José Nascimento, um olhar sobre o Geba
1. Mensagem do nosso camarada José Nascimento (ex-Fur Mil Art, CART 2520, Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) com data de 27 de Fevereiro de 2017:
ENXALÉ, A OUTRA MARGEM DO GEBA
O Enxalé começou a fazer parte da zona operacional do Xime e da CART
2520 em outubro de 1969. O rio Geba separava estes dois aquartelamentos,
assim como uma bolanha intransponível na época das chuvas, portanto com
um elevado grau de dificuldade para se estabelecer
a ligação entre as duas unidades.
A travessia do Geba era uma completa aventura e dependia sempre da
maré cheia, podia-se fazer esta cambança a bordo do Sintex ou pelas
pirogas manobradas por um indígena, cujo remo situado na sua popa
servia de força propulsora e simultaneamente de
leme.
Ao 3.º pelotão da CART 2520 também coube a missão de permanência no Enxalé. No segundo dia após a nossa chegada, o alferes Lapa que foi em
substituição do comandante de pelotão, o alferes Marques, regressou ao
Xime, ficando o pelotão apenas com dois graduados, os furriéis
Nascimento e [Rentao] Monteiro, passando o comando para o mais "velho"
destes elementos, que era eu.
Este destacamento era constituído por um aglomerado de antigas casas,
pertença de um fazendeiro que se refugiou em Bissau com o eclodir da
guerra. Este fazendeiro era possuidor de uma destilaria de cana de
açúcar, que foi totalmente destruída, restando apenas
alguma sucata [, o
Pereira do Enxalé, pai da nossa amiga, grã-tabanqueira Maria Helena Carvalho]. Havia uma tabanca com seis centenas de moradores,
composto maioritariamente por balantas e mandingas, cabendo a nós, militares, fazer a sua protecção de possíveis ataques do PAIGC, o que
chegou a acontecer no dia 10 de Fevereiro de 1970, dia de
Carnaval.
Quando se ouviram os primeiros disparos, já a noite havia caído,
também eu disparo numa corrida a sete pés para o abrigo mais próximo, só
que assim que saio dos meus aposentos ouço o rebentamento de uma
granada de RPG7, num mergulho à peixe atiro-me ao chão
entre uns bidões cheios de terra, que eventualmente nos protegiam dos
projécteis do IN. Um dos estilhaços ainda em brasa, caprichosamente veio
estacionar a um palmo do meu nariz. Enceto nova corrida até ao abrigo
da Breda, penso ter batido o recorde mundial
dos 30 metros. Já agarrado à Breda, chega o "Espanhol" e berra:
- Deixe
isso comigo, meu furriel, fazendo de seguida umas rajadas que ajudaram o
IN a ir jogar ao Carnaval para um outro lado.
Resultou deste ataque: ferimentos com alguma gravidade na perna de
uma habitante, outro elemento da população perdeu uma mão e um rapaz
sofreu ferimentos ligeiros. Todos foram evacuados de héli para Bissau no
dia seguinte. Arderam também várias tabancas.
Enxalé após o ataque
No dia anterior a este ataque, decorreu na outra margem do Geba, a
operação Boga Destemida [, em 9 de fevereiro de 1970,] na qual as nossas tropas sofreram uma brutal
emboscada na zona de Gandagué Beafada por parte do inimigo, sendo
perfeitamente audível à distância em que nos encontrávamos,
o matraquear das armas de fogo e o rebentamento de granadas.
Sabendo via rádio da gravidade da situação, solicito para ser
transportado para a margem esquerda do rio, a fim de poder dar a minha
ajuda no que fosse possível. Na enfermaria presto a minha colaboração ao
furriel enfermeiro Augusto Costa, o ferido que mais
me impressionou e que seria evacuado para Bissau, juntamente com outros
elementos, foi o furriel Pestana, as suas costas estavam rasgadas por
estilhaços de granada, numa das feridas cabia perfeitamente um dos meus
punhos fechados. Este camarada jamais regressaria
para a CART 2520, recuperou, mas as mazelas ficaram para sempre a
marcar o seu corpo e o seu espírito.
Quando passava uma guia de livre trânsito para um dos habitantes da
tabanca se deslocar a Bissau, o chefe de tabanca dos mandingas falou em
francês, fiquei surpreendido e perante a minha pergunta porque falava
naquela língua respondeu-me que tinha estudado
no Senegal antes da guerra começar, mais perplexo ainda fiquei.
Com uma frequência quase diária, um puto da tabanca com cerca de 10
anos, de uma tez muito clara, vinha conversar connosco e fazer-nos
alguma companhia, nós em troca demos-lhe a nossa amizade. Para ti, Dingue, se ainda pertenceres ao número dos vivos, aqui
vai um fraterno abraço.
Com o amigo Dingue
Era normal os nossos militares darem uns tirinhos à caça das rolas,
quando o faziam na zona frontal ao destacamento virada para bolanha, não
havia qualquer problema, mas nas traseiras da tabanca isso
representava algum perigo e foi o que aconteceu com o
nosso apontador de metralhadora, de caçador ia sendo caçado. Valeu-lhe o
seu sangue frio e coragem, que ao aperceber-se de que alguns guerrilheiros
se preparavam para lhe deitar a luva, sacou de uma granada de mão e
lá vai disto, escapando-se de imediato para
o quartel e desta maneira o Martins deixou de ser um possível
prisioneiro de guerra nas mãos do PAIGC e de fazer um passeio turístico
até Conakri.
De vez em quando chegavam mensagens codificadas vindas do Xime, que
eu decifrava através do Codoper, com ordens para montar uma emboscada
ou fazer um patrulhamento a determinado local. Eu falava baixinho com
os meus botões, capitão Maltez
cá tem cabeça.
Temos que assegurar a protecção do destacamento e da população, como é
que vamos montar uma emboscada com meia dúzia de gatos pingados? Na
volta do correio eu respondia: "montada" emboscada ou patrulhamento
"efectuado".
E assim se passaram dois meses com relativa tranquilidade, mas com
muitas dificuldades. Matar a fome às nossas barriguinhas não foi tarefa
fácil. Receber e enviar correspondência por vezes demorava mais de uma
semana. O isolamento era enorme, os nossos contactos
com o mundo exterior só eram possíveis através do Xime e com o Xime foi
muito difícil e arriscado devido à travessia do rio. Cada vez que
passava de uma margem para outra, pensava sempre que algum dia poderia
servir de pequeno almoço a um qualquer jacaré se
na eventualidade acontecesse algum incidente e a nossa embarcação nos
mandasse a banhos. Neste espaço de tempo só eu e mais dois ou três
elementos do pelotão é que saímos do Enxalé até à sede da Companhia.
Enxalé
Fotos: © José Nascimento (2017). Todos os direitos reservados
Para todos os nossos camaradas de armas um grande abraço.
José Nascimento
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Nota do editor
Último poste da série de 19 de novembro de 2016 >
Guiné 63/74 - P16737: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento) (10): A música das nossas vidas: "Isabelle Isabelle Isabelle Isabelle Isabelle Isabelle Isabelle, mon amour"... ou o braço de ferro entre o fur mil Renato Monteiro e o nosso primeiro Vaz, cuja amada esposa se chamava Isabel e vivia a 5 mil km de distância, em Vila Real, Portugal...