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quarta-feira, 23 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22308: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XI: Op Balanço Final: Assalto a Nhacobá ou o dia mais longo



Foto nº 1 > Guiné > Região de Tombali >  Nhacobá > Operação Balanço Final > Assalto e ocupação da base do PAIGC pela CCav 8351 (Os Tigres do Cumbijã) 


Foto nº 2 >  Guiné > Região de Tombali > Nhacobá > Nhacobá > Operação Balanço Final > Assalto e ocupação da base do PAIGC. Furriéis da CCav 8351,  Azambuja Martins e Costa



 Foto nº 3 > Guiné > Região de Tombali > Nhacobá > Operação Balanço Final > Assalto e ocupação da base do PAIGC pela CCav 8351 (Os Tigres de Cumbijã) > No lado direito alguns dos recipientes com arroz. Foto de António Murta (vd. poste P14844).

Foto: A. Murta / Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné, com a devida vénia



Foto nº 4 > Guiné > Região de Tombali > Nhacobá > Operação Balanço Final > Assalto e ocupação da base do PAIG pela CCav 8351 (Os Tigres do Cumbijâ) > Abrigos subterrâneos do PAIGC > Toto de A. Murta, com a devida vénia


Fot0 nº 5 > Guiné > Região de Tombali > Nhacobá > Operação “Balanço Final” > Assalto e ocupação da base do PAIGC pela CCav 8351 (Os Tigres do Cumbijã)> Sarar as feridas depois do assalto a Nhacobá

Fotos (e legendas): © Joaquim Costa  (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Joaquim Costa, hoje e ontem. Natural de V. N. Famalicão,
vive em Fânzeres, Gondomar, perto da Tabanca dos Melros.
É engenheiro técnico reformado.


Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XI (*)

Operação Balanço Final: Assalto a Nhacobá ou o  dia mais longo


Com o aproximar da estrada a Nhacobá, estava chegada a hora de fazer a ocupação desta base do PAIGC (“retribuindo” as duas visitas ao Cumbijã). Embora sem grandes informações, era de prever que Nhacobá fosse um local de grande importância estratégica e logística para o PAIGC já que ficava no corredor de Guilege, também conhecido por “corredor da morte” (corredor de circulação de homens e material para o interior da Guiné)(#).




Fito nº 6 > Guiné > Região de Tombali > Cantanhez > Guileje > Mapa de Guileje (1956) > Escala 1/50 mil > Alguns dos topónimos míticos por onde passava o "corredor de Guileje" ou o "corredor da morte", triangulando entre Guileje, Gandembel / Balana e Nhacobá. Ver também posição relativa de Cumbijã e Colibuía, a sudoeste de Aldeia Formosa.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2021)



Embora nada nos fosse transmitido (como sempre - ao que parece nem o próprio capitão foi informado), fomos surpreendidos com a chegada ao destacamento de um grupo de comandos africanos, armados até aos dentes com todo o tipo de armas capturadas ao IN (muito mais eficazes e fiáveis que as nossas), que segundo rumores teriam como missão fazer o reconhecimento a Nhacobá antes do assalto final. 

Nada nos foi dito mas constava-se que nada encontraram de relevante. Todo aquele aparato (não disfarçando algum exibicionismo) nos pareceu estranho,  para não dizer caricato. Contudo, depois de uma reunião dos “senhores da guerra”  em Aldeia Formosa, foi lançada a operação de assalto a Nhacobá, de seu nome de código: “Balanço Final” (17-23 de maio de 1973).

Foram mobilizados quase todos os recursos humanos disponíveis na região para o assalto final a Nhacobá, atirando por terra a ideia de que os comandos africanos não tinham encontrado nada de relevante.

Foram mobilizadas para a operação: 

(i) três companhias;

 (ii) uma equipa com duas chaimites (carros de combate anfíbios);

 (iii) dois grupos de combate de uma outra companhia de reserva no Cumbijã~;

(iv) e a artilharia de Cumbijã e Mampatã em alerta máxima. (##)

A minha companhia (CCav 8351 – Os Tigres do Cumbijã) estava incumbida de fazer o assalto (golpe de mão) com a proteção lateral de outras duas.


“De manhã cedinho, levanto do ninho e vou para … Nhacobá...”


Com todo aquele aparato de movimento de tropas em grande azáfama com alguns dos intervenientes, há última hora, a serem acometidos de doença súbita e desconhecida e com os “senhores da guerra” (sempre na retaguarda!) mandando os seus últimos “bitaites” sobre a estratégia a seguir (e a que ninguém ligava), lá avançamos nós, conduzidos por um guia, da nossa confiança e que conhecia muito bem o local. 

Como era habitual, nas operações de alto risco, quase todos os soldados beijavam, à saída, o seu amuleto da sorte: a foto da namorada ou dos pais, um santo devoto, uma folha da Penthouse (a famosa revista pornográfica norte-americana),  do Furriel Martins, e o Furriel Machado o seu inseparável mapa, que guardava num dos bolsos do camuflado, mais perto do coração.




Fot0 nº 7 > Guiné > Região de Tombali > Nhacobá > Operação Balanço Final > Assalto e ocupação da base do PAIGC pela CCav 8351 (Os Tigres do Cumbijã)> O “amuleto” que sempre acompanhava o Furriel Machado em operações no mato, o “Mapa de Operações Pontos de Artilharia”... 

Ao seu lado estávamos mais seguros. Nunca nos sentíamos perdidos na mata e a ajuda da artilharia em situação de emergência era mais precisa e eficaz. Este homem nunca deixava nada ao acaso. Tudo era feito de forma profissional, tal como a sua sofisticada hortinha que plantou em pleno teatro de guerra!



Conforme íamos avançando na direção do objetivo,  a adrenalina ia subindo na mesma proporção já que minguém melhor do que nós sabia o que nos esperava. Dada a nossa experiência feita de vivermos, diariamente, paredes meias com o IN, conhecendo melhor do que ninguém as suas “taras e manias”,   fazíamos tábua rasa das opiniões dos teóricos do “pionés no mapa” (cujo único risco era picarem-se no mesmo) para bem da nossa segurança e ao mesmo tempo para bem da eficácia na concretização do objetivo traçado.

O nosso guia mantinha um grande sangue frio e uma calma desarmante,   reparando nos mais pequenos pormenores que a todos nós escapava: um pequeno ramo de árvore cortado recentemente; pegadas no chão recentes; barulhos de população e de animais ao longe, que nenhum de nós ouvia, etc.

Era fácil medir a tensão do grupo quer através das feições do guia quer do “arrebitar” do bigode do camarada Machado!!!

Quatro grupos de combate em marcha na direção do objetivo em silêncio quase ensurdecedor, ouvindo-se apenas a nossa respiração, cada vez mais acelerada. Caminhavámos como em campo minado, pé ante pé, com concentração absoluta e sempre atentos às feições do guia (...e ao bigode do Machado!).

Pelo caminho já percorrido sabíamos que devíamos estar muito perto do objetivo, o que foi confirmado pelo guia. Uns metros mais à frente já todos nós ouvíamos sons de pessoas em conversas despreocupadas.

Mais uns metros e avistamos uma caçadeira (Simonov) encostada a uma árvore e, logo a seguir, um grupo de homens e alguns mulheres e crianças sentados em amena cavaqueira. Avançamos e surpreendemos todo o grupo, creio que um homem foge a gritar Comando, comando!... Não demos um único tiro, acalmamos as mulheres e as crianças, e montamos segurança.

Estávamos nós a tentar obter de alguns elementos do grupo, obviamente assustados, informações relevantes,  tendo em vista o prosseguimento da operação em segurança, quando irrompe um grande “fogachame” com armas ligeiras e RPG. Como estávamos já bem posicionados, ripostámos,   protegendo aos mesmo tempo os elemento da população.

Passados uns bons minutos, que pareceram uma eternidade, a situação acalmou, as metralhadoras calaram-se, permitindo assim o socorro aos feridos, alguns com alguma gravidade. 

Pela surpresa,  pensámos que o grupo de guerrilheiros de defesa da base do PAIGC, depois da forte reação, se tinham já posto em fuga. Contudo, passados uns 15 minutos,  fomos nós surpreendidos por nova investida, agora mais intensa e organizada,   sobre as nossas posições causando mais uns feridos, alguns com gravidade.

O grupo de guerrilheiros (supomos, em grande número), depois da segunda investida fugiu, uns em direção ao local onde deveriam estar as companhias que faziam a nossa proteção lateral e outros para a grande bolanha,  perto de um rio. Conseguimos ainda avistar vários elementos do grupo, desordenado e desorientado, em fuga através da grande bolanha.

Uma das situações que mais me perturbam, relembrando hoje o assalto a Nhacobá, é o facto de,  ao ver lá ao longe pequenos grupos de guerrilheiros em fuga,   apontar-lhes a minha arma. Não disparei, e alguém me dissr: "A G3 não alcança". 

Este episódio mostra como a guerra nos leva a tomar atitudes completamente irracionais. Contudo, para meu sossego, acredito (quero mesmo acreditar) que nunca teria coragem para disparar naquelas condições.

Terminado o tiroteio, nada aconteceu aos elementos da população e nós tivemos vários feridos, alguns com gravidade.

Pedimos que um dos grupos de combate estacionado em Cumbijã, viesse em apoio levar os elementos da população e os feridos para o destacamento, sendo os mais graves levados, para Aldeia Formosa onde um avião Nordatlas aguardava para eventual evacuação para o hospital de Bissau.

Depois de todas estas diligências e com todas as cautelas lá fomos explorar a zona. 

Acompanhado pelo amigo Martins, juntamente com outros elementos da companhia, avançamos, com cuidados redobrados, para o local de onde fomos atacados. Passada a zona onde encontramos os elementos da população,  ficamos boquiabertos com o que encontramos: muitas moranças, com indícios claros de habitadas até momentos antes com os seus animais a vaguearem ainda em sobressalto; vários silos de barro,  cheios de arroz (estavam ali toneladas de arroz ainda com casca); abrigos subterrâneos; muitos maços de tabaco e fósforos cubanos, bem como cadernos e livros escolares e muitos folhetos de propaganda. 

“Roncos” que muitos de nós guardaram como recordação (eu guardei um maço de tabaco e uma caixa de fósforos que deitei ao lixo, juntamente toda a roupa e tudo que me fizesse lembrar a Guiné num quartel em Lisboa, no regresso a casa).

Este era de facto um posto de “mala-posta", muito importante neste corredor de Guileje, onde os guerrilheiros descansavam e se alimentavam em trânsito para operações militares na região sul. Todo o arroz aqui apreendido dava para alimentar um exército durante vários dias.

O elevado número de moranças, os abrigos subterrâneos, bem camufladas na vegetação, a quantidade de arroz (as suas rações de combate), bem como a grande quantidade de tabaco e material de propaganda, era a confirmação de estarmos perante uma importante base do PAIGC no interior da Guiné. Esta ação foi em rude golpe na logística do PAIGC no abastecimento de parte da zona sul da região.

Estávamos nós já a “debicar” parte da ração de combate,  quando começamos a ouvir rajadas de armas ligeiras e mais tarde sons de HK - encontros de “3.º grau” dos guerrilheiros em fuga com as companhias de proteção lateral e do grupo de chaimites, sofrendo o IN, aqui, danos consideráveis.

A configuração da tabanca, a quantidade de abrigos subterrâneos (bem protegidos contra ataques aéreos e bem camuflados na mata), o volume e tempo de fogo configuram um destacamento do IN muito bem protegido, que só caiu sem grandes baixas do nosso lado pela surpresa e, ao mesmo tempo, presumo, julgarem estarem perante uma operação de grande envergadura com o apoio da aviação e tropa especial (por isso a sua fuga precipitada). 

Era suposto, da parte do IN, que a tropa sediada na zona não reunia as condições para tal assalto, daí os gritos do homem que fugiu a dizer Comandos, comandos!

Este foi um dia (… o mais longo) que me fez lembrar a guerra do Vietname, com todos os ingredientes presentes, nomeadamente: entrar no reduto do IN, desalojá-lo e passar junto dos seus mortos em combate, inexplicavelmente, com naturalidade e indiferença. Visão que hoje muito me perturba e desassossega!

(
Continua)
__________

Notas do autor:

(#) Este corredor com início na fronteira da Guiné Conacri, atravessando a zona de Guileje (Gandembel) e Nhacobá (Foto nº 6), tinha uma importância vital para o PAIGC, já que por aqui introduzia 70 a 80 % dos abastecimentos de armas, homens, munições e outros, para todo o território da Guiné. Neste corredor muitas vidas se perderam dum lado e do outro do conflito.

Assim se explica a luta sem tréguas dada pelo PAIGC na defesa deste importante corredor e particularmente da sua base em Nhacobá,

Situação semelhante teve lugar em Gandembel de quando a sua ocupação pelas nossas tropas no tempo do antigo governador (Arnaldo Schulz),  acabando por ser abandonado no tempo de Spínola, dado as elevadas perdas humanas. Daí a designação de “corredor da morte”.

(##) NT:  CCaç 3399, 3a/BCaç 4513/72, CCaç 18, CArt 6250/72, CCav 8351/72, 2° Pel Art (10,5 cm), 14° PelArt (14 cm), e 1 Pel/ERec 3431.
_____________

Nota do editor:

(*) Último poste da série > 7 de junho de 2021 > Guiné 61/74 - P22261: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte X: a segunda "visita dos vizinhos" (com novo ataque ao arame)

sábado, 1 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22159: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte VIII: A primeira visita... dos "vizinhos", com ataque ao arame!

Foto nº 1 > Guiné > Região de Tombali > Cumbjã > CCAV 8351, "Os Tigres do Cumbijã", 1972/74 > O meu grupo de combate (2.º pelotão) preparado para mais uma saída para o mato – É de meter medo !!! Eu sou o primeiro da esquerda (de pé), o Alferes Afonso o primeiro à direta (de pé), o Zé Carlos e a sua basuca o primeiro à esquerda (fila da frente), o Belinha o 3.º da primeira fila (da esquerda para a direita com a pica na mão, logo a seguir o homem de Castelo Branco com o seu morteiro...


Foto nº 2 > Guiné > Região de Tombali > Cumbjã > CCAV 8351, "Os Tigres do Cumbijã", 1972/74 > Cavando, amassando... fazendo tijolos para a construção da nossa modesta casinha.


Foto nº 3 > Guiné > Região de Tombali > Cumbjã > CCAV 8351, "Os Tigres do Cumbijã", 1972/74 > “Rambo” Costa - “O guardador”... de tijolos 


Foto nº 4 > Guiné > Região de Tombali > Cumbjã > CCAV 8351, "Os Tigres do Cumbijã", 1972/74 > Nem tudo era mau,  camaradas: bom whisky a “pataco” (com o selo de garantia: CTIG). Religiosamente guardadas para comemorar o meu centenário (espero estar ainda em boa forma!). Se a publicação das minhas memórias se concretizar, talvez abra uma no dia da sua apresentação (para chamar mais clientes!).

Fotos (e legendas): © Joquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Joaquim Costa, ex- furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, Cumbijã (1972/74)

Date: quarta, 21/04/2021 à(s) 18:59
Subject: Memórias de um Tigre do Cumbijã


Meu caro Luís

Como escrevíamos antigamente para casa, nos míticos aerogramas, espero que esta te vá encontrar com ânimo bastante para venceres mais um obstáculo nesta prova de resistência que é as nossa vidas.

Por vezes, dado este meu ímpeto de colocar um pouco de humor em tudo, acabo por ser inconveniente. Espero que não seja o caso.

Por trás deste humor também há lágrimas…e obstáculos.

Felizmente tenho uma pequena costela de brasileiro pelo que por muitos obstáculos que surjam no caminho penso sempre que a coisa vai dar certo.

Meu caro Luís, o lema do Blogue é o mundo é pequeno mas a tabanca é grande. E assim é!

Já aqui fiz referência ao meu filho Tiago que esteve dois anos na Guiné na construção de uma ponte sobre o rio Geba, pois a sua esposa, enfermeira, fez a especialidade de medicina familiar onde o Luís chegou a ser o seu orientador. O mundo é mesmo pequeno.

Aproveito a oportunidade para te enviar mais um post sobre as minhas memórias de guerra- A primeira visita dos "vizinhos" (ataque ao arame).

Fica na calha para quando tiveres oportunidade(e achares que reúne condições) para ser publicado

Um abraço, Joaquim Costa




Joaquim Costa, hoje e ontem. Natural de V. N. Famalicão,
vive em Fânzeres, Gondomar, perto da Tabanca dos Melros.
É engenheiro técnico reformado.



Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex- furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte VIII (*)
 
A primeira visita… dos “vizinhos” 
(ataque ao arame)


Ninguém gosta de receber visitas em sua casa com esta em desalinho e ainda inacabada, contudo, foi o que aconteceu connosco poucos dias depois de nos instalarmos, de armas e bagagens, no Cumbijã.

Para se ter uma ideia do perigo e do escalar do conflito, a proteção do destacamento compreendia duas redes de arame farpado, separadas por alguns metros, com garrafas de cerveja colocadas em todo o perímetro, sobrepostas duas a duas (que tilintavam ao mínimo baloiçar das redes), e no espaço entre as duas redes eram colocados fornilhos (minas e/ou explosivos com vidros e e restos de material de ferro e aço). Tudo o que estava para além do arame farpado, literalmente, era IN.

Poucos dias depois de nos instalarmos no Cumbijã, ao fim da tarde, quando já toda a engenharia, bem como os grupos de proteção tinham regressado a Aldeia Formosa, tivemos a visita de um grupo IN, bastante numeroso, que nos intimidou com uma carga poderosa de morteiro, RPG e rajadas de metralhadora. Para os dois grupos da companhia presentes (os outros dois tinham ido para Aldeia Formosa, merecidamente, já que tinham aqui passado a noite anterior), foi o batismo de confronto direto com o IN.

Ficamos todos muito “chateados” (como diria o Almirante e ex primeiro ministro, que deu nome à minha rua – Pinheiro de Azevedo), pela visita ter lugar numa altura em que a casa ainda não estava acabada e arrumada. Só estava colocada metade da primeira fiada de arame farpado e ainda não tínhamos valas. Pela surpresa, chegámos a temer que conseguissem romper as nossas defesas, pois alguns de nós conseguíamos vê-los a aproximarem-se até muito perto do arame farpado.

Aguentámos, sem baixas, com alguns feridos ligeiros e uma das nossas tendas desfeitas, mas com a reputação em alta perante o IN e os camaradas das outras companhias da região que nos passaram a chamar: “Os Tigres do Cumbijã”.

A minha ajuda na defesa do destacamento neste ataque, de má vizinhança, foi nula já que a minha G3 encravou ao primeiro tiro.

Agora que estou ficando velho, mais dado à contemplação (mística dos factos objetivos – como dizia um camarada amigo e já cacimbado, imitando o professor de uma antiga novela brasileira), muita vezes me questiono: será que em algum momento nos diferentes contactos com o IN atingi mortalmente alguém?

Estes pensamentos, que nunca me ocorreram antes, são recorrentes nestes dias de desocupação, perturbando o meu sono que sempre foi o de um homem justo e de bem com o mundo (passe a presunção). Hoje, recordo este incidente com algum alívio, dizendo: tendo em conta o desfecho do ataque (4 feridos ligeiros... e 6 desalojados!), ainda bem que a G3 encravou!

No dia seguinte, ao fazermos o reconhecimento ao local do ataque, eram evidentes os vestígios de que do lado do IN as consequências foram bem mais gravosas.

O que antes para todos nós era “ronco”, ao verificarmos os estragos causados ao IN, hoje, ao escrever estas minhas memórias de guerra, um turbilhão de sentimentos contraditórios me desassossegam.

Ao mesmo tempo que avançava a construção da estrada para Nhacobá e os trabalhos de adaptação do Cumbijã para receber e unir definitivamente toda a família da CCav 8351, ia-se criando, em cada um de nós, a sensação, agridoce que estávamos a construir a nossa modesta casinha, porventura, no sítio menos aconselhável.

O “cacimbo” já nos começava a afetar pois que reagíamos com naturalidade à forma como os nossos camaradas de outras companhias, que participavam na proteção da estrada, se despediam de nós, com um semblante de quem está a abandonar um amigo e o deixa à sua sorte no meio de mil perigos. Ao mesmo tempo era visível nas suas caras uma sensação de alívio por saírem daquele buraco a caminho de Aldeia Formosa, uma autêntica fortaleza com todas as comodidades, comparadas com aquele buraco.

E ali ficávamos nós, a comer a nossa ração de combate e a dormir no chão em pequenas tendas, nas condições mais que precárias de conforto e segurança (só com a nossa G3, dois pequenos Morteiros 60 e duas bazucas). Entretanto em Aldeia Formosa tomava-se banho de chuveiro, de água sem saber a gasóleo, jantava-se numa messe a sério, com comida (mais ou menos) a sério, jogava-se king acompanhado com whisky em copos a sério, e dormia-se em lençóis a sério, em camas a sério e em casernas a sério…

Passou a ser habitual, e quase rotineiro, sofrermos, com muita frequência, flagelações de canhão sem recuo. Inicialmente as granadas caiam fora do perímetro do destacadamente, mas aos poucos iam-se aproximando até começarem a cair em cima das nossa cabeças, o que nos deixava intrigados, já que a experiência nos dizia que tal só era possível com informação saída do destacamento da correção do tiro!

Nos patrulhamentos quase diários o objetivo prioritário, e absoluto, era o de encontrar o local de onde eram lançados os ataques utilizando, para além da intuição, a matemática e as leis da física, já que não suportavamos mais sermos incomodados durante o jantar (demasiado frequente, tendo em conta os verdadeiros ataques e os falsos alarmes).

O maior perigo era o da(s) primeira(s) granadas,  já que estas chegavam mais rápido que o som provocado pelas saídas das mesmas, apanhando-nos desprevenidos (com consequências dramáticas,  como vamos ver mais à frente).

Lá conseguíamos encontrar o local de lançamento das granadas de canhão sem recuo (uma arma muito ágil, fácil de montar, desmontar e de transportar - segundo algumas informações manobrada por cubanos), deixando aí vestígios evidentes da nossa presença…

Não obstante esta descoberta as flagelações continuaram, porém, doutro local, o que nos dava algum descanso até conseguirem corrigir novamente o tiro.

As flagelações constantes de canhão sem recuo e os ataques ao arame, eram de um grande desgaste psicológico já que nem dentro do destacamento havia momentos de total tranquilidade, dando-nos a sensação de vivermos e dormimos com o inimigo e de estarmos constantemente a ser vigiados. Eram constantes os disparos dos vigias durante a noite ao mínimo tilintar de garrafas no arame ou movimentos suspeitos durante a noite (dada a proximidade com a base do PAIGC a maior parte das vezes era imaginação, mas que para os sentinelas eram mesmo “eles” que estavam ao arame)

A estrada ia avançando, com deteção e levantamento de minas e o jogo do rato e do gato com o IN.

Durante a noite ficavam dois grupos a proteger as máquinas evitando a colocação de minas, e rebentavam-nos mais atrás os pontões, atrasando o avanço da obra. Emboscavamo-nos junto dos pontões e passavamos a ter minas na frente de trabalho.

As minas e os ataques à coluna que se deslocava para a frentes de trabalhos, com mais frequência iam causando feridos graves (geralmente minas) e vários feridos ligeiros.

As condições de segurança e habitabilidade no Cumbijã, paulatinamente, lá foram melhorando com o esforço e entusiasmo de todos nós.

A maior empreitada foi construir casernas para toda a companhia, aqui já toda reunida, utilizando o que o português tem de melhor, o “desenrascanço”, a saber:

  • Fazer tijolos utilizando terra com capim e água amassando com os pés;
  • Colocar esta argamassa em formas, de tijolo, e pôr a secar:
  • Cortar palmeiras para as traves da cobertura:
  • “Chagar” a cabeça dos altos comandos do ar condicionado de Bissau que precisavamos de chapas de zinco para a cobertura das futuras casernas

Os primeiros dias no Cumbijã foram um duro teste às nossas capacidades físicas e psicológicas:

  • O stress das minas - a qualquer passo que dava-mos corria-mos sérios riscos de pisar uma pessoal ou mesmo anti carro;
  • As flagelações constantes de canhão sem recuo - 24 sobre 24 horas em alerta máxima, nunca conseguindo 10 minutos de sono profundo (com os disparos constantes dos sentinelas);
  • Os ataques ao arame - criando em nós a sensação de estarmos a viver e a dormir com o inimigo;
  • As condições do dia a dia - foi muito tempo a viver em tendas, dormindo no chão e alimentados à base de rações de combate;
  • A falta de higiene diária - muitos dias sem tomar banho. A água vinha de Aldeia Formosa em bidões a saber a gasóleo;
  • O cansaço - muito patrulhamento e proteção aos trabalhos de engenharia ao qual se juntou a construção, a pulso, das nossas casernas.
  • Outros imponderáveis - ver as nossa tendas voarem para fora do arame farpado com os nosso parcos haveres, depois de sermos visitados por um enorme tornado, deixando o destacamento num caos.

A melhoria das condições do destacamento foi muito importante para elevar o moral das tropas e assim vencer paulatinamente todas as dificuldades que nos eram colocadas pelo IN e pelo isolamento. Contudo, foi este mesmo isolamento que criou entre todos nós um grande espírito de grupo e, também, uma grande sensação de liberdade.

Libertámo-nos das “paranóias” militares como a preocupação com a farda, com a barba, o cabelo, as vénias e continências aos superiores. Estas “paranóias”, embora não ao nível de Bissau (preocupados com o meu bigode - como vamos ver mais à frente) eram comuns em Aldeia Formosa.

O Cumbijã para nós era uma verdadeira Aldeia do Astérix em África:

  • Não havia messe de oficiais e Sargentos;
  • Não havia um rancho para oficiais e Sargentos e outro para os soldados. A panela era a mesma para todo o pessoal da companhia;
  • Ninguém se preocupava com a farda, com o cabelo com o bigode (bem evidente na fotografia do meu grupo de combate preparado para sair para uma operação no mato)…
  • Cada um sabia qual o seu papel naquela organizada “bagunça”, onde todos eram conhecidos pelo seu nome próprio e não pela sua patente.
  • Eramos verdadeiramente um grupo de bandalhos, mas nunca no destacamento houve bandalheira. Como diziam os Sargentos de carreira: serviço é serviço, conhaque é conhaque.

Nota: Se a visita se tivesse realizado em Maio de 1974, talvez tivessemos recebido os vizinhos mais próximos (de Nhacobá), fazendo-os entrar pela porta de armas (virtual) “deitando abaixo”, entre sorrisos e abraços [??] as lindas” botelhas” da Foto nº 4. 

Como foi antes do 25 de Abril de 1974, foram recebidos de “sachola” em punho, fazendo lembrar vizinhos desavindos por demarcação de terrenos no Minho.

(Continua…)

___________

Nota do editor:

(*) Último poste da série > 13 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22100: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte VII: Cumbijã: a nossa modesta casinha, os picadores e a crueldade das minas

terça-feira, 13 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22100: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte VII: Cumbijã: a nossa modesta casinha, os picadores e a crueldade das minas


Foto nº  1 > Guiné > Região de Tombali > Cumbjã > CCAV 8351, "Os Tigres do Cumbijã", 1972/74 >  Cumbijã que construímos, literalmente: com sangue, suor e lágrimas. Em primeiro plano os nossos chuveiros e a hortinha do Zé Carlos aproveitando a água do banho...

 

Foto nº 2  > Guiné > Região de Tombali > Cumbjã > CCAV 8351, "Os Tigres do Cumbijã", 1972/74 >  O Cumbijã que encontrámos. Á direita,  o Beires levantando mais uma mina e à esquerda o mausoléu em betão onde um camarada acionou uma mina

Fotos (e legendas): © Joquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 


Foto nº 3 > Guiné > Região de Tombali > Cumbjã > CCAV 8351, "Os Tigres do Cumbijã", 1972/74 > Pormenor dos cuidados colocados no processo de levantar uma mina: Beires (o especialista em minas e armadilhas), Portilho, Vasco da Gama e Abundância conferenciando sobre melhor forma de levantar mais uma Era sempre uma manobra arriscadíssima.

Foto (e legenda: © Vasco da Gama / Joaquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 


Foto nº 4 > Guiné > Região de Tombali > Cumbjã > CCAV 8351, "Os Tigres do Cumbijã", 1972/74 > Cumbijã > As minas que levantámos (30)… “Manga de ronco”, mas com lágrimas!

Foto (e legenda): © Joquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Foto nº 5 >Guiné > Região de Tombali > Colibuia   > 1973  >  


Foto (e legenda): © António Murta (2016). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





Joaquim Costa, hoje e ontem. Natural de V. N. Famalicão,
vive em Fânzeres, Gondomar, perto da Tabanca dos Melros.
É engenheiro técnico reformado.


 
Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex- urriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte VII (*)

 

Cumbijã: a nossa modesta casinha, os picadores 
e a crueldade das minas



Assim se prolongou a nossa missão nestas diferentes tarefas: (i) patrulhas de reconhecimento e segurança no mato (ii) proteção da coluna para Buba (iii) e mais intensamente a proteção ao grupo de engenharia na construção da estrada Mampatá-Nhacobá. 

Com o avançar dos trabalhos o perigo de contacto com o IN aumentou significativamente e começou a guerra mais estúpida e cobarde das minas.

Militares de outras companhias, que também participavam na proteção dos trabalhos de construção da estrada, tinham já acionado uma ou outra mina antipessoal e uma máquina de engenharia uma anti carro. De dia para dia e ansiedade era maior no caminho para a frente de trabalhos. Com mil cuidados, paciência, muita perícia dos nossos picadores e, muita sorte (utilizando a linguagem da bola: a sorte dá muito trabalho), tínhamos passado pelos pingos da chuva, mas, infelizmente, por pouco tempo…

Lembro aqui, com alguma emoção:

• os camaradas “velhinhos” do BCAÇ 3852 (1971/73) que nos receberam principescamente com direito a sopa de capim cozinhado com água turva da bolanha e cerveja a 40 graus (#);

• os camaradas “velhinhos” da CCaç 18 (constituída maioritariamente por elementos nativos), com quem aprendemos, juntamente com o BCAÇ. 3852, a lidar com esta “coisa” estúpida da guerra sofrendo e chorando, juntos, os camaradas mortos e feridos em combate;

• os camaradas “periquitos” do BCAÇ 4351 (1973/74), que nos acompanharam (todos “borrados” - tanto quanto nós nos primeiros dias de Aldeia Formosa) em algumas ações quando a região estava a ferro e fogo com a nossa entrada na base do PAIGC em Nhacobá;

• os nossos camaradas e amigos de 
Mampatá [ CART 6250, 1972/74] :que faziam questão de nos pagar a cerveja sempre que parávamos, junto ao magnífico mangueiro, no seu pacato e simpático destacamento para limpar o pó da garganta, dando-nos ânimo com as suas palmadas nas costas como se despedissem de alguém que ia atravessar o deserto, minado, a caminho do inferno.

Assim se formaram os especialistas das picagens. Um pau com um ferro pontiagudo numa extremidade, como se fosse um caminheiro de São Tiago, que era projetado, durante a marcha, para a terra com a força bastante para sentir um toque diferente, mas não suficientemente forte para não acionar a mina. Convenhamos que era uma tarefa que exigia muita perícia e concentração.

Na marcha em “pirilau” (uma fila de homens ligeiramente afastados uns dos outros) os 2 primeiros, para além da sua arma e restante equipamento também transportavam e manobravam este “sofisticado” detetor de minas.

Para quebrar um pouco a rotina do dia a dia, esporadicamente, Aldeia Formosa era flagelada com granadas de canhão sem recuo e/ou morteiro.

Sempre que Aldeia Formosa era flagelada estava fora do quartel (exceto no batismo) com o meu pelotão emboscado, toda a noite, na frente de trabalhos da estrada - “sempre que eu passava a noite fora, o quartel entrava em alerta máxima!!!”.

Estas emboscadas eram sempre vividas com muito receio (que não é o mesmo que medo!?) e ansiedade, pelo que o nosso sentimento ao ouvirmos a fortaleza de Aldeia Formosa a ser flagelada era de algum alívio mas também de preocupação pelos nossos camaradas que estavam a ser atacados .

Dois grupos de combate faziam durante o dia a proteção aos trabalhos de engenharia e pernoitavam, emboscados, durante toda a noite, na frente de trabalhos.

Era sempre uma emboscada vivida com muita adrenalina, particularmente nas noites mais escuras. Vivíamos em permanente sobressalto desconfiando do mais pequeno ruído. As nossas companhias habituais eram os macacos que “ladravam” como cães (ou não fossem na sua maioria macacos cão!). Sempre que um ruído estranha lhes chegava aos ouvidos, “ladravam” funcionando como sentinelas para as nossas tropas.

Numa das emboscadas um soldado afirmava com toda a convicção que um macaco, na calada da noite, lhe tinha roubado a ração de combate...talvez, não seria a primeira vez, contudo, durante a noite todos os macacos são “pardos”…

Os dedos das mãos e dos pés não chegam para contar o número de vezes que fizemos estas emboscadas, vividas sempre com a tensão nos limites. Contudo, inexplicavelmente, por alguns instantes, conseguíamos alhear-nos da situação de guerra e saboreávamos os momentos extraordinários e únicos de passar uma noite em plena floresta Africana. É algo que nos marca para a vida:

• as noites escuras com o fresco do cacimbo limpando o suor dos 40º do dia, deixando-nos inebriar pelos sons da floresta húmida ouvindo os macacos ao longe e o “piar” de uma ou outra ave;

• as noites de trovoada contínua, que nem as festas da S.ª da Agonia [, de Viana do Castelo], fazendo-se dia com as descargas elétricas violentas de uma beleza indescritível;

• as noites de luar, lindas e quase românticas...sublimando os pensamentos nas nossas namoradas ou madrinhas de guerra;

• as noites das primeiras chuvas que nos limpavam o corpo e a alma, com o agradável cheiro a terra africana.

De manhãzinha, com banho tomado e roupa lavada e já seca, não disfarçavamos a alegria, ao vermos chegar a coluna com os dois grupos de combate que nos vinham substituir...

Sentíamos que estávamos a ser vigiados permanentemente pelo IN, já que sempre que emboscávamos na frente de trabalhos,  rebentavam com os pontões já construídos em linhas de água na nossa retaguarda. Sempre que emboscavamos juntos aos pontões tínhamos minas na frente de trabalhos.

E sempre que destruíam os pontões,  a coluna ficava retida no local várias horas até se construir um caminho alternativo.

Uma ou outra vez ousaram atacar a coluna que se deslocava para a frente de trabalhos. Num destes ataques um soldado africano foi mortalmente atingido.

Era evidente o esforço do IN em retardar ao máximo a chegada da estrada a Nhacobá, ganhando tempo para não perturbar o ataque contundente que estavam a preparar contra Guileje e Gadamael (##), cujo desfecho dramático não só virou o curso da guerra na Guiné como acelerou a revolução de Abril.

Para o ataque a Guileje e Gadamael, a partir da fronteira com a Guiné Conakry, ter sucesso, era importante manter a sua base no interior (Nhacobá), servindo de tampão e ao mesmo tempo de importante celeiro - aqui encontrámos toneladas de arroz que dava para alimentar um exército durante meses. Era também fundamental para o PAIGC segurar Nhacobá mantendo aberto o importante corredor de Guileje permitindo o transito de homens e material para a zona sul do território.

Para atingirem tal desiderato utilizaram a estratégia mais eficaz e ao mesmo tempo mais cobarde para retardarem a construção da estrada: a guerra das minas.

Chegada a frente de trabalhos a Colibuía (uma das tabancas abandonadas), e uma vez que estava prevista a reocupação da mesma pela nossa companhia, os nossos picadores passaram a “pente fino”, milímetro a milímetro, o local. Dois grupos de combate da companhia passaram a dormir, alternadamente aqui.

Já com as máquinas a terraplanarem esta antiga tabanca, criando as condições para aí nos instalarmos, como era recorrente, surge a contra ordem que afinal iríamos ocupar a tabanca mais à frente – Cumbijã.(**) [Vd, infografia abaixo.]

Chegados a Cumbijã, para aí nos instalarmos definitivamente, detetamos e levantamos cerca de 30 minas (pessoal e anticarro: vd. foto nº  2, acima).  A eficácia na deteção e levantamento de minas foi de quase 100%. Digo quase, porque Infelizmente os quase 100 % não evitou a nossa segunda vítima grave causada por esta estúpida e cobarde guerra das minas (a primeira foi um acidente de um camarada da companhia a manobrar uma granada ofensiva que lhe rebentou na mão).

Um soldado que estava de visita ao destacamento, por pura curiosidade uma vez que não fazia parte dos grupos de combate, abeirou-se, coisa que todos nós fizemos, junto de uma pequena construção em betão (em homenagem a um soldado morto no local e que pertencia à última companhia que ocupou o local) para ler a mensagem gravada na placa de cimento. 

Enquanto as máquinas de engenharia terraplanavam criando as condições mínimas de segurança e habitabilidade, ouve-se um grande rebentamento, julgando eu, na altura, ser uma mina acionada pela máquina, que parou, ouvindo-se de seguida gritos de desespero. Foi o soldado que acionou uma mina, que não foi detetada, no mausoléu.

Por uma questão de respeito ao militar morto neste destacamento, ao entrarmos pela primeira vez no local, decidimos manter o mausoléu.

Por ser, obviamente, local de grande curiosidade, já que todos iriam querer ver a dedicatória inscrita no mesmo, foi o local mais picado e verificado por todos os meios. Ficamos incrédulos como foi possível, logo ali, rebentar uma mina. À volta do mausoléu existia uma estrela desenhada com garrafas de cerveja, e não fomos perfeitos, devíamo-lo ter sido, prevendo tal situação. 

A mina estava colocada debaixo de um grupo de garrafas de cerveja, pisadas pelo nosso querido amigo, pensando ser mais seguro. Este incidente, o segundo, não só abalou o grupo como nos consciencializou que o perigo vivia connosco 24 horas por dia, pelo que qualquer passo ou atitude devia ser sempre muito bem escrutinado.

(Continua)

___________

Notad do autor:

(#) Ao chegarmos a Aldeia Formosa por todo o lado se ouvia: "Piriquito vai no mato, olélélé velhice vai no Bissau olélélélé".

Fomos recebidos, calorosamente, com direito a banho e rancho melhorado. Depois do banho fomos conduzidos ao bar para limpar as goelas do pó da viagem.

Alguns colegas “velhinhos” pediam ao soldado que servia no bar cervejas para eles e para os novos companheiros: para eles o soldado servia uma cerveja fresca para o periquito uma quente. Reclamamos, ao que o soldado nos diz: fresca só para os “velhinhos”, com o encolher de ombros do dito “velho”. Como estávamos intimidados e assustados com todo aquele ambiente ninguém mais reclamou.

Convidados para o jantar, aos “velhinhos” era servido, com deferência pelos soldados, uma sopa com aspeto agradável, aos periquitos era servida uma água turva, com grandes pedaços de capim e com gestos bruscos do soldado entornando a mesma nas nossas calças. Aqui a coisa “piou mais fino” e alguns de nós reagiu com alguma violência. Antes que a coisa descambasse, os soldados que serviam no bar identificaram-se como colegas furriéis, e que tal não passava de uma praxe habitual aplicada aos periquitos. Com tudo esclarecido ... a farra foi até às tantas com direito a cerveja fresca.

Dormimos como justos no chão em colchões insuláveis... ainda vazios…

(##) Entretanto, acontece o impensável, Guileje, o aquartelamento mais bem fortificado da Guiné, e muito próximo de nós, foi abandonado pelas nossas tropas (uma companhia que se formou ao mesmo tempo que nós em Estremoz, todos nossos amigos, a CCAV 8350), em consequência do ataque em massa, com armas pesadas e durante vários dias consecutivos, causando várias vítimas entre militares e população…

O PAIGC ocupando Guileje (só 3 dias depois deste ser abandonado!!!), deslocou todo o poder de fogo aí utilizado para Gadamael, completamente sobrelotado com a chegada dos militares e população de Guiléje...


Guiné > Região de Tombali > Cantanhez > Guileje > Mapa de Guileje (1956) > Escala 1/50 mil > Alguns dos topónimos míticos por onde passava o "corredor de Guileje" ou o "corredor da morte", triangulando entre Guileje, Gandembel / Balana e Nhacobá. Ver também posição relativa de Cumbijã e Colibuía, a sudoeste de Aldeia Formosa.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2021)


Comentário de LG: 

Recorde-se aqui a história sumária da Companhia de Cavalaria nº 8351/72:

Identificação CCav 8351/72
Unidade Mob: RC 3 - Estremoz
Cmdt: Cap Mil Cav Vasco Augusto Rodrigues da Gama
Partida: Embarque em 270ut72; desembarque em 270ut72 | Regresso: Embarque em 27Ag074



Síntese da Actividade Operacional

Após realização da IAO, de 280ut72 a 17Nov72, no CMI, em Cumeré, seguiu, em 19Nov72, para Aldeia Formosa, a fim de efectuar o treino operacional sob orientação do BCaç 3852 e, a partir de 4Dez72, reforçar aquele batalhão e depois o BCaç 4513/72, com a missão prioritária de segurança e protecção dos trabalhos da estrada Mampatá-Cumbijã-Mejo, em cooperação com outras subunidades.

Em 3Abr73, quando os trabalhos da estrada atingiram Cumbijã, deslocou parte dos efectivos para esta povoação, a fim de garantir a segurança e protecção do parque de máquinas de engenharia e a continuação dos trabalhos.

Em 17Mai73, com a realização da operação "Balanço Final", instalou-se temporariamente em Nhacobá, até 26Mai73, após o que ficou em Cumbijã, com a mesma missão anterior.

Em 26Ju174, após substituição em Cumbijã por dois pelotões da CCav 8350/72, recolheu a Buba e depois a Cumeré

Em 30Jun74, foi colocada em Bissau, onde passou a colaborar na segurança e vigilância periférica da cidade até ao seu embarque de regresso.

Observações - Não tem História da Unidade.Tem Resumo de Factos e Feitos (Caixa n.º 128 - 2.º Div/4.º Sec, do AHM).

Fonte: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) :   7.º Volume - Fichas das Unidades: Tomo II - Guiné - 1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2002, pág. 520.

____________

(**) Vd. também poste de 28 de dezembro de  2008 > Guiné 63/74 - P3675: A história dos Tigres de Cumbijã, contada pelo ex-Cap Mil Vasco da Gama (5): Ocupação do Cumbijã e construção das instalações

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21935: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (7): O milagre de Nhacobá

Nhacobá, entrada norte
© Foto: Vasco da Gama


1. Do projecto de livro autobiográfico do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74) a lançar oportunamente, publicamos aqui mais uma estória, a sétima.


7 - O MILAGRE DE NHACOBÁ

Naquele dia os medos não me deixavam dormir e as piores antevisões do que poderia acontecer, nas horas pesadas que se aproximavam inexoráveis, sucediam-se na minha corrente de pensamento, não deixando espaço para admitir um só cenário otimista que fosse. Se no primeiro dia da tomada daquela tabanca tinham morrido quatro camaradas, quem acreditaria que não morressem dois ou três mais, no dia seguinte. E podia até ser eu! Porque não? Ou então podia calcar uma mina, como tinha visto acontecer ao Albuquerque, ir pelos ares e voltar ao chão, já sem uma perna, sob uma espessa nuvem de pó. Depois viria o helicóptero para me levar para o Hospital Militar. Nesse caso podia até ter mais sorte que o Albuquerque, sobrevivendo sem uma perna, a direita ou a esquerda, tanto fazia. Mas, sem a perna, ainda jovem, a minha namorada gostaria de mim assim? Bem pior, muito pior, era ficar sem as duas pernas ou morrer mesmo. Porque é que me resignei em ir para ali, para o meio do mato de África, lutar numa guerra sem fim? Afinal, não havia ali brancos que precisassem que os defendêssemos das catanadas dos pretos. Aquilo era um verdadeiro suplício de Sísifo, a uma vitória de hoje sucedia amanhã uma derrota, numa interminável caminhada sangrenta, iniciada, naquela pequena colónia, em 1963, e sem fim à vista.

Tinha-me sentado, já a noite tinha feito adormecer as mulheres e as crianças daquela morança, numa espreguiçadeira igual a muitas que havia por toda a tabanca, nalguns casos mais do que uma por casa. Acordado estava só o More, o homem da casa, soldado do pelotão da milícia, combatente desde a primeira hora, do lado de Portugal. Era assim que ele gostava de dizer:
- Eu sou português, eu não quero governo de PAIGC, eu gosto de General Spínola.
Ele escutava-me pacientemente, como se não tivesse que se levantar antes das seis horas do dia seguinte. Não era um soldado qualquer, tinha sido condecorado pelo Governo de Portugal com uma Cruz de Guerra e era talvez o melhor combatente de Mampatá. Baixo e magro, aliava a sua destreza felina à experiência adquirida desde os primeiros recontros da nossa tropa com o inimigo Eu sabia que, na madrugada seguinte, ambos sairíamos a caminho da tabanca de Nhacobá, integrados numa força equivalente a duas companhias, que tinha sido tomada , no dia anterior, pela nosso exército, onde permaneceríamos por um dia e meio, até sermos substituídos por outras forças. Quem melhor do que ele me poderia fortalecer o ânimo, naquelas horas que precederam a arriscada operação. Dizia-me, na sua islâmica convicção, que tudo iria correr bem, porque eles tinham fugido deixando mortos no terreno e assim demorariam algum tempo até se recomporem da derrota.. Que me fosse deitar no meu quarto, porque no outro dia nem um tiro seria preciso dar.
Posição relativa de Nhacobá-Cumbijã.
Infografia Luís Graça & Camaradas da Guiné

E lá fui apalpando a escuridão por entre carreiros que me levaram até à solidão da minha cela que ficava justamente ao lado da enfermaria. Refrescado o corpo por um minuto debaixo do chuveiro deixei-me cair no catre onde já dormira cerca de trezentas longas noites. Mas, perturbado por pensamentos cheios de mutilações e morte, só por intermitentes momentos tinha passado pelo sono, durante aquela madrugada, quando ouvi, em frente à janela do meu quarto, o barulho que faziam os meus camaradas a levantar munições, granadas e algum armamento especial para aquele dia. Estava na hora de fazer a minha parte. Não podia dar sinais de fraqueza, por isso aprovisionei a minha bolsa de enfermagem, de tudo o que poderia ser precioso em caso de ferimentos graves, onde não poderiam faltar garrotes, soro fisiológico, ampolas hemostáticas, morfina, pensos e os mais diversos comprimidos. Carregaria ainda a minha G3, que um rapazinho da tabanca tinha lubrificado no dia anterior, as cartucheiras e uma caixa com a ração de combate. E aí vou, de medo disfarçado, ao encontro dos meus camaradas. Olhava-os como se fizessem parte da minha família, e eram mesmo, porque desde que o avião nos despejara, em Bissau, largos meses antes, estávamos ali entregues à nossa sorte, no meio do mato, sem que os nossos pais, irmãos, avós, esposas e namoradas pudessem imaginar as agruras dos nossos longos dias. Em camiões militares depressa percorremos aqueles quinze quilómetros, pela estrada recentemente concluída, até à tabanca nova de Cumbidjã, onde dois ou três meses antes se tinha instalado uma nova companhia. Empreendemos então, apeados, o trajeto até Nhacobá, pelo itinerário já desbravado pelas máquinas da engenharia, onde nos esperavam os camaradas de outras companhias que íamos render. Ante os nossos olhos havia um conjunto de casas de planta quadrangular cobertas de capim, abandonadas pelos seus moradores de etnia balanta. Era uma comunidade de gente dedicada à cultura do arroz de bolanha, ao contrário dos fulas, nossos amigos de Mampatá, que cultivavam o arroz de sequeiro. Se o ambiente era, aparentemente, seguro, para tanto contribuía a vastidão de mata capinada e terraplanada, permitindo abranger um extenso horizonte visual. O perigo, por certo, não viria enquanto a noite não chegasse e nos impedisse de vermos o inimigo, porque ele, escondido lá longe, aguardaria, pacientemente, pelo momento propício, como o leão espera pela gazela.

Segundo o plano previamente estabelecido, cada grupo de combate ocupou o seu lugar, no interior de valas, constituindo-se numa formação de quadrado defensivo, ficando no centro o espaldão das peças de artilharia e um abrigo subterrâneo onde o Capitão Marcelino, o More, o Pinheiro das transmissões e eu próprio iríamos passar aquela noite em alerta permanente. O More estava ali como guarda-costas e conselheiro do Capitão. Quem como ele conhecedor daquelas matas desde pequeno, habituado a distinguir os ruídos dos animais da mata, poderia melhor perscrutar os sons da selva e interpreta-los? Por isso estava ali, ao nosso lado e transmitia-nos confiança. Por momentos eu dormitava escudado pelo estado de vigília permanente do More, mas quando me tirava do sono ele dizia-me, em crioulo, quase paternalmente :
- Durme, perigo não tem gora.
As castanhas de cola, que continuamente mascava, mantinham-no arrebitado, como a todos convinha. Vi-o rezar, dentro do abrigo, balbuciando em palavras árabes, orações que sabia de cor. Não pediria a Deus, em absoluto, que o salvasse da morte, antes lhe rogaria que, caso morresse, o acolhesse no paraíso celeste. Pedi eu, igualmente, ao mesmo Deus, que me salvasse da morte, mas já não me importei em pedir-Lhe o paraíso celeste, caso não me quisesse ou pudesse livrar da morte. Na verdade o único paraíso que eu queria era o que eu conhecia bem, a minha família e aquela que eu desejava ardentemente constituir, nada de paraísos metafísicos. Ele era muçulmano, mas ambos sabíamos que o Deus de Moisés era-nos comum e que só Jesus Cristo e Maomé nos separaram nos catecismos que nos formataram na infância.

De repente, um tiro, dois, muitos, logo seguidos de rajadas, interromperam o sono de uns e as evocações e invocações de outros. O ataque tinha começado. Os clarões dos rebentamentos de granadas faziam da noite dia e ouvia-se gritaria indecifrável no meio da trovoada das armas. O Pinheiro, da Vila das Aves, deixou o rádio e saiu do abrigo, indo instalar-se a fazer fogo num sector que lhe pareceu mais desprotegido, sendo secundado pelo More.

No fim, caladas as armas, só por milagre não teríamos um ou mais mortos, e, por certo, muitos feridos, pensava eu. Na verdade só arranhões! Um milagre!

O More, esse fidelíssimo e intrépido soldado do exército português, admirado e protegido por nós, foi fuzilado pelo PAIGC, passado pouco mais de um ano, por ter apostado no lado errado – aquele que lhe parecia o certo.

A razão é sempre a dos vencedores, ávidos de vingança, ciosos, das suas conquistas e dos seus despojos, os do lado certo.

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16077: O que dizem os Perintreps (Nuno Rubim) (3): Mais três fotos da "minha" CCAÇ 1424... Numa delas o alf mil inf António Joaquim Alves de Moura, natural de Padronelos, Montalegre, que morreu em combate, "a meu lado com um tiro no coração", a 4/9/1966, em Chinchim Dari, entre Mejo, a sul, Nhabocá, a norte, e Salancaur, a oeste... mais 4 topónimos do nosso martirológio de Guileje


Foto nº 1 > Guileje > 1966 > CCAÇ 1424 > "O meu grupo de assalto"...


Foto nº 1 A >  O malogrado alf mil inf, António Joaquim Alves de Moura,
morto em combate a 4/9/1966. É a única fotografia que dispomos dele, no blogue e na Net. É um dos 75 alferes mortos no TO da Guiné.


Foto nº 2 >  Guileje > 1966 > CCAÇ 1424 > "O grupo de apoio"


Foto nº 3  > Guileje > CCAÇ 1424 > "O grupo de segurança" (milícias)


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 1424 (1965/67)


Fotos (e legendas): © Nuno Rubim (2016). Todos os direitos reservados.

1. Mensagem do Nuno Rubim, com data de ontem:

[, foto à direita: o Nuno Rubim, hoje cor art ref, e um talvez o maior especialista em Portugal de história da artilharia... O Nuno tem uma documentação, em suporte digital e em papel, absolutamente fabulosa sobre o TO da Guiné, onde fez duas comissões, no princípio e no fim da guerra... Na primeira comissão comandou duas das unidades que passaram por Guileje: a CCAÇ 726 (out 1964/jul 1966) e a CCAÇ 1424 (jan 1966/dez 1966); tem além disso a coleção completa, digitalizada, dos  Perintreps, daí o título desta sua nova série; trabalhador incansável, é também um grande amigo e camarada, a que pedimos informação e conselho; é membro da nossa Tabanca Grande desde 10 de junho de 2006 (*)]




Guiné > Região de Tambali > Carta de Guileje > Escala 1/50 mil (1956) > Alguns topónimos "míticos" da nossa guerra,por onde passaram muitos dos nossos camaradas, de 1961 a 1974: além de Guileje, Mejo, Gandembel e Ponte Balana...Mas também  Salancaur, Nhacobá, Chinchim Dari (na carta aparece primeiro o topónimo Cabo Verde, seguido de Chinchim Dari, entre parênteses; recorde-se que no crioulo da Guiné-Bissau "dari" é a designação para "chimpanzé")... Também temos dúvidas sobre a linha que separa a região de Quínara e a região de Tombali, ontem como hoje...

Infogravura: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2016)


Capitão "fula" (como era
 conhecidoem Mejo...) 
Nuno Rubim

Vou continuar a enviar material de Guileje, agora da CCaç 1424. Porque perintreps são muitos e tem de se escolher uma data. (**)

Seguem 3 fotos:

A foto nº 1  mostra o meu grupo de assalto. Lá está o alf Moura, o primeiro à esquerda, ajoelhado que morreu a meu lado com um tiro no coração, em Chinchim Dari.. [E eu à direita, em tronco nu, vestido à "capitão fula"];

Na foto nº 2 está o grupo de apoio e na nº 3 está o grupo de segurança (Milícias ), com armas capturadas pela Companhia em Salancaur.

Abraços
Nuno Rubim


2. Comentário do editor:

O alf Moura é o António Joaquim Alves de Moura, transmontano, natural de Padronelos, Montalegre,  morto em combate, em  4/9/1966. Pertencia à CCAÇ 1424 / BCAÇ 1858 (1965/67), batalhão mobilizado pelo RI 15.

Vamos acrescentar o topónimo Chinchim Dari à lista já extensa (e trágica) do nosso martirológio guineense.


____________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 10 de junho de 2006 > Guiné 63/74 - P863: Tabanca Grande: O nosso novo tertuliano, o Coronel Nuno Rubim

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15698: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (36): De 21 a 26 de Junho de 1974 (Revisitando Junho de 1974)

1. Em mensagem do dia 30 de Janeiro de 2016,  o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos mais uma Memória, a 36.ª.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

36 - De 21 a 26 de Junho de 1974 (Revisitando Junho de 1974)


Das minhas memórias: Ainda os finais de Junho de 1974


Como dei conta no último poste, o mês de Junho ficou marcado pela conclusão das estradas e pelo incremento das aproximações e contactos dos grupos do PAIGC com os aquartelamentos e as populações. A nossa actividade militar, à medida que aumentava a confiança no cessar-fogo tácito, ficou reduzida ao mínimo, embora nunca deixasse de se fazer patrulhamentos de segurança próxima.

Com tempo de sobra e sem uma data à vista para sairmos dali, a ansiedade e o nervosismo foi afectando quase todos. Foi necessário “inventar” actividades desportivas, mesmo com o patrocínio do Comando do Batalhão, para ocupar o tempo e descarregar tensões. Parece incrível que em tempo de paz se tivesse de recorrer à criatividade para impedir o enchimento da “bolha” das tensões e evitar a afectação da disciplina e o eclodir de conflitos. Só quem não passou por elas... Mas não chegaram a ocorrer desmandos e os mais extrovertidos optaram pela animação, embora nem sempre comedida.

Dos registos que me restam dessa época, transcrevo trechos que confirmam o que ficou dito e muito mais.


Nhala, 21 de Junho de 1974 (sexta-feira)

Faz hoje precisamente um ano que, pela terceira vez, senti por cima de mim o fogo do PAIGC e, desta vez, com bastante intensidade. A esta hora, 23h30, e há um ano, portanto, estava com toda a minha Companhia a dormir no mato nas imediações de Nhacobá sob uma tremenda trovoada e chuva torrencial. As ordens eram passarmos a noite na base de Nhacobá: mas são doidos, ou quê? 

Era assim há um ano e assim continuaria ainda por muito tempo. Hoje, tudo é diferente. A única coisa que nos consome os nervos restantes é a expectativa duma situação que nunca mais chega: o regresso a casa. Também a inactividade nos inferniza. Praticamente não há que fazer, mas também não há nada que nos distraia nestas paragens isoladas e remotas no meio do mato. Por vezes temos de ser nós a engendrar actividades ou distracções mas, muitas vezes, não passam de maluqueiras. 

Por exemplo, na madrugada de hoje, cerca da uma hora, quando eu me preparava para dormir, bem como os meus camaradas, (o Lopes foi já de férias), chegaram-nos aqui vindos de Aldeia Formosa, (a esta hora!), os nossos camaradas Alferes Amado João e Alferes Mota, mais um furriel madeirense e outro que pertence à Engenharia. Vinham já com os copos e faziam-se transportar numa Mercedes da Engenharia. Continuaram aqui em Nhala a festa deles e começaram a nossa, apesar da hora tardia, que se prolongaria até às 3h30. Bebeu-se, comeu-se e dançou-se. E o tempo passou. Mas encharcaram-se os corpos em uísque e roubaram-se horas ao descanso. (...).

Os mais sensatos e disciplinados passam o tempo de maneira mais saudável: levantam-se cedo e vão para Buba nadar no rio. Depois vêm almoçar e saem logo a seguir para a caça. À noite deitam-se cedo sem necessidade dos comprimidos que eu tomo ou dos copos que encharcam os outros, para recomeçarem tudo na manhã seguinte.

[De seguida dava conta das actividades desportivas. Tinha acabado um campeonato de futebol que envolveu todas as Companhias do Sector, e ia-se iniciar um outro da iniciativa do Comando do Batalhão, bem como um torneio de voleibol para decorrer em paralelo. Curioso é que eu tanto valorizava estas iniciativas por serem benéficas para o actual estado de espírito do pessoal, como as considerava alienantes por envolverem “multidões” que, na hora presente, deviam concentrar as atenções em questões mais importantes. Seria por eu estar a ficar sem “clientela”... Veja-se a seguir].

(...). Ainda no tempo do capitão BC se pensou em fazer qualquer coisa junto dos soldados no sentido do esclarecimento político e, no que me diz respeito, senti-me incentivado quando fui eleito Delegado do MFA em Nhala. Mas desencorajei mais uma vez ao ver a indiferença dos outros. (...). Aguardo determinações do MFA da Guiné que sirvam de orientação e que me dêem carta-branca para agir e, então, é possível que mesmo na situação presente venha a fazer reuniões de esclarecimento com o pessoal, visando o momento político que vivem agora os portugueses e os procedimentos a corrigir por pertencerem ao passado. [?]. Seria bastante útil também a realização de convívios com o diálogo aberto a todos, para se irem acendendo luzes nos espíritos dos mais despolitizados. Espero vir a cumprir tudo o que citei atrás e já estou a dar conhecimento a todo o pessoal, do documento recentemente recebido do MFA da Guiné e que a seguir transcrevo:

[Nem chegou a ser transcrito para o caderninho, nem o possuo para poder divulgar agora, pois fazia parte de todos os demais documentos (incluindo vários Perintrep) que deixei em Nhala sem remédio].


Nhala, 22 de Junho de 1974 (sábado)

Em Angola já há acordos de cessar-fogo com alguns Movimentos de Libertação e, para o caso de Moçambique, esteve em Lusaca o Dr. Mário Soares em contacto alguns dirigentes dos Movimentos moçambicanos. Tudo indica que se vai chegar a acordo em todas estas negociações, embora pouco transpareça do que se passa nas reuniões. No respeitante à Guiné, há já muito tempo que o cessar-fogo é um facto, mesmo ainda antes de ser conhecido qualquer acordo. No entanto, no Perintrep do último período, ainda se fazia referência a três acções da guerrilha, mas dando conta, por outro lado, de que neste período não houve accionamento de minas nem nenhuma detecção.

Que eu saiba, o PAIGC não reivindica a autoria destas acções, que são uma traição aos princípios que deram forma aos acordos de cessar-fogo. Aliás, um alferes do PAIGC que há dias esteve aqui Nhala a falar à nossa tropa e à população, atribui estas últimas acções de guerrilha aos homens da FLING.

[Creio que até àquela data ninguém ouvira falar desta FLING. (Frente de Libertação e Independência Nacional da Guiné. Foi um movimento independentista da Guiné Portuguesa que resultou da fusão destes: União dos Povos da Guiné; Reunião Democrática Africana da Guiné; União da População Libertada da Guiné. Fonte Wikipédia. 

Mas casos de oportunismo sempre aparecem em situações análogas. Cabia ao PAIGC demarcar-se e impedir confusões e ambiguidades. É o que parecem fazer os seus apoiantes na faixa da fotografia em baixo, em que clamam “Abaixo os oportunistas”]. 



Fotos 1 e 2: Buba, Junho de 1974 – Faixa de apoiantes do PAIGC repudiando o MDG – Movimento Democrático Guineense. Os “oportunistas” eram um dado recente, pelo menos à luz do dia, no período histórico que se vivia.


Prosseguindo a nota de 22 de Junho de 1974. 

Ultimamente alguns grupos de combate do PAIGC têm tentado contactos amistosos com os nossos, chegando a esperar em pleno mato junto à estrada, para poderem dialogar connosco. Isso já se verificou no carreiro de Chinconhe [?] do lado de Buba e no de Uane do lado de Mampatá. 

Neste último, esteve há dias um bigrupo que se espalhou paralelamente à nossa estrada, aguardando que aí passasse alguém. Já o tinham feito e voltariam a fazê-lo. Ao passar uma coluna que se dirigia a Buba, o Comandante do Batalhão Ten Cor Ramalheira que seguia à frente, mandou parar as viaturas para poder falar com os comandantes desse bigrupo. Parece que tudo correu cordialmente e pouco depois a coluna retomava a marcha.


Nhala, 23 de Junho de 1974 (domingo)

Hoje tivemos a visita do Alf Mil Médico Herculano, (um progressista que já dorme com a fotografia de Amílcar Cabral à cabeceira), o Eng.º Campos e o alferes das antiaéreas. Trouxeram galinha e batatas de Aldeia Formosa.

Também eu fazia gala em me deixar fotografar, embora sisudo, com uma camisola recém-adquirida com a imagem de Amílcar Cabral, embora não a usasse. 



Foto 3: Buba, Junho de 1974 – António Murta ostentando um dos sinais dos tempos.


Foto 4: Buba, Junho de 1974 – Outro dos sinais dos tempos: a irreverência. Nunca usei tal boina, mas pu-la para a fotografia. O meu quico está nas mãos atrás das costas...



Nhala, 25 de Junho de 1974 (terça-feira)

Já os meus camaradas dormiam quando fui surpreendido com a visita do Alf Mil Médico Herculano e do Alf Mil Mota,  de Aldeia Formosa. Depois de umas bebidas quiseram ir a Buba beber com os de lá. Como não os consegui demover, fui com eles. Era uma da madrugada. A meio do caminho avariou-se o jeep. Depois de várias tentativas lá conseguiram pôr o jeep a trabalhar e seguimos. O Capitão de Buba, o Brás Dias, ficou indignado mas depois abriu o bar e fez-nos companhia.

[Quando transcrevi esta nota fiquei surpreendido por omitir o que se passou a seguir e que foi o “melhor da festa”. Contudo recordo muito bem esta ida a Buba já de madrugada, a avaria do jeep, o Cap. Brás Dias todo chateado, enfim, talvez me recorde por ter já narrado isto antes. Também omiti, sem que o compreenda, que a acompanhar os alferes de A. Formosa vinha um tenente do QP, que ainda conheci como Sargento Ajudante, mais velho do que nós e que era um bonacheirão incorrigível. Foi o homem da noite, pelos piores motivos. Protagonizou uma cena que deixou o capitão de Buba furioso e nós perplexos.

Bebíamos no bar, entre conversas, quando o tenente se “desenfia” direito ao quarto dos alferes. Pensávamos que tivesse ido à casa de banho e não ligámos. Só quando ouvimos burburinho e protestos indignados nas acomodações próximas do bar percebemos o que ele andava a fazer. Dirigimo-nos logo para lá a fim de o trazermos e impedirmos algum incidente. Tinha acendido a luz do quarto dos alferes que estavam a dormir e estava junto da cama de um deles a insistir para que se levantasse para nos acompanhar no bar. O alferes resistia, o capitão exaltou-se, já nos queria dali para fora e o tenente, como se não fosse nada com ele, continuava a rir e a gozar, afinal, com todos nós. 

Face aos protestos mal-humorados do capitão, o nosso tenente, de súbito, ficou com o semblante inexpressivo, o olhar vago, e cai redondo no chão onde ficou inanimado. Ó caraças, só faltava mais esta, vira daqui, vira dali, mais uns estalos na cara, mas não havia qualquer reacção. Chamava-se, abanava-se mas continuava a não reagir. Quando o capitão, visivelmente preocupado, já mandava alguém ir chamar o enfermeiro, de repente, o nosso tenente virou-se para o lado e levantou-se de um salto, a rir à gargalhada de braços no ar como quem diz não tenho nada. Primeiro foi a estupefação geral, depois a indignação. 

Estava a noite estragada. Quer dizer, mais estragada. Apressámo-nos a sair dali empurrando o tenente para o jeep e a pedir desculpas de circunstância aos camaradas de Buba. Estrada fora em silêncio, cada um a cogitar apenas para si. Fez-nos bem a frescura da noite. Deixaram-me em Nhala, muito sóbrios, e seguiram para A. Formosa. Cenas e aventuras impensáveis há apenas dois meses. Estes excessos não eram, de modo nenhum, comuns à maioria, mas traduzem um certo “clima” pós cessar-fogo].


Nhala, 26 de Junho de 1974 (quarta-feira)

Fui a Mampatá assistir a um jogo de voleibol dum torneio que se está a realizar. Da borda do campo acompanhei os olhares da assistência que se viravam para a estrada atrás de nós, e não muito longe dali. Era um bigrupo do PAIGC que se aproximava numa longa fila vindo do lado de Cumbijã. Passaram sem se manifestar na direcção da tabanca de onde acorreram, sobretudo mulheres e a miudagem, a aclamá-los com palmas e alguma euforia, mais movidos pela curiosidade. Eles, muito dignos e quase indiferentes, continuaram a sua marcha e só pararam depois de atravessar a povoação.

Era a primeira vez que eu assistia a uma recepção tão calorosa da população. Em Nhala nunca observei nada disso. Em comum com o que já observara antes, apenas o porte e a disciplina dos guerrilheiros: sempre em silêncio, bem fardados e muito comedidos. Vinham bem armados, como sempre.

[Hoje, Janeiro de 2016, não imagino como veria isto um nosso camarada antigo combatente dos anos sessenta, que ali fosse largado sem aviso. Julgaria que estava a sonhar?].

Viria a surgir um problema. O Comandante do aquartelamento, (não recordo se lá estava na ocasião o Cap. Luís Marcelino), recusou-se a dar-lhes alojamento para pernoitarem, alegando que não tinha ordens para os tratar como amigos. [Uma atitude cautelosa e sensata, diria eu hoje]. Eles continuaram sentados no chão até ao anoitecer, mas depois o problema resolveu-se com a intervenção do Comandante do Batalhão.

Entretanto, ainda durante o jogo de voleibol – que não foi interrompido devido à chegada dos guerrilheiros -, todos vimos com tristeza passar na estrada o resto da CCAV 8351 para Buba, com destino a Bissau e à Metrópole.


Foto 5: Mampatá no tempo da guerra, quando até ir à fonte era perigoso, mesmo ali ao fundo onde a estrada prossegue para Colibuia-Cumbijã-Nhacobá. (Panorâmica sem primores técnicos e com alguma batota, feita com a junção de duas fotografias que nem sequer eram coincidentes).

(continua)
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 Nota do editor

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