soldados regulares, cerca de 6 mil milícias e mais de 6 mil auto-defesas, além de outros 5 mil homens enquadrados na guarnição normal".

(xii) "Os regulares negros estão enquadrados em companhias de comandos africanos (uma outra está a ser constituída) com oficiais nativos, destacamentos de fuzileiros (e mais um em constituição) com alguns quadros negros, e ainda doze companhias de caçadores instaladas no 'chão' das suas etnias e igualmente comandadas por alguns graduados nativos. São a grande tropa de elite da guerra da Guiné, capazes de aguentar uma operação  de quatro a cinco dias nas zonas mais 'quentes' do mato, e sempre com um arrojo e ferocidade de fazer tremer a selva",

(xiii) "O corpo de milícias (nove semanas de instrução) é constituído por elementos novos com farda e soldo. São uma espécie de militares em part-time, com a missão fundamental de defesa das populações que habitualmente protegem durante a noite e acompanham nos trabalhos do campo. São todos voluntários, mas só em circunstâncias especiais participam em operações".

(xiv) "As auto-defesas são constituídas por civis nativos, sem instrução militar". (***)





Guiné > s/l > PAIGC > Novembro de 1970 > Um bigrupo (em geral, constituído por 30/40 elementos). Na foto contam-se 27 guerrilheiros. Repare-se que na sua generalidade  usam sandálias de plástico (só um usa botas de lona) e há uma grande indisciplina no vestuário. Metade não usa boina ou barrete. Quanto ao armamento, vemos dois apontadores de RPG, e o resto empunha armas automáticas (Kalash, PPSH, Degtyarev...)

Imagem do fotógrafo norueguês Knut Andreasson (com a devida autorização do Nordic Africa Institute, Upsala, Suécia). A fotografia não traz legenda. E  alegadamente. terá sido tirada   em "região libertada" (sic).

Fonte: Nordic Africa Institute (NAI) / Foto: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a competente autorização do NAI)  (As fotografias tem numeração, mas não trazem legenda. 

Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 24 de fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9526: As novas milícias de Spínola & Fabião (1): excerto do depoimento, de 2002, do Cor Inf Carlos Fabião (1930-2006), no âmbito dos Estudos Gerais da Arrábida (Arquivo de História Social, ICS/UL - Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa)

(**) Vd. poste de 2 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23222: 18º aniversário do nosso blogue (10): O enviado especial do "Diário de Lisboa", Avelino Rodrigues, em 1972, no CTIG: uma "crónica imperfeita" em quatro artigos - Parte III: 30 de agosto de 1972: uma formidável máquina de guerra africana contra o PAIGC

(***) Último poste da série > 15 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23079: A nossa guerra em números (15): Segundo o investigador Ricardo Ferraz, do Gabinete de Estratégia e Estudos do Ministério da Economia, a guerra colonial (1961/74) custou ao Estado Português, a preços de hoje, e na moeda atual, cerca de 21,8 mil milhões de euros

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19471: (D)o outro lado do combate (43): 'Puxão de orelhas' de Amílcar Cabral a Rui Djassi (Faincam) (1937-1964), em carta enviada em janeiro de 1964, sinal precursor da sua substituição na Zona 8, região de Quínara (Jorge Araújo)


Citação: (1964), "I Congresso do PAIGC em Cassacá", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_85097 (2019-1-25) - Grupo de dirigentes por ocasião do I Congresso: Lay Sek, Constantino Teixeira, Osvaldo Vieira, Domingos Ramos, Amílcar Cabral e 'Nino' Vieira (com a devida vénia).




Jorge Alves Araújo, ex-fur mil op esp / Ranger, CART 3494 
(Xime-Mansambo, 1972/1974); coeditor do blogue



GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE > 
"PUXÃO DE ORELHAS" DE AMÍLCAR CABRAL A RUI DJASSI (FAINCAM), EM CARTA ENVIADA EM JANEIRO'1964, ERA O SINAL PRECURSOR DA SUA SUBSTITUIÇÃO NA "ZONA 8": ENTRE A DESPROMOÇÃO E A MORTE -


1. INTRODUÇÃO

Na sequência das narrativas apresentadas no fórum nos P19433 e P19437 (*), onde se colocava a questão «o que terá acontecido ao Rui Djassi (Faincam)?» entre finais de 1963 e início de 1964, algumas hipóteses foram avançadas tendo por base a literatura consultada, mas nenhuma delas, digo eu, dando respostas fidedignas e esclarecedoras. (**)

Com efeito, na busca de outros pressupostos ou cenários complementares, seguimos em frente no sentido de encontrar novos elementos que nos ajudem a compreender melhor esta problemática, considerada ainda como incógnita.

Eis os elementos que podem contribuir para uma nova leitura sobre a questão de partida.


2.  CARTA DE AMÍLCAR CABRAL ENVIADA A RUI DJASSI (FAINCAM) NO INÍCIO DE JANEIRO'1964


Tendo por base uma leitura hermenêutica, consideramos o conteúdo da carta acima referida como um valente "puxão de orelhas" a Rui Djassi, expresso num duplo desagrado: o primeiro por insuficiente comunicação, o segundo por um comportamento pouco cuidado, rigoroso e muito permissivo na "zona 8", como principal responsável operacional na região, do qual originou um bloqueio da fronteira Sul por parte das NT, inviabilizando o cumprimento da estratégia logística no «Corredor de Guileje».

Da importância deste contexto nos dá conta Leopoldo Amado, no seu livro "Guineidade & Africanidade" (2013), p. 263, onde se refere a gigantesca e complexa rede logística (sem dúvida, a maior do PAIGC) que "estendendo-se desde Conacri e perpassando por outras cidades da República da Guiné como Boké, Kandiafara, Simbeli e Tarsaia, prolongava-se depois pela então Guiné Portuguesa adentro pelo Corredor de Guileje, a partir do qual, sintomaticamente, se despachavam o maior volume (dir-se-ia mesmo a esmagadora maioria) do armamento e munições e ainda os víveres imprescindíveis ao esforço de guerra". [Vidé, também, P2499: Guileje - Simpósio Internacional (1 a 7 de Março de 2008).(***)

Dito isto, o conteúdo da carta de Amílcar Cabral, que seguidamente se partilha no fórum, era já um sinal precursor do que estava para acontecer ao Rui Djassi, ou seja, o seu afastamento da liderança da "zona 8" e a sua substituição por outro quadro do PAIGC, no caso Guerra Mendes.

Rui Djassi já não marcaria a sua presença em Cassacá, no I Congresso [Fev' 1964], justificando Amílcar Cabral a sua ausência "pelo seu desaparecimento, cujo paradeiro ninguém conhece, embora seja certo que está vivo".



PAIGC (Nov 1970) - Duas imagem obtidas, algures no Sul, pelo fotógrafo norueguês Knut Andreasson.  

 Recorde-se que este fotógrafo norueguês acompanhou uma delegação sueca (tendo à frente a antiga líder do parlamento sueco, Birgitta Dahl) na visita às regiões libertadas da Guiné-Bissau, em Novembro de 1970.

Segundo o sítio da Nordic Africa Institute (uma agência dos países nórdicos, com sede na Suécia, em Upsala ), esta visita deu-lhe oportunidade de falar com Amílcar Cabral, em pleno palco da luta pela independência, e ficar a conhecer melhor o PAIGC, a guerrilha e a sua implantação no terreno.

Andreasson e Dahl publicaram mais tarde um livro em sueco sobre essa viagem. Andreasson, por sua vez, realizou uma exposição fotográfica e publicou um álbum fotográfica sobre esta visita.

A maior parte das fotos deste período foram doadas ao Nordic Africa Institute pela viúva de Andreasson. A exposição foi , por sua vez, doada à Fundação Amílcar Cabral, com sede na Praia, Cabo Verde, pelo Nordic Africa Institute, sendo apresentada por Birgitta Dahl, a antiga líder do Parlamento Sueco, por ocasião das celebrações do 80º aniversário de Amílcar Cabral, em Setembro de 2004.

Fonte: Nordic Africa Institute (NAI) / Fotos: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a autorização do NAI) (As fotografias tem numeração, mas não trazem legenda) (***)


2.1 - Transcrição da carta de Amílcar Cabral:


Recebi as tuas cartas, datadas de 26 e de 30 de Dezembro [1963].

No começo de um novo ano, aproveito para te dirigir saudações fraternais em nome de todos os camaradas do Secretariado e em meu nome pessoal. Que 1964 seja o ano da libertação total do nosso povo e que tu avances sempre no caminho do serviço do nosso grande Partido pela liberdade e pelo progresso real do nosso povo. Saudações para a tua família e para todos os camaradas.

Acho que o que aconteceu na fronteira (emboscada do inimigo e fecho da passagem por Simbeli) não foi causada pela estadia dos camaradas na fronteira. A razão principal é a falta de controlo real da zona de fronteira [Sul] pelos nossos combatentes, assim como a presença sempre para fora do inimigo em Quebo. Se o inimigo não pudesse sair de Quebo sem correr grandes riscos, se nós estivéssemos sempre a chateá-los em Quebo, não teria coragem de vir pregar-nos uma grande partida. Não achas?

Espero no entanto que estás a fazer tudo para acabar com essa situação. Não há outro caminho perto, conduzindo à base?

Como compreendes, não é possível indicar com antecedência dias fixos para transporte de material, porque isso não depende só de nós. Temos de estar dependentes das autoridades, do seu tempo disponível, da sua boa vontade, etc.. O que é indispensável é controlares sempre os caminhos para não deixar o inimigo a possibilidade de nos pregar partidas. Para evitar que o inimigo reforce as suas posições tens de chateá-los por todos os lados, não o deixar em paz, como estar a fazer. Tens de fazer do tempo seco o período da intensificação das nossas acções.

Foi com prazer que recebi as notícias da luta. Quero felicitar todos os camaradas responsáveis e combatentes de fora pela actividade que estão a fazer. Espero que vamos intensificar cada vez mais a nossa acção, mas sem nos deixarmos levar pelo inimigo, quer dizer, só vamos batermo-nos com ele quando tens a certeza de o vencer, de o destruir.

Espero também que dês notícias mais detalhadas, porque senão é difícil aproveitá-las para comunicados. Dizes por exemplo: "no mesmo dia os camaradas atacaram Fulacunda no momento de içar a bandeira". Boa notícia, mas abateram o quê exactamente, de que maneira, com que resultados? Qual era o objectivo do ataque? Conseguiu-se esse objectivo? Etc. Tu sabes bem que deves dar assim as informações, para eu poder avaliar e poder servir-me delas.

Lamento muito a morte do nosso camarada Malan N'djai. Peço que apresentes sentimentos à família dele. Não deixes de mandar a ficha correspondente, com todos os dados.

No que respeita ao material destinado à tua zona, ele tem seguido e já não há nenhum neste momento. Estamos a fazer esforços para pôr no país todo o material previsto no plano que foi há tempos. Claro que isso não é indispensável para a marcha da nossa luta, mas é conveniente para a nova fase que estabelecemos.

Penso no entanto que muito podem fazer – e estamos a fazer – com o material de que dispõe hoje os nossos combatentes nas zonas de luta. Temos agora de pensar em desenvolver a nossa acção, sem esperar por mais material.

Ficamos todos muito contentes com a missão que vocês fazem. Foi uma grande vitória, camarada. Vamos continuar nesse caminho, como já deves saber.

Acho que o caso entre o José Sanha e o Caetano, que não percebi bem, será brevemente resolvido pela Direcção do Partido, a bem do progresso da nossa luta. Espero que tenhas a paciência de esperar um pouco, sem criar problemas graves e que ninguém poderá aceitar nem compreender, no momento em que tens grandes responsabilidades.

Dá saudações ao povo da zona, a todos os responsáveis e a todos os militantes. Tenho grande saudade de todos. Para ti, o melhor abraço do camarada Amílcar Cabral.

Seguem medicamentos pelo Dino, que esteve doente.

 .
2.2 - Segue-se a reprodução da carta manuscrita por Amílcar Cabral.






Citação: (1964), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_35428 (2019-1-25)

Fonte: Casa Comum, Fundação Mário Soares.
Pasta: 07056.008.007.
Assunto: Emboscada do inimigo que teve como consequência o fecho da passagem por Simbeli. Falta de controlo real na zona de fronteira, presença do inimigo no Quebo. Instruções para enfraquecer o inimigo. Material militar e medicamentos para a zona.
Remetente: Amílcar Cabral.
Destinatário Djassi (Faincam) [Rui Djassi].
Data: 1964 [Jan].
Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Manuscritos de Amílcar Cabral. Início de 1964. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral.



2.3 – Em 30 de Maio de 1964 [três meses e meio após o I Congresso] nova referência a Rui Djassi em carta remetida por Amílcar Cabral a Osvaldo Vieira



Citação: (1964), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_35499 (2019-1-25)

Fonte: Casa Comum, Fundação Mário Soares.
Pasta: 04606.045.073.
Assunto: Acusa recepção do relatório sobre as missões em andamento, notícias do Rui Djassi, aumento de base de guerrilhas, pede pormenores sobre a tentativa de complot feito por alguns camaradas.
Remetente: Amílcar Cabral.
Destinatário: Osvaldo [Vieira],
Data: Sábado, 30 de Maio de 1964.
Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Cartas e textos dactilografados enviados por Amílcar Cabral 1960-1967.
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral.
Tipo Documental: Correspondência.

Transcrição:

Conacri, 30 de Maio de 1964

Meu caro Osvaldo,

Não te escrevi há dias pelo Yaye, porque estava ocupadíssimo, mas espero que esta carta te chegue às mãos por ela e antes dele. O Yaye te contará a história dos estudantes que fizemos voltar para traz.

Vi com atenção o vosso relatório sobre as missões em andamento, e não deixo de lamentar o que tem acontecido com o Rui Djassi. Aliás até hoje ninguém parece saber onde pára o Rui, e tudo está a atrasar-se, a prejudicar-se por causa disso. […]


Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.

25JAN2019.
_____________

(***) Vd. poste de  2 de Fevereiro de 2008 Guiné 63/74 - P2499: Guiledje: Simpósio Internacional (1 a 7 de Março de 2008) (13): Enquadramento histórico (I): a importância estratégica de Guileje

sábado, 2 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2499: Guiledje: Simpósio Internacional (1 a 7 de Março de 2008) (13): Enquadramento histórico (I): a importância estratégica de Guileje








Guiné-Bissau > PAIGC > Novembro de 1970 > Belíssimas imagens obtidas algures, no sul, em região libertada, pelo fotógrafo norueguês Knut Andreasson.

Recorde-se que o fotógrafo norueguês acompanhou uma delegação sueca (tendo à frente a antiga líder do parlamento sueco, Birgitta Dahl) na visita às regiões libertadas da Guiné-Bissau, em Novembro de 1970.

Segundo o sítio da Nordic Africa Institute (uma agência dos países nórdicos, com sede na Suécia, em Upsala ), esta visita deu-lhe oportunidade de falar com Amílcar Cabral, em pleno palco da luta pela independência, e ficar a conhecer melhor o PAIGC, a guerrilha e a sua implantação no terreno.

Andreasson e Dahl publicaram mais tarde um livro em sueco sobre essa viagem. Andreasson, por sua vez, realizou uma exposição fotográfica e publicou um álbum fotográfica sobre esta visita.

A maior parte das fotos deste período foram doadas ao Nordic Africa Institute pela viúva de Andreasson. A exposição foi , por sua vez, doada à Fundação Amílcar Cabral pelo Nordic Africa Institute, sendo apresentada por Birgitta Dahl, a antiga líder do Parlamento Sueco, por ocasião das celebrações do 80º aniversário de Amílcar Cabral, em Setembro de 2004.

Fonte: Nordic Africa Institute (NAI) / Fotos: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a autorização do NAI) (As fotografias tem numeração, mas não trazem legenda) (*)


I Parte da brochura, publicada em pdf, pela organização do Simpósio Internacional sobre Guiledje, e que tem como título Guiledje: Na Rota da Independência da Guiné-Bissau. É um notável documento, objectivo, sintético, suportado na investigação historiográfica, e que nos ajuda a perceber melhor a importância estratégica que teve Guileje (e o corredor de Guileje) na estratégia do PAIGC e do seu líder histórico, Amílcar Cabral, nomeadamente a partir de 1965.

É um documento, feito pelos guineenses que hoje podem, com orgulho, apropriar-se da sua própria história, construi-la e escrevê-la. O documento original, em pdf, de 20 páginas é ilustrada com fotografias cedidas por ex-militares portugueses que fizeram parte de unidades de quadrícula estacionadas em Guiledje, desde 1964 a 1973, incluindo vários camaradas da nossa tertúlia. (Fotografias essas que não vamos aqui reproduzir, uma boa parte delas já sendo conhecidas do nosso blogue. Vd. o documento original).

É também um momento bonito, que só vem confirmar a sabedoria de Amílcar Cabral que nunca hostilizou o povo português e os portugueses, nunca os confundindo com o regime político de António Salazar / Marcelo Caetano... Amílcar Cabral gostaria certamente de ver, se fosse vivo, os inimigos de ontem transformados em amigos de hoje...

Como, de resto, temos escrito no nosso blogue, o Simpósio Internacional de Guiledje não celebra a derrota de ninguém mas sim a vitória de dois povos que continuam ligados por laços históricos, afectivos, culturais e linguísticos... Guiledje (mantendo a grafia que é cara aos nossos amigos guineenses, mesmo contra os puristas da língua portuguesa para quem não existe o conjunto consonântico dj...) representa o triunfo da vida sobre a morte, a vitória da paz sobre a guerra, a primazia da memória (viva) sobre o esquecimento e o branqueamento da história, a afirmação da esperança no futuro, o reforço da amizade e da solidariedade entre os nossos dois povos...

Guiledje - Simpósio Internacional - Guiledje: Na Rota da Independência da Guiné-Bissau. Documento em pdf. 2007. 20 pp. (Com a devida vénia...)

Revisão e fixação de texto, para edição neste blogue: L.G.


Parte I >


(i) A estruturação das forças militares do PAIGC e as suas primeiras repercussões

A luta armada de libertação nacional foi iniciada no Sul em Janeiro de 1963. No final do primeiro semestre de 1964, a situação militar era já de grande optimismo para o PAIGC, cuja guerrilha não parava de alastrar para extensas partes do território.

Em cumprimento das resoluções do seu I Congresso, o PAIGC, criou em Fevereiro de 1964 o Exército Popular e a Milícia Popular. A guerrilha foi fortemente reestruturada e transformou-se mais tarde nas Forças Armadas Revolucionárias do Povo, as FARP. Foi constituído um órgão de cúpula – o Conselho de Guerra – que funcionaria como estado-maior e era dirigido pelo Secretário-Geral, Amílcar Cabral.

A criação da Milícia Popular, à qual foram confiadas tarefas de autodefesa bem como a gestão de questões de natureza político-administrativa nas regiões libertadas, permitiu a libertação de parte dos efectivos guerrilheiros. Conferiu-se assim maior poder de iniciativa e mobilidade às unidades de combate do PAIGC. Tal facto criou desde cedo imensos problemas ao Exército português.

Logo no primeiro ano de conflito, a chefia militar máxima do Exército português na então Província da Guiné foi substituída quatro vezes, apenas se registando uma estabilização em Maio da 1964, altura em que chega à Guiné o general Arnaldo Shultz, antigo Ministro do Interior português de 1959 a 1961. Após ter tomado o pulso da situação e visando dar maior operacionalidade e eficácia às tropas portuguesas perante a combatividade dos guerrilheiros do PAIGC, decidiu unificar o comando político com o comando militar da Guiné.


(ii) Guiledje e a logística de guerra do PAIGC

Antes da existência do corredor de Guiledje, a infiltração e o transporte de armamento e víveres do PAIGC eram feitos pelo trajecto Canafá-Quitafine-Cassumba-Canamina e Cubucaré. Este trajecto foi posteriormente abandonado em virtude da apertada vigilância que o Exército português passou a praticar, sobretudo após a batalha de Como (1), ao longo dos numerosos cursos de água. O PAIGC optou doravante por utilizar uma via paralela que se estendia entre Balana, Gandembel e Medjo.

Também o Exército português construiu, em Guiledje, um dos aquartelamentos mais bem fortificados nos finais da guerra. Os objectivos eram não só a de se opor ao trânsito de armamento e víveres vitais para o esforço de guerra do PAIGC, como também o da criação de uma reserva de socorro permanente e geograficamente bem colocada entre os quartéis e destacamentos do Exército português. Estes, estabelecidos ao longo da fronteira Sul, estavam expostos às investidas e ataques constantes da guerrilha.

Com o abandono do eixo Canafá-Quitafine-Cassumba-Canamina e Cubucaré, a única alternativa que surgiu para o PAIGC foi a da via terrestre até a fronteira, operando de Gandembel, Botche Cul, Botche Bunhe, Botche Djaté, Untchulbá,Tchim-Tchim Dari, Ndaba, Balana Balanta, Salancaur e Porto de Santa Clara. Os populares armazenavam armamento e munições que eram posteriormente encaminhados pelos serviços de logística do PAIGC para os diferentes destinos.

Em 1965, o PAIGC abre as hostilidades na sua Frente Leste. Mantém, contudo, o controlo sobre os seus mais importantes santuários interiores: as bases-barraca das matas do Cantanhez a Sul, e do Oio-Morés, a Norte. A partir daqui, e em ligação com bases nos países vizinhos, o PAIGC consolida posições em faixas cada vez mais vastas. Grande parte da região Sul, sobretudo em Cantanhez, passa para as suas mãos, constituindo as chamadas regiões libertadas do PAIGC. Todas as tentativas levadas a cabo pelas forças portuguesas para as recuperar saldaram-se por derrotas, que chegam mesmo, por vezes, a constituir verdadeiros desastres militares. Assim sucede por duas vezes em Cantanhez (2).

O Exército português pôs em marcha vários planos para se assenhorear do corredor de Guiledje com objectivos evidentes de interditar por um lado o trânsito de armamento e víveres e, por outro, de destruir um importante centro de recrutamento da guerrilha. O PAIGC possuía na vasta e muito rica área do Sul uma importante fonte de abastecimento essencialmente em gado, arroz e mandioca (3).

A introdução de armamento na Frente Norte era difícil senão impossível, em virtude da proibição pelo Governo senegalês do trânsito de armamento do PAIGC através do seu território. Esta situação só começou a alterar-se timidamente após 1966, altura em que foi rubricado o primeiro acordo de cooperação entre o PAIGC e o Governo do Senegal.

(iii) O Corredor de Guiledje e a evolução da guerra

O Corredor de Guiledje (também chamado Caminho do Povo e Caminho da Liberdade) (4) estende-se de Kandjafra, Simbel e Tarsaiá (Guiné-Conakry) a Gandembel, Balana, Salancaur e Unal (Guiné-Bissau). Não obstante os altos custos em vidas humanas e perdas materiais que acarretou, o Corredor acabou por funcionar para o PAIGC como o maior e mais importante corredor de infiltração e de abastecimento ao longo da guerra.

A sua função estratégica potenciou-se consideravelmente após o assalto ao quartel de Guiledje em Maio de 1973 até sensivelmente depois do 25 de Abril, quando se instituíram as tréguas entre os contendores. Camiões de fabrico russo do PAIGC (“Gaz” e “Gil”) passaram a transpor a fronteira desde Kandjafra, passando por Gandembel e parte importante do Carreiro de Guiledje no sentido Gandembel-Salancaur e Porto de Santa Clara.

António da Graça Abreu testemunha: “ (…) Com o abandono do aquartelamentode Guiledje em meados do ano passado, foi-lhes possível abrir uma estrada desde a Guiné-Conakry até às florestas situadas entre Bedanda e Iemberém. Vêm com as viaturas até bem dentro do território carregados com toneladas de material de guerra (…) (5)”.

A partir de 1965, a situação favorável ocasionada pelo corredor de Guiledje ao PAIGC passou a ser evidente. Para além de ter permitido às FARP controlar praticamente todo o Sul da Guiné, o corredor permitiu ainda estender esse controlo para a zona Centro-Oeste do território. Em reacção, o Exército português desencadeou uma série de operações militares como as de Cantanhez, Como e Quintafine. Não obstante a sua grande envergadura, essas operações não deram resultados palpáveis. O Governador Schultz optou então por colocar nessas áreas algumas forças que as pudessem (re)ocupar e outras para reagir às investidas dos guerrilheiros do PAIGC.

O PAIGC, profundamente consciente da importância estratégica do Corredor de Guiledje ali colocou uma força considerável capaz de dissuadir o Exército português:

– o 2º Corpo de Exército que irradiava normalmente a partir da região de Salancaur-Unal, com a missão de garantir a liberdade de utilização do importante nó de comunicações e o complexo logístico do Unal;

– o 3º Corpo de Exército do PAIGC que, operando a partir da região de Kandjafra, na Guiné-Conakry, tinha a missão de atacar e isolar o Exército português no extremo sul fronteiriço e assim garantir a utilização do corredor de Guiledje.

Destaca-se, nesse particular o grupo de artilharia comandado pelo lendário Tué Nangamna (6) que, sob as ordens de Amílcar Cabral, logrou destruir e isolar o destacamento de Gandembel e Balanacinho, cujo objectivo era retirar ao PAIGC a função vital que o Caminho do Povo assumia no seu esforço de guerra (7).

O Exército português tinha na altura numerosos destacamentos militares junto à fronteira com a Guiné-Conakry o que o obrigava a desmedidos esforços de reabastecimentos de munições e alimentos por meio de colunas militares. Estas envolviam normalmente grande número de viaturas, algumas delas em estado avançado de degradação, para além de numerosas forças terrestres e aéreas para a sua protecção.

No geral, as colunas militares portuguesas possuíam um arsenal bélico de qualidade inferior ao dos guerrilheiros. A guerra começou então a desequilibrar-se claramente a favor do PAIGC.

O general Schulz reconheceu: “ (…) quando cheguei à Guiné a situação era complicada, o PAIGC atacava em todas as frentes a partir do Senegal e da Guiné-Conakry e de bases onde se refugiavam no interior da Província – as matas do Sul (Cassacá, Como....) e as de Oio, Gã-turé, Cantanhez... –, chegando ao ponto de flagelar o quartel de Brá, situado entre Bissau e o aeroporto de Bissalanca, ou seja, nas barbas do poder mmilitar português, e de noite ouviam-se ataques a outros destacamentos, por vezes com alguma violência e durante largos períodos de tempo (… )” (8).

É consensual que a situação nunca mais parou de se agravar desfavoravelmente para o Exército português, exceptuando uma ou outra fase conjuntural, em que este último logrou estabelecer um tangencial e frágil equilíbrio militar. A tentativa de reocupar extensas áreas sob o controlo do PAIGC, não produziu os efeitos desejados.

O Exército português na Guiné teve que recorrer a um crescente aumento do contingente, que passou de 2000 homens em armas nos finais dos anos 50 para cerca de 10.000 em 1960 e cerca de 25.000 em 1968. Foi continuando ao longo dos anos da guerra a crescer até atingir um máximo de 42.000 efectivos, sobretudo graças ao recrutamento africano (9).

(Continua)
_______

Notas dos autores da brochura:

(1) A batalha de Como durou mais de dois meses em 1964. A operação Tridente do Exército português, cujo objectivo era o de expulsar os guerrilheiros do PAIGC da Ilha, falhou completamente e Como permaneceu como área libertada controlada pelo
PAIGC. A operação é comummente considerada a de maior envergadura no contexto das guerras coloniais portuguesas em África.

(2) Em Dezembro de 1973, sob o nome de código Estrela Telúrica já depois da tomada de Guiledje, ao todo cerca de 500 homens, ou seja, três companhias de comandos africanos, mais a conhecida 38ª de Comandos e fuzileiros, tentaram em Cantanhez enfraquecer os guerrilheiros e bases do PAIGC com uma grande operação que se prolongou por mais de uma semana, todavia, não bem sucedida.

Segundo António da Graça de Abreu, um testemunho presencial dos acontecimentos, confessa num seu livro/diário da guerra que “acho que nunca ouvi tanta porrada, tantos rebentamentos, nunca vi tantos mortos e feridos num tão curto espaço de tempo. E a tragédia vai continuar. A Estrela Telúrica prolongar-se-á por mais uma semana. Tudo começou em grande, com três companhias de Comandos Africanos, mais os meus amigos da 38ª, fuzileiros e a tropa de Cadique a avançarem sobre Cantanhez. O pessoal de Cadique começou logo a levar porrada, um morto, cinco feridos, um deles alferes, com uma certa gravidade. Ontem de manhã, dia de Natal, foi a 38ª de Comandos a embrulhar, seis feridos graves, entre eles os meus amigos alferes Domingos e Almeida, hoje foram os Comandos africanos comandados pelo meu conhecido alferes Marcelino da Mata, com dois mortos e quinze feridos O IN, confirmados pelas NT, só contou seis mortos, mas é possível que tenha morrido muito mais gente, os FIATs a bombardear e os helicanhões a metralhar não têm tido descanso" (...). Vide, Abreu, António Graça de, Diário da Guiné, Lama, Sangu e Água Pura. Lisboa: Guerra e Paz. 2007, p.175.

(3) O Sul da Guiné representa o maior espaço de produção agrícola de arroz, sendo as terras situadas na bacia do rio Cumbidjã as mais dotadas para a produção de arroz no território.

(4) Entre os soldados portugueses, vulgarizou-se a expressão Corredor da morte, referindo-se obviamente à intensidade dos combates pelo controlo do Corredor de Guiledje.

(5) Abreu, António Graça de, Diário da Guiné, Lama, Sangue e Água Pura. Lisboa: Guerra e Paz Editores S.A., 2007.

(6) Tué Nangamna, recentemente falecido, possuía como última residência o Bairro de Impantcha, nos arredores de Bissau. Tido consensualmente como dos melhores artilheiros do PAIGC, comandou cerca de 60 morteiradas em algumas operações de alto risco e responsabilidade, como a de destruição do destacamento português de Balana e de Balanacinho.

(7) Leia-se, à propósito, os diversos artigos publicados no site Luís Graça e Camaradas da Guiné, de autoria de Idálio Reis.

(8) Entrevista com o general Arnaldo Shultz, realizada a 18 de Julho de 1985, e conduzida por Josep Sanches Cervelló, In A Revolução Portuguesa. Sua Influência na Transição Espanhola, (1961-1976). Lisboa, Assírio e Alvim , 1993, p. 93.

(9) O contingente militar português foi-se africanizando na medida em que Portugal continental estava a atingir os limites máximos da sua capacidade de recrutamento, pelo que o recrutamento local que começou em 1966 e foi aumentando até 1971, se bem que na própria Guiné a população era muito limitada comparada com a das outras colónias, dado que nunca ultrapassou os 21 por cento do total dos habitantes.

O peso das milícias foi aumentando com o decurso da guerra, e nas últimas etapas, eram responsáveis por 50 por cento do contacto com os guerrilheiros do PAIGC.

Vide Cann, John P., A Contra-insurreição em África (1961-1974), O Modo Português de Fazer a Guerra. Lisboa, Atena, 1988, p. 122.

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Nota de L.G.

(*) Mensagem da Webmaster:

Dear Luís Graça,

I am glad to hear that you like the photos and that you use them.

Best regards,
Agneta Rodling
Information/Webb
Nordiska Afrikainstitutet
The Nordic Africa Institute
Box 1703,
SE-751 47 UPPSALA
+46-18 56 22 21

Mensagem anterior de L.G.:

Dear webmaster:

Please note that, as the founder and main editor of Portuguese blog 'Luis Graca e Camaradas da Guine' (in English, Luis Graca and Guinea-Bissau camerades), I have postd some photos from the great photographer Knut Andreasson I have found out on your Nordic Africa Insitute site as public domain material... I am very grateful for this. Best wishes. Luis Graca.