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segunda-feira, 22 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24333: os nossos capelães (18): Ainda o caso do Arsénio Puim, CCS/BART 2917 (Bambadinca, maio de 1970/maio de 1971): nova informação produzdia pelo jornalista António Marujo, "Sete Margens", 19/5/2023

 

Arsénio Chaves Puim, ex-alf graduado capelão,
CCS/BART 2917 (Bambadinca, maio 1970 / maio 1971)

Foto: © Gualberto Magno Passos Marques (2009). Todos os direitos reservados.
Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



Cópia do Ofício nº 589/71- GAB, da Direção Geral de Segurança,  Delegação da Bissau, dirigida ao Director-Geral de Segurança, datado de  Bissau, 20 de maio de 1971, e assinado por A. H. Matos Rodrigues, inspector-adjunto.

 Fonte: Sete Margems. Cortesia de António Marujo: 

Sete Margens > António Marujo | 19 Mai 2023 >  O  capelão expulso por querer descalçar os dois sapatos à guerra






Fotocópia de uma das páginas do Diário do capelão Arsémio Puim, apreeendido pelas autoridades militares (comando do batalhão) e entregue à DGS - Direcção Geral de Segurança, delegação de Bissau.

Fonte: Sete Margems. Cortesia de António Marujo: 

Sete Margens > António Marujo | 19 Mai 2023 >  O  capelão expulso por querer descalçar os dois sapatos à guerra


Transcrição (revisão e fixação de texto: LG): 

"Bambadinca - 10/5/1971 (*)

Continuo a conversar com os "turras" presos. Tornei-me conhecido e amigo deles.

As mulheres disseram ao cipaio para me dizer que estão muito contentes comigo, porque eu sou amigo dos meninos. E à noite tornaram a dizer que vão pedir que Deus me dê tudo para a minha vida.

Respondi-lhes: "gatè" (obrigado, em balanta), ao que riram.

Sinto-me, porém, confuso. É que a minha actuação, não tendo nenhuma intenção de psico  militar, poderá precisamente ter as mesmas consequências, o que não me interessa.

As condições em que esta gente vive continuam a ser miseráveis: dormir no chão, sem condições de higiene, nem (..-)"


1.  Mais dois documentos para apreciação dos nossos leitores, respeitantes ao caso do nosso amigo e tabanqueiro Arsénio Puim, que no CTIG foi alf graduado capelão, CCS/BART 2917 (Bambadinca, maio de 1970/maio de 1971).  São documentos que nos ajudam eventualmente a perceber melhor, senao as razões, pelo menos as circunstancias, da sua expulsão do CTIG ao fim de um ano de comissão dé serviço. 

Recentemente o jornalista António Marujo dedicou-lhe um extenso artigo, resultante de um trabalho de pesquisa, publicado na edição do semanário Expresso de 12 de maio de 1973 (*) e agora, com algumas correções, no jornal digital "Sete Margens" (19 de maio de 2023).

(...) É uma história conhecida de poucos: em 1971, houve um segundo capelão expulso do exército, depois do padre Mário de Oliveira. Além do então padre Arsénio Puim, que esteve um ano na Guiné, esta investigação permitiu ainda descobrir que pelo menos outros onze padres católicos se opuseram à Guerra Colonial e não quiseram ser capelães. Este texto foi publicado inicialmente na revista E do Expresso, do dia 12 de Maio de 2023. Em relação a essa versão inicial, foram corrigidos apenas dois pormenores, a partir de informações de Luís Graça. (...)

2. Dois comentários de LG (**)

(i) António Araújo escreveu na Revista do Expresso, edição de 12 de maio de 2023, a propósito do Arsénio Puim e dos prisioneiros de Bambadinca (que foram feitos na zona de Madina / Belel, sector L1, e não em Madina do Boé, sector L5, no decurso da Op TRiàngulo Veremelh), 4 e 5 de maio de 1971, como tive ocasião de esclarecer o jornalista) (***):

(...)“As pessoas ficaram ali vários dias, presas numa cerca ao ar livre” e da tabanca (aldeia) vizinha é que lhes levavam comida. “Eu também levava.” No diário, Puim registou as “condições miseráveis” em que o grupo estava, dormindo no chão e sem poder sair. “Ao fim de alguns dias, fui ter com o comandante, dizer-lhe que tinha de os mandar embora.” O sipaio traduzia-lhe a conversa das mulheres: estavam muito gratas pelo apoio que ele lhes dava, pela comida que lhes levava. A libertação, no dia seguinte ao pedido feito ao comandante, aumentou o sentimento e, antes de partirem, elas colocaram-se em fila para lhe agradecer, prometendo rezar pelo padre aos seus irãs, as divindades da sua etnia. (...)

Esta história foi depois tema da sua homilia dominical, de 9 de maio de 1971, na capela de Bambadinca, que era aberta a civis e militares...

18 de maio de 2023 às 19:20


(ii) Não sabemos se a intervenção do Puim junto dos prisioneiros e depois a homilia no domingo a seguir, foi apenas "a gota de água" que fez entornar o copo... Citando a mesma fonte, o jornalista António Araújo que leu os diários ou parte deles, do antigo capelão do BART 2917:


(...) Foi isto (a ordem de expulsão) no dia 17 de maio de 1971 — Puim fizera 35 anos dia 8 e estava a dias de completar, a 25, um ano na Guiné. Maio, maduro mês na sua vida, como se vê, de importantes colheitas. No seu processo militar, que hoje se pode consultar no Arquivo do Exército, consta apenas, nas “Ocorrências extraordinárias: Embarcou em Bissau de regresso à Metrópole, por não convir ao serviço do CTIG [Comando Territorial Independente da Guiné], em 21 de maio, desde quando deixa de contar 100% de aumento no tempo de serviço. Desembarcou em Lisboa em 22. Disponibilidade desde 19 maio 71.”

No arquivo da PIDE-DGS encontra-se o único documento que refere as causas da detenção: Puim “condenava a atividade das Nossas Tropas em defesa da integridade nacional” e “em relatórios que foram descobertos no seu quarto, descrevia-as, em pormenor, qualificando-as de crimes, torturas e massacres". (...)


18 de maio de 2023 às 19:37
_____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 15 de maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24317: Recortes de imprensa (126): O caso do capelão militar Arsénio Puim, expulso do CTIG em 1971 (tal como o Mário de Oliveira em 1968) não foi excecional: o jornalista António Marujo descobriu mais 11 padres "contestatários" (10 da diocese do Porto e 1 de Viseu)... Destaque para o trabalho de investigação publicado na Revista do Expresso, de 12/5/2023

(**) Último poste da série > 12 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23073: Os nossos capelães (17): José Torres Neves, ex-alf graduado capelão, BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71), ainda no ativo como 
padre das Missões da Consolata

(***) Vd. poste de 8 de maio de2023 > Guiné 61/74 - P24325: História do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) (5): Op Triângulo Vermelho, a três agrupamentos (CART 2715, CCAÇ 12 e CCP 123 / BCP 12), em 4 e 5 de maio de 1971: a captura de população civil que depois é levada para Bambadinca e cujo tratamento causa a piedade e provoca a indignação do alf grad capelão Arsénio Puim

segunda-feira, 1 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24272: 19º aniversário do nosso blogue (4): A pior democracia é sempre melhor do que a melhor das ditaduras (Luís Graça / J. Sarmento)


1.ª página do "Diário de Lisboa", 2.ª edição, 28 de fevereiro de 1969 > Excerto> A noite em que a terra voltou a tremer, violentamente, 70 anos depois... Estava eu e o Sarmento em Castelo Branco, mobilizados para a Guiné. Custava  o jornal um escudo e ganhávamos nós, como 1.ºs  cabos milicianos, 90 escudos de pré (equivalente, a preços de hoje, a 30 euros).

Fonte: cortesia de Hemeroteca Digital | Càmara Municipal de Lisboa.

Peniche > Museu Nacional da Resistência e Liberdade , o  15.º Museu Nacional > 27 de abril de 2019

Fotos (e legenda): © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Por ocasião do 19.º aniversário do nosso blogue, esperávamos poder contar com a publicação de alguns textos inéditos dos nossos camaradas, que são os nossos primeiros colaboradores, autores e leitores. Até ao próximo dia 13 de maio, ainda aceitamos "material" para inserir nesta série. 

Neste quarto poste, republicamos um texto de J. Sarmento, velho conhecido do nosso editor, Luís Graça (dos tempos do CISMI, Tavira, 1968), e que já tem quatro anos (*). Foi revisto nesta data.  Tem uma introdução, um pouco longa (e que vai em itálico), em que se explica como é que ele surgiu aqui no blogue.


Peniche, ou melhor, o forte de Peniche, era talvez o lugar mais improvável para reencontrar um dos poucos camaradas, do tempo do Curso de Sargentos Milicianos (CSM), em Tavira, de quem eu guardava uma nítida (falando da sua fisionomia) e sobretudo grata recordação (no que dizia respeito ao convívio e à camaradagem)... Refiro-me ao Sarmento, ao J. Sarmento (nome fictício, a seu pedido, para proteger a sua privacidade).

Tínhamos em comum o gosto e a paixão pela escrita, pelo jornalismo pelo "Diário de Lisboa Juvenil". Ele era do 
Fundão, de uma terra chamada Alpedrinha, sabê-lo-ei mais tarde. E chegara a colaborar, enquanto jovem, no prestigiado "Jornal do Fundão", criado em 1946, por António Paulouro, e um dos raros jornais independentes que existia no Portugal desse tempo... Eu também vinha do jornalismo regionalista, onde aprendi a fintar a censura…

Em Tavira, no quartel da Atalaia, no CISMI, o Centro de Instrução de Sargentos Milicianos (CSM), colaborávamos no jornal de parede. Recordo-me que tínhamos uma equipa editorial, composta por vários soldados-instruendos que tinham dado como profissão o jornalismo… 

E, claro, tínhamos,  um "diretor". O comandante da unidade, um tenente-coronel ou coronel, já não me recordo qual era o posto, zelava pela "orientação editorial do jornal" e, cumulativamente, pelo moral da tropa (e, o mesmo era dizer, pela  moral da Nação). 

Miúdas de peitos fartos, generosos, de bicos espetados, e "bundas" (como se diz hoje, na gíria brasileira) largas e redondas, loiraças, provocantes, anglo-saxónicas, francesas ou escandinavas, eram bem vindas e aclamadas: afinal de contas, "os nossos  soldados-instruendos estavam na flor da idade" (sic), precisavam de ter sonhos cor de rosa à noite... Sim, porque os sonhos verde-rubros das grandezas do império não davam tanta "pica"... a avaliar,aliás, pela rarefacção dos heróis que se dispunham a bater-se (e a morrer) por eles...

Também havia a rádio CISMI, se bem me lembro, que nos acordava em altos berros logo pela madrugada… (Eram uma tortura aqueles altifalantes!)... Mas eu e o Sarmento pertencíamos à equipa do jornal de parede, distista da rádio. Tínhamos alguma liberdade para trabalhar , todavia havia limites para a "desbunda": recordo-me de, um belo dia, ele, comandante, director, censor-mor, lídimo representante do Exército e da Nação, ter-nos obrigado a mandar para o lixo uma vasta e luxuosa edição especial, uma verdadeira enciclopédia, ilustrada, com dezenas e dezenas de fotos, infografias, gráficos, quadros estatísticos, mapas e recortes, dedicada à II Guerra Mundial e ao "nazifascismo" (que palavrão!). Foram horas e horas de trabalho, roubadas ao sono, que acabaram ingloriamente no caixote do lixo!

O argumento do censor-mor era de peso (e até de bom senso, tenho o de reconheer hoje...). Era um argumento definitivamente pedagógico e sobretudo retumbante: "Meus senhores, para guerra, já basta a nossa, a do Ultramar. Ponto final, parágrafo!"... Como, de resto, iríamos comprovar dentro de escassos meses... 


Quis o destino que tirássemos, os dois, eu e o Sarmento, a especialidade de armas pesadas de infantaria, e que depois fôssemos mobilizados para a Guiné, não sem antes termos ido ainda dar uma rápida recruta, como 1.ºs cabos milicianos, em Castelo Branco, no BC 6, se não erro... Estávamos lá os dois quando foi o terramoto de 28 de fevereiro de 1969... O "nosso" já acontecera umas horas antes, com a ordem de mobilização para a Guiné... Ganhávamos 90 escudos de pré, o que em 1969 equivaleria hoje a 30 euros, mal dando para comprar o "Lisboa" , comer uma sandocha e tomar uma "bica", uma vez por outra... (Recordo que, meio "anestesiado", dormi que nem um justo nessa noite, não tendo sequer acordado com o pânico ou o alvoroço que se gerou na caserna, com malas, candeeiros e até cacifos metálicos a caírem com o violento tremor de terra.)

Embarcámos no mesmo dia e no mesmo navio, o "Niassa",  três meses depois, em 24 de maio de 1969. Convivemos ainda nesses cinco dias de viagem, especulando sobre o incerto mundo e a  estranha terra que nos esperavam. Mas, chegados a Bissau, cada um seguiu o seu inexorável destino, depois de dois ou três dias nos Adidos. 

Apesar das promessas de irmos dando notícias por carta ou aerograma, acabámos por perder o rasto um do outro. Como aconteceu com outros efémeros amigos que íamos fazendo pelas estações do calvário da tropa: Caldas da Rainha, Tavira, Castelo Branco, Santa Margarida... Em todo o caso, não tenho qualquer memória da passagem do Sarmento pelo RI 5...Aliás, tenho poucas memórias do RI 5.

Foi preciso esperar meio século para, num bambúrrio de sorte, nos encontrarmo-nos e nos reconhecermo-nos, aos 72 anos !... Eu e o Sarmento, logo na cerimónia da celebração dos 45 anos da saída dos presos políticos da cadeia de Peniche, dois dias depois do 25 de Abril de 1974.

Fui lá, ocasionalmente,  acompanhando a  minha mulher que queria recordar os momentos, de grande ansiedade e euforia, em que fora dar um abraço a um dos seus amigos, colega de trabalho, que estava a cumprir pena de prisão. Ela não tinha a certeza  de que ele viria a essa cerimónia dos 45 anos, que era também a da inauguração do novo Museu Nacional da Resistência e Liberdade. Mas a verdade é que o amigo veio,  e para mais 
com a filha e a  neta. A minha mulher voltou a fazer-lhe uma festa, abraçando-o e beijando-o efusivamente. A seu lado estava  imaginem!   nem mais nem menos, o Sarmento, e mais um amigo dele. Como virei a saber mais tarde, era o Sarmento em pessoa. Naturalmente, irreconhecível ao fim de tantos anos...

Há 45 anos atrás, na Cadeia de Peniche, foram longas horas de espera e mesmo assim não saíram todos os presos. Os fuzileiros tinham recebido instruções, da Junta de Salvação Nacional, para não deixar sair os presos condenados por "crimes de sangue" (sic)... Enfim, acabaram por sair todos, graças à forte mobilização e resiliência da multidão que se juntou frente aos portões da fortaleza de Peniche, e que foi gritando, até ao fim do dia 26 e princípios do dia 27, "ou saem todos ou não sai nenhum"... E a verdade é que saíram todos na madrugada do dia 27 de abril de 1974...


Eu não estive lá nessa altura, trabalhava e vivia em Mafra, e nem sequer namorava ainda com a minha futura mulher. Mas, ao que parece, um dos tipos que foi solto era também um amigo, conterrâneo ou familiar do Sarmento, alegadamente preso e condenado por pertencer à LUAR.

Quarenta e cinco anos depois, na comemoração dessa efeméride, e de entre os mais de dois mil e quinhentos presos políticos, que passaram por Peniche, entre 1933 e 1974, estavam alguns, talvez algumas dezenas, dos sobreviventes, agora todos eles de cabelos grisalhos... Lá estavam, aparentemente felizes e orgulhosos, de cravo ao peito, nesse sábado, dia 27 de abril de 2019. A fortaleza, monumento nacional, passava também a ser a sede do Museu Nacional da Resistência e Liberdade, o 15.º museu nacional.

Curiosamente, entre os VIP presentes, sentados, frente ao palco, descortinei o Jerónimo de Sousa, deputado e secretário-geral do PCP (e, que eu soubesse,   nunca fora preso pela PIDE/DGS). Há uns anos atrás é que eu viera a descobrir que ele fora também  mobilizado para o TO da Guiné, tendo embarcado no "Niassa", em 24 de maio de 1969, comigo e com o Sarmento e mais uns mil setecentos e tal militares, sem sabermos naturalmente nada dele nem ele de nós. Éramos uma série de  companhias independentes, além de vários pelotões, incluindo uma companhia de polícia militar a que pertencia o ex-soldado condutor auto, da companhia de polícia militar, a CPM 2537, Jerónimo de Sousa.

O Sarmento não sabia, nem sequer suspeitava, dessa coincidência, de resto já aqui relatada no nosso blogue. Também não revelou particular interesse pela presença do dirigtente comunista, nosso antigo camarada de armas. Mas fui eu quem lhe revelei esse segredo de Polichinelo, nessa manhã,  depois de sermos apresentados um ao outro pelo ex-preso político, amigo e colega de trabalho da minha mulher.

Palavra puxa palavra, falou-se do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Mas o Sarmento só me conhecia por Henriques... Afinal o Graça e o Henriques era a mesma e única pessoa... Na realidade, o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande, conclui eu, algo embevecido. Caímos, naturalmente, nos braços um do outro!

Diga-se, em abono da verdade, que o Sarmento já em tempos tinha procurado saber do meu paradeiro através do blogue, e estava para me contactar, até porque queria trazer os netos à Lourinhã, para uma visita ao DinoParque, o parque dos dinossauros que é o maior da Europa, e está justamente localizado na terra onde eu hoje moro e onde nasci. (Enfim, perdoem-me a publicidade, mas é por uma boa causa!)... Não foi preciso, afinal: reconhecemo-nos em Peniche, em 27 de abril de 2019, por um mero (mas feliz)  acaso... 


Enquanto os ex-presos políticos ficaram a partilhar as suas doridas memórias da cadeia de Peniche, eu e o Sarmento pusemos a "escrita" em dia, falando dos tempos de Tavira, de Castelo Branco, da nossa memorável viagem no "Niassa" e das nossas desventuras por terras da Guiné, eu no leste, ele no sul... 

Não sei qual de nós teve mais sorte, no TO da Guiné: mais emboscada menos emboscada, mais mina menos mina, andámos os dois na "porrada", eu numa companhia africana, ele numa companhia independente, adida a um batalhão . Nada do que aprenderamos em Tavira nos serviu. E a arma que nos distribuíram foi a G3. Nunca tivemos nem manejámos armas pesadas, canhões sem recuso, morteiros, bredas, brownings...

Antes de despedirmo-nos, trocámos endereços de email e números de telemóvel e prometemos encontrarmo-nos na Lourinhã, no próximo verão de 2020, nas férias grandes escolares dos netinhos... Eu prontifiquei-me a fazer-lhe uma visita guiada pelo DinoParque, para cuja criação, de resto, também dera a minha pequena, modestaíssima, contribuição enquanto sócio e membro, há uns largos anos atrás, dos corpos sociais do Grupo de Etnologia e Arqueologia da Lourinhã (GEAL) que está na génese do "museu da Lourinhã" e, mais recentemente, do DinoParque. 

Infelizmente, no verão de 2020, estávamos todos em casa, confinados, acabrunhados, surpreendidos pela pandemia de Covid-19. E a ideia do reencontro, na Lourinhã, foi esmorecendo... Até hoje. (Pelo meio, meteram-se entretanto problemas de saúde, de um e do outro.)

O Sarmento, que vivia então  nos arredores do Fundão, numa "quintinha cheia de belas cerejeiras", depois de ter feito uma carreira como professor de filosofia, no ensino secundário, na área metropolitana de Lisboa, havia-me, contudo,  prometido mandar um pequeno texto para o blogue, para a minha série, "A galeria dos meus heróis"... Não só prometeu  como cumpriu. Com a seguinte mensagem, passados dois dias:

"Henriques, ou melhor Graça, velho amigo e camarada de armas (pesadas): Não me peças mais para escrever sobre a tropa e a guerra. Já fechei há muito esse departamento. Por amizade e apreço pelo teu trabalho de mineiro das nossas memórias, mando-te este texto que me saiu de rajada. Vê se era isso que tu querias. Até ao próximo verão, no Dino Parque da Lourinhã. 29 de abril de 2019. Sarmento".

Matando, de vez, a minha veleidade de o convidar para integrar a nossa Tabanca Grande, ele foi definitivo e peremptório na sua resposta:

"Muito obrigado, camarada, mas o tempo não volta atrás... E depois, os professores de filosofia, mesmo reformados, são chatos, e pior ainda, incómodos. Tenho as minhas cerejeiras para tratar. E os meus netos para ver crescer. As cerejeiras são árvores delicadas. E os meus netos são a maior riqueza que eu deixo, quando morrer. E não quero que eles passem o que eu já  passei. Quero para eles (e para os teus e os  vossos netos) um país e um mundo muito melhor do que o país e o mundo em que eu nasci, vivi, penei e fui obrigado a fazer uma guerra, contyra a minha consciència. Por favor, não me peças para voltar a falar desses tempos cruéis."

Texto introdutório: LG
___________


A melhor ditadura é sempre pior
que a pior democracia

por J. Sarmento (2019)


Os portugueses, soturnos e fatalistas, escrevem nas portas interiores das casas de banho: "Isto é uma merda". Os espanhóis, cínicos mas encantadores, escrevem um bilhetinho e põem-no na porta do elevador: "Disculpen las moléstias".

O pequeno almoço é uma merda, casqueiro com marmelada, e a Internet não funciona, o quarto do hotel é horroroso,já passaram por aqui milhares de motoristas de camiões TIR e putéfias (desculpem-me as feministas!). As paredes estão pintadas a cor de vómito e de esperma requentado. Mas o gerente não tem que ser simpático, apenas tem que saber gerir o bordel espanhol que a agência de viagens nos arranjou à beira da estrada, na periferia de Cáceres. (Éramos, nessa altura, um grupo de reformados de visita à  Espanha romana com capital em Mérida,  aliás a cabeça da então  Lusitânia. )

Com a violência de género a aumentar exponencialmente em Espanha, eram as espanholas que então gritavam, em manifestações de protesto na rua: "Disculpen las moléstias..., pero nos están matando".

Que pena, eu nunca ter estado em Espanha antes do 25 de Abril, nem conhecer nenhum espanhol e muito menos nenhuma espanhola. Minto, conhecia alguns galegos, que tinham tascos e carvoarias em Lisboa ou eram amola-tesouras. Ia-se a Espanha, nesse tempo, só com passaporte. Há séculos que havia uma fronteira, com gajos façanhudos, mal encarados, armados,  de um lado e do outro, como em todas as fronteiras.

Mas a maior parte dos portugueses deu-se ao luxo de dispensar o passaporte e o controlo fronteiriço e foi "a salto", com a mala de cartão às costas. Só lhe interessava chegar aos Pirinéus franceses. A partir daí, era outra vida, outro mundo, o "eldorado" (pensavam muitos, coitados)... Desgraçadamente, o "paradis"  de França, era o "bidonville" e os "chantiers", o bairro de lata e os estaleiros de construção. Nunca ninguém ofereceu, em nenhuma parte do mundo, que eu saiba, o paraíso aos imigrantes...

Dava-me jeito ter aumentado o meu léxico com essa deliciosa expressão idiomática espanhola: "Disculpen las moléstias!"... Dava-me jeito quando fiz a tropa e fui mobilizado para a Guiné para defender uma parte da Pátria que não era minha. Estava disposto (ou pelo menos fui educado para isso, na escola de Alpedrinha) a dar a minha vida pela parte da Pátria que era minha, a minha terra, a terra dos meus pais, avós e demais antepassados, os meus filhos e netos, as minhas cerejeiras...

Faço a minha declaração de interesses: não fui faltoso, nem refratário, muito menos desertor. Também não fui herói. Nunca me bati à cruz de guerra. O tenente Esteves, no CISMI, Tavira, ainda bem tentou cantar-me a cantiga do bandido: "Eu sou devedor à Pátria, / E a Pátria me está devendo, / A Pátria paga-me em vida, / Eu pago à Pátria em morrendo"...

Quem disse que "é doce morrer pela Pátria", que dê um passo em frente... Aprendi na tropa a não ser voluntário para nada, e muito menos para morrer aos vinte e poucos anos... (Tinha vinte e dois, quando recebi o batismo de fogo.)

Eu nunca consegui perceber os  discursos patrioteiros do tenente Esteves, dizendo-me que eu, o Henriques e mais uma chusma de soldados-instruendos do CSM, o Curso de Sargentos Milicianos, vindos dos quatro cantos de Portugal, éramos "a fina flor da Nação"... Gajos que tinham o 5.º ano dos liceus ou equivalente. Outros até  o 7.º ou o 7.º incompleto. Sempre tinham mais letras do que a grande maioria da população, é verdade. Mas quem é que frequentava o liceu naquele tempo? Só nas capitais de distrito havia liceus, nas vilórias como as nossas havia alguns colégios particulares, incluindo seminários (como o do Fundão onde estudou o grande escritor Virgílio Ferreira, e foi essa experiência que o inspirou, e o levou a escrever a "Manhã Submersa").

Para mim, desde os quinze anos, em 1965, quando comecei a escrevinhar e a interessar-me pela vida política, tinha a estranha perceção de que era "a fina flor, sim, mas... do entulho". Na terreola onde nasci, lá nas berças... E era isso, que escrevíamos, por outras palavras, nos jornais de caserna em Tavira... Eu, o Henriques e outros soldados-instruendos de quem já não recordo nem nomes nem caras.

Fiz questão, há uns largos anos atrás, de visitar o antigo quartel da Atalaia, em Tavira, depois de lutar durante mais de quarenta anos contra a minha fobia em relação às coisas da tropa e da guerra, que me deixaram um amargo de boca e um arreigado sentimento antimilitarista. As fobias não se explicam... Os preconceitos têm raízes fundas, daí não ser fácil extirpá-los. No realidade, baseiam-se em experiências mais ou menos desagradáveis de cada um de nós (e, muitas vezes, na ausência efetiva de contacto com o objeto do preconceito).

Achei o quartel ainda muito mais pequeno do que no meu tempo. Ridiculamente pequeno,  liliputiano. Aquilo parecia o "Portugal dos Pequenitos". Não sei como é que, naquele espaço diminuto, cabiam tantas cabeças e pernas e braços, fardados, éramos algumas centenas de jovens na flor da idade, já com carimbo na caderneta e destino marcado: "Mobilizado para servir a Pátria na províncias portuguesa ultramarinas de... Angola, ou Guiné, ou Moçambique".

Por muito que eu me esforçasse, não consegui reviver os dois meses e meio que aqui passara, no último trimestre de 1968... Não consegui chamar até mim os fantasmas de alguns instrutores e comandantes de companhia, como o Robles, o Trotil e o Esteves a quem batíamos a pala com temor e reverência... Não me recordo do Robles, já não era do meu tempo, mas o seu fantasma pairava no ar... Eram heróis, "cacimbados", da guerra de Angola, dizia-se...

Do Esteves, que foi meu comandante de companhia, meu e do Henriques, e tinha o posto de tenente, recordo-me da sua única frase de digna de antologia: "Vocês são a fina flor da Nação"... E a malta repetia, baixinho: ... "fina flor do entulho"... Fina flor da merda da feira do gado da cidade, onde rebolávamos às quintas-feiras, fina flor da merda das salinas de Tavira, fina flor da merda das bolanhas da Guiné...

Nunca me passou pela cabeça, a não ser agora, que estou reformado, mas eu devia ter apresentado, no regresso a casa, um "pedido de desculpas"... Devia ter devolvido a massa que o exército me pagou. O que era complicado: o "patacão da guerra" que ficou amealhado no banco, foi para a vida de estroina dos primeiros meses, na peluda, em Coimbra e depois Lisboa, e para pagar dívidas da família: as propinas do colégio da mana mais nova, num colégio de padres, na capital de distrito; um adiantamento para as despesas da boda da mais velha; um adiantamento ao velhote para o compensar dos calotes dos clientes...

Deviam-me ter pedido desculpas e aceitar de volta o "patacão sujo da guerra" (a expressão, acho que era do Henriques), que me pagaram a troco da intrujice de me considerarem parte integrante da "fina flor da Nação"... 

Acho até que fui vítima de um erro de "casting", devem ter-se enganado no nome e morada... (Naquele tempo ainda não havia código postal!)... Certamente  por engano dos serviços mecanográficos,  devo ter ido em lugar de um gajo qualquer da elite, da fina flor da Nação, que, esse, sim, é que devia ter combatido (e até morrido, em caso de necessidade...) pela Pátria ou pelo menos pela parte da Pátria que lhe pertencia. Para mim a Pátria estava dividida em duas partes: a que não era minha e a que era minha... Confesso, no entanto, que a linha divisória não era facilmente percetível e reconhecível...

"Fina flor do entulho" voltei a sentir-me eu, quando fui preso pela PIDE/DGS, depois dos acontecimentos da Capela do Rato, logo nos primeiros dias de janeiro de 1973. Ainda hoje estou para saber qual foi o meu crime e o móbil do meu crime...

Tinha vindo da Guiné há um ano e tal, em março de 1971. Completei o sétimo ano e matriculei-me na Faculdade de Letras, em filosofia, no ano letivo de 1972/73. Nunca me filiei em nenhuma "organização subversiva" (como então se dizia), contrariamente ao meu amigo da LUAR, que estava preso em Peniche no dia 25 de Abril de 1974, e que acompanhei 47 anos depois. Muito menos andei a pôr bombas e sabotar os navios de transporte de tropas, ou as Berliet do Tramagal, ou os helis de Tancos. Estava demasiado cansado da guerra para voltar a "pegar em armas"... mesmo que a causa fosse justa. E, de resto, nunca fora (nem tivera jeito para) "rambo".

"O Grito do Povo", órgão
da OCMLP, nº 19
outubro / novembro de 1973.
Fonte: Casa Comum,
com a devida vénia
Como é que eu fui parar à António Maria Cardoso e depois a Caxias, ainda hoje  estou por saber, essa informação está omissa na ficha da PIDE/DGS que eu consultei na Torre do Tombo. Ou pura e simplesmente desapareceu. Estive detido três meses e tal,  sem culpa formada, e fui submetido à tortura do sono, como era uso e abuso  na António Maria Cardoso... 

Queriam  nomes e moradas!... Por muito boa vontade que eu tivesse (pudera, debaixo de porrada!), não tinha nomes para dar, aos pides, sobre a "rede" a que eu alegadamente pertencia: chamavam-lhe "O Grito do Povo", uma organização que se destacava, na altura, pela denúncia da guerra colonial e pelo apoio aos desertores e exilados políticos... (Soube mais tarde que "O Grito do Povo" passou a ser, em dada altura, em meados de 1973,   o órgão da OCMLP - Organização Comunista Marxista Leninista Portuguesa.)

Devo acrescentar aqui um pormenor caricato: quando já estava há vários dias e noites, na tortura do sono, à beira da exaustão (para não dizer do colapso), na véspera de ser interrogado por um novo inspetor da PIDE/DGS, há um "estagiário" que vem fazer o "turno da noite"... e que, de repente, me reconhece do tempo de Guiné:


− Meu furriel?!... Sarmento?!...

Incróvel, náo podia ser, eu devia esdtar a delirar!... 
O homem era da minha antiga companhia!... E parecia mais incomodado do que eu pelo insólito da situação: eu, vítima, e ele, carrasco. Senti um frémito de horror só de pensar que ele estava quase tentado a abraçar-me:

 O que é faz... aqui ?

− Eu é que te pergunto!...Afinal, sou teu hóspede... 

Intencionalmente, tratei-o por tu, e com ironia, tive esse rasgo extremo de lucidez. Enfim, conhecia-o bem, era o "escritas", o 1º cabo escriturário da companhia... Um tio, padre, aconselhara-o, a entrar para a PIDE, agora rebaptizada como DGS - Direção Geral de Segurança... "Tinha cama, mesa e roupa lavada. E vencimento de funcionário público ao fim do mês". Nada mais seguro, nos incertos tempos que corriam. E a "situação estava para durar", garantia-me... Disse-me que ainda era "estagiário"... e estava a "aprender os truques" (sic) para poder integrar uma brigada de investigação.

O  meu guarda dessa noite era, afinal, um antigo camarada de armas!... Eu não podia acreditar!... Devia ser delírio, mas não, era mesmo real, ele estava ali, de carne e osso!...E a mim, de repente,  apetecia-me mesmo esganá-lo...

Afinal, tínhamos ido e vindo no mesmo navio. E, naturalmente, sempre que eu ia à secretaria da companhia, lá estava ele a bater à máquina de escrever, no teclado HCESAR. E a tirar cópias a "stencil"... Confesso que nunca fomos amigos, embora tenhamos feito um trabalho ou outro juntos, na secretaria, por ocasião da festa do 1º ano da companhia. Nessa altura, o 2º sargento estava de férias e substitui-o, por duas ou très semanas, na chefia da secretaria, por conveniência de serviço. Nem sequer tínhamos um 1º sargento, como tantos outros, quando soube     que ia para a Guiné, deu baixa por razões de saúde....

De resto, éramos mais de 160 na companhia, e vivíamos em abrigos diferentes. Mas eu não tinha nada a apontar-lhe por eventuais palavras, ações ou omissões. Era um gajo igual a tantos outros, contando os dias do calendário que faltavam para acabar a comissão. Nem sequer sabia o que é que ele pensava da guerra ou da situação política, ou deixava de pensar. Se calhar nem pensava nada, como muitos outros, a grande maioria. Éramos todos uma "carneirada", rosnava eu, entre dentes.

Pois é, a vida dá muitas voltas e é preciso "fazer pela vidinha". justificava-se ele, quase com candura... Para alguns, a PIDE/DGS era um emprego, "seguro", tal como era a GNR, a Polícia de Trânsito, a Guarda Fiscal, a PSP, as finanças, os tribunais... O tio era padre e tinha uma boa paróquia, "estava governado"... Enfim, o "escritas" procurou ser "gentil" comigo, ao tentar justificar a sua opção de emprego no pós-guerra... Que "o Exército só podia estar grato à PIDE na Guiné", e outras enormidades que me dispenso de citar... O homem não se calava...

Bêbedo de sono, ofendido e humilhado, acabrunhado, não conseguia manter qualquer diálogo com  o meu novo carrasco, de quem no entanto, devo acrescentar, sentia um misto de asco e de curiosidade mórbida... Como é que um gajo, que me parecia "minimamente decente", como era o "escritas" da minha  companhia, um antigo camarada de armas, da Guiné, de 1969/71, se tinha tornado um pide ?

O cabrão do "escritas", que ainda mantinha o sotaque nortenho que eu sempre lhe conhecera, teve um tímido e atabalhoado gesto de compaixão, ao ver-me no mísero estado em que eu estava, um autêntico farrapo humano, sonâmbulo, com olheiras fundas, daquelas de meter medo a  qualquer ser vivo... Continuou sempre a tratar-me por "meu furriel":

 Meu furriel, não fique de pé, sente-se aqui nesta cadeira. Enquanto o pau vai e vem, folgam as costas... 
E assim retempera as forças −  aconselhava-me o gajo.

Sem esperar pela minha resposta, acrescentou, mostrando já conhecer bem os cantos à casa:

 O senhor inspetor tem horário de funcionário público. Só volta às nove horas, nove e tal, de amanhã, para não dizer dez. Até lá, você  tem a minha autorização para dormitar. 

E enfatizava o adjetivo possessivo (a "minha autorizaçáo"), para logo a seguir mostrar a sua  cumplicidade misturada com esperteza saloia:

− Eu velo pelo seu sono. Estamos aqui os dois, sem ninguém nos ver, eu empresto-lhe a minha cadeira. Por mor dos tempos passados na Guiné... Por mor da nossa camaradagem... E pela nossa divisa: "Um por um, todos por todos", lembra-se ?!... Se eu ouvir passos, dou-lhe um empurrão e acordo-o. Mas está tudo a bater a sorna a esta hora da noite. Afinal também somos gente, civilizada. Não quero que fique com má impressão minha... Pode ficar descansado...

Não foi, confesso,  o melhor sono da minha vida. Não consegui dormir em cima da cadeira do pide, meu ex-camarada de armas. Mas descansei as pernas, que estavam um trambolho, depois de tantos dias de pé, sujeito à tortura do sono. O meu medo era aparecer, de rompante, o filho da puta do inspetor e perceber a marosca... Espantoso, sem o querer, era eu, inconscientemente,  que estava a vigiar o pide (ou aprendiz de pide, ou o raio que ele dizia que era...), e não o pide que me estava a guardar...

Por volta das oito e tal, ele sacudiu-me os ombros e eu abri os olhos, estremunhado... Só me disse:

− São horas de se preparar... Boa sorte. E desculpe lá qualquer coisinha. 

Desta vez já não me tratou por "meu furriel". Também ele ensonado, deve-se ter compenetrado do seu e do meu papel... Nunca mais, na vida, lhe pus a vista em cima ... 

Entretanto, às dez horas em ponto, com uma hora de atraso em relação ao horário do funcionário público que tem de assinar o livro de ponto às nove, o senhor inspetor, bem barbeado, bem dormido, ainda a cheirar a café, a cigarro e a água de colónia barata,  veio-me fazer a sua visita matinal e trazer-me notícias:

- Uma boa e outra má, ou menos má... − disparou o sacana, cofiando o bigode, curto, "démodé".

E, depois, já em tom de confidência, sentou-se, numa cadeira ao meu lado, e revelou-me:

− Vou-lhe contar um segredo: também estive na Guiné, afinal fomos camaradas de armas, sabia ?!...,  se bem que desempenhando papéis diferentes, eu na guerra da inteligência, em Bissau, e você de G3 em punho no mato. Ambos lutámos pela Pátria. Eu, ainda no tempo do general 
Schulz ele dizia Schultz...], você do nosso general Spínola. Dois grandes chefes militares, se quer que lhe diga.

E prosseguiu, cínico, provocador, ameaçador e enigmático:


A boa notícia é que vou... soltá-lo. Não tenho mais razões por o manter aqui detido. E depois está a ocupar uma vaga no nosso hotel de cinco estrelas 
[ referia-se ironicamente a Caxias... ]  que nos está a fazer muita falta. Como sabe, nestes últimos tempos a procura tem excedido a oferta. Não nos  faltam clientes... Aquela coisa da Capela do Rato foi muito feia, muito má para todos, a começar para nós, os católicos... Os comunistas, infelizmente, já chegaram ao altar... Mas quanto a si, não temos, em boa verdade, nenhum facto, substancial, que comprove, de maneira clara e inequívoca, a sua ligação ao "Grito do Povo". 

Calou-se intencionalmente  por alguns  segundos, respirou fundo e voltou, solene, a ser o dono do jogo:

A má notícia... é que você vai continuar a ficar debaixo de olho. Do nosso, claro. Se lhe posso dar um conselho, como seu ex-camarada da Guiné, não se meta com essa canalha, acabe o seu curso, e trate da sua vidinha. Case-se e dê filhos à Nação. E, já que anda em filosofia, fique com esta máxima que eu lhe dou de borla: "Mais vale uma boa ditadura do que uma má democracia"... 

Puxou de um cigarro, ofereceu-me um outro (que recusei polidamente, por não fumar), e prosseguiu a sua diatribe:

− Estamos em guerra, lá fora, em África. E cá dentro, também, infelizmente... Somos talvez o último bastião da defesa da liberdade do mundo ocidental.  O apoio, direto ou indireto, à deserção e aos desertores é um crime de lesa-Pátria.

Num ápice levantou-se da cadeira, ajeitou a gravata e ordenou-me em tom militar:

  Levante-se, vista-se, lave a cara, recomponha-se... 

E dando a estocada final na minha pobre autoestima, repetiu a expressão que eu já havia ouvido ao aprendiz de pide:

− E desculpe lá qualquer coisinha.

Não sem antes de me ter posto ao ridículo, pela enésima vez, lembrando-me o "crime" de eu ter dado, ingenuamente, a minha morada para a entrega do correio, a um gajo meu conhecido da faculdade, que tinha passado à clandestinidade (sem eu o saber)... A correspondência passou a ser intercetada pela PIDE/DGS e eu caí que nem um patinho nos braços dos gajos...

... Ainda voltei a Caxias, para fazer o "check out"... Pequei na minha trouxa, com um nó seco na garganta, apanhei o comboio até ao Cais do Sodré e voltei ao meu quarto, numas águas furtadas da rua da Misericórdia, que estavam inteiramente por minha conta (tal como a caixa do correio). Tomei um banho, demorado, e fui ao Trindade comer o melhor bife da minha vida... No dia seguinte, voltei à Faculdade para dar uma explicação sobre as minhas "férias" de 3 meses e tal por conta da PIDE/DGS... Não estiveram com contemplações, os gajos da secretaria. Chumbei por faltas nesse ano. Felizmente que um ano depois aconteceu o 25 de Abril.

E hoje,  ao fim de uma vida, só posso discordar do inspector da PIDE/DGS  que me torturou, ao mesmo tempo que me dava lições de ciência política... Afinal, a melhor ditadura é sempre pior que a pior das  democracias. Os democratas é que são parvos, tratam os seus inimigos com tolerância e clemência...

Tanto quanto soube, mais tarde, tanto o "escritas" como o "senhor inspetor", estiveram na prisão de Alcoentre e foram uns dos tais 89 pides que fugiram pela porta do cavalo, em 29 de junho de 1975... Para Espanha, seguramente. E de lá estou a vê-los a mandarem, cinicamente,  um bilhetinho para as suas antigas vítimas:

 "Disculpen las moléstias"!...

J. Sarmento, Fundão, Quinta das Cerejeiras, 29/4/2019.

Versão revista em 25 de abril de 2023.

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 28 de abril de  2023 > Guiné 61/74 - P24262: 19º aniversário do nosso blogue (3): Somos uma autêntica "Universidade Sénior" (Hélder Sousa, provedor da Tabanca Grande)

(**) Vd. poste de 30 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19729: A galeria dos meus heróis (29): 'Disculpen las moléstias"... Ou uma história que mete vítimas e carrascos (Luís Graça)

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24105: Notas de leitura (1559): Histórias Coloniais, por Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus; A Esfera dos Livros, 2013 - Pidjiquiti, 3 de agosto de 1959: para cada um a sua verdade (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
Evento de indiscutível importância para o futuro da Guiné, o que se passou no cais do Pidjiquiti em 3 de agosto de 1959 foi alvo de diferentes olhares e os números apontados estão longe de coincidir. O PAIGC manifestou sempre uma certa reserva em chamar a si a greve. A hipótese posta por Leopoldo Amado foi que teria sido Rafael Barbosa e o seu Movimento de Libertação para a Guiné a dinamizá-la, parece próxima da realidade. Mas foi mesmo um momento de viragem, as autoridades sabiam perfeitamente que houvera mudanças nos países vizinhos, um já independente e o outro a caminho, era fatal a aspiração nacionalista.

Um abraço do
Mário



Pidjiquiti, 3 de agosto de 1959: para cada um a sua verdade

Mário Beja Santos

Histórias Coloniais, por Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus, A Esfera dos Livros, 2013, reúne a descrição de uma série de conflitos sociais que ocorreram nas antigas colónias portuguesas e que deixaram rasto para os movimentos de libertação, entre eles o massacre de Batepá, 1953, S. Tomé; a greve do Pidjiquiti, 1959, Guiné; a manifestação de Mueda, 1960, Moçambique; a greve da Baixa de Cassange, 1961 Angola, e o motim 1-2-3, 1966 Macau.

Foquemo-nos nos acontecimentos do Pidjiquiti. Nunca se demonstrou qualquer associação causa-efeito entre a greve de marinheiros e estivadores, mormente da etnia Manjaca, e as atividades do PAIGC. Há muita fabulação e os testemunhos posteriores são contraditórios. Luís Cabral, por exemplo, não insinua nem ao de leve a existência de uma associação. Isto para desdizer o que escrevem os autores, isto é, de que entre a meia centena de membros ativos do PAI (primeira designação do PAIGC) contavam-se marinheiros e estivadores, isto dito a cru e com o que se segue faz subentender o que os factos históricos não demonstram. Verdade era a miséria em que viviam estes trabalhadores: “Os salários mensais variavam entre os 150 e os 300 escudos. E por cada viagem, o tripulante recebia para alimentação certa quantidade de arroz e mais uns 50 centavos para o molho. Ora, o transporte de cabotagem era o que garantia mais elevados lucros às empresas, pois os custos por tonelada transportada estavam entre os mais baratos. Encorajados pelo descontentamento dos estivadores, cuja situação também era escandalosamente má, os marinheiros fizeram saber às empresas que estavam decididos a parar o trabalho se as suas reivindicações não fossem atendidas”. Mas nada aconteceu e veio a greve.

Os autores relevam as diferentes versões a que tiveram acesso, a do Tenente Sousa Guimarães, a de um responsável da Sociedade Comercial Ultramarina, a da PIDE e a do Padre Franciscano Henrique Pinto Rema. Sousa Guimarães envia uma carta em 18 de agosto ao Comandante Salgueiro Rego, alude ao impedimento feito pelos marinheiros da saída de uma lancha da Casa Gouveia, dois agentes da PIDE prenderam três dos identificados, os grevistas revoltaram-se, o patrão-mor chamou a PSP. Começa a pancadaria, dá-se a agressão dos 2 chefes da Polícia, vem então um corpo de agentes da PSP, há tiroteio, e ele escreve que destes acontecimentos resultaram 4 mortos, e vários feridos do lado grevista. A versão da Sociedade Comercial Ultramarina anda próxima da anterior, refere mortos, gente ferida e fugitiva, tendo os feridos sido retirados das embarcações e da água e conduzidos ao hospital, resultaram 7 mortos e numerosos feridos, destes viriam a falecer mais 3 ou 4. A versão da PIDE refere a precipitação dos acontecimentos, os grevistas a tentar libertar os companheiros detidos, as agressões aos polícias, atirando paus, remos e tijolos contra o piquete da Polícia. Houve detenções, o número de mortos foi de 12 e o de feridos de umas dezenas. A própria Polícia publica uma lista identificando 8 mortos. O Padre Henrique Pinto Rema diz explicitamente que estes trabalhadores respondiam às solicitações do Partido, não conseguiu haver diálogo entre as duas partes em confronto, houve 17 guardas feridos e a Polícia começou a matar em força, no final houve uns 13 a 15 mortos e mais cadáveres de marítimos e estivadores foram arrastados pelas águas do Geba, não se sabendo ao certo quantos.

A propaganda do PAI anunciou 50 mortos. Contudo, Amílcar Cabral, numa carta enviada ao angolano Lúcio Lara, refere 24 mortos e 35 feridos. Todo este grave acidente demorou a sanar, os grevistas fizeram exigências, reclamaram a libertação dos presos, aumentos de salários, a saída de António Carreira, gerente da Casa Gouveia, e também a do encarregado da secção marítima da Sociedade Comercial Ultramarina, atribuíram-lhes responsabilidades pelas mortes.

Para a PIDE, tudo se devia essencialmente ao contexto externo, ao papel catalisador da independência da República da Guiné e das emissões da Rádio Conacri, de infiltrações perniciosas. Já na década de 1990, Carlos Fabião, que foi o último Governador da Guiné, atribuía os acontecimentos do Pidjiquiti a três causas: o não cumprimento do administrador da Casa Gouveia da indicação dada pela CUF em Lisboa, no sentido de aumentar os salários aos trabalhadores; um desentendimento entre a PIDE e a administração civil; um ajuste de contas entre polícias Papéis e estivadores Manjacos. Todo este incidente irá transformar-se num símbolo de combate pela libertação, no decurso da reunião do PAI de 19 de setembro de 1959, em que Amílcar Cabral está presente, o líder procura retirar os devidos ensinamentos, a subversão deverá centrar-se nas zonas rurais, era inevitável a partir de agora caminhar-se para a luta armada, ficou decidido a transferência para o exterior de uma parte da Direção do Partido.
Aqui se recorda que há mais interpretações e testemunhos sobre os incidentes do Pidjiquiti. Já se escreveu sobre o relatório do Comando da Defesa Marítima, que vem apenso à História dos Fuzileiros, 3.º volume, dedicado à Guiné, de Luís Sanches de Baêna, Comissão Cultural da Marinha, 2006. António Duarte Silva, no seu livro "Invenção e Construção da Guiné-Bissau", Almedina, 2010, refere abundantemente estes factos a partir da página 102, apontam-se 9 mortos, 15 feridos de certa gravidade e hospitalidades e 23 marítimos presos. O autor recorda que este número de 9 se limita aos cadáveres transportados para a casa mortuária e que nenhum dos relatórios oficiais refere os grevistas que foram abatidos pelos guardas e mesmo alguns civis quando fugiam pela lama e lodo e cujos cadáveres foram arrastados pelas águas do rio Geba. António Duarte Silva cita o historiador Leopoldo Amado, o PAI não teria tido diretamente uma ação naquilo que veio a desembocar em Pidjiquiti. Terão sido ativistas do Movimento de Libertação da Guiné a empenhar-se. Rafael Barbosa era membro deste Movimento de Libertação da Guiné e reconheceu ter sido um dos responsáveis da questão do Pidjiquiti. Barbosa vai estabelecer um pacto com Cabral, o MLG fundiu-se com o PAI.
Em "Os cronistas desconhecidos do canal do Geba", Húmus Edições, 2019, relato a partir da página 252 a versão apresentada pelo responsável do BNU da Guiné. Dirá que houve 12 mortos, 15 feridos e a prisão de muitos e a fuga de alguns. Voltará a escrever em 20 de agosto anunciando que se voltara à normalidade e informa Lisboa do seguinte:
“Há a deplorar o número de vítimas resultantes da repressão prontamente efetuada na medida adequada à intensidade da investida dos amotinados e lamenta-se que estes tenham recorrido à greve como meio de revelar as suas reivindicações, numa ocasião em que o Governo da Província, por intermédio da Secção Permanente do Conselho do Governo estava há tempos procedendo ao estudo do ajustamento dos salários dos trabalhadores indígenas. Verifica-se com satisfação que a vida no cais retomou o seu ritmo normal e que cessou a perturbação provocada na economia da Província pela suspensão da atividade comercial portuária”.

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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24094: Notas de leitura (1558): Fernanda de Castro, uma figura de proa da literatura colonial guineense, autora de livros como África Raiz e Mariazinha (Mário Beja Santos)

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24044: Notas de leitura (1551): Quem mandou matar Amílcar Cabral? (José Pedro Castanheira, jornalista, "Expresso", 22 de janeiro de 2023) - Parte I - Talvez "o maior mistério da absurda e inútil guerra colonial"... (Luís Graça)

Amílcar Cabral (1924-1973) > c. 1970 >  Foto  do líder histórico do PAIGC, incluída em O Nosso Livro de Leitura da 2ª Classe, editado pelos Serviços de Instrução do PAIGC - Regiões Libertadas da Guiné (sic). Tem o seguinte copyright: © 1970 PAIGC - Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde. Sede: Bissau (sic)... A primeira edição teve uma tiragem de 25 mil exemplares, tendo sido impresso em Upsala, Suécia, em 1970, por Tofters/Wretmans Boktryckeri AB. (Pormenor curioso: Amilcar Cabral fazia questão de se deixar  fotografar pelos fotógrafos estrangeiros com o barrete ou gorro "sumbia", usado por fulas e oincas... Foi-lhe oferecedo numa Tabanca do Oio ainda antes do início da luta armada,  escreveu o irmão no seu livro de memórias ... Dava-lhe um toque mais africano ou mais guineense. E na verdade tornou-se uma peça emblemática do seu vestuário ou "farda", e que ele usava sempre que visitava, de vez em quando, as "barracas" no mato...)

1. Na Revista do Expresso, edição de 22 de janeiro passado, José Pedro Castanheira (JPC)  (n. Lisboa, 1952), jornalista e escritor, volta a fazer a pergunta sacramental, que todo o mundo já fez e que se vem repetindo ao longo dos anos, "ad nauseam": "Quem mandou mandar Amílcar Cabral?"... São seis páginas de texto e fotografia (Revista, pp. E|32 - E|37), que merecem que façamos aqui uma condensação e uma breve análise.

Já em 1993, o jornalista havia publicado no semanário "Expresso" uma extensa reportagem, com o mesmo título interrogativo, e que depois iria desenvolver em livro, de 326 pp., com igual título, publicado em finais de 1995 sob a chancela da Relógio de Água. (Traduzido em italiano e em francês, teve na sua apresentação o gen Spínola e o Luís Cabral, ambos sentados lado a lado: os inimigos do passado não se conheciam até então pessoalmente.)

Essa reportagem de 1993, um verdadeiro trabalho de jornalismo de investigação, cada vez mais raro na nossa imprensa escrita, e justamente premiado,  levou-o, além da visita ao local, em Conacri, onde Amílcar Cabral foi morto a tiro por Inocêncio Cani, a outros sítios e a entrevistar cerca de meia centena de pessoas, oriundas de Portugal, Guiné-Bissau e Cabo Verde. 

Para a elaboração do livro fez uma nova ronda de entrevistas e teve acesso, em primeiríssima mão, a dois importantíssimos arquivos portugueses: (i) o Arquivo da PIDE/DGS, à guarda da Torre do Tombo; e (ii) o Arquivo Histórico-Diplomático, do Ministério dos Negócios Estrangeiros, para além das Actas do Conselho Superior de Defesa Nacional

"O livro provocou uma enorme polémica. Principalmente porque questionava a versão oficial do crime, em que coincidiam, quer o Presidente Sékou Touré, quer o PAIGC, e que a generalidade das organizações anticolonialistas aceitou pacífica e acríticamente" (pág. E|34):  o autor moral do crime eram os colonialistas portugueses, dividindo-se as culpas pelo  gen Spínola e a PIDE/DGS.  

Ainda hoje há muita gente, a começar naturalmente por antigos altos dirigentes do PAIGC (como o 'comandante' Pedro Pires, cabo-verdiano, ex-presidente da República de Cabo Verde, entre 2001 e 2011) que continua a defender essa tese, a que não é alheio o trabalho de dois jornalistas que não podem ser considerados, segundo JPC, "independentes". Cita os casos do moçambicano, de origem goesa, Aquino Bragança e do russo Oleg Ignatiev.

Ainda hoje Pedro Pires, sem qualquer suporte documental, nem evidência factual, continua a incriminar Spínola e a PIDE/DGS, como de resto o fez no discurso de abertura do Fórum Amílcar Cabral, 18 de janeiro de 2013 (e que foi transcrito na íntegra por "A Semana 'On line'", Praia, Ilha de Santiago, Cabo Verde, 20 de janeiro de 2013, uma publicação mutimédia próxima, política e ideologicamente, do PAICV, o Partido Africano para a Independência de Cabo Verde). Vale a pensa transcrever um excerto:

(...) "Do lado das autoridades coloniais, estava em curso uma campanha militar desesperada, lançada pelo seu Comando político-militar, na tentativa de reverter a seu favor o estado de equilíbrio militar, portador de muitos riscos, que vinha prevalecendo, apostando na recuperação das regiões libertadas, o que estava a ser muito difícil, conjugada com uma intensa e diversificada campanha sociopolítica demagógica, em torno da chamada Guiné Melhor. 

"O recurso ao assassinato do Líder do PAIGC insere-se na busca de saída para o grave dilema em que vivia o poder colonial, precisamente, quando sentia que estava em vias de perder a guerra, com consequências desastrosas para o futuro do império colonial. Nada melhor do que decapitar o PAIGC, solução experimentada em outras guerras coloniais. Reside aí a razão principal da decisão última de avançar com a operação do assassinato de Amílcar Cabral pelos serviços secretos portugueses e por seus homens-de-mão."(...)

Mas voltando  ao Aquino de Bragança (1924-1986): era então um importante quadro e intelectual da FRELIMO, sendo  "o único jornalista estrangeiro autorizado a fazer uma investigação in loco", ou seja, em Conacri (estamos a citar o JPC.).

As suas fontes maioritárias terão sido as "confissões dos conspiradores arrancadas através de tortura", o que é ética  e deontologicamente inadmissível para jornalista profissional. Um mês depois, escreveu um artigo na "Jeune Afrique" e a sua versão "passou a ser uma espécie de verdade oficial"... E incontestada, durante anos.

Oleg Ignatieev foi outro jornalista a escrever sobre a trágica morte de Amílcar Cabral ("Três tiros da PIDE - Quem, porquê e como mataram Amílcar Cabral" (Lisboa, Prelo, 1975, 185 pp.). Para JPC, o Ignatiev não tinha a "indispensável credibilidade", tudo indicando que ele, na época, devesse  pertencer ao KGB, os serviços secretos da antiga União Soviética. 

É desta fonte a hipótese do envolvimento, na conspiração, de altos  quadros dirigentes do PAIGC, guineenses, como o Osvaldo Vieira, primo-irmão do 'Nino' Vieira...

A reportagem do JPC sobre "o maior mistério da Guerra Colonial" (que ele adjetiva como "absurda e inútil") partia de "quatro hipóteses plausíveis, muito provavelmente interligadas":

(i) uma ação do gen Spínola e dos seus homens, na iminência de "perder a guerra":

(ii) uma operação especial da PIDE/DGS, além fronteiras;

(iii) uma jogada maquiavélica e antecipada de Sékou Touré, um ditador que sonhava com a "Grande Guiné", e via no Amílcar Cabral um rival de estatura pan-africana;

(iv) o desfecho inevitável da crescente conflitualidade existente no interior do PAIGC, entre os combatentes (guineenses) e a "nomenclatura", dirigente (cabo-verdiana). 

A reportagem de 1993 não era conclusiva nem o livro de 1995 (tal como não o é nenhuma outra investigação, independente, feita até agora, em qualquer outra parte do mundo).     


O livro do  JPC foi mal recebido, nomeadamente em Cabo Verde, sendo o autor acusado de "branquear" o papel dos militares portugueses e da PIDE/DGS. 

Da Guiné-Bissau, o JPC não teve reações. O livro nem sequer lá foi apresentado. E o próprio Amílcar Cabral é, diz ele no fim deste artigo que estamos agora a recensear,  uma figura histórica, cada vez mais esquecida e ignorada, como se ele nem sequer fosse guineense de nascimento... (Em contrapartida, o aeroporto internacional de Bissau continua a ostentar, "suprema ironia", o nome do suspeito ou controverso Osvaldo Vieira.)

Mas,  nos anos seguintes, o JPC continuou a aprofundar a sua investigação, explorando nomeadamente o inesgotável poço de informação que é o arquivo da polícia política do Estado Novo e as entrevistas dadas por alguns dos seus antigos operacionais, com destaque para o ex-inspetor Fragoso Allas, homem da confiança de Spínola, e que chefiava a delegação de Bissau (foi entrevistado em 2017 pela historiadora Maria José Tíscar, vivia ele então na África do Sul).

O que o JPC constatou, "com surpresa" (sic), foi que a PIDE/DGS estava infiltrada ao mais alto nível, na direção do PAIGC, "com acesso direto a Cabral"!...

E quanto ao Spínola e o seu estado-maior? Contra ele, Spínola tem a Op Mar Verde, a invasão de Conacri em 22 de novembro de 1970, em que deliberadamente que se quis mudar o regime em Conacri e decapitar o PAIGC: a liquidação de Sékou Touré e de Amílcar Cabral. (Aqui o JPC parece ter esquecido que as instruções que o comandante Alpoim Calvão tinha era para apanhar o Amilcar Cabral, "vivo ou morto": mas ele valia muito mais vivo e trazido para Bissau).

 Fracassada a operaçáo ou gorados os objetivos político-militares mais importantes, Spínola passou a empenhar-se cada vez mais noutras soluções para o conflito.

"Todos (ou quase todos) os oficiais com responsabilidades em Bissau já abriram os seus baús de memórias. Memórias muito variadas, por vezes contraditórias, onde se denotam velhos ódios e ajustes de contas, mas que não incluem a eliminação do comandante inimigo, pelo menos em 1973. Com efeito, desde 1971 que Spínola se virara afanosamente para a busca de uma solução política, mulltiplicando-se em iniciativas para chegar à fala com Amílcar Cabral " (pág. E|36).

Por outro lado, das atas do Conselho Superior de Defesa Nacional, órgão que acompanhava toda a evolução dos acontecimentos nos três teatros de operações, não há sequer  qualquer alusão à morte do líder histórico do PAIGC. 

Em conclusão, pode dizer-se, segundo JPC, "que dos arquivos portugueses e das memórias dos seus principais intervenientes, já tudo ou quase tudo se conhece". O mesmo não se passa "do outro lado"...

Veremos, noutro poste,  a segunda parte do bem pensado e estruturado artigo do JPC.

(Continua)
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sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23794: Notas de leitura (1519): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (4) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Novembro de 2022:

Queridos amigos,
Temos agora o repositório das aeronaves que a FAP foi adquirindo (ou procurou adquirir) para as três frentes da guerra de África. Recordo que me limito à recensão de factos que reputo de relevantes, julgo não ter aqui cabimento entrar em detalhes técnicos, em que os autores são competentes e rigorosos. Temos aqui o histórico das compras, uma boa parte delas bem-sucedidas, recusas e tentativas de aquisições a vendedores privados.Com o andar da guerra, foram crescendo as dificuldades, noto como curiosidade que perto do 25 de Abril o ministro Rui Patrício parecia estar a ter sucesso na compra de aviões Mirage, nessa altura já estava adquirido um sistema de defesa antiaérea para Bissalanca, o Crotale, admitia-se a probabilidade de ataques aéreos, o Crotale fora o sistema aprovado. Com o 25 de Abril, foi revendido.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (4)


Mário Beja Santos

Este primeiro volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/.

Depois de sumariar o prefácio, entrámos no primeiro capítulo intitulado “O Vento da Mudança”, verificaram-se as alterações operadas no início da era de descolonização e as consequências que vieram a ter na colónia da Guiné. Começou a luta armada na Guiné, já se verificou que a NATO se recusou em ceder meios, considerou que as guerras de África excediam a defesa atlântica; o que obrigou a uma reviravolta substancial das prioridades do regime na área da defesa. Referiu-se que em 1957, Kaúlza de Arriaga, então Subsecretário de Estado da Aeronáutica, ordenou à Força Aérea que se preparasse para a sua implantação em África. Em conformidade, a FAP iniciou em 1958 um conjunto de missões para determinar quais os requisitos organizacionais nos territórios africanos. Em 1960, o Conselho Superior de Defesa Nacional decidiu as prioridades no planeamento num contexto exterior ao da NATO. No que respeita à Guiné portuguesa, a missão fundamental das Forças Armadas tinha dois objetivos: manter a ordem e a paz no território e garantir, a todo o custo, a manutenção da nossa soberania. Articularam-se três prioridades imediatas: formação de uma eficaz vigilância interna e das fronteiras, deu-se o reforço da presença da PIDE; disseminação das forças de segurança ao longo das fronteiras e em pontos estratégicos; estreitamento da cooperação civil-militar.

Peixoto Correia, governador, assumiu o comando das duas companhias de infantaria e tinha o apoio de uma bateria de artilharia, meios manifestamente insuficientes para a nova realidade; o Estado-Maior recomendou o reforço imediato e foram despachados contingentes militares, entre eles um pequeno quadro de aviadores, paraquedistas e pessoal de apoio – eles irão travar a campanha aérea mais intensa da história de Portugal.

Entramos agora no segundo capítulo “Aviões com a Cruz de Cristo”. Os autores recordam que a FAP foi formalmente constituída em 1 de julho de 1952, tinha dois serviços, o Serviço Aeronáutico Militar e o Serviço de Aviação da Armada. Foram adquiridas aeronaves atribuídas a cinco aeródromos operacionais, perto de trezentos aviões, é explicada a natureza e a utilização de tais aeronaves, detalha-se a sua fixação em aeródromos e composição orgânica. A FAP foi afetada por lhe ter sido alocada um equipamento obsoleto, manifestamente inadequado para uma guerra aérea moderna, mesmo para padrões da década de 1950.

Como membro fundador da NATO, Portugal obteve acesso a novas fontes de material e a formação compatível. Chegaram em 1952 dois aviões britânicos de treino Havilland Vampire T.55; no ano seguinte, os EUA enviaram cem novos caças-bombardeiros F-84G, a FAP entrava na era do jato, criaram-se dois esquadrões, era na Ota e em Tancos que se dava instrução complementar. Em 1954, a FAP recebeu o seu primeiro helicóptero, um Sikorsky YH-19 Chickasaw e 65 aviões Sabre F-86F. Estas aquisições custaram cerca de 348 milhões de dólares, qualquer coisa com um quarto dos gastos da defesa de Portugal nesse período.

A FAP está nesta altura sob a tutela do Subsecretário de Estado da Aeronáutica Kaúlza de Arriaga, que também criou o Batalhão de Caçadores de Pára-quedistas. Apesar destas novas aquisições, era manifesto o atraso da FAP face aos seus homólogos da NATO, isto no final da década de 1950. Na verdade, a maioria das forças aéreas aliadas já voavam em aviões de combate supersónicos, Portugal tinha acabado de receber o F-86F que tinha sido o avião de caça mais usado na Guerra da Coreia. Estes F-86F chegaram a servir em África, bem como os F-84G. Eram estes os aviões que estavam na linha da frente em Portugal e na Turquia. Com a eclosão da guerra em Angola, em fevereiro de 1961, a FAP levou para Luanda os F-84G. Este contingente F-84G representou o primeiro destacamento operacional de aviões militares portugueses para a África, desde o período imediatamente a seguir à Primeira Guerra Mundial.

Com a guerra de África em três frentes, a FAP adaptou as aeronaves de que dispunha às necessidades operacionais. O PV-2 Harpoon foi despachado para África para combater a guerrilha. Vários modelos da família T-6 foram adaptados para transportar armamento ofensivo. À medida que a década de 1960 avançava, a FAP procurou melhorar as suas capacidades adquirindo novas aeronaves, mas manteve uma frota largamente obsoleta na guerra de África. O F-86 era um avião de sucesso, mesmo na era pós-1945. Os pilotos gostavam deste avião de caça pela sua agilidade. Foi muito importante na guerra da Coreia e mostrou-se superior ao MiG-15 soviético e mesmo sobre o MiG-17. Teve uma apreciável carreira, até se “aposentar” ao serviço da Força Aérea Boliviana, em 1994. Portugal adquiriu 65 aviões em segunda mão aos Estados Unidos e à Noruega, deu origem aos “Falcões”, sediados na base aérea de Monte Real, foram entregues como parte do rearmamento da NATO e destinados ao uso na “Área da NATO”, o que os excluía dos territórios africanos.

Centenas de milhares de aviadores norte-americanos e aliados aprenderam a voar em T-6 norte-americanos, chamados SNJ na Marinha dos EUA e Harvard no Reino Unido, no decurso da Segunda Guerra Mundial. Com licença dos EUA, estiveram ao serviço nas forças armadas de 55 nações, participaram em 40 guerras, conflitos e revoltas. A FAP recebeu um total de 251 T-6.

O Fiat G.91 entrou em funções na NATO para apoio terrestre e reconhecimento de ataque. Só a Itália e a Alemanha Federal aceitaram o G.91. EM 1966, quando Portugal se apercebeu da inviabilidade em adquirir novos aviões de combate nos EUA e Reino Unido, recorreu à Alemanha Federal para obter o Fiat G-91. Portugal adquiriu 12 aviões para patrulha marítima Neptune construídos nos EUA, foram comprados em segunda mão através da Holanda, em 1960. Era originalmente destinado à vigilância marítima e à guerra submarina, foi depois adaptado para missões ar-terra, mas detetou-se a falta de um sistema de precisão que limitava a sua utilidade em ataque terrestre; podia transportar até 6 toneladas de bombas, rockets, torpedos ou cargas de profundidade. O último Neptune foi retirado do serviço de Portugal no ano de 1977.

O Douglas B-26 Invader fez uma breve aparição na Guiné. Era capaz de transportar grandes cargas, entrou em combate em 1944, fez a guerra do Pacífico e a da Coreia, destruindo dezenas de milhares de estradas e ferrovias inimigas, esteve presente na crise do Congo, na invasão da Baía dos Porcos e na guerra do Biafra. Portugal começou por pedir para comprar 24 B-26, mas foi-lhe recusado, tentou-se a sua compra através de um fornecedor privado norte-americano, apenas 7 foram entregues antes dos restantes terem sido apreendidos pelas autoridades norte-americanas. Dois B-26 foram enviados para a Guiné em 1971 para uma avaliação operacional antes de seguirem para a Angola. Na Guiné realizaram 55 missões de combate, incluindo três dúzias de bombardeamentos.

Vamos seguidamente falar do Alouette II.


Salazar conversa com Dirk Stikker, Secretário-Geral da NATO, 1961, os dois primeiros à direita são Gomes de Araújo e Franco Nogueira
Kaúlza de Arriaga, Subsecretário de Estado da Aeronáutica
A Base das Lajes nos Açores, em meados de 1950, veem-se aviões da FAP e da Força Aérea dos Estados Unidos
As bases da Força Aérea em 1952-1959
Um dos aviões de treino Havilland Vampire T-55 entregues a Portugal

(continua)
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Notas do editor:

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Último poste da série de 18 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23793: Notas de leitura (1518): "Uma longa viagem com Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 2924 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte II: A guerra de África não foi nada parecido como o trauma da I Grande Guerra...