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quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Guiné 63/74 - P14169: Historiografia da presença portuguesa em África (51): Revista de Turismo, jan-fev 1956, número especial dedicado à então província portuguesa da Guiné: anúncios de casas comerciais - Parte III (Mário Vasconcelos)






1. Mais alguns anúncios de casas comerciais, da Guiné, que foram publicados na revista Turismo, jan/fev 1956, ano XVIII, 2ª série, nº 2.


Tudo indica que, neste nº especial da revista, dedicado à província portuguesa da Guiné) (*), toda a gente tenha querido "aparecer na fotografia". Referimo-nos às "forças vivas" da colópnia, e nomeadamente as da esfera económica, os pequenos comerciantes e demais empresários, portugueses, caboverdianos e libaneses, que operavam na Guiné.
Na amostra de hoje, temos: 

(i) o José Zauad (que, pelo apelido, parece ser libanês),  que tinha estabelecimento comercial em Campeane, na região de Tombali!...

(ii) o Armindo G. Ferreira, estabelecido em Cadique, Catió, também na região de Tombali;

(iii) o José David Doutel, de Cadique. Salancaur, Catió, região de Tombali;

(iv) e, pro fim, o António R. Silva Ribeiro, que seria de Bissorã, e não de Comissorã (mais do que provável gralha tipográfica).

Todos se dedicavam ao "comércio geral: compra e venda de produtos da província"... Em 1956, era já "politicamente correto", escrever-se "província" e não "colónia", como mandava a reforma administrativa ultramarina de 1951.

 Como temos vindo a observar, estes anúncios são um preciosidade, pelas inesperadas informações que nos trazem de gentes e de lugares que vão ser varridos pela guerra, oficial ou oficiosamente iniciada em  Tite, região de Quínara, em 23 de janeiro de 1963...

Refletem, por outro lado,  o clima de relativa tranquilidade e prosperidade em que então se vivia, em 1956... No texto a seguir, apresentam-se alguns dados sobre a economia da época, de acordo com a citada revista Turismo, de jan/fev de 1956. 

O grosso das exportações  (87%, em tonelagem) ía para duas oleaginosas, o amendoim e o coconote. Por outro lado, numa década (1941-1950), as importações passavam de 49 mil contos para 128 mil (um aumento de 260%). As exportações, por sua vez,  passavam, no mesmo período, de  65 mil para 118 mil contos (um aumento de 180%).

[Foto à direita: Mário Vasconcelos, ex-alf mil trms, CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, COT 9 e CCS/BCAÇ 4612/72, Mansoa, e Cumeré, 1973/74]


Fotos: © Mário Vasconcelos (2015). Todos os direitos reservados [Edição: LG]

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Guiné 63/74 - P14126: (Ex)citações (258): A prosperidade de Bafatá não se deveu tanto ao "patacão da guerra" como ao negócio da mancarra (Cherno Baldé)

1. Comentário do Cherno Baldé ao poste P14120 (*)

Caros amigos,

Provavelmente o factor Guerra e a presenca de 3 ou mais batalhões da tropa metropolitana e local na zona leste terá impulsionado a actividade comercial, mas na verdade Bafatá já era uma cidade com forte dinâmica de crescimento antes desta.

Como disse o Luís Graça, a economia acaba por ser o factor determinante do movimento e/ou assentamento humano. Acho que no caso de Bafatá a indústria do amendoim (mancarra) - produção, descasque e transporte via fluvial - constituíam a força motriz da sua expansão. Não é por acaso que ainda existe a marca de óleo "Fula".

Não tenho estatísticas em mão, mas acho que a contribuição monetária da tropa seria menos importante do que se pode pensar, se atendermos a que a maior parte do dinheiro recebido pela tropa era enviado de volta para casa. (**)

Um abraço amigo,

Cherno Baldé
5 de janeiro de 2015 às 17:52


2. Nota do editor LG:

"Fula" é uma marca de óleo, registada, do Grupo Sovena. "É a marca líder no mercado português de óleos vegetais", e está "presente nos lares portugueses há cinquenta anos,"

(Logo da marca "Fula", à direita,
reproduzido aqui com a devida vénia...).

A marca tem inclusive um sítio próprio na Net: www.fula.pt (, além de uma página no Facebook).

Recorde-se aqui duas figuras que, como empresários, vão ter um grande peso na história  da economia do território guineense na primeira metade do séc. XX: refiro-me, por um lado, ao António Silva Gouveia, representante da colónia da Guiné na Cãmara dos  Deputados (1ª legislatura, 1911-15),  fundador da Casa Gouveia [ou Casa Gouvêa],  que nos primeiros  anos do século passado dominava o comércio local e o mercado das oleaginosas (amendoim e coconote), através de um rede de lojas e agentes que já cobriam o território, a seguir à campanha de pacificação de Teixeira Pinto (1913/15) e implementação, em 1914, de uma administração republicana descentralizada ...

Outra figura, figura à história da economia colonial da Guiné,  é a do industrial Alfredo da Silva, fundador do grupo CUF (, cuja origem remonta a 1865). Em 1919, é criada uma empresa de transportes que vai ser decisiva não só para o futuro da CUF como o da própria economia da Guiné: trata-se da Sociedade Geral de Indústria Comércio e Transportes Lda, conhecida pela sigla SG, e em cujos navios muitos de nós viajámos para a Guiné (o Alfredo da Silva,  o Ana Mafalda, por exemplo;  em 1972 a SG fundiu-se com a Companhia Nacional de Navegação (que já detinha navios como o Índia e o Timor, que também foram navios T/T).

Ainda antes de entrar no ramo dos transportes marítimos, em 1922, a Sociedade Geral (SG) começa a adquirir (ou a fazer parte de) o capital de outras empresas que estão na mira do Alfredo da Silva, importantes para a sua estratégia de expansão do grupo, e nomeadamente no ramo das industrias oleaginosas. Uma dessas empresas é a Casa Gouveia na Guiné;  a António Silva Gouveia, Lda. passa a ser é uma sociedade que tem como sócios o António Silva Gouveia e a Sociedade Geral de Comércio, Indústria e Transportes, Lda.

As oleaginosas da Guiné (amendoim,  coconote, gergelim) passam a ser transformadas em óleos comestíveis nas fábricas da CUF, no  Barreiro, depois de  transportadas para a metrópole através dos barcos da SG. É nessa altura, em finais dos anos 20/princípios dos anos 30,  que nasceu o famoso óleo "Fula",  de há muito presente nas cozinhas portuguesas.

Recorde-se que em 1929 a CUF obtém o reconhecimento alimentar do óleo de amendoim (ou mendubim, como então se dizia). E esta decisão vai ter grande impacto não só na olivicultura nacional  (pressionando o preço do azeite)  como na economia da Guiné, que passa a ser o principal fornecedor de matéria-prima, o amendoim. A CUF detém o monopólio da exportação do amendoim (com casca ou sem casca) da Guiné, até à independência da Guiné-Bissau.

Eis mais alguns números sobre a  "mancarra" ((Knapic, 1964. pp.24/25):

(i) Entre 1930 e 1960 há um aumento gradual da produção e exportação: a. média de 1931-35 foi de 22853 t e 15203 contos; a de 1955-60 de 34196 t e 113438 contos" ;

 (ii) nos anos 60, é o principal produto de exportação da Guiné: representa 76% do total das exportações  (em 1964), percentagem que decresce para 61% em 1965;

(iii) em data que não sabemos precisar, mas no início da década de 1960,  construiu-se a primeira fábrica de extração de óleo para abastecimento local, sendo o resto exportado;

(iv) em 1965, a Guiné já exporta óleo de amendoim: 41 t (631 contos)...

(v) em meados da década de 1960, a área cultivada pelos produtores de mancarra atingia os 100 mil hectares, ou seja, um 1/4 do total da área cultivada da província!,,,.

(vi) a produção rondava as 65 mil toneladas; a produtividade era baixa: 600 kg / ha (2 mil kg /ha em casos excecionais);

(vii) em 1965, uma tonelada de amendoim exportado valia 4,2 contos (cerca de 21 euros na moeda atual) (Vd. Quadro 1).

A cultura da mancarra era feita: (i) em regime de rotação; (ii)  sem seleção de sementes; (iii) sem recurso a adubos ou estrume; (iv) proporcionando fracos rendimentos aos produtores; e (v) exigindo grande esforço nas várias fases do ciclo de produção (sementeira, monda, colheita, protecção contra os babuínos...).

As principais regiões de produção eram as do leste da Guiné (Farim, Bafatá, Gabu) onde os solos são mais leves e a precipitação menor.

No entanto, esta cultura era já considerada na época como muito lesiva do ambiente, pelo uso intensivo dos solos, a redução do pousio, as queimadas... Tradicionalmente os camponeses da região praticavam um sistema de rotação mancarra - cereal - pousio, considerado pouco eficaz. Acrescente-se ainda o sistema de comercialização, penalizando fortemente os produtores. Mas o mesmo se pode dizer hoje da cultura do caju que é uma séria ameaça para a segurança alimentar do povo guineense. (Hoje uma tonelada de caju podem valer ao produtor guineense 400 euros; o que mal dá para comprar 10/12 sacos de 50 kg de arroz, base da alimentação da população).


Ano
Mil toneladas
Mil
contos
Contos por tonelada
1960
24,0
78,8
3,27
1961
40,0
126,3
3,17
1962
38,7
133,3
3,44
1963
36,6
124,7
3,41
1964
34,0
119,2
3,50
1965
15,2
64,3
4,23

Quadro 1 - Exportação do amendoim (1960-1965)
(Knapic, 1966 / adapt por LG)


E já que falamos de segurança alimentar, temos que falar do arroz... Desde 1930 que a Guiné exportava arroz, Embora a quantidade (em toneladas), baixasse com o tempo,  aumentava todavia  o seu   valor (em contos). A média de 1931-35 foi de 3285 t e 1500 contos (0,456 contos por tonelada ) contra 1398 t e 4283 contos no período de 1956-60 (3 contos por tonelada).

Praticamente todo o arroz exportado destinava-se a Cabo Verde, na década de 1960. Com o início da guerra, a Guiné passou a ter de importar arroz (Quadro 2), tal como ainda hoje, infelizmente.

Ano
Contos
Aumento  em relação
a 1962 (%)
1962
8963
-
1963
11786
31,5
1964
29868
332, 4


Quadro 2  - Importação de arroz em contos (1962-1964) 
(Knapic, 1966 / adapt por LG)


Fonte: Adapt. de Dragomir Knapic - Geografia económica de Portugal: Guiné. Lisboa: Instituto Comercial de Lisboa, 1996, 44 pp., policopiado.

Observ - O autor desta brochura, Dragomir Knapic, de origem eslovena, era professor, no Instituto Comercial de Lisboa,  muito estimado pelos seus alunos... Era cunhado do nosso camarada Mário Beja Santos (Foi ele quem ofereceu esta brochura à biblioteca da Tabanca Grande). O livrinho tem informações preciosas sobre a Guiné dos anos 60: (i) condições naturais; (ii) população; (iii) agricultura; (iv) pesca e indústria; e (v) comércio e circulação.

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segunda-feira, 5 de maio de 2014

Guiné 63/74 - P13104: Estórias do Juvenal Amado (51): Amendoins e bajudas, cheiros antigos

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 28 de Abril de 2014:

Carlos e Luís
Cá vai mais uma historieta.
Mando algumas fotos de bajudas de Galomaro mas se alguma delas for a Jarulema será a que vai a na 1ª foto a cores. Parece-me ela mas não tenho a certeza.

Um abraço
Juvenal Amado


ESTÓRIAS DO JUVENAL

51 - AMENDOINS E BAJUDAS, CHEIROS ANTIGOS

Tem estado um clima pouco amistoso. Com chuva e algum frio, mas fazendo jus ao ditado que diz que Abril tira e põe a velha no covil, só fica admirado quem não compra o Borda D´Água, ou não se lembra dos ditados antigos. Mas não é sempre assim e intercalado nesses dias pouco convidativos, tem aparecido um aqui e outro ali, que nos faz despir o casaco.

Hoje foi um desses dias e é de dele que eu venho falar.
Está um dia claro e solarengo bem apetecível e há muito desejável. Sempre que posso saio de casa no meu passeio, passo pela rotunda Sul sigo pela Alameda do Santuário, ultrapasso-o e finalmente do lado Norte existe uma praça com várias esplanadas agradáveis e bastante convidativas.

Sentei-me na esplanada com vontade de beber uma imperial. Passa-se tempos sem que beba, mas hoje veio-me aquele desejo irresistível de beber uma e vai daí passei da vontade ao acto.
Chamei o empregado, pedi uma imperial e juntamente trouxesse também uns amendoins para fazer peito.

Passado um bocado lá chega ela loira, transbordante e a acompanhá-la, vem a decepção na figura de um pequeno saco onde se lia “amendoins com mel, sal e piri-piri” em vez dos com casca tão simples, tão honestos, tão usuais em qualquer sítio que se preze, pelos menos há algum tempo.
Perguntei se não havia doutros! O empregado num português lá dos lados do Brasil disse-me que não e que se eu quisesse, também havia uns pacotinhos de caju com o mesmo tempero ou parecido. Disse-lhe que deixasse estar, pois teria que ser mesmo com aqueles que eu iria matar o desejo. Mas nestes amendoins processados industrialmente, se não estou em erro por empresas espanholas, não há o encanto de descascá-los, soprar as finas películas que ainda os envolvem e só depois trinca-los, sentir o estaladiço crocante deles bem torrados sem mais temperos.

Parte do prazer de comê-los está aí, faz parte do vício, assim dizia o meu avô Lino, quando parava o que estava a fazer, calmamente tirava a onça de tabaco do bolso com as respectivas mortalhas e fazia o cigarrito, saboreando o momento mesmo antes do acender. Também eu fumei e muitos anos, tentei combater o vício fazendo como ele fazia, mas não me valia de nada pois os hábitos e a vida agitada, ditavam a rapidez com que eu os fumava por vezes acendendo-os uns nos outros. Por graça dizia então que era para poupar nos fósforos. Enfim uma estupidez.

Mas os amendoins e a imperial fizeram-me voltar atrás mais de quarenta anos, quando na Guiné ansiava por uma. Que eu soubesse só havia um local em Bissau que servia cerveja a copo e por isso mesmo ainda hoje, opto sempre por beber uma, em vez da tradicional cerveja em garrafa.
Em Galomaro, todos os dias por volta das cinco horas da tarde, juntamente com as lavadeiras, vinha a Jarulema da “mancarra” com a dita dentro de uma cesta de verga larga e rasa, que era comum as mulheres usarem para vários dos seus afazeres. Era uma bajuda de mama firme, muito sorridente, olhos marotos, mas que era do tipo toca e foge. Quero eu dizer com isto, que ela prometia o Céu mas não se passava da terra. Aquando de alguma aproximação de algum soldado mais assanhado, ela sabiamente lá ia desviando as mãos dos mais afoitos e ia vendendo o amendoim que ela própria torrava.
Enquanto para nós a mancarra era divertimento, para os naturais da população ela era a vida como se poderá assim dizer. Pelo caminho ficavam os soldados, que fazendo uso de um charme rasteiro e de mau gosto, eram pura e simplesmente afastados do seu convívio e mimoseados com uns palavrões ditos nas duas línguas, com o devido encaminhamento para as mães e pais, senão para toda a família.

Binta, a bajuda mais bonita de Galomaro e arredores

Com a devida vénia a José F.S. Ribeiro do BCAÇ 2912

Com a devida vénia a Manuel Madeira Guerreira do BCAÇ 2912

Ainda hoje é melhor cair em graça, do que ser engraçado lá diz o ditado e assim uns com mais jeito e falas mais mansas, podiam aproximar-se dizer-lhe coisas, que a levariam aos arames ditas por outros. Tinha fama de já não ter cabaço. Fama que já vinha das “más línguas” da companhia 2912 aquando da nossa chegada.
Feitas as apresentações às lavadeiras e à Jarulema, a tal fama passou da boca dos desejosos, espalhou-se pelos invejosos do 3872 qual “pústula” passou a bajuda a padecer. Não sei se era verdade ou não, mas ela por vezes ria-se com os nossos avanços, naquele jogo de sedução que nos deixava assim como arrebitados, mas que nunca esclarecia as dúvidas.
Ficávamos com a água na boca e os amendoins para enxugarmos umas Cristais, se os comprássemos, senão nem isso.

Porta de armas de Galomaro - Juvenal Amado, José Manuel e Confraria

Passados alguns meses, correu o boato que ela era a mais que tudo de um graduado, por sinal boa praça, que alinhava com a malta, desde que o comandante não o bispasse. Confraternização entre praças e graduados era coisa proibida em Galomaro.
Inicialmente como bons “machos” latinos, não se quis acreditar que tal fulano tivesse passado a perna à malta e se tivesse chegado à frente no caso da vistosa bajuda. Com preconceito e chauvinismo, entenderam que ela não estava à altura de quem a partir dali desfrutaria os seus favores. Mas lá vem a velha questão sobre as razões do coração, porque há razões que a própria razão desconhece.

Bastou isso para que os assédios à Jarulema abrandassem, porque o respeitinho é muito bonito e recomendava-se. Ela nunca deixou de aparecer à porta de armas com o seu sorriso, os seus panos coloridos e a sua deliciosa mercadoria, por vezes reforçada com castanha de caju.
Toda ela cheirava ao perfume torrado dos seus produtos.

Foi esse cheiro essa imagem que me veio à cabeça quando pedi amendoins ao empregado da esplanada.
Provei o saquinho de amendoins com mel, sal, piri-piri, decididamente fiquei triste e decepcionado.

Um abraço para todos
Juvenal Amado
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12559: Estórias do Juvenal Amado (50): Em Alcobaça, assinaturas do tempo

sábado, 3 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10615: A minha CCAÇ 12 - Anexos (I): Sansacuta, tabanca fula em autodefesa no sul do regulado de Badora, onde estive em março de 1970 e onde um dia recebi, do vagomestre, um lata 5 kg de fiambre dinamarquês... que tive de consumir e repartir pelos putos em escassas horas (Luís Graça)






Guiné > Zona leste > Seto  L1 (Bambadinca) > BARt 2917 (1970/72) > Tabancas fulas em autodefesa do Regulado de Badora: crianças... e cães.

Fotos: © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados



1. Enquanto não aparece o poste relativo ao mês de novembro de 1970. quando a CCAÇ 12 perfazia 18 meses de Guiné (, mês que me traz amargas memórias) (*), vou iniciar um séria paralela, para lá pôr uns textos anexos... O primeiro tem a ver com a temporada (duas semanas e meio) que passei em Sansacuta, no sul do regulado de Badora, do lado esquerdo da estrada Bambadinca-Mansambo, comandando uma secção do 4º Gr Comb da CCAÇ 12, entre 24 de fevereiro e 12 de março de 1970.

Adicionar legenda
Uma aldeia fula em autodefesa:  Sansacuta, regulado de Badora

por Luís Graça



1. Como esses bandos sinistros de jagudis (abutres) que pousam sobre a morança dos que estão a morrer, também o espectro negro da fome paira sobre as tabancas da Guiné. Porque a desnutrição, essa, é já endémica: facilmente se constata, sobretudo nas crianças, toda uma série de sintomas patológicos provocados pelas carências proteicas e vitamínicas de uma alimentação quase só à base de cereais (arroz, milho, fundo) e túbérculos (mandioca, inhame), acompanhos de molhos de origem  vegetal (óleo de palma). 

A alimentação é, pois,  deficiente, sobretudo em qualidade. O peixe (sobretudo seco) e a carne são raros. Além disso, os fulas, que são islamizados, não comem carne de porco. Em contrapartida, não têm os problemas de alcoolismo dos povos ribeirinhos, animistas (como os balantas de Nhabijões).

E, no entanto, trata-se dum território aparentemente fértil, mas com umas das mais elevadas densidades demográficas do continente africano, concentrando-se as populações em especial nas bacias hidrográficas, junto às bolanhas e lalas (regiões alagadiças ricas em húmus) onde cultivam o arroz.


Mas a guerra e a sua escalada vêm modificar profundamente a geografia humana e económica da Guiné: por um lado, provocam o êxodo maciço de populações inteira (balantas, beafadas, mandingas, manjacos, etc.) para as zonas controladas pelos guerrilheiros e para os países límitrofes (Senegal e Guiné-Conacri). E por outro, assiste-se ao fenómeno da militarização dos fulas (uma tribo islamizada cujos régulos detêm ainda algum do seu antigo poder feudal), através não só do reagrupamento e organização em autodefesa das suas aldeias como também da formação de milícias.

2. Eis a razão por que, a partir de 1963, se tem vindo a acentuar o decréscimo da produção agrícola (que aliás é cada vez para autoconsumo). Mas vejamos as duas culturas ainda comercialmente importantes: o amendoim e o arroz.

O amendoim (ou mancarra) só por si deve representar hoje  cerca de metade do valor total das exportações (da Guiné para a Metrópole).

Muito antes ainda de passar à clandestinidade, o engenheiro agrónomo Amílcar Cabral (que terá dirigido uma brigada técnica dos Serviços Agrícolas Coloniais, não  em Fá, aqui perto de Bambadinca, mas em Pessubé, tendo feito estudos sobre a produtividade de diversos tipos de amendoim), já tinha denunciado o perigo que representava a monocultura desta oleaginosa para o desenvolvimento económico e social da Guiné, e criticando implicitamente a sua importância estratégica como matéria-prima para os monopólios metropolitanos (a CUF, aqui representada pela Casa Gouveia).

Tendo sido imposta ao indígena pela administração colonial, a cultura da mancarra está hoje em declínio irreversível: os fulas ainda são os únicos que lavram mancarra (cultivam amendoim) na periferia das suas tristes tabancas, cercadas de arame farpado e de minas. É com o produto da sua venda que o camponês fula paga, no posto administrativo, a sua taxa domiciliária (imposto de palhota), colectada na base do número de mulheres (e moranças) que possui! 


Curiosa é a origem da mancarra, a semente do diabo, segundo a lenda fula, que aqui ouvi em Sansacuta (em 8 de março de 1970):

Na mitologia fula a mancarra (amendoím) está associada ao Diabo em pessoa (Iblissa). O cherno Umaru que dirige uma pequena escola islâmica nesta tabanca e que se prepara , como bom muçulmano devoto (tijanianké), para fazer no próximo ano a sua peregrinação a Meca (Iado Hadjo, em fula) e assim juntar ao seu nome o título venerando de al-hadj,contou-me a seguinte história,  traduzida  pelo Suleimane, o José Carlos Suleimane Baldé (o meu braço direito, guarda-costa, intérprete, cozinheiro, secretário):

- Um dia Iblissa (o Diabo) quis desafiar a autoridade divina de Mohamadu (o Profeta Maomé). Tinha chovido muito e o Profeta dissera que então nasceriam todas as sementes que fossem lançadas à terra. O Diabo, em vez de uma semente de milho ou de arroz, deitou leite numa cova que ele próprio tinha feito no chão. Mohamadu, intrigado e inquieto com a provocação de Iblissa, foi falar com Alá, que lhe mandou guardar uma semente. E ao fim desse tempo, não é que do leite nasceu mesmo a mancarra ? (**)

O segundo produto é o arroz (***). Antes da guerra, dois terços eram exclusivamente produzidos pelos balantas, a maior etnia do território (que são 150 mil, segundo o censo de 1962). Inclusive o arroz chegou a ser exportado. Hoje mal chega para o autoconsumo, tornando-se dramática a sua carência nos anos de menor pluviosidade.



Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Subsetor de Bambadinca > Detalhe > Tabancas fulas em autodefesa, Samba Juli, Sinchã Mamadjai e Sansacuta, situadas entre os rio Querol e Timinco, a leste da estrada Bambadinca-Mansambo > Carta do Xime (1955) (Escala 1/50 mil)... Lugares que continuam no nosso imaginário...



Entretanto, no circuito da economia monetorizada, devido à inflação provocada pela guerra, a população que está sob o nosso controlo vê-se muitas vezes na contingência de vender, ao pequeno comerciante português ou libanês, o arroz que produz para comer (preço por quilo: 3 pesos!) para comprar umas chinelas de plástico:

- O senhor administrador dá porrada se pessoal africano anda descalço em Bambadinca!-, diz um dos meus soldados fulas.

Noutras ocasiões, trata-se de fazer dinheiro para pagar a taxa domiciliária I"o famigerado "imposto de palhota"), imposta ao guinéu e devida pelos escassos metros quadrados de superfície que ocupa a sua morança. 
Entretanto, quando as reservas se acabam no tempo seco, o guinéu volta a adquirir o mesmo arroz pelo dobro do preço (6 pesos).

O drama destes pobres camponeses que foram obrigados a abandonar as suas áreas de cultura, arrancadas à floresta tropical ou à savana arbustiva, de geração em geração, pude senti-lo aqui em Sansancuta onde estive em autodefesa. (****).

3. Sansancuta faz parte dum eixo de aldeias estratégicas, como se diz no Vietname, no limite sul do regulado de Badora, no Sector L1, e que funciona como uma espécie de pequena muralha da China, cortando as linhas de infiltração das forças da guerrilha que eventualmente se dirijam para o interior daquele regulado a partir do Rio Corubal.

Estão aqui reagrupados os habitantes de três tabancas, uma das quais Sare Ade cuja população, sobretudo os mais jovens, não se conformou com a ordem de deportação dada pelo comando militar de Bambadinca, tendo fugido para o nordeste (Gabu) e inclusivamente para o Senegal, que também é chão fula.

Hoje, de resto, só há duas alternativas para um homem fula: (i) oferece-se como voluntário para o exército colonial, passando primeiro pela milícia; ou (ii) emigra todo os anos, na época das chuvas, para o chão de francês (Senegal ou Guiné-Conacri) a fim de trabalhar nos campos de mancarra.

É a única maneira de fugir ao universo concentracionário da sua tabanca, e sobretudo à fome. Essa fome visceral que leva as crianças a aproveitar tudo aquilo que nós, tugas, nos damos ao luxo de deitar fora (vi-as aqui a assaram na brasa as vísceras de um frango que o bom do José Carlos Suleimane Baldé me arranjou e reparti-las equitativamente entre si).


Tínhamos uma secção destacada em Sinchã Mamadjai  [ou Mamajã] que foi transferida em 24 de Fevereiro de 1970 para Sansacuta, com o objetivo de controlar os trabalhos de autodefesa [, e que haveria de  regressar definitivamente a Bambadinca a 12 de Março de 1970].

Fome, subnutrição, carências de toda a ordem (roupas, medicamentos...), doenças como paludismo, mortalidade infantil,  etc., contrastam, de modo chocante, com a relativa opulência com que um tuga , como eu, aqui vive: ainda ontem me vieram trazer o reabastecimento semanal e, entre outros produtos enlatados, deixaram-me cinco quilos (!) de fiambre dinamarquês, para dois mecos, para mim e para o operador de transmissões, os dois únicos brancos, já que as praças são desarranchadas. 


Tivemos de comero fiambre em menos de vinte e quatro horas, sob pena de se estragar com o calor (, frigorífico a petróleo ka tem!), e, uma vez aberta a lata, repartir o resto do fiambre pelos putos da aldeia e soldados africanos da secção. É claro que lhe chamaram um figo, não tendo desconfiado sequer que tal iguaria pudesse ser feita de carne.. de porco!

Deportado e reagrupado em aldeias estratégicas (ou tabancas em a/d, chamem-lhe o que quiserem), o camponês da Guiné que ama os grandes espaços livres (a floresta onde vai caçar a gazela, a bolanha onde cultiva o arroz, o rio onde vai buscar o mafé) vê-se confinado a uma área de reserva onde pratica uma miserável agricultura de subsistência.

Ironicamemnte as fiadas de arame farpado que cercam as palhotas cónicas,as trincheiras e os abrigos de combate, os espaldões para as armas pesadas, as valas de comunicação e os abrigos passivos das tabancas em a/d, ficarão proventura como os únicos vestígios arqueológicos da presença duma civilização tecnologicamente superior nesta parte ocidental de África...

Luís Graça




Guiné > Zona Leste > Croquis do Sector L1 (Bambadinca) > 1969/71 (vd. Sinais e legendas).  Dentro retângulo a vermelho, ficavam localizadas as duas tabancas aqui referidas neste poste, Sansacuta e Sinchã Mamadjai, no limite sul do regulado de Badora,  entre Bambadinca e Mansambo. A sudeste ficavam três importantes (e das últimas) tabancas fulas do regulado do Corubal,  Afiá, Candamã e Camará,  eestas já pertencentes ao subsetor de Mansambo.

Infografias: © Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados

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Excertos de: História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1969/71. 
Cap. II.26: A secção destacada em Sinchã Mamadjai foi transferida em 24 de Fevereiro de 1970 para Sansancuta a fim de controlar os trabalhos de autodefesa da tabanca, regressando definitivamente a Bambadinca a 12 do mês seguinte [Março de 1970].~


Notas do editor:


(*) vd. último poste da série > 30 de julho de 2012 > Guiné 62/74 - P10209: A minha CCAÇ 12 (26): Outubro de 1970: o jogo do rato e do gato... (Luís Graça)

(**) Números sobre a mancarra:  Principal produto de exportação da Guiné nos anos 60: 76% do total (em 1964), percentagem que decresce para 61% em 1965, em consequência do agravamento da guerra. A área cultivada atingia os 100 mil hectares (um 1/4 do total da área cultivada da província). A produção rondava as 65 mil toneladas. A produtividade era baixa: 600 kg / ha (2 mil kg /ha em casos excecionais).

A cultura era feita em regime de rotação, sem seleção de sementes, sem recurso a adubos ou estrume, proporcionando fracos rendimentos e exigindo grande esforço nas várias fases do ciclo de produção (sementeira, monda, colheita, protecção contra os babuínos...). Principais regiões de produção: o leste da Guiné, Farim, Bafatá, Gabu, onde os solos são mais leves e a precipitação menor. 

No entanto, esta cultura era já considerada na época como muito lesiva do ambiente, pelo uso intensivo dos solos, a redução do pousio, as queimadas... Tradicionalmente os camponeses da região praticavam um sistema de rotação mancarra - cereal - pousio, considerado pouco eficaz. Acrescente ainda o sistema de comercialização, penalizando fortemente os produtores. (Fonte: adapt. de Dragomir Knapic - Geografia económica de Portugal: Guiné. Lisboa: Instituto Comercial de Lisboa,  1996,  44 pp., policopiado).

(***) Arroz: a área de cultivo devia representar 150 mil hectares no início da década de 60, antes da guerra, o que equivalente a 38% do total, concentrando-se em especial nas regiõe do Cacheu, Bissorã e Mansoa, a norte do Rio Geba, e Fulacunda e Catió, a sul. Havia dois tipos de cultura de arroz: o alagado, ou de bolanha (nas regiões mais ribeirinhas, no litoral); e o arroz de sequeiro, no interior, praticado sobretudo pelos manjacos e fulas. 

A produtividade é também baixa, oscilando entre os 30 kg e os 2 mil kg por hectare, com um a média de 800 kg/ha. A produtividade é sempre maior no arroz alagado. A Guiné passou a ser autossuficiente em matéria de arroz, sobretudo a partir dos anos 30 até ao início da guerra colonial. Exportava arroz para a metrópole, para a África francesa (Senegal e Guiné-Conacri) e para Cabo Verde. Com a guerra, a situação inverteu-se: passou a importar. (Fonte: Dragomir Knapic, 1966, op. cit.).

(****) A terceira cultura de maior peso na Guiné era a do milho (cavalo, preto e basil), mas que tinha um baixíssimo valor alimentar. A área ocupada era sensivelmente a mesma do arroz, mas a produção era 3 vezes inferior: apenas cerca de 50 mil toneladas. Era também uma cultura devastadora para o ambiente, sendo precedida de derrube da floresta e de queimadas...

Outras culturas, mas de menor  impacto na economia e na dieta do guineense do nosso tempo: fundo (30 mil hectares / 10 mil toneladas /  300 quilos por hectare), o feijão, a mandioca, a batata doce, o inhame... Dos frutos mais comuns,  e com relevância para a alimentação, destaque-se a manga, a papaia, a banana, a laranja,  a tangerina, o limão,  a cola, o cajú, o coco... A cana de acúcar também era cultivada, no litoral, destinando-se praticamente apenas para a produção de aguardente de cana.

Outras culturas, com valor económico e alimentar: o óleo de palma (extraído da palmeira de dendê, "Elaeis guineensis"), o coconote, gergelim...

Quanto á riqueza pecuária era estimada, em 1961,  em mais de 230 mil cabeças de gado bovino. Havia umas escassas dezenas de cavalos e mais de 3800 burros. Outros animais domésticos: cabras (c. 144 mil), porcos (c. 98 mil) e ovelhas (c. 54 mil). (Fonte: Dragomir Knapic, 1966, op. cit.).


terça-feira, 19 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7146: Historiografia da presença portuguesa em África (40): António Silva Gouveia, fundador da Casa Gouveia, republicano, representante da colónia na Câmara dos Deputados, na 1ª legislatura (1911-1915) (Parte IV) (Carlos Cordeiro)
















Lisboa > Câmara dos Deputados > Excertos de duas Intervenções do deputado António Silva Gouveia, representante da Guiné, em 1914, na sessão de 14 de Janeiro e depois em   14 de Maio ...).

 Fonte:  Debates Parlamentares > 1ªRepública (1911-1926) > Câmara dos Deputados > Direcção de Serviços de Documentação e Informação da Assembleia da República > Assembleia da República (2010) (Com a devida vénia...)


1. Continuação da publicação de excertos de intervenções do deputado António Silva Gouveia, empresário, fundador dsa Casa Gouveia, representante da Guiné na Câmara dos Deputados, na legislatura de 1911-1915 (*).   Pesquisa de  Carlos Cordeiro, membro da nossa Tabanca Grande, Professor de História Contemporânea na Universidade dos Açores, São Miguel, Região Autónoma dos Açores  (foto à esquerda).

No caso destas intervenções do deputado Silva Gouveia (*), em 1914, elas incidem sobre dois temas específicos da actualidade de então:

(i) Em de 11 de Dezembro de 1913, na região do Cacheu, o "administrador da circunscrição da Guiné", ao proceder ao recenseamento (arrolamento) da população local para efeitos de cobrança do "imposto de palhota" (sic), é morto, juntamente com um negociante local que o acompanhava, bem como a tripulação do escaler a vapor em que o representante da autoridades portuguesas se tinha deslocado. Chegada a notícia a Bolama, capital da colónia, o governador [, José António de Andrade Sequeira,] decidiu levar a cabo uma acção punitiva contra os felupes (presume-se)... Foi organizada uma força de "48 praças regulares e 350 auxiliares" (sic). Não sabemos o número de vítimas entre a população civil, mas do lado das forças coloniais houve 7 mortos e cerca de 3 dezenas de feridos... Os mortos eram todos soldados do recrutamento local. E é sobre as indemnizações a apagar às respectivas famílias que se centra a primeira intervenção do nosso deputado...

(ii) A segunda intervenção do deputado é um pedido de esclarecimento ao Ministro das Colónias sobre o imposto local, "ad valorem", lançado sobre as exportações da mancarra da Guiné...  Silva Gouveia fala em seu nome, como comerciante (já então com negócios com a CUF, a quem irá vender a sua empresa, c. 1927) e em nome de uma "comissão de negociantes" da Guiné...

Ficamos a saber que nessa altura já se cultivava a mancarra e que em 1913 as oleaginosas tinham baixado substancialmente de preço nos mercados internacionais, de tal maneira que o negociante pagava de imposto "ad valorem" 46$00 por tonelada na Guiné e em Lisboa não a conseguia vender por mais de 26$00...

O deputado levanta igualmente o problema da qualidade do produto: cerca de 15% da mancarra que era exportada continha impurezas, desacreditando a exportações da Guiné e lesando os interesses dos negociantes...
É de recordar que, com a abolição do comércio de escravos, em 1815, passa a haver, progressivamente,  um maior desenvolvimento do comércio dos produtos locais, o óleo de palma, o coconote, o amendoím, desde meados do Séc. XIX) e depois a borracha (desde 1890).  Em rigor, a mancarra era o único produto de cultura, os outros eram de simples colheita ou recolha. Eram estes praticamente os únicos produtos que a Guiné exportava, em troca da importação de tecidos, álcool e pouco mais...

Os principais negociantes, no terreno, eram os franceses (CFAO- Companhia Francesa da África Ocidental,  com sede em Marselha) e os alemães (Rudolf Titzck & Ca, com sede em Hamburgo).
A única empresa portuguesa implantada no terreno  era então a do António Silva Gouveia, o fundador da Casa Gouveia e deputado na 1ª legislatura da Câmara dos Deputados (1911-1915). O amendoím e a borracha iam preferencialmente para França. A borracha para a Alemanha.  Menos de 1/5 das exportações, no ínicio do Séc. XX, até às vésperas da I Guerra Mundial, tinham como destino Portugal...

De qualquer modo, é justo referir que a 1ª República se interessou pelo potencial económico que representavam as colónias portuguesas em África. Com Norton de Natos (1867-1955), Angola vai tornar-ser a "jóia da coroa" da República (**)...

A Guiné ainda vai passar por sucessivas guerras de "pacificação" até 1936, em que se destaca, entre 1912 e 1915,  a figura do Capitão Diabo, o "herói do Oio", João Teixeira Pinto (efígie em selo de 1946,  imagem à esquerda; como se sabe, Teixeira Pinto, angolano, de origem transmontana, irá morrer em 1917 no norte de Moçambique na luta contra os alemães).

A partir de 1927, a CUF, através da sua filial, Casa Gouveia, passa a ter o monopólio, de facto, do comércio externo da Guiné. Um novo regime alfandegário, agravado em 1932, vem penalizar as trocas comerciais da Guiné com outros países que não fossem Portugal... E é já no início da década de 1960 que aparece, no nosso mercado, o Óleo Fula (à revelia dos pobres fulas...), marca registada da Sovena ligada ao Grupo CUF... (LG)

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Notas de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 14 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7125: Historiografia da presença portuguesa em África  (39): António Silva Gouveia, fundador da Casa Gouveia, republicano, representante da colónia na Câmara dos Deputados, na 1ª legislatura (1911-1915) (Parte III) (Carlos Cordeiro)



(**) Exposição a não perder, todos os dias, das 10h00 às 18h00, até 1 de Dezembro de 2010, na Cordoaria Nacional, em Lisboa:  Viva a República, 1910-2010

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Guiné 63/74 - P3858: Blogpoesia (30): Em Cutima, tabanca fula... (José Brás / Mário Fitas)

1. Mensagem de Mário Fitas(*), com data de 6 de Fevereiro de 2009:

Caros Luís, Carlos e Virgínio.

Satisfazendo o pedido do José Brás(**), repasso o seu e-mail com uma poesia profunda.

Vocês já repararam que a poesia na Tabanca Grande é Obra?

Já pensaram - ideia louca - de falar com esta malta toda da poesia, e editar “A Guerra na Guiné em Poesia?

Não sei!... deixem é loucura minha!


2. Mensagem de José Brás para Mário Fitas:

Mário
Não dá para acreditar!
Que se lixe!
Não é por isso que te envio este abraço em forma de e-mail.
É para te dizer que venhas.
Vem quando quiseres e... se quiseres ficar, há camas disponíveis e um espaço lindo.

Outra coisa.
Claro que me lembro do Branquinho. Voei com ele muitas vezes. Gosto (pelo que li) do que diz (escreve) e como diz.
Gostaria de entrar em contacto com ele
Se tiveres o seu contacto e achares que mo podes dar…

Um abraço... e um texto feito no Quebo para ti. Pertence a um maior escrito em Aldeia Formosa e que tem sido projecto aos baldões de afazeres e vontade, que teria um título ligado, de algum modo, à ideia de “missa agnóstica”.


Em Cutima
tabanca fula
no sul da Guiné
a vida simulava
o ritmo velho

o comerciante Fuad
comprava a mancarra
das lavras da aldeia
fazia o caminho de Bafatá
e vendi-a
no agente da CUF

no tempo vazio
vigiava a mulher
-libanesa ostensiva
de formas redondas
e mel nos olhos-

porém
a espingarda pendente
na parede da casa
do comerciante Fuad
não matava
nos olhos da libanesa Zuaida
nem a fundura da noite
nem a febre da esperança


Carlos Alberto
chefe-de-posto
continuava o registo
de pessoas
e bens
controlava os “gilas
de língua francesa
que vinham
da terra de Sekou Touré
contrabandear
rádios de pilhas
e informações do PAIGC

Carlos Alberto
sabia de mais
cobrava os impostos
encharcava de uisque
a febre e o medo
e quando
no calor do meio-dia
punha mais um filho
no ventre mulato
da mulata Mi-Zé
era mais uma mina
na estrada de Buba
mais uma rajada
de PPSH

na noite agitada
de batuque e luar
em Cutima-Fula
a “bajuda” Bina
contava as semanas
do prazo previsto
p’ra trocar o “cabaço
p´las vacas
do velho Adulai

porém…
no rufar do tambor
no ritmo da dança
o corpo bem feito
as coxas robustas
o peito empinado
os olhos
da “bajuda” Bina
sugeriam o sonho
de um destino diferente
trocada por vacas
entregar o cabaço
ao velho Adulai
não cabia no sonho
da bajuda Bina

nas redes suspensas
às portas das casas
e da árvore grande
no largo da aldeia
ou simplesmente
deitados na esteira
os homens grandes
mascavam a cola
de olhos fechados
teciam a rede da vida da terra
em palavras curtas
monossilábicas
contabilizavam
a “mancarra” colhida
em metros de pano
em sal
em petróleo
em sandálias novas
num “ronco” qualquer
que desse nas vistas
e lhes mantivesse
o prestígio
de velhos senhores de
cavalaria
o lucro certo
do comerciante Fuad

as máquinas
singer
dos alfaiates
na casa maior à entrada da aldeia
continuavam
o velho costume
de juntar o tecido ao destino da linha
mas nem tudo
o que dava
o labor das mãos-pretas
e o matraquear das máquinas
singer
era produto acabado
de linha e de pano

daquelas varandas
das mãos e dos olhos
das entranhas mais fundas
por estranhos caminhos
seguia o abraço
o grito de dor
a certeza
da vitória final

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Notas de CV:

(*) Mário Fitas, ex-Fur Mil da CCaç 763, Cufar, 1965/66, autor das obras, "Pami Na Dondo a Guerrilheira" e "Putos, Gandulos e Guerra".

(**) José Brás, ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68, autor do livro "Vindimas no Capim", que lhe valeu o Prémio de Revelação de Ficção de 1986, da Associação Portuguesa de Escritores e do Instituto Português do Livro e da Leitura.

Vd.último poste da série de 31 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3688: Blogpoesia (29): Este ano não mandei cartões de boas festas a ninguém (Luís Graça)

sábado, 15 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2644: Economia colonial: O preço da mancarra no meu tempo (Mário Dias, empregado da NOSOCO, em 1955/59)

Guiné > Bissalanca > s/d > Fotografia tirada na despedida do gerente da NOSOCO, Monsieur Boris, que nesse dia regressava a Paris (está ao centro de fato e gravata). O João Rosa, o guarda-livros, [e que foi um dos fundadores do MLG - Movimento de Libertação da Guiné e um dos primeiros contactos políticos de Amílcar Cabral, tendo feito reuniões clandestinas, na sua casa, com o próprio Amílcar Cabral e outros nacionalistas guineenses, segundo informação do Leopoldo Amado (1)], está na segunda fila à direita; à sua frente, o 2º da direita é o Toi Cabral. Os restantes elementos da foto são alguns (quase todos) dos empregados do escritório da NOSOCO em Bissau (MD)

Foto: © Mário Dias (2006) . Direitos reservados

Guiné-Bissau > Bissau > Fortaleza da Amura (ou de São José da Amura> Talhões dos Heróis da Pátria, ao lado do Mausoléu de Amílcar Cabral > Túmulo do Domingos Ramos (1935-1966) que fez a recruta, em 1959, com o Mário Dias, tendo os dois frequentado, juntos, com aproveitamento, o 1º CMS - Curso de Sargentos Milicianos, organizado na Guiné. Promovidos a 1ºs cabos milicianos, separaram-se em Novembro de 1959: o Domingos foi para Bolama dar uma recruta, o Mário ficou em Bissau (2).

O Mário Dias, sargento dos comandos do Exército Português, sempre o considerou como amigo. Encontraram-se pela última vez, em 1965, nas matas do Xitole. Reconheceram-se, cumprimentaram-se por sinais, e afastaram-se, com os seus homens, sem uma única troca de tiros... Uma das histórias mais bonitas da amizade em tempo de guerra, entre dois homens que as circunstâncias separaram e colocaram em campos opostos, como amigos inimigos... Foi na região do Xitole, na zona
entre Amedalai e os rápidos de Cussilinta, perto da estrada Xitole-Aldeia Formosa-Mampatá... Vale a pena reler o segredo que o Mário guardou estes todos e revelou, em primeira mão, aos seus amigos e camaradas de tertúlia. Foi um dos momentos altos do nosso blogue (2).

Foto e legenda: © Luís Graça (2008). Direitos reservados



Guiné-Bissau > Bissau > Fortaleza da Amura > Homagem dos participantes do Simpósio Internacional de Guiledje a Amílcar Cabral e a outros heróis da luta de libertação nacional > 7 de Março de 2008

O Domingos Ramos morreu prematuramente em combate, em 10 de Novembro de 1966, em Madina do Boé, ao lado do cubano Ulisses Estrada (aqui presente, nesta cerimónia), tendo-se tornado num dos heróis da luta de libertação nacional. Sepultado no Boé, os seus restos mortais foram depois traslados para a Amura, o Panteão Nacional guineense. O Mário Dias sempre teve palavras de grande apreço e admiração pelo Domingos Ramos. Escreveu ele :"Se um dia tiver a oportunidade de regressar à Guiné, é meu firme propósito ir visitar a sua campa e prestar-lhe merecida homenagem. Não é pelo facto de termos combatido em campos opostos que deixei de ser seu amigo e de o admirar".

No dia 7 de Março de 2008, eu estive, juntamente com os demais participantes do Simpósio Internacional de Guiledje, junto aos túmulos dos heróis da luta de libertação nacional, entre eles, o Domingos Ramos. Tive um breve momento de recolhimento, em homenagem à sua memória, e não deixei de pensar nesse grande homem e grande português que é o nosso amigo e camarada Mário Dias, que viveu a sua adolescência e juventude em Bissau. Saiu da Guiné em 1966, como sargento comando (3).

Foto e legenda: © Luís Graça (2008). Direitos reservados

1. Mensagem do sargento dos comandos, na situação de reforma, Mário Dias, com data de 13 de Março de 2008. Era civil, em Bissau, quando em 1959 foi cumprir o seu serviço militar, juntamente com futuros dirigentes do PAIGC. Foi nomeadamente amigo de Domingos Ramos que desertou para o PAIGC (em Novembro de 1960).


Caro Luís e caros co-editores.

Depois de muito pensar e de muitas hesitações sempre me resolvi a "soltar este desabafo" que segue em anexo. Não é importante mas tive que fazê-lo para bem do meu equilíbrio emocional.

Um grande abraço para todos.

Mário Dias

Mário Dias


2. DESABAFO, por Mário Dias... [Ou o preço da mancarra no final dos anos 50]


Não tenho por hábito vir a terreiro debater afirmações produzidas na nossa Tabanca Grande. Acontece, porém, que um dilema se apoderou de mim pela dúvida que me tem assaltado em relação a dever, ou não, esclarecer afirmações que um tal Raul Fodé, de Empada, fez ao nosso prezado Zé Teixeira e que este reproduz num recente post (4).

Ao ler o referido post – e abro aqui um parêntese para dizer o agrado com que leio todas as intervenções do Zé Teixeira - fiquei perplexo com as afirmações do Raul Fodé no que se refere ao preço da mancarra dizendo que por um saco o comerciante de Empada lhe pagava “um peso”. Zé Teixeira, foste aldrabado. A não ser que os sacos fossem de meio quilo. Passo a explicar:

Nos meus tempos de empregado na NOSOCO, entre 1955 e 1959 ano em que fui para o serviço militar, comprei directamente aos indígenas muita mancarra, várias toneladas, sobretudo em Farim donde era escoada para os nossos armazéns em Binta e aí embarcada. Também em Bafatá exerci igual mister. Quando li que o tal comerciante de Empada pagava um peso por saco (um saco tem entre 15 a 20 quilos) fiquei, como se costuma dizer, “com a pulga na orelha”, pois me recordava perfeitamente que o preço praticado era à volta de dois pesos por quilo e era fixado anualmente por portaria do governo e publicado no Boletim Oficial.

Mas, como não gosto de fazer afirmações sem delas ter a certeza absoluta, pesquisei como pude na esperança de encontrar um Boletim Oficial da Província da Guiné. Não tive êxito mas, como quem procura sempre alcança, acabei descobrindo o sítio Memória de África onde no Boletim Semanal do Banco Nacional Ultramarino Nº 473 de 23 de Janeiro de 1958 se pode ler o seguinte no que se refere aos preços fixados para a compra e exportação de amendoim nesse ano:


Ao produtor indígena por Kg

- Nos portos de exportação.... 2$20

- Nos centros comerciais do interior

servidos por vias fluviais.....2$00

- Nas regiões fronteiriças:

Circunscrição de Gabú e Postos Administrativos

de Contuboel e de Cuntima..... 1$90


Recordo-me perfeitamente que, a quem ia entregar o produto nos nossos armazéns de Binta (porto de exportação), era paga a mancarra a 2$20 o quilo e isso acontecia tanto ao produtor directo como aos pequenos comerciantes, sobretudo libaneses, que a compravam nos seus estabelecimentos e utilizando camiões próprios ou alugados a transportavam para Binta.

Igualmente recordo de muitos dos produtores da área de Cuntima se deslocarem com os seus burros carregados de mancarra até Farim onde valia mais 0$10 por quilo do que no comércio daquela localidade.

Havia depois a cotação em bolsa que, por exemplo em 22 de Maio de 1958 (Boletim Semanal do BNU Nº 489), atingia o preço FOB de 52$50 a arroba (15 Kg.), ou seja, 3$50 o quilo. Para quem não estiver tão familiarizado com estes termos, FOB são as iniciais de free on board isto é, o preço do produto colocado a bordo e que era o pago pelo importador ficando as despesas do frete e seguro por conta deste.

Assim, conhecendo o hábito dos naturais da Guiné, capazes de andar longas distâncias só porque em determinada localidade um comerciante dava mais uns cobres pela mancarra ou os presenteava com o chamado labaremos (gorjeta ou qualquer tentadora oferta), estou em crer que o Raul Fodé faltou à verdade nas informações que prestou ao nosso querido Zé Teixeira. Não sei quem seria o comerciante a que se referiu. Eu conheci pessoalmente um comerciante de Empada, em 56 e 57, que se deslocava frequentemente a Bafatá efectuando inclusivamente alguns negócios com a NOSOCO onde eu trabalhava. Era um homem relativamente pequeno e magro. O nome já se me varreu da memória embora o seu aspecto e fisionomia estejam bem presentes. Creio ser Lúcio.

Também o referido post - até pelo subtítulo “Um exemplo de exploração colonial” - pretende reduzir a dita exploração (que de facto existiu e existe um pouco por todo o mundo) à ideia simplista de o colono rouba e o indígena é roubado. Ora, as coisas não são assim tão lineares porque a tentativa de enganar existia nos dois lados e era consequência uma da outra. Posso afirmá-lo com a relativa autoridade que me advém da experiência decorrente dos muitos anos em que na Guiné trabalhei no comércio. Alguns exemplos:

Cheguei a Farim em 1954 como empregado da NOSOCO onde na época da campanha da mancarra nós a comprávamos em grandes quantidades. No quintal do estabelecimento existia uma balança para pesar os sacos, balaios e outros recipientes com a mancarra transportada, pagando-se de seguida o respectivo valor ao proprietário. A primeira vez que fui para a balança, todo eufórico, pesei dois sacos que o agricultor transportava num burro e paguei rigorosamente a importância correspondente ao peso exacto da mercadoria. De imediato o Sissau Sama, um mandinga meu colega de trabalho, muçulmano íntegro e que sendo mais velho foi para mim como que um pai, me chamou à parte e repreendeu dizendo que o negócio não podia ser feito assim pois deveria ter tirado alguns quilos ao peso. Porquê? - perguntei-lhe. Ele colocou aqueles dois sacos à parte e disse-me que depois me explicava.

No fim do dia de trabalho pegou nos dois sacos e despejando-os numa tarara procedeu à sua limpeza. Quando terminou, o autêntico lixo daí resultante (pauzinhos, cascas, pequenas pedras, etc) foi pesado: 4 quilos. Fiquei pasmado! Vês? - disse ele. - Temos sempre de tirar alguns quilos no peso porque depois de limpa a quebra é grande e, como antes do embarque em Binta, toda a mancarra é passada na tarara porque os importadores são exigentes, a diferença, em muitas toneladas, seria grande e o gerente da firma responsabilizava-nos.
- Há ainda outra coisa que devemos ter em conta - acrescentou- A mancarra quando é trazida para cá está ainda muito húmida e por vezes até a molham para pesar mais. Depois ela seca no armazém e ao ser pesada para o embarque (a pesagem era fiscalizada pela guarda fiscal e alfândega) não corresponde ao que está registado no livro de aquisição.Por isso temos que nos defender das inevitáveis quebras.

Sabiam os camaradas que a Guiné foi exportadora de apreciáveis quantidades de cera e borracha até finais dos anos 50? E que essa exportação terminou porque os importadores deixaram de adquirir devido às vigarices dos produtores?

No que se refere à borracha, era apresentada no formato de novelos, como os de lã –salvaguardadas as devidas proporções. Os fios eram bastante grossos, sensivelmente com dois ou três centímetros de espessura, e com eles eram feitos novelos que atingiam as dimensões de uma bola de futebol. Recordo-me que eram bem pesados. Pois essa exportação terminou porque os inocentes produtores enrolavam a borracha em torno de uma pedra e até de pedaços de ferro para aumentar o peso. Com este estratagema causaram graves prejuízos à indústria pois alguma maquinaria que processava a borracha foi danificada. E assim a Guiné deixou de exportar borracha.

Algo de semelhante se passou com a cera. Os importadores exigiam que fosse exportada em blocos com dimensões normalizadas e isenta de qualquer tipo de impureza. Aí começou a “dor de cabeça” dos comerciantes exportadores porque quando a compravam aos indígenas ela era tudo menos limpa. Assim, viam-se na necessidade de a purificar.

Em Bafatá –certamente alguns estarão recordados- havia um comerciante, de seu nome João Batista Pinheiro, cujo estabelecimento comercial e residência se situava na parte baixa da vila numa casa de primeiro andar ao lado do mercado. No estabelecimento vendia-se e comprava-se de tudo como era hábito (ainda será?) na Guiné mas com a particularidade de ser também a farmácia lá da terra. Aí pontificava um sobrinho dele, o Albino, sensivelmente da minha idade e de quem eu era grande amigo. Aliás, a amizade era uma constante entre todos nós.

Voltando ao assunto da cera. No quintal, para onde os camiões podiam entrar através de um pórtico que passava por baixo da casa, o velhote João B. Pinheiro arranjou a sua fabriqueta para a depuração da cera. Sistema um tanto artesanal mas eficiente, consistia num enorme bidão de ferro onde era colocada a cera e seguidamente aquecido com uma fogueira por baixo a fim de que fosse derretendo. Quando esta já se encontrava no estado líquido era retirada cuidadosamente com o auxílio de um enorme caço de cabo bem comprido e vertida numas formas de madeira de formato e dimensões semelhantes às de fabricar blocos de cimento e previamente untadas com óleo de palma para facilitar a extracção uma vez arrefecida e solidificada. Desta maneira, como só era retirada a parte que se encontrava no estado líquido, ficavam no fundo todas as impurezas.

Parece que ainda estou a ver o velho João B. Pinheiro a vociferar impropérios cada vez que verificava a enorme quantidade de resíduos acumulados no fundo do bidão (terra, pregos, casca de árvores etc.) depois de retirada a cera aproveitável. O homem quase chorava e só não arrepelava os cabelos brancos porque os usava rapados. Lamentava o prejuízo enorme que a comercialização lhe dava e acabou por desistir. Como ele, muitos outros comerciantes deixaram de comprar cera e assim acabou a exportação.

Poderia citar outros casos mas estes são suficientes para lançar a pergunta: - Afinal, quem enganava quem?

Um outro assunto que merece reparo é o que está contido na frase “A Avenida principal de Empada estava plena de palacetes de estilo colonial...” (O sublinhado é meu)

O termo palacete é exagerado. As casas onde residiam os colonos eram sem dúvida melhores e mais confortáveis do que as palhotas dos indígenas mas não poderão considerar-se “palacetes”. Aliás, a questão da habitação está relacionada não exclusivamente ao poder económico mas também à própria maneira de ser e à cultura tradicional dos povos.

Eu conheci vários naturais da Guiné, africanos, que viviam em casas em tudo semelhantes às dos europeus. Outros mantinham-se na moranças tradicionais por opção própria. Cito um caso regressando ao Sissau Sama de Farim.

O Sissau tinha por mim grande estima e foi um conselheiro, um mestre que muito contribuiu para a formação do meu carácter. Tendo eu chegado com a bonita idade de 16 anos, ele preocupou-se com o meu comportamento que poderia não ser o mais adequado devido à falta de experiência e bom senso próprio dos verdes anos. Levava-me à sua morança situada na Morocunda (saída de Farim na estrada para Cuntima) depois de terminado o trabalho. Ensinava-me a forma como devia tratar as pessoas, a distinguir o certo do errado e apoiava-me em tudo. Jamais o esqueci nem esquecerei.

Pois o Sissau, como em geral todo o bom muçulmano, tinha 3 mulheres e era dono de enormes lugares de mancarra. (Aproveito para esclarecer que os campos onde era cultivada a mancarra se chamavam “lugares de mancarra”. Nas bolanhas cultivava-se o arroz). Acontecia que ele, melhor dizendo, as mulheres dele, só cultivavam uma pequena parte desses lugares. O suficiente, dizia ele, para ter algum dinheiro que lhe desse para a roupa, comida e mais nada.

Um dia sugeri-lhe que, se lavrasse a totalidade dos seus campos arranjaria dinheiro mais que suficiente para ter uma casa melhor. Poderia colocar telhas ou zinco em vez de colmo, pavimentar o chão, instalar electricidade, comprar um frigorífico (que na Guiné chamávamos geleira, djeladêra em criolo) e outros confortos semelhantes. Respondeu-me que não queria nada disso. Essas coisas eram para os brancos e eles gostavam mais de viver assim conforme estavam habituados.

Que dizer disto? Nada a não ser que não podemos forçar ninguém a viver segundo os nossos padrões e que por vezes pessoas que invejam o viver de outrem nem sempre se esforçam por melhorar a sua própria vida. Não precisamos de ir muito longe. Cá em Portugal existem muitas pessoas a viver em barracas de péssimas condições com grandes carros à porta, tv satélite e outras mordomias que muita gente que habita em casas normais e decentes, segundo os nossos padrões de vida, não têm.

Por aqui me fico porque esta lenga-lenga já vai longa e não quero aborrecer os caros tertulianos com as minhas lamentações. Acrescento que não pretendo de forma alguma criticar seja quem for mas somente prestar alguns esclarecimentos na tentativa de fazer ver que muitas das coisas que se dizem sobre a colonização não passam de estereótipos. Que houve erros, houve, nem tudo foi bom, não foi. Porém a colonização – prefiro chamar-lhe acção civilizadora - não pode ser posta em causa por eventuais erros de alguns porque, globalmente, não temos de que nos envergonhar. Por exemplo nos finais de 1974 Luanda, quando já lá se encontravam os líderes dos movimentos de libertação, recebeu vários jornalistas africanos curiosos para ver como se iria processar o futuro de Angola. A um jornalista do vizinho Congo perguntaram a sua opinião sobre o desenvolvimento daquelas terras bem como o ambiente do dia a dia. (Ainda não tinham começado os confrontos que depois opuseram MPLA, FNLA e UNITA). Pois o referido jornalista mostrou-se admirado com tudo o que viu dizendo: quem nos dera termos sido colonizados pelos portugueses.

E chega por hoje.

Mário Dias

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(1) Vd. postes de:

12 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXV: Antologia (24): Elisée Turpin, co-fundador do PAIGC (Élisée Turpin)

(...) "Para além das células, estabeleceram-se pontos focais, ou seja, elos de ligação no interior do País. Por exemplo, o elo de ligação em Farim era o Dionísio Dias Monteiro; em Bolama era Carlos Domingos Gomes (Cadogo Pai); em Catió era Manuel da Silva.

"Lembro-me de algumas pessoas que se movimentavam na altura como activistas políticos e muitos deles envolvidos na criação do Partido: Amilcar Cabral, Aristides Pereira, Rafael Barbosa, Luís Cabral, Abílio Duarte, Fernando Fortes, João Rosa, Inácio Semedo, Victor Robalo, Júlio Almeida, João Vaz, Domingos Cristovão Gomes Lopes.

Contudo, no dia 19 de Setembro de 1956, na fundação (criação formal do Partido, denominado PAI - Partido Africano da Independência), compareceram apenas 6 pessoas: Amilcar Cabral, Aristides Pereira, Luís Cabral, Fernando Fortes, Júlio Almeida, Elisée Turpin" (...)

26 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXXIX: Pidjiguiti: resposta do Mário Dias ao Leopoldo Amado

(...) "Reiterando os meus agradecimentos e admiração ao Leopoldo Amado, termino respondendo à sua estranheza por eu não ter referido a presença no cais do Pidjiguiti do Domingos Ramos, Constantino Teixeira e outros soldados africanos. Claro que eles lá estiveram, não no recinto do cais propriamente dito, mas nas imediações do mesmo tal como os restantes soldados. Eles faziam parte da companhia que regressava do aeroporto e para lá foi desviada.

(...) "Como tem sido recentemente muito referido o João Rosa, guarda-livros (actualmente designados contabilistas ou técnicos de contas) da NOSOCO, resolvi anexar uma fotografia tirada em Bissalanca na despedida do gerente da referida firma, monsieur Boris, que nesse dia regressava a Paris (está ao centro de fato e gravata). O João Rosa está na segunda fila à direita; à sua frente, o 2º da direita, é o Toi Cabral. Não sei se será o mesmo que o Luis Cabral refere como um dos principais obreiros na fuga do Carlos Correia. Gostaria obter essa confirmação mas não sei como consegui-la. Os restantes elementos da foto são alguns (quase todos) dos empregados do escritório da NOSOCO em Bissau (...).

Segundo o historiador e membro da nossa tertúlia Leopoldo Amado, o nacionalista João da Silva Rosa terá morrido às mãos da PIDE, em Abril/Maio de 1961.

João Rosa começou por ser um dos fundadores do MLG - Movimento de Libertação da Guiné, que antecedeu a criaçõ do PAIGC: Vd. poste de 25 de Fevereiro de 2006 >
Guiné 63/74 - DLXXXVI: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - II Parte

(...) " João Rosa, um dos líderes históricos do MLG lembra (segundo o seu auto de interrogatório na PIDE datado de 1962) de ter integrado este movimento a convite de José Francisco Gomes e de ter participado na primeira reunião do MLG em princípios de 1958, na qual estiveram igualmente César Fernandes, Ladislau Lopes, este último mobilizado por Rafael Barbosa, elemento que viria a revelar a grande veia mobilizadora, chegando mesmo a protagonizar em entre 1959 e 1959 uma rotura que praticamente definhou a estrutura residual do MLG em Bissau" (...).

(...) "Na sua meteórica passagem por Bissau, Amílcar Cabral acordou com os seus principais colaboradores, na altura Aristides Pereira, Luís Cabral, Fernando Fortes, Rafael Barbosa e João da Silva Rosa em como largaria tudo e seguiria para a República da Guiné (Conakry) de onde enviaria directrizes. Efectivamente, a decisão de Amílcar Cabral de escolher um poiso de apoio na Guiné-Conakry foi devidamente sustentada com o exemplo de Pindjiguiti, pois que para ele era a prova iniludível da natureza permanentemente violenta do sistema colonial que, sintomaticamente, tinha maior força nos centros urbanos, donde a razão porque era preciso proceder a uma extensa e meticulosa preparação para a guerra de libertação e a mobilização dos camponeses para responder com violência à violência colonial" (...)..

(2) Vd. postes do Mário Dias (e outros) sobre o Domingos Ramos:

2 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCI: Domingos Ramos, meu camarada e amigo (Mário Dias)

2 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCIII: Domingos Ramos e Mário Dias, a bandeira da amizade (Luís Graça / Mário Dias)

2 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCIV: O segredo do Mário Dias, ex-sargento comando

12 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2343: PAIGC - Quem foi quem (5): Domingos Ramos (Mário Dias / Luís Graça)

20 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2461: Blogoterapia (38): Dois heróis, dois homens com valores, Domingos Ramos e Mário Dias (Torcato Mendonça)

(3) Vd. outros postes do Mário Dias:

(i) Memórias de Bissau:

9 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXII: Memórias do antigamente (Mário Dias) (1): Um cabaço de leite

19 de Fevereirod e 2006 > Guiné 63/74 - LDXVI: Memórias do antigamente (Mário Dias) (2): Uma serenata ao Governador

15 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXX: Memórias do antigamente (Mário Dias) (3): O progresso chega a Bissau


(ii) Op Tridente (Ilha do Como, Janeiro-Março de 1964):

15 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLI: Falsificação da história: a batalha da Ilha do Como (Mário Dias)

17 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXCV: A verdade sobre a Op Tridente (Ilha do Como, 1964)

15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXII: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): Parte I (Mário Dias)

16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXV: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): II Parte (Mário Dias)

17 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXX: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): III Parte (Mário Dias)

(4) Vd. poste de 17 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2545: Blogoteria (41): Guileje, Gadamael, Mata do Cantanhez... e a memória das gentes (José Teixeira)

(...) Disse-me ele:
- A região do Tombali, tal como a de Forreá, foram outrora muito ricas em arroz, milho, madeiras, peixe, etc. As etnias tinham os seus chefes, as suas normas e conseguiam entender-se de modo a que tudo estava bem. Chegaram os brancos vindos de Bissau, a produção aumentou muito, desenvolveu-se a produção da mancarra, que deu cabo da terra. A população começou a trabalhar para os brancos, dividiu-se e lentamente empobreceu, apesar de trabalhar e produzir muito mais. Os brancos, esses, ganharam muito dinheiro. Repara, eu, Fodé, vou na bolanha, com mulheres e filhos, rasgo a terra e semeio mancarra. Arranco as ervas más, cavo a terra para amolecer e provocar o enraizamento, passo lá todo o tempo a defender de animais e do bandido. Quando está seco, corto separo e ensaco, transporto para loja do branco, que me paga um peso [moeda antiga que correspondia a um escudo] por saco. Quando chega o barco, tenho de fazer o transporte desde a loja do branco. Isto é tudo trabalho meu. Agora sabes quanto recebe o branco por cada saco de mancarra ?
- Dois pesos - disse eu convictamente.
- Dois? Era bom! Por cada saco de mancarra, cultivada, secada, ensacada e embarcada por mim, o branco recebe quinze pesos" (...).