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quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21344: Notas de leitura (1305): "O Cântico das Costureiras", de Gonçalo Inocentes (Matheos) - Parte II (Luís Graça): a importância de se ter uma máquina fotográfica e um bloco de notas...


Guiné > Região de Quínara > Mapa de Tite (1955) > Escala 1/50 mil >  Posição relativa da Ponta de Jabadá,  na margem esquerda do Rio Geba.  Da ponta de Jabadá, o PAIGC flagelava a navegação do Geba. Até que esta posição foi conquistada pelas NT, em 1965,  e montado lá um destacamento. O Gonçalo Inocentes conta como foi (pp. 76-79). Pertence à região de Quínara (ou Quinará, mas não Quinhará...)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2020)



Capa do livro de Gonçalo Inocentes (Matheos), "O Cântico das Costureiras: crónicas de uma vida adiada, Guiné, 1964/65" (Vila Franca de Xira, ModoCromia, 2020, 126 pp, ilustrado).



Guiné > Bissau > Brá > c. 1964/65 > Fur mil at cav Gonçalo Inocentes, de rendição individual, tendo passado pela CCAÇ 423 e pela CCAV 488, entre 1964 e 1965.

Foto (e legenda): © Gonçalo Inocentes (20w0) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da apresentação do último livro do Gonçalo Inocentes (Matheos), membro nº 810 da nossa Tabanca Grande: foi fur mil at cav, CCAÇ 423 e CCAV 488 / BCAV 490, de rendição individual (1964/65), tendo passado por Bissau, Bolama, S. João, Ponta de Jabadá,  e Jumbembem... Nasceu em 1940, em Nova Lisboa (hoje, Huambo, Angola). Está reformado da TAP e vive em Faro. 

Este é o tipo de livrinho de memórias que todos gostaríamos de poder escrever e publicar em papel, reportando-nos à nossa experiência como militares na Guiné, entre 1961 e 1974. O que o nosso camarada Gonçalo Inocentes fez foi fazer uma seleção das fotos do seu álbum, tendo em conta o conteúdo temático e a qualidade da imagem... Ele é dos que acham que uma imagem vale muito, mas só por si não chega: é preciso uma legenda, uma data, um local, uma pequena história... 

Damos alguns exemplos das suas pequenas crónicas, ilustradas por um grupo de imagens com valor documental... A ordem, sequencial, é meramente exemplificativa. De resto, o autor não apresenta nenhum índice:

(i)  Quartel da CCAÇ 423, em São João , região de Quínara]  (p. 21);

(ii) O batptismo de fogo (pp. 32.34);

(iii) Rendição (ao cansaço) (pp. 38-39);

(iv) Aerograma (pp. 42-43);

(v) Os tornados (pp. 56-57);

(vi) Minas e fornilhos (pp. 60-61);

(vii) Os guias (pp, 66-67);

(viii) Nova Sintra- Serra Leoa (pp, 71-73);

(ix) Ponta de Jabadá: os dias difíceis (pp. 76-77);

(x) Os chefes dos residentes, Malan Cassamá e Secu Camará (pp. 78-79);

(xi) Capitão Monroy (pp. 81-82);

(xii) O médico [, dr. Torcato Adriano Serpa Pinto, natural do Porto] (pp. 86-88);

(xiii) Dia negro (pp. 89-90);

(xiv) A grande bolanha (pp. 92-93);

(xv) Alegria de viver (pp. 95-96);

(xvi) A despedida (da CCAÇ 423) (pp. 99-100);

(xvii) Com a marinha (pp. 103-105);

(xviii) CCAV 488 (pp. 106-107);

(xix) João Landim (pp. 108-109);

(xx) São Vicente (p. 110);

(xxi) Eu vi um banho na Guiné (pp  111-113);

(xxii) The end (pp. 115-118);

(xxiii) Cruz Potenteia (pp. 122-123).


A técnica é simples e está ao alcance de todos: basta pegar em lápis e papel (ou no teclado do computador) e passar à escrita o turbilhão de memórias que ainda temos na cabeça: memórias dos lugares, das pessoas, da geografia, da a fauna e da flora, das peripécias da tropa e da guerra, etc., à mistura com os sentimentos (, de alegria, de tristeza, de medo, de euforia, de descoberta, de revolta, de esperança, de amizade, de camaradagem, etc.) que todos experimentámos, ao longo de quase três anos, envergando a farda do exército português naquela "terra verde-rubra"... Depois, todos temos algumas notas escritas, nas fotos, nos aerogramas, em cadernos, em diários, etc.

O título do livro pode (e deve) basear-se numa imagem ou ideia fortes: por exemplo, o som das "costureirinhas", servindo de fio condutor à narrativa...

No caso do Gonçalo Inocentes, julgo que ele aproveitou bem o confinamento imposto pela pandemia de covid-19, e teve também o nosso blogue como auxiliar de memória, recorrendo por exemplo aos mapas do território, que disponibilizamos "on line". As suas memórias são muito importantes, até por que se trata de um camarada, nascido em 1940, e que ainda é  do tempo da farda amarela (o camuflado veio depois) e do início da G3... Chegou à Guiné em abril de 1964, num altura em que os "periquitos" ainda eram "maçaricos"...


2. Mas retomando o fio à meada (*), vemos o nosso camarada, com dois anos de tropa passados em Santarém, na Escola Prática de Cavalaria,  e um 12 de nota final do CSM, o curso de sargentos milicianos, ser mobilizado para o TO  da Guiné, em rendição individual, ser metido num DC6, aterrar em Bissalanca, ficar uma noite em Brá, e partir, no dia seguinte, de barco, para Bolama e, depois, para São João, seu destino final  (pp. 16-21).

Pormenor delicioso: durante a viagem, no DC6 (,carregando "carne para canhão",  homens para a guerra no mato, mas também senhoras de graduados que iam para as "intermináveis sessões de canasta" de Bissau), o Gonçalo Inocentes conhece um outro angolano, o capitão 'comando' [Maurício] Saraiva, que não está com meias tintas, quando sabe o seu destino, e lhe dispara: "Estás fodido, pá. Tem um capitão que é uma merda e já tem uma mão cheia de mortos"... Referia-se à CCAÇ 423, que estava em São João...

Não sei se o autor confirmou esta impressão à chegada à sua nova unidade, "sua nova morada e nova família" (p. 19)... Mas as fotografias que publica na pág. 21 são elucidativas; aquilo não era um quartel, era um "bidonville tropical"... E a sua receção está de acordo com as NEP: 

"Na varanda da única casa existente. estava o capitão Nuno Basto Gonçalves, sentado, com uma toalha ao pescoço e era barbeado por um soldado. Tinha a seu lado sentada uma mulher chinesa. À volta era um quartel de lata (...). Apresentei-me, como é norma no exército. O capitão com aquela secura que é própria dos capitães, apenas me disse: 'Está apresentado'. Nem mais uma palavra" (p. 20).

E mais à frente uma estendal improvisado, com roupa ímtima feminina estendida... E havia uma impedido para tratar da roupa da senhora...

Não menos  calorosa foi, num outro dia, a saudação que veio do ar, do na altura furril mil pil Honório Brito da Costa. Eram já amigos um do outro, do tempo da Escola de Regentes Agrícolas de Santarém. Um angolano, outro cabo-verdiano. Nas férias, em Lisboa, encontravam-se no Café Palladium, nos Restauradores, ou na Suíça, no Rossio. E tinham por hábito, ir a pé até à Portela de Sacavém, tomar uma bica na varanda do 1.º andar do aeroporto, só para "ver... os aviões".

Quis o destino que se encontrassem na Guiné, na mesma altura... mas sem o Honório saber onde estava o amigo... Até que o descobriu e fez-lhe uma surpresa... Numa manhã, o aquartelamento de São João foi sobrevoado, em voo rasante, por um T6 Harvard, pondo a tropa em sobressalto.  Pela rádio, ouviu-se o piloto  a pedir para chamar o furriel Inocentes. Finalmente, em contacto via rádio, o Honório em fúria desanca no Inocentes: "Cabrão, cabrão, cabrão! Ando doido à tua procura! Não sabias dizer onde estavas ?"... E deu-lhe um abraço "by air" que se ouviu em toda a Guiné... e em Bissalanca. 

Claro que o Honório deve ter levado uma porrada... Mas esta é uma das histórias deliciosas que o Inocentes nos conta, e que eu resumo aqui para os nossos leitores. 

Mas há mais (p. 24):  meses depois, com o Inocentes de férias, em Bissau, ele e o Honório foram ao baile dos finalistas  do Liceu Honório Barreto [, lapso: eram da Escola Técnica de Bissau...], na "inesquecível noite de sábado do dia 5 de junho de 1965"... Ambos entram sem convite porque o Honório era... um senhor e era cabo-verdiano!... Mas ao Virgínio Briote e outros comandos foi-lhes barrada a entrada!... Acabou tudo à pancadaria, como sabemos (**).

Falando do Honório (***) "como senhor", o seu amigo acrescenta: 

"(...) O Honório ficou conhecido por toda a Guiné. Era o único furriel que tinha entrada na messe de oficiais  da marinha, onde a discriminação  de 'ranks' era pior que racismo"(p. 24).



Guiné > Bissau > Associação Comercial, Industrial e Agrícola > 5 de junho de 1965 >O baile dos alunos finalistas da Escola Técnica de Bissau. Imagem da revista "Plateia", de julho de 1965, digitalizada e gentilmente cedida pelo Virgínio Briote. 

(Continua)
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(**) Vd. postes de:


quinta-feira, 9 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14857: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (V Parte): Brá, SPM 0418

1. Parte V de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 5 de Julho de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489 (Cuntima), e Comando do 2.º curso de Comandos do CTIG (Brá), CMDT do Grupo Diabólicos (1965/67).


GUINÉ, IR E VOLTAR - V

Brá, SPM 04181

Inferno na mata em frente a Brá. O sol queimava ainda não eram 9 da manhã.
Quicos à legionário pelo pescoço abaixo, trinta e tal tipos desapareciam pelo chão.
A cento e tal metros, Saraiva, Miranda, Moita, Mário Dias e outros, estrategicamente colocados, vigiavam-lhes os movimentos.

Um rabo mais levantado, pau pau nos troncos das palmeiras. Aqueles filhos da puta quase que me acertavam, viste? Cuidado com os gajos, pá! E vim eu de Guileje, grita o Vilaça! Pau pau, para o gajo que piou. Sai, sai daí, Vilaça, os tipos agora não te largam! Saio como, pá? Que merda!

Mata em frente a Brá

Quico a espreitar por um lado da palmeira, pau pau, outra vez no tronco.
Vão ali dois gagos aos esses, não os largue, assape-lhes, o Saraiva para um dos outros. Projécteis a bater no chão, lascas da terra a saltar, buum buum, granadas ofensivas a cair-lhes aos lados.
Olhos a cuspirem ódio no meio da poeirada. Estes cabrões não me largam! Um dos desesperados, localiza a palmeira onde se abrigava o capitão. Levanta suavemente o cano da G3 e tira a folga ao gatilho lentamente até a bala ir por ali fora e desaparecer no tronco, a pouco mais de dois metros do chão, talvez.

Um silêncio a durar minutos, ninguém se mexia. Estão à espera de quê, meninas? Nada, nem um pio.

Tinha acabado de jantar no hotel Portugal com o Toni, com quem matara saudades do Porto. O Toni Ramalho tocava no conjunto do Toni Hernandez que fizera e ainda fazia furor entre a malta nova, a animar as festas em Santo Tirso, Riba d’Ave, Vizela, Guimarães, um pouco por todo o Norte. Viera de férias, e claro, falava da metrópole. Ora então, Toni, abre lá!



Hotel Portugal, Bissau

Com os olhos brilhantes, ouvira-o cantarolar o "Calhambeque" e "E que tudo o mais vá pró inferno", do Roberto Carlos, Love me Tender do Elvis the Pelvis, a Sylvie Vartan, pá, o Johnny Holliday, Les garçons et les filles da Françoise Hardy, já ouviste? Les Quattre-cents coups, grande filme do Truffaut! Qual filme de guerra, pá, é a história de um miúdo, de 14 ou 15 anos para aí, que passa a vida no desenrascanço, os pais não querem saber dele, passa a vida a golpar para ir ao cinema. Duas horas para aí, sempre a ouvir!

O curso de comandos chegara ao fim. Segunda-feira começava a preparação dos novos grupos. Os nomes já estavam escolhidos, os Centuriões herdavam os sobreviventes dos Fantasmas do Saraiva, os Apaches os dos Camaleões do Godinho, os Vampiros o 4.º grupo que não existia anteriormente e os Diabólicos ficavam com o pessoal dos Panteras do tenente Pombo.

Quatro semanas cheias, com muita emoção, actividade física até mais sim, andar na mata de noite e de dia como deve ser, aprender a assobiar de noite, como pôr a arma a olhar, tentar distinguir os sons à noite e de dia, ligar disparos a armas, sentir ricochetes, chicotadas altas e baixas, projécteis a bater nas árvores, exercícios, repete, outra vez, táctica no terreno, sempre com fogo real. Trabalho nocturno todas as noites, granadas a toda a hora e em todo o lado, até debaixo da almofada da cama, montagem e desmontagem de minas e armadilhas, travessia de bolanhas, tiro de todas as posições, instintivo para alvos móveis, tiro-a-tiro, rajadas curtas de 3 a 5, disposição para emboscadas e golpes de mão, uso e manutenção dos rádios AN PRC/10, AVF, Hitachi, National, prática de primeiros socorros, injecções nas veias, intramusculares, intradérmicas até.

Nos intervalos da instrução no mato faziam por praticar uma alimentação rica em proteínas. Pão, se tivessem, e se não tivessem mais nada que se desenrascassem, que arranjassem na natureza. Apanhavam moscas e gafanhotos, tiravam-lhes as asas, pão fechado depressa, para aproveitar tudo.

As tribos da Guiné, Fulas, Balantas, Mandingas, Papeis, Manjacos, Felupes, Bijagós e o que se sabia da posição deles face ao conflito, utilização de guias, tudo embrulhado com muita mentalização, tanta que quando estavam a dormir eram acordados pela Voz, precedida de música alta, ritmada, intensa. Depois da Voz, música suave ajudava-os a adormecer.
Ao fim de semana descansavam. Iam para o mato executar golpes de mão a acampamentos do PAIGC que o Saraiva tratava de lhes arranjar nas 2.ª e 3.ª Repartições

De uma das vezes voaram num Dakota para leste, Canquelifá, foram procurar uma base da guerrilha no Piai, na fronteira com a Guiné-Conacri e em duas outras vezes foram para o triângulo do Oio, um na área de Bissorã, o outro entre Mansoa e Mansabá. O pessoal, à volta de 20 oficiais e sargentos enquadrados por comandos naturais da Guiné, Mamadú Jaló, Marcelino, Kássimo, o Tomás Camará e poucos mais, portara-se bem.

Sentia-se bem preparado, tinha a consciência que estava mais forte, já que tinha que ser, podia fazer uma guerra como devia ser.

Porta de armas do quartel de Brá. 
© Foto do autor.

O quartel de Brá era enorme. Era melhor que estivessem sós, mas repartiam sem grandes problemas as instalações com os Adidos e com o Batalhão de Artilharia 733. As instalações eram boas, limpas todos os dias. Os quartos seguidos, num edifício térreo de frente para a messe, uma rua de alcatrão bem tratado no meio, um campo de volei ao lado.


terior do aquartelamento de Brá. Messes em frente, à direita. 
© Foto de Mário Dias.


No edifício à direita pernoitavam os oficiais dos comandos. Para lá da mata em frente ficava a base aérea e o aeroporto de Bissau.


As traseiras davam para terra batida, capinada uns dias antes que ainda cheirava a fresco, o arame farpado a pouco mais de 200 metros, junto à estrada alcatroada que ligava Bissau a Mansoa e que se ramificava depois em estradas de terra batida, picadas como lhe chamavam, para Bissorã uma, para Mansabá a outra, formando os dois lados do famoso triângulo do Oio, albergando pequenos mas numerosos acampamentos Inimigos em volta da base de Morés, destruída e logo de novo levantada noutro lugar próximo.


O aeroporto de Bissalanca a escassos quilómetros era um entretimento, iam lá tomar café, ver as chegadas dos voos semanais da TAP, as hospedeiras de saia travada a descerem as escadas do avião, o pessoal novo a chegar, chamavam-lhes maçaricos, periquitos meses depois, quase todos em rendição individual, as caras deles, coitados, e as jovens mulheres recém-casadas ao encontro dos maridos, corações descontrolados, mortos por as apertarem, beijos envergonhados, os olhares invejosos dos outros nas pernas delas.

No bar do aeroporto, o Paul Anka, às vezes, fazia o fundo, Only you. No quarto que repartia com o Vilaça, herdado do Saraiva e do Godinho, adormeceu embalado com a música ritmada da ventoinha do tecto.
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Nota:
1 - Serviço Postal Militar e nome de código atribuído à CªCmds.

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Incidentes em Bissau

Nada de admirar, estamos na época das chuvas. O chumbo do céu a bater no alcatrão, até fumo subia! Voltou ao quarto a correr, no gravador a Rita Pavone "Perché, perché, la domenica mi lasci sempre sola"... Vilaça na cama, olhos no tecto, cantava com ela, oh Rita, grande Rita, canta, sua desgraçada, abre-me bem essas goelas!

Sem saber o que fazer, voltou a deitar-se, os Centuriões2 outra vez na mão. As coisas não andavam famosas em Brá, nem tudo estava a correr bem. O capitão Rubim ameaçava demitir-se, pirar-se deles. Acima de tudo estava farto, cansado de ver por um canudo as promessas do Comando Militar.

Do Porto nada de notícias. A última carta que tinha recebido não lhe deixara muitas esperanças. Que não sabia se a coisa ia dar certo, que estava com dúvidas, que se calhar era melhor fazer uma pausa na escrita. A retaguarda ameaçava ruir, sentia falta de pé. Nestes meses todos, habituara-se a vê-la como se fosse a boa consciência que tinha deixado lá. Recebia cartas regulamente, todas as semanas, era um ritual pegar nelas, retirar-se para o quarto, abri-las, cheirá-las, pô-las por data, deitar-se na cama, ouvi-la.

Já há tempos que mantinham essa correspondência. Escreve para aqui, escreve para acolá, conheceu-a já nem se lembrava bem como. Gostou dela desde o início. A figura batia com o que escrevia. Foi para os Açores até que acabou por ser mobilizado.

Nos dias de férias da mobilização, antes do embarque, foi despedir-se. Daquele turbilhão de acontecimentos em tão poucos dias recordava o momento em que se separaram na Avenida dos Aliados, na paragem dos eléctricos, frente à Arcádia. Se um dia viesse a casar, era com ela que gostaria. Interessado, escrevia-lhe com regularidade, dava-se a conhecer melhor. Ela dava-lhe notícias, geralmente optimistas, do trabalho, da faculdade, da vida no Porto.
Mantinha-o ligado à vida real.

A Guiné estava a ser uma coisa estranha, um trambolhão de acontecimentos absurdos, uns atrás dos outros. Ia abatendo os dias para as férias cada vez mais próximas, mantinha-se mais ou menos equilibrado, parecia ter ganho até uma imagem de bom senso naquela barafunda.
Escrevia para alguns amigos e para um conhecimento de Angra. Esporádicos, do género como tens passado, vai correr tudo bem, o tempo passa depressa, nós por cá vamos andando.
De Angra, a correspondência era diferente, trazia-lhe recordações daquela liberdade, daqueles meses loucos, de Setembro quase até ao Natal do ano passado. Tanta liberdade, meu Deus, tanta asneira, nem sabia como saíra dali incólume, manchado saíra de certeza.

Todos, mas todos os regulamentos do Exército tinham ido para o tecto. O trabalho que teve para arranjar aquele conhecimento, quase que desistira, chegou até a pensar oferecer-se voluntário para sair dali, nem que fosse para a Guiné. O tempo que gastou atrás dela, a chuva que apanhou à noite a subir a pé para o Monte Brasil3, sem nada, nem uma esperança. Mais de 15 dias seguidos, ela sempre com cara de pau, conversa só se fosse para chamar a polícia. Amanhã é dia de última tentativa, andava a repetir há dias.

Ao fim de duas semanas, o tempo que se perdeu, ela lá se dispôs a conhecer o quartel. Ele, feito burro, acreditou que estava perante uma santa, mostrou-lhe a relíquia da capela do quartel, uma igrejinha dos tempos de um Filipe de Espanha, as muralhas, até o dístico "Antes mortos livres que em paz sujeitos", tão ingénuos como ele afinal.

Finalmente conseguiu convidá-la para uma partida de bilhar na sala de oficiais. As portas fechadas, que o comandante ainda não saíra, taco na mão, puseram-se a jogar bilhar livre.

Ela, quase do tamanho dele, mas muito melhor proporcionada, que vistosa nem se fala, a cor da pele que as açorianas têm, quando pegava no taco, o vestido a subir por ali acima. Meu Deus. As bolas difíceis, então aquele tripé ou lá como se chama, não está aí? Nem associava nada, aquela maravilha toda estendida em cima do pano verde, e ele definitivamente arrumado no jogo.
O taco na mão dela, o cabelo comprido em cima dos olhos. Perdeu o sentido do jogo, de oficial de dia também, ia até perdendo a compostura se ela não lhe diz, hoje não. Hoje não, porquê?
Ora porque não, nem hoje nem amanhã, depois de amanhã vamos a ver, ele sem perceber, mais burro que nunca, ela a sorrir. Nem um beijo, nem nada? E ela, mas quem pensas tu quem sou? Tudo a ruir, o castelo também se calhar, tanto esforço para nada. Hit the road, Jack, o Ray Charles a estrear a grafonola comprada dias antes no PX4.

E subitamente, dois dias depois, ficou a saber quem ela era, o jogo todo aberto. Uma loucura dali para a frente. Por acréscimo, nem é bom falar nisto, pusera-se a poupar dinheiro à tropa, dando prémios aos melhores recrutas. Quem fizer 20 flexões, quem correr os 100 metros antes dos 20 segundos, quem se apresentar melhor, quem fizer isto tudo, dois dias de dispensa!
Num dia, lá para as 11 da manhã, estava a despachar o pequeno almoço e o expediente, tudo ao mesmo tempo, o 1.º sargento disse-lhe, talvez não seja má ideia, meu aspirante, avisar o pessoal do rancho, quase metade da companhia de recrutas está de licença estes dias todos.
Uma vergonha, nem lembrar quanto mais para contar. Tributo à gente boa daquelas ilhas, que terra tão abençoada!

As cartas desse conhecimento traziam-lhe os cheiros da Ilha, o capacete da humidade daqueles dias em Setembro, a vontade de preguiçar, os banhos sem roupa no mar dos Biscoitos5, naquelas manhãs e tardes em que as ondas iam e vinham, mansas, embrulhadas na bruma. O gosto da areia na boca, as mordidas naqueles seios minúsculos, os bicos enormes, o beijo até sentir as coxas dela a apertar-lhe o pescoço. Cartas perturbadoras, claro, de esquecer.

"Morreu um tipo de um país qualquer6, o Salazar decretou 3 dias de luto e lá estamos nós a ouvir música de mortos com a nossa bandeira a meia haste. Custa-me engolir estas histórias quando os nossos mortos estão a ser ignorados.

Fala-se no próximo baile de finalistas, que vai ser uma festa de arromba. Alguns dos nossos vão roncar com as namoradas ou com os arranjinhos. O Parreira anda todo satisfeito, até o Quintanilha, aquele alferes dos páras mandou vir da metrópole um fato de cerimónia! Quando estive de férias em Lisboa logo a seguir à formação dos grupos, os Fantasmas accionaram uma mina e foi o que se sabe, 9 dos nossos já lá estão. Entre eles o meu grande amigo Artur. Morrem-nos 9 homens e a Emissora Nacional continua a twist e a ié-ié. É isto que me custa engolir. E ainda por cima, cabo-verdianos e alguns guineenses não vêem com bons olhos a nossa presença nas festas deles”, descarregava o Miranda, mais que irritado.

Mas que raio estava aqui a fazer? A Guiné não lhe estava a dizer nada, não a sentia como sua, sentia-se um intruso. Até com os civis brancos, poucos, talvez três dúzias, se calhar nem tanto, para além da cor da pele, de comum não sentia nada. E até lhe parecia que a sua presença era bem vinda como comprador, só isso.

Na esplanada do Bento7, a 5.ª rep. como também era conhecida, bebia cerveja com mancarra, num grupo de meia dúzia de alferes e furriéis comandos. Um terá dito, depois, que naquela noite, na Associação Comercial de Bissau, havia o baile dos finalistas da Escola Técnica. Outro lembrou-se de perguntar se alguém recebera convite. Eu não, tu não, aquele também não. Ninguém se lembrou de nós, como pode ser? Queres ir? Vamos.

Edifício da Associação Comercial e Industrial de Bissau. 
© Foto do autor.

Dentro da Associação, no enorme salão de baile, finalistas e professores da Escola Técnica de Bissau, familiares e convidados, todos animados a dançarem ao ritmo da orquestra do maestro Reis Pereira, viram alterado o programa por volta da meia-noite.

Os poucos elementos policiais, que se espalhavam pelas escadas de acesso ao andar de cima, tentaram barrar-lhes a entrada. Não conseguiram. Quando os dançantes os viram entrar em fila, fizeram alto e o baile parou. Depois, ninguém soube bem como tudo começou.

A princípio, as frentes pareciam bem delimitadas, a maioria dos participantes em festa de um lado e a meia dúzia de intrusos do outro. Com o decorrer das hostilidades, as duas partes em confronto clarificaram-se ainda mais. Quando se começaram a ouvir vivas ao camarada Presidente Amílcar o conflito alargou-se para a via pública, até que um pelotão da PM entrou em acção. Trinta e tal tipos com escoriações para o hospital, a polícia civil e a PIDE também metidas, vidros e loiças em cacos, cadeiras e mesas partidas, uma noite que nunca mais acabava.
Mesmo em frente ao Palácio do Governo, onde, soube-se depois, da janela, o Governador via aqueles gajos darem-lhe cabo da psico. Uma vergonha!
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Notas:

2 - Jean Lartéguy, escritor panfletário das acções da Legião Estrangeira na Indochina e na Argélia Francesas.
3 - Castelo de S. João Baptista, antiga fortaleza, onde estiveram presos muitos oposicionistas ao regime que vigorou em Portugal até ao 25 de Abril.
4 - Armazém da USAF na Base Aérea da Terceira.
5 - Freguesia do Concelho da Praia da Vitória
6 - John Kennedy, presidente dos E. U. América.
7 - Cervejaria com esplanada na baixa de Bissau, muito frequentada por militares.

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Nino? Sentido!

Nove horas da noite, grupos em sentido na parada. Porta fechada num gabinete. O capitão pergunta aos comandantes dos grupos os porquês de tanto atraso da formatura. Para que horas estava marcada a instrução dos grupos? Às 21? E que horas têm? 21h02? Às 21h00, 1 ou 2 minutos depois são outras horas, ou não? Um minuto, meu capitão, resmunga baixo um! Uns bardamerdas é o que vocês são, os gajos fazem o que querem de vocês!

O meu grupo estava pronto às 5 para as nove, diz-lhe outro. Saraiva pára, vira-se de frente, olha-o de baixo para cima, dispara, ouça lá seu alferesinho de merda, você acha que não sou capaz de o pôr daqui para fora ao murro e pontapé?

Não devia ter falado, meu capitão, agora já estou avisado. a raiva tira a boina, o alferes não lhe larga os olhos. O capitão passa a mão pelo cabelo, três afastam-se ligeiramente a olharem para o lado, o outro segue-lhe os movimentos.

Esta, suas meninas, esta, martela o capitão, com a mão virada para o tal, é a única, a única atitude que um comando pode ter! Falamos mais tarde, alferesinho, agora todos à minha frente, 20 flexões para cada um, grupos incluídos.


Capitão Maurício Saraiva, com os "Apaches" ao fundo. Brá, Setembro de 1965.


O capitão Maurício Saraiva, promovido a capitão por distinção, até então o único vivo com a Medalha de Valor Militar em Ouro, depois de duas cruzes de guerra, tinha metido o chico8, estava em Lisboa na Academia Militar.

Aproveitara as férias para vir a Bissau dar-lhes instrução operacional, e sair com eles para o mato durante o curso de comandos para oficiais e sargentos do CTIG.

Foi um dos fundadores dos comandos da Guiné. Tinha estado em Angola, com o Godinho, os irmãos Roseira Dias, o Miranda e outros. Depois formou o grupo dos Fantasmas e com ele percorreu a Guiné de uma ponta a outra.

Deixou fama pela forma como fazia a guerra, por vezes parecia encará-la como se fosse uma brincadeira. Fazia que retirava, dava às vezes até sinais de fuga descontrolada, como se quisesse animar o IN a mostrar-se confiante. Escondia-se com o grupo, paciente, uma ou duas horas se fosse preciso. E depois, Fantasmas ao ataque! Uma série de êxitos coroavam-no e era objecto de mal disfarçada homenagem, numa altura em que a regra era ver as NT recolhidas a posições defensivas.

Mas nem sempre as coisas correram bem. Tanta intrepidez e desafio também lhe trouxeram sérios problemas.

Novembro de 64, dia 28. Perto da fronteira com a Guiné-Conacri, na estrada de Madina do Boé para Contabane, a uma escassa centena de metros do pontão sobre o rio Gobige, os Fantasmas detectaram uma mina anti-carro.

Levantaram a mina e simularam o rebentamento. Ficaram emboscados nas proximidades cerca de 2 horas. Viram um grupo IN aproximar-se e afastar-se logo que deram pela presença de mulheres na estrada. Uma hora depois viram um elemento IN a fugir. Afinal, estavam em igualdade de circunstância, todos sabiam da presença uns dos outros. No dia seguinte voltou com o grupo ao local. Meteu-se com alguns soldados no Unimog mais pequeno à frente, e encaixou o resto do grupo no Unimog maior atrás. A primeira viatura passou, a outra, uma dezena de metros atrás, não. Pisou uma mina. A viatura incendiou-se, as munições explodiram como foguetes num arraial minhoto e do depósito de combustível saía fogo. Quase todos os homens foram projectados a arder. Sete mortos logo ali e três feridos graves. Regressaram doze a Bissau. Com o grupo dizimado, poucos dias depois arrancou com os restantes para uma operação.

Já quase no final da comissão, em Cameconde, lá para o sul. No diário do furriel João Parreira, um deles, podia ler-se:
 
“6 Maio 65. Saímos às 15h00 para a operação “Ciao”, num Dakota até Cacine e depois em viaturas até Cameconde, onde já se encontrava um pelotão à nossa espera. O Capitão Rubim foi connosco. Saímos às 19h00 em direcção ao objectivo. Segundo as informações que nos foram fornecidas, a base IN era composta por cerca de 80 homens bem armados, comandados por Pansau Na Isna, chefe militar, adjunto do João Bernardo Vieira, de etnia Papel, mais conhecido pelo Comandante Nino.

Já na madrugada do dia 7, a poucos quilómetros do objectivo demos indicações ao pelotão para permanecer ali e esperar pelo nosso regresso, com a missão de proteger a nossa retirada ou dar-nos apoio, caso fosse necessário. Assim, seguimos silenciosamente até perto do acampamento, situado na mata a sudoeste de Catunco. Apesar de termos feito uma aproximação cuidadosa, fomos detectados por uma sentinela. Tentámos assaltar o acampamento. Mas eles estavam bem preparados, reagiram ao nosso fogo e o tiroteio prolongou-se. Quando o fogo deles abrandou, entrámos por ali dentro e vimos material abandonado durante a fuga. Oito armas, cunhetes de munições, granadas, petardos, equipamentos, minas, fardas, e muitos documentos, entre os quais um caderno que pertencia a um tal Armindo Pedro Rodrigues, com elementos importantes da Ordem de Batalha do PAIGC.

Carregados com o nosso material e com o que tínhamos capturado, regressámos para junto do pelotão de recolha. Juntámo-lo e começamos a vê-lo em pormenor. Faltava o aparelho de pontaria de um morteiro, até então ainda não apreendido na Guiné.

O Morais afiançava tê-lo visto lá. O tenente Saraiva chamou o Amadú e o Morais e disse-lhes para voltarem ao acampamento. Embora estivéssemos conscientes do perigo, arriscámos, partindo do princípio que o IN se tinha retirado após as baixas sofridas. O Morais perguntou quem é que queria ir com ele e com o Amadú. Ofereci-me bem assim como o capitão Rubim, o furriel Matos e mais 7 camarada, 10 no total.

De novo no interior do acampamento a arder. Vi uma árvore gigante, com umas cavidades enormes. Espreitei para dentro de uma, o Morais para a outra, à procura de material, e o restante pessoal, por ali perto, fazia o mesmo. Subitamente, rajadas de metralhadora e granadas de bazuca caíram-nos em cima. Uma destas rebentou entre nós. Um pequeno estilhaço partiu a coluna do Morais, que caiu sobre uma fogueira. Eu fui atingido no lado direito das costas, mas na altura nem localizei o ferimento.

Vi o Morais a morrer quando o olhei de relance. Um vago murmúrio, depois mais nada, um ar sereno no rosto, pareceu-me. Deitei-me e reagi ao fogo, mas passado pouco tempo fiquei sem força no braço, a G-3 ficou muito pesada, e depois já nem o gatilho conseguia apertar. Passei a espingarda para o braço esquerdo e fiz fogo, mas julgo que não fui nada eficaz. Os outros 8 camaradas, embora ligeiramente, foram todos atingidos. Depois os restantes elementos do Grupo foram lá buscar-nos. Junto do pelotão de apoio, injectaram-me morfina. Tinha perdido muito sangue. Prestaram-me os primeiros socorros em Cacine.

Fomos evacuados para Bissau. Eu de barriga para baixo, bem atado, com mais uma injecção de morfina, e o Morais, morto, cada um em macas de lona, encaixados no exterior do heli9. Durante o trajecto, e em duas localidades diferentes, na minha sonolência ouvi rajadas de metralhadora que me pareceram passar rente ao helicóptero. Pareceu-me uma eternidade a viagem até ao hospital de Bissau, onde, depois de me terem operado, fiquei internado.

8 Maio. O Marcelino foi o primeiro a vir ver-me ao Hospital. O crucifixo que eu trazia ao peito era uma crosta, uma grande cruz de sangue seco. Pedi-lhe que o lavasse.

9 Maio. Muitos camaradas me visitaram hoje, o major Dinis, o tenente Saraiva, o alferes Pombo, os furriéis Matos, Moita e o Miranda, claro. Da parte da tarde vieram a D. Beatriz Sá Carneiro, mulher do Comandante Militar e a D. Mariana do MNF10.

O Morais era órfão de pai. No caso dele correu tudo no mesmo sentido. Mal. Não era necessário a presença dele nesta operação, já tinha acabado a comissão. Em Brá tentaram persuadi-lo, mais que uma vez, a não ir. Tantas vezes, que diferença vai fazer sair mais uma, insistia. Não embarcou com o Batalhão a que pertencia, por ter combinado que esperava que o tenente Saraiva e os furriéis Matos, Moita e Ilídio acabassem a comissão. A estes faltavam-lhes apenas 15 dias. Imaginava o regresso à Metrópole, todos juntos num navio, como se regressassem de um cruzeiro de férias.

O Miranda recebeu o corpo no Hospital. Foi ele com o Mário Dias, o Fabião e o Ilídio que o lavaram, vestiram e deitaram no caixão. Fizeram uma colecta para a compra do caixão de chumbo. E coincidência, morreu no mesmo dia em que o seu Batalhão de origem desfilava em Lisboa, com a missão cumprida.”

Claro que, fosse para onde fosse, o Saraiva trazia com ele esses e outros acontecimentos, como se uma auréola o enfeitasse.

Quando reentrou em Brá, para passar o tal mês de “férias”, apresentaram-lhe os novos que estavam a frequentar o curso e pessoal já bem conhecido dele, o capitão Rubim, o sargento Mário Dias, os furriéis Miranda, Moita, Matos, Fabião, o João Parreira, o cabo Marcelino, os soldados Kássimo, Tomás Camará, o Adulai Jaló e outros.

Dos novos conhecia um ou outro, e aos que não conhecia tinha algum tempo à frente para os ver trabalhar no mato e depois veria a quem entregaria o crachá. Passava a vida a pô-los em sentido. Uma volta na conversa e lá vinha o Nino à baila. O Nino, estão a olhar para mim?

O Nino11, que porra, estes gajos são todos surdos? O Nino, ele a insistir e os alferes com falta de entendimento. Sentido, porra! Aqui nos comandos quando se fala no Nino, toda a macacada, vocês também, saltam como uma mola, estejam onde estiverem, não interessa, põem-se a pé! Em sentido!

E foi assim que se fez escola, dali para a frente, sempre que alguém pronunciava o nome do Nino, os outros punham-se em sentido.

Uma vez, em Biambe, na zona do Oio, uma tempestade como não havia na memória deles, tinha partido o grupo em dois, aí pela uma da madrugada, noite negra como só em África quando o céu está todo tapado. Um, sozinho, lá encontrou o trilho depois de andar a tactear o chão. Daqui não saio, vou-me mas é sentar!

A chuva não parava, pareciam pedras a cair, faziam tanto barulho no camuflado que receou que o denunciassem. Ainda bem que só tinha as cuecas debaixo, menos peso para carregar. Nada de sinais, nem de trás nem da frente. Esta é boa, onde é que os gajos se meteram, que merda, assobiou baixo, a imitar o pássaro que afinaram no curso. Nada de respostas, minutos a passar, chuva em barda. Estou frito, estou mesmo perdido, o coração como um cavalo a galope, até sentia calor, olhava para todo o lado e só via escuridão, pirilampos nem vê-los, nada, só ouvia o barulho da água a bater. E agora, o que faço? Eles hão-de dar pela minha falta, não me vão deixar aqui. E se não derem?

Calma, esperas pelo nascer do dia, viras as costas ao Sol, cortas mato, nada de trilhos, sempre em frente, até à estrada Mansoa-Bissorã, escondes-te, há-de aparecer uma coluna um dia destes, quase todos os dias passam. Depois é só saltar para a estrada e pronto. E se a guerrilha te vê, o que é que fazes? Pois. Minutos a durarem horas, o coração outra vez.

Um pequeno som, pareceu-lhe, serão eles, ou estarei a sonhar? Um assobiar baixinho. É isso, são eles, nunca mais vinham, assobia também, assobio cada vez mais próximo, uma mão, o Kássimo, o Saraiva atrás. Então e os outros? O capitão, danado, a bufar, e os outros? Kássimo à frente a assobiar, dentro do trilho, foram andando para trás, mãos no cinturão do da frente. Encontraram o capitão Rubim e o alferes Vilaça, os dois sentados, costas com costas. A dormir na forma, ah?

No outro sábado o Saraiva encontrou os quatro alferes sentados, tinham acabado de almoçar na messe de Brá. E o programa para hoje, qual é, perguntou. Vou até Bissau espairecer, diz um, outro vou mas é dormir com a cama, a correspondência a preocupar o terceiro, o quarto, sei lá? Ele arranjava um melhor, têm 5 minutos para se equiparem para sair.

Levou-os para o aeroporto, os motores já quentes do Dakota pronto para descolar. Foram para leste, Nova Lamego até Canquelifá, perto da fronteira com a Guiné-Conakri. Chegaram com o Sol quase a ir-se. Esperaram fechados dentro do avião, os motores parados.

Abriram-lhes as portas, entraram directos para uma GMC com as lonas corridas. Meteram-lhes lá dentro queijo partido aos bocados e pão. O Saraiva, gargalhada baixa, a pedir os cantis, para encher de água fresca, disse. O meu não precisa, está cheio até cima, nem se ouve, mesmo que o abane, diz um. Passe, o capitão a insistir. Que a marcha ia ser longa, cerca de 20 km, e a água vai ser decisiva.

Ouçam bem, só bebem quando eu der sinal, todos a beber ao mesmo tempo.

© Foto do Júlio Abreu. Com a devida vénia.

Carvão negro na cara e nos braços, pareciam manjacos e mandingas. Pôs-se o sol, meteram-se no mato, dois a dois, trilhos fora, quilómetros e quilómetros, a noite toda.

Comandos ao ataque, o Saraiva desalmado a gritar, como gostava de começar o dia. Fizeram-se a eles, por ali dentro, as casas de mato com 2 ou 3 gajos que nunca lhes tinham sido apresentados a pisgarem-se. Depois, um dos intrusos passou à história. Da gargalhada. Quando sentiu os projécteis de uma metralhadora pesada inimiga a bater lá em cima nas árvores, até disse para os outros, olha a NT a apoiar! Os outros a rirem-se, uma força danada dentro deles. No caminho do regresso lembraram-se da genica que sentiram, estamos numa forma do caraças, não estamos?
Nunca souberam de onde tinha vindo tanta gana, se calhar tinha sido quando o capitão,

 finalmente, autorizou meterem água, devia ter vitaminas. A certa altura do caminho de retirada, começaram a ficar sem forças. Estranharam, nunca lhes tinha acontecido, não acertavam com o trilho, não era só um, eram todos. Menos o capitão. Alguns paravam, encostavam-se às árvores, queriam sentar-se, os olhos para cima. Quem parar fica para trás, o Saraiva lá à frente, na esgalha. Em pequenos grupos foram chegando. Em Canquelifá, uma cerveja gelada, boca abaixo, duma vez só. Alguns só acordaram com os motores do Dakota e um ou dois nem assim. A caminho do avião, pareciam zombies, em coluna por um, pelo campo fora.

Da outra vez, mandou tapar-lhes os olhos com algodão, fita adesiva e um lenço negro por cima. Só tiram os lenços e o adesivo quando eu mandar. É para ver se adivinham para onde vamos passar o fim-de-semana. Viaturas pela estrada fora, para onde havia de ser, para o Oio. Quando entraram em Mansoa, pararam. Então, quem é amigo? Para onde vamos então? Toca a tirar os lenços, olhos e ouvidos bem abertos agora. Foram por ali fora até Bissorã. A mesma história do queijo e do pão, uma cerveja para cada um, cantis cheios de água, por aqueles trilhos, a noite toda.

Um cigarro agora é que sabia bem. Pois, também a mim me apetecia estar na praia de Carcavelos, ao sol com a miúda, os ouvidos dele em todo o lado. Fumas no fim do fogo. O dia clareou, estavam no sítio certo, as casas de mato em frente. Os guerrilheiros é que faltaram à chamada naquela altura. Não saímos daqui enquanto os gajos não aparecerem, o capitão a provocá-los. Vieram mais tarde, quando já não dava muito jeito, mas arranja-se sempre qualquer coisa, que remédio. Um daqueles alferes integrado na equipa do furriel Moita, apanhado num campo de mancarra, com nada para se abrigar, ou estava com pressa de regressar a Bissau, ou tinha visto no cinema uma cena parecida, chateou-se, aqui vou eu, quem quiser que venha. Quis lá saber da parelha e da equipa, meteu-se por aquelas casas de mato dentro. Depois ficou lá dentro sozinho, sem saber bem o que fazer. Os companheiros daquele fim-de-semana encontraram-no a olhar para o ar, para os ramos das árvores a abanarem com as balas. Estes gajos nunca mais aprendem, porra, 20 flexões aí já, o Saraiva oportuno como sempre. Agora sim, podem fazer fogo com o isqueiro, toca a fumar!
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Notas:

8 - Dizia-se dos milicianos que passavam ao Quadro Permanente.
9 - Allouette II
10 - Movimento Nacional Feminino.
11 - Considerava o Nino como um verdadeiro chefe militar e, apesar de inimigo, merecedor de respeito.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 7 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14845: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (IV Parte): Comandos do CTIG

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Guiné 63/74 - P14467: Tabanca Grande (456): Sebastião Ramalho Lavado, ex-sold comando, CCmds do CTIG, Grupo Apaches, Brá, 1965/66... Mais um camarada da diáspora: vive em em França há 45, está reformado.




Guiné > Brá > Comandos do CTIG > &gt4 de setembro de 1965 > Cerimónia de imposição dos crachás aos novos comandos > Formatura (1)


Guiné > Brá > Comandos do CTIG  > 4 de setembro de 1965 > Cerimónia de imposição dos crachás aos novos comandos > Formatura (2): O grupo Apaches, aque pertencia o Sebastião Ramalho Lavado.



Guiné > Brá > Comandos do CTIG > 4 de setembro de 1965 > Cerimónia de imposição dos crachás aos novos comandos > Formatura (3)



Guiné > Brá > Comandos do CTIG > 4 de setembro de 1965 > Cerimónia de imposição dos crachás aos novos comandos > Formatura (4) : Cap mil comando Saraiva_impõe os  crachás_ao grupo Apaches



Guiné > Brá > Comandos do CTIG > 4 de setembro de 1965 > Cerimónia de imposição dos crachás aos novos comandos > Formatura (4)


Guiné > Brá > Comandos do CTIG > 4 de setembro de 1965 > Cerimónia de imposição dos crachás aos novos comandos >  Desfile dos novos comandos depois da cerimónia de entrega dos crachás




Guiné > Região do Cacheu > CCmds do CTIG> Novembro de 1965 > Material capturado ao PAIGC pelo grupo Apaches., comandados pelo nosso grã-tabanqueiro, o 2º srgt comando Mário Dias.



Guiné > Brá > CCmds do CTIG > 20 de junho de 1966 >  Fim da comissão


Fotos (e legendas): © Virgínio Briote (2015). Todos os direitos reservados.

I. Mensagem e fotos enviadas pelo Virgínio Briote em 30 de março passado:

Assunto - Sebastião Ramalho Lavado

Boa tarde, Camaradas

Lembro-me do nome do Sebastião Lavado, embora não tenha pertencido ao meu grupo [, que era os Diabólicos]. Anexo alguns nomes, faltam-me 4 ou 5 que ainda não descobri, do Gr Cmds Apaches, comandado na altura pelo então alf mil António Neves da Silva, hoje coronel reformado.

Anexo também algumas fotos daquele tempo, em que o Sebastião pode ver alguns dos seus camaradas de então e talvez se possa rever em uma ou outra imagem. A maior parte refere-se à imposição dos crachás em 4 de setembro de 1965, em Brá, com a presença do gen Schulz e do cmdt militar de então,  cor Monteiro Guerra (?). 

Duas outras das fotos que envio  referem-se ao grupo Apaches em Bigene onde, numa acção comandada pelo notável sargento Mário Dias, em que o grupo entrou por um acampamento e capturou as armas que aparecem numa outra imagem.

Para o Sebastião Lavado um abraço e o reconhecimento por se ter lembrado dos camaradas dos comandos do CTIG (Brá, 1965/66).


II. Em 4 setembro de 1965 terminou o 2º Curso de Comandos do CTIG.  Eis a relação dos nomes do Grupo  Apaches:

1. Alf mil António Amadeu C. Neves da Silva / 2º Sargento Mário Dias

2. 2º Sargento Mário Roseira Dias (ex-”Camaleões”)

3. Furriel mil Carlos Alberto Correia da Silva (ex-”Camaleões”)

4. Fur mil João Severo Parreira (ex-“Fantasmas”)

5. Fur mil Fernando José Gomes Cordeiro

6. 1º Cabo José Maria Branco

7. 1º Cabo António Jacinto Rosário Moreira

8. 1º Cabo Manuel Xarepe (ex-“Fantasmas”, substituiu o Moreira)

9. 1º Cabo Carlos Alberto M. Messias

10. 1º Cabo Alberto Alves

11. Soldado Lifna Cumba (ex-“Camaleões”, morto em 19/10/66, ao serviço da 3ª CCmds)

12. Soldado Reinaldo Ângelo de Oliveira

13. Soldado Mário B. Henrique Dias

14. Soldado Rolando da Costa Martins

15. Soldado Jacinto da Conceição Venâncio

16. Soldado Sebastião Ramalho Lavado

17. Soldado Idílio Lourenço Filipe

18. Soldado José Alfredo Martins (ex-“Camaleões”)

19. Soldado Carlos Manuel Soares

20. Soldado Ilídio Manuel Faria Coelho


III.  O nosso editor Luís Graça deu, de imediato, em 31 de março,  conhecimento desta mensagem ao filho do Sebastião Ramalho Lavado e convidou o nosso camarada,  que reside em França,  a integrar o nosso blogue:

Cher ami: Voici des photos envoyées par le camarade Virginio Briote, commandant du groupe "Diabólicos" [Diaboliques], de la même compagnie des comandos de la Guinée portugaise (Brá, 1965/66)... Il est très heureux de savoir de nouvelles du camarade Sebastiao Ramalho Lavado, dont il se souvient bien!...

J'invite ton père à intégrer cette comunnauté virtuelle d' anciens combattants de la guerre en Guinée (1961/74)... J'ai besoin seulement de une photo actuelle de ton pére!...Je pense que ton père et ta famille vivent en France depuis beaucoup de temps... Et quelle est l' origine de ton père, au Portugal ? Tu pourrais nos renseigner un petit peut sur son histoire de vie... Bonne santé. Luis Graça


IV. O filho do Sebastião Ramalho Lavado respondeu-nos ontem, nestes termos:

Bonjour, monsieur, je vous envois une photo actuelle de mon pére,  monsieur Ramalho Lavado Sebastião. Mon père vive en France depuis 45 ans. Il est marié depuis 47 ans à Rosa Maria Saraiva Lavado. Nous sommes 4 enfants,  3 garçons qui ont 44 ans, 41  ans, 42ans, puis une fille de 29 ans de la même épouse. Il est à la retraite depuis 3 ans, il a été maçon à son compte durant 42 ans. Il a 6 petits enfants entre 18 ans et 2 ans pour le plus petit. Merci beaucoup bonne journée.

Ramalho Lavado Sebastiao








Duas fotos recentes do novo membro da Tabanca Grande, Sebastião Ramalho Lavado, ex- sold coamndo, da CCmds do CTIG (Brá, 1965/66). Foram enviadas por um dos seus filhos que já há dias nos tinha contactado (*). 

Vive em França há 45 anos., em Le Barcarès [ município situado no departemento dos Pirinéus Orientaos, região de Languedoc-Roussillon], ou seja, no sudeste, junto ao Mediterrâneo. Está reformado, foi pedreiro por conta própria durante 42 anos. É casado com Rosa Maria Saraiva Lavado. É pai de 3 rapazes e uma rapariga. Tem 6 netos. O contacto, por email,  é feito através de um dos filhos, que escreve em francês. Temos o endereço postal e o nº de telefone do nosso camarada. Só não sabemos em que parte do nosso país nasceu...

Em nome do nome editor Luís Graça e demais equipa desta blogue, saúdo o nosso novo grã-tabanqueiro, que passa a ser o nº 678 (**). Agradeço igualmente ao Virgínio Briote as preciosas fotos, que nos mandou, dos valorosos comandos do CTIG (Brá, 1965/66).

Sebastião, as regras do nosso blogue constam da coluna do lado esquerdo. Este é um blogue de partilha de memórias (e de afetos) à volta da guerra colonial na Guiné, entre 1961 e 1974. Desejo-te muita saúde e longa vida. E felizes reencontros através do nosso blogue. Felicidades para a família.

À bientôt!

Carlos Vinhal
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Notas do editor:

(*)  Vd. poste de 29 de março de  2015 >  Guiné 63/74 - P14413: Em busca de... (233): Ramalho Lavado Sebastião, comando da CCmds de Brá, grupo Apaches (1964-66) procura camaradas do seu tempo...

(**) Último poste da série > 15 de fevereiro de  2015 > Guiné 63/74 - P14260: Tabanca Grande (455): José Júlio Dores Nascimento, ex-Fur Mil Art da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo, Quinhamel, 1969/71)

terça-feira, 11 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12823: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (82): Maurício Saraiva, a sobrinha Luciana Saraiva Guerra, hoje empresária no Brasil, e o seu conterrâneo de Sá da Bandeira (, hoje Lubango, Angola), Rui A. Ferreira

1. Mensagem, com data de 21 de fevereiro, enviada por Luciana Saraiva Guerra,  sobrinha do ex-capitão comando Maurício Saraiva, e nossa grã-tabanqueira nº 616 (*):


Boa tarde,  Luís!


Daqui escreve a sobrinha do falecido Maurício Saraiva ! Está lembrado?

Estou muito em falta com o Luís, mas tenho acompanhado o blog, as notícias e seus e-mail´s !

Gostaria de lhe deixar meus sentimentos pelo falecimento da mãe. Gostaria de desejar a todos vocês um grande ano de 2014 !

Transmita meus melhores cumprimentos ao Virgínio [ Briote]! Acho que um dia ainda nos vamos conhecer. Eu estou trabalhando bastante. Minha empresa Importadora está trazendo os vinhos da região de Valpaços para o Brasil. Estou muito feliz por poder ajudar aquela terra maravilhosa. Comprei o primeiro container [, contentor,] há pouco tempo e tenho a certeza que muitos outros se seguirão nos próximos tempos.

Também tenciono trazer os azeites.

Vou deixar aqui meu site inteiramente dedicado àquele terroir que mora em meu coração. Meu tio Maurício também gostava muito de Possacos[, freguesia do concelho de Valpaços, Trás os Miontes]

Espero que partilhem no blog, com vossas opiniões sempre pertinentes:

www.mayerimportadora.com.br

Um grande abraço desta tabanqueira, que está longe mas sempre acompanhando amigos do meu tio

Luciana Saraiva Guerra



Página (comercial) dedicada aos vinhos de Valpaços...A empresa brasileira Mayer, Coelho, Heinzen & Guerra Importadora Ltda. "iniciou os seus negócios trazendo os vinhos das Caves de Valpaços para o Brasil através de Santa Catarina, porque nossa sede está em Florianópolis, porque os catarinenses são grandes apreciadores de vinho, porque quisemos combinar vinhos interessantes, com personalidade e típicos com cidades modernas, vibrantes e em crescimento"...


2. Mensagem do nosso querido amigo e camarada Rui Alexandrino Ferreira, autor de Rumo a Fulacunda, e que foi alf mil inf na CCAÇ 1420 (Fulacunda, 1965/67) e cap mil inf na CCAÇ 18 (Aldeia Formosa, 1970/72)...

[ De acordo com a nota biográfica da sua editora, a Palimage, (i) nasceu em Angola, em 1943;  (ii)  em 1964 "integra o último curso de oficiais milicianos que reuniu em Mafra a juventude do Império; (iii) em 1965, rende, na Guiné,  um desaparecido em combate; (iv) em 1970, frequenta o curso para capitão em Mafra, seguindo em nova comissão para a Guiné; (v) em  1973, regressa a Angola em outra comissão; (vi) em  1975, retorna a Portugal; (vii) em  1976, estabiliza em Viseu, onde continua a residir.]


O então alf mil Saraiva em Angola, em 1963,
aquando da frequência do curso de Comandos.
Foto: Virgínio Briote (2013)
Data: 7 de Março de 2014 às 16:18

Assunto: Mauricio Saraiva

A Atenção de: Luciana Saraiva Guerra


Chamo-mo Rui Alexandrino Ferreira, sou Tenente Coronel do exército, reformado, cumpri duas comissões de serviço na Guiné de 1965 a 1967 e de 1970 a 1972.

Nasci em Sá da Bandeira [, hoje cidade do Lubango, capital da província da Huíla, em Angola, ] e fiz todo o curso liceal, no Liceu Diogo Cão.

Aí, fui companheiro de teu pai, que presumo ser o Gustavo Saraiva, pois não conheci mais nenhum irmão do Leonel Saraiva.

A minha idade, está entre a do teu tio e do teu pai.

Se falares ao teu pai, no Rui Alexandrino, no Rui Gordo ou no Rui da Académica, ele te dirá quem sou.

Hesitei em entrar em contacto contigo não, por ser um tanto critico de algumas acções do teu tio, de algumas faltas de rigor, de uma certa vaidade que ele ostentava e de que nada precisava, pois foi efectivamente um grande combatente.

Como já te deves ter apercebido, sobre o teu tio se contavam mil e uma histórias.


Capa do livro de Rui Alexandrino Ferreira, Rumo a Fulacunda.
2.ª edição, 2003
Palimage Editores
(Colecção Imagens de Hoje).
415 páginas
Preço de capa: c. 20€.

A memória que merecem os mortos e o facto extraordinário de nós, portugueses, exagerarmos sempre no que contamos, normalmente acrescentando um ponto da nossa laia, por vezes não ajudam.

Se estiveres interessada, estou na disposição de te enviar o livro que escrevi, "Rumo a Fulacunda",  onde retrata as experiências da primeira comissão na Guiné.

Tem um capitulo, totalmente dedicado a Sá da Bandeira, que presumo que te poderá ser útil, espero pois que me digas alguma coisa.

Por aqui ficamos por hoje. (**)

Com toda a consideração, Rui Alexandrino Ferreira 

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 6 de maio de  2013 > Guiné 63/74 - P11531: As Nossas Tropas - Quem foi quem (11): Maurício Leonel de Sousa Saraiva, ex-cap inf comando (Brá, 1965/67) (Luciana Saraiva Guerra)

(**) Último poste da série > 16 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12727: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (81): António Medina, natural da ilha de Santo Antão, Cabo Verde, foi fur mil da CART 527 (Teixeira Pinto, 1963/65) e vive hoje nos EUA, onde descobriu o nosso blogue

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Guiné 63/74 - P11531: As Nossas Tropas - Quem foi quem (12): Maurício Leonel de Sousa Saraiva, ex-cap inf comando (Brá, 1965/67) (Luciana Saraiva Guerra)

1. De Luciana Andrade Guerra, sobrinha do ex.-cap comando Maurício Saraiva, e nossa nova tabanqueira (nº 616) (*), mensagem datada de 30 de abril último, dirigida ao Virgínio Briote e  de que este nos deu conhecimento:

De: Luciana Andrade Guerra
Enviada: 30 de abril de 2013 14:15
Para: Virgínio Briote
Assunto: Coronel Maurício Leonel de Sousa Saraiva

Prezado V. Briote,

Agradeço-lhe de coração pelos seus sentimentos e sua gentileza. Fiquei realmente feliz por encontrar pessoas queridas que resolveram compartilhar tantas experiências de um passado e se juntaram num Blog como esse e ainda algumas, como o Virgínio, tiveram vínculos com meu tio Maurício.

Eu tenho comigo também muitas fotografias, mas são mais fotografias de família, quando meu tio era ainda muito jovem e vivia em Sá da Bandeira, em Angola. Ele nasceu na Ganda. Depois meu avô Francisco Saraiva se mudou para Sá da Bandeira.

Meu avô Francisco só voltou para Portugal nos anos 60, ia já doente e acabou por falecer devido a um câncer no pulmão.

O tio Maurício foi uma pessoa com sua vida muito preenchida, de amigos e ocupações diversas. Sei que morou muitos anos em Madrid, onde chegou a exercer o cargo de Diretor numa empresa grande, que tinha filiais nos EUA e outros países. Meu tio viajava bastante. O tio tinha um hábito muito interessante, que hoje nos ajuda muito, ele sempre colocava as datas nos postais e fotografias que ia mandando para meu pai e minha avó (sua mãe). Sempre se lembrava da sua mãe e de meu pai. Qualquer viagem que fazia, mandava notícias através de lindos postais e fotos que ele mesmo adorava bater. Minha irmã ficou com uma coleção incrível desses postais que o tio foi mandando ao longo de tantos anos.


No final dos anos 70 e durante os anos 80 e ainda 90, a família tinha o costume de se reunir para passarmos um dia juntos no Natal. Era sempre uma festa muito grande, meu tio era muito animado, contava muitas histórias e levava presentes para todo o mundo.

Minha avó Tininha gostou de todos os filhos, mas tinha uma grande admiração pelo seu filho mais velho.



.Guiné > Brá >  Cap inf comando Saraiva, à frente da CCmds do CTIG em Set 65. Na foto,  o cap Saraiva rodeado pelo João Parreira, Virgínio Briote e Marques de Matos.

Foto: © Virgínio Briote (2013). Todos os direitos reservados.


Durante o pós-Guerra em África, e depois do acidente que o deixou hospitalizado, ele foi para Londres, onde viveu alguns anos. Sei também que minhas duas bisavós: Lu+isa e Emília adoravam o neto. Quando meu tio estudava já em Portugal, costumava passar as férias de verão junto com as avós em Possacos [, Valpaços]. Acho que ele devia exercer uma espécie de liderança, pois seus primos tinham uma grande adoração por ele.

Meu tio chegou a participar anos mais tarde na Guerra do Golfo. E sobre este episódio nada mais sei. Infelizmente não temos contato com a sua segunda esposa (viúva de meu tio), porque ela se afastou de nossa família e também não tinha um relacionamento próximo com meu primo Francisco Henrique (único filho de meu tio). A primeira esposa do tio, Isabel, mãe do Francisco Henrique, ainda é viva.

Meu primo é casado e teve 6 filhos homens ! hi hi, meu tio não chegou a conhecer todos os netos, nem meu filho João Henrique, o mais novo nascido já aqui em Florianópolis em 2005.

Meu tio Maurício chegou a conhecer meu marido Baltazar,
com o qual estou há 22 anos. Um dia num casamento de uns amigos, numas férias que fizemos em Portugal, estivemos sentados à mesa com o Sr. General Eanes e sua esposa Manuela. Qual não foi meu espanto, e nem me lembro porquê, meu tio foi tema de conversa e parece que foram colegas na Academia Militar.

Aliás, sei que meu tio era muito amigo do Sr. [gen] Almeida Bruno. Este senhor visitou muitas vezes meu tio, quando ele já estava internado antes de falecer.

Bom, não quero maça-lo com minhas histórias, e gostaria que o V. Briote se sinta á vontade para me contar mais histórias, porque a história de meu tio ficaria incompleta se não juntarmos o tempo que passou em África junto com seus camaradas, alguns agora reunidos neste Blog.

Acho que meu tio Maurício ficaria muito feliz por saber que resolvi escrever este livro sobre a avó. Aliás ele em vida me incentivou a buscar a origem dos Sousa da parte da avó. Cheguei muito longe, ele nem sonha as histórias incríveis que descobri, os documentos antigos que consegui junto do Arquivo Distrital de Vila Real. Estou quase comprovando que nosso 10º avô descende de uma linhagem de nobres e guerreiros que nos levam a D. Afonso III...penso que meu tio iria ficar extremamente orgulhoso.

Existe ainda mais uma história incrível, que eu não sei dizer se meu tio sabia ou não, nem como ele iria reagir!

Meu avô Francisco ficou órfão de pai muito cedo. Filho único veio com seu tio Domingos Saraiva para o Rio de Janeiro ainda extremamente jovem. Por aqui ficou 14 anos. Conheceu uma senhora de uma família de Possacos  e tiveram um filho chamado Manoel Bernardo Saraiva. Só que meu avô estava indo de novo para Possacos naquele ano para ver sua mãe, minha bisavó Luisinha. Nessa estadia conheceu minha avó, numa linda propriedade de Possacos que minha avó teve. 

Nunca mais se separaram, portanto meu avô foi para Angola com minha avó e não voltou mais para o Brasil. Acontece que eu,  ao fim destes anos todos, conheci uma senhora de 86 anos que se chama Amélia que mora em Lisboa e tem toda a sua família em Possacos, ela é tia do meu tio Manoel Bernardo Saraiva, irmão de meu pai e do tio Maurício. Nós estamos procurando este tio, que se for vivo terá 86 anos também ! Ele teve uma filha Saraiva.

Estou em contato com alguns sobrinhos dele e todos estamos tentando encontrar esse tio. Bom, mas este é outro capítulo da minha história...risos. Este assunto era tabu na casa de minha avó (logicamente).

Mande mais histórias, ontem mesmo abri conta no Google e acho que já faço parte do Blog da Tabanca Grande !

O Sr. Luís Graça  também conheceu meu tio? O Sr. Virgínio mora em Lisboa?

Um abraço e mais uma vez obrigado,

Luciana Saraiva Guerra (**)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 4 de maio de 2013 > Guiné 63/74 - P11526: Tabanca Grande (407): Luciana Saraiva, sobrinha do ex-cap comando Maurício Leonel de Sousa Saraiva, nova tabanqueira, nº 616 (a viver em Floripa, Brasil)

(**) Último poste da série > 18 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10399: As Nossas Tropas - Quem foi quem (10): Ten Cor Manuel Agostinho Ferreira, o "metro e oito", comandante do BCAÇ 2879 (Farim, 1969/71) e BCAÇ 2892 (Aldeia Formosa, 1969/71) (Paulo Santiago / Carlos Silva / Manuel Amaro)

sábado, 4 de maio de 2013

Guiné 63/74 - P11526: Tabanca Grande (397): Luciana Saraiva, sobrinha do ex-cap comando Maurício Leonel de Sousa Saraiva, nova tabanqueira, nº 616 (a viver em Floripa, Brasil)

1. Mensagem de Luciana Saraiva Andrade Guerra, sobrinha do ex-cap comando Maurício Saraiva, já falecido (com o posto de coronel), e de que foi dado conhecimento ao Virgínio Briote, nosso coeditor (jubilado) e um dos nossos camaradas da Tabanca Grande que mais privou com Maurício Saraiva, nos anos de 1965/67:

Data: 29 de Abril de 2013, 19:57

Assunto:  P11485 (*):

Prezado Luís Graça,

Que bom saber que tem amigos e familiares em Floripa. Logo vou abrir conta no Google e fazer parte da Tabanca Grande. Parabéns pelo vosso Blog (**).

Obrigado, vossas saudações serão entregues a meu pai. Eu ainda não lhe contei a novidade. Tenho pena de não ter tido a oportunidade de ter convivido mais com meu tio.

Gostaria ainda de agradecer muito a resposta de Virgínio Briote. Espero que se recupere em breve e tudo corra bem. Entrarei de novo em contato para conversarmos sobre este livro que estou fazendo. Tenho a certeza, que o senhor será uma ajuda e tanto quando nos podermos encontrar para analisar toda essa documentação que tem consigo, acrescentando os testemunhos pessoais.

Vou marcar minha passagem para o Porto talvez lá para o dia 23 de maio. Caso nessa altura seja possível o Virgínio Briote se encontrar comigo, ficarei contente. Hoje felizmente podemos digitalizar algumas fotos e documentos, o que facilita muito nosso trabalho, principalmente devido às distancias. Se achar melhor pode me enviar seu endereço de e-mail para eu poder saber mais sobre o tio Maurício.

Mas apesar de todo o oceano que temos a separar estes dois países, Portugal está sempre no meu coração, principalmente as pessoas.

Como o Luís deve saber, Florianópolis é uma cidade muito bonita, tem as 4 estações e assim o clima é um pouco mais parecido com o europeu.

Por hoje é tudo, vou então entrar no vosso Blog,

um abraço a todos


2. Resposta do Virgínio Briote, com data de 29 de abril

Minha Cara Luciana,

Gostei muito de ver a sua mensagem, dizendo quem era e o que queria. E, apesar de estar algo afastado das lides bloguistas, senti-me na obrigação de dizer Presente quando o Professor Luís Graça ma reencaminhou.

De facto, fui um dos Camaradas do seu Tio e tenho muito gosto em ter privado de muito perto com ele. Infelizmente, depois de regressar a Lisboa, vindo da Guiné-Bissau, só voltei a encontrar-me com o então Capitão Saraiva, duas a três semanas depois da minha chegada. Depois sabe como são as coisas. Naqueles anos 65 a 67, éramos meninos, eu tinha feito 23 anos no navio do regresso. A Guiné, para nós, foi um inferno e, como muitos outros, a partir de uma certa altura, resolvi enterrar o assunto e fazer de conta que nunca lá tinha estado. Casei, comecei a trabalhar, fui estudando, nasceram-me filhos e fiz a minha carreira profissional até me reformar.

Ao longo dos tempos fui tendo notícias dele. Soube, é claro, que tinha sido ferido gravemente em Moçambique e, curiosamente, 40 e poucos anos depois reencontrei em Viana do Castelo (aqui no Minho, no Norte de Portugal) um antigo soldado meu na Guiné que fez parte da Companhia de  Comandos do Capitão Saraiva e que assistiu ao rebentamento da mina que o atingiu. Depois veio o 25 Abril, o seu tio saiu de Portugal e fui tendo algumas notícias dele até que soube que já tinha morrido, quando o procurei.

O capitão Saraiva, mais tarde reintegrado, não a seu pedido mas por diligências
 efectuadas por vários Camaradas, e promovido a Coronel, foi uma pessoa que me deixou saudades e que me marcou profundamente e, sem dúvida, foi um dos militares portugueses que mais se distinguiram na guerra colonial, tendo por isso sido louvado e condecorado numerosas vezes [, e em 1970, com o grau de oficial da Ordem Miitar da Torre e Espada].

E pronto, Luciana, acho que já me apresentei o suficiente por hoje. É claro que estarmos a falar do "Capitão" Saraiva levava-nos uma noite ou duas, com os Camaradas vivos que combateram com ele e as recordações iriam surgindo naturalmente. O que lhe posso dizer, para terminar, é que quem com ele contactou na Guiné ainda hoje fala dele como se fosse, e foi, uma figura lendária.

Contacte quando quiser, Luciana. Terei sempre tempo e, julgo, força suficiente para conversarmos e arranjar gente que com ele conviveu.

Cumprimentos daqui!

V Briote


3. Comentário de L.G.:

Querida amiga: Obrigado por ter aceite o nosso convite para integrar a Tabanca Grande, ou seja, a comunidade virtual de amigos e camaradas da Guiné que se reúne à sombra de um mágico, secular, fraterno, mágico poilão (como se diz no Brasil ?)... Costumamos dizer, aqui,  que os filhos dos nossos camaradas nossos filhos são... Pensando em pessoas como você (e temos mais "sobrinhos" no nosso blogue), poderíamos acrescentar:  os/as sobrinhos/as dos nossos camaradas nossos/as sobrinhos/as são...

A Luciana passa a ser a "tabanqueira" nº 616 (**) A sua presença muito nos honra, a todos nós, ex-combatentes da Guiné.  Vamos publicar a mensagem que mandou ao Virgínio Briote e em que acrescenta mais informação sobre o seu tio, e nosso camarada, Maurício Saraiva. Pessoalmente,. não o conheci. Sou mais "pira", mais novo, do que ele e o Briote, estive na Guiné na  época de 1969/71, sob o comando do gen  Spínola.

Quanto a Floripa,. tenho lá amigos e parentes. Também em Itapema (onde vive um velho amigo, o Zeca Ferreira Cardoso) Mas não conheço o Brasil. Há uns anos estive para ir a um Congresso Mundial da Medicina do Trabalho, em Iguassu, mas acabou por não ir. Sei que é um belo estado, Santa Catarina. E que Floripa foi fundado por açorianos... Pode ser que um belo dia destes a gente se encontre em Floripa. Mas o mais provável aqui, no "Puto", um dia destes... Vá dando notícias, nomeadamente do seu livro e das suas pesquisas sobre o tio Maurício.

PS - O Brasil é, a seguir a Portugal, o país onde temos mais leitores/visitantes do nosso blogue. Vários "tabanqueiros" nossos, antigos combatentes da Guiné, vivem no Brasil, há décadas...Obrigado por estar a seguir o nosso blogue que passa também a ser seu. Entre camaradas, tratamo-nos por "tu" e não por "você".  Faz parte das nossas regras. Mas os/as amigos/as têm direito a maior defeência... Ah!, não se esqueça de nos mandar um foto com melhor resolução do que aquela que publicamos acima. E diga-nos como quer ser conhecida aqui, na Tabanca Grande: Luciana Saraiva ?  Luciana Saraiva Andrade ?  Luciana Saraiva Andrade Guerra ?

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Notas do editor

(*) Vd. poste de 27 de abril de 2013 >  Guiné 63/74 - P11485: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (68): Luciana Saraiva Guerra, sobrinha do cor comando, já falecido, Maurício Saraiva, está a escrever um livro sobre a família, natural de Valpaços, e o tio paterno, nascido em Angola

(**) Último poste da série > 25 de abril de 2013 > Guiné 63/74 - P11464: Tabanca Grande (396 ): Novo membro, o nº 615: Mário Vasconcelos (ex-alf mil trms, CCS/BCAÇ 3872, Galomaro; COT 9, Mansoa, CCS/BCAÇ 4612/72, Mansoa, 1973/74)