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sábado, 2 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4273: Recortes de imprensa (17): Engenhos explosivos do nosso tempo continuam a matar, desta vez na região de Mansabá (Nelson Herbert)

1. Engenhos exlosivos do tempo da guerra colonial, deixados no terreno pelas NT ou pelo PAIGC (minas, armadilhas, bombas...), continuam infelizmente a matar, quase meio século depois de se ter iniciado a luta armada...

(Nas fotos, do Xico Allen, tiradas em Sinchã Jobel, na região de Bafatá, em 22 de Abril de 2006, vemos bombas da Força Aérea Portuguesa que foram lançadas sobre a base do PAIGC, durante a guerra, e que não chegaram a explodir; na foto da esquerda, o nosso amigo e camarada A. Marques Lopes) (*).

É mais uma história trágica...Tivémos conhecimento desta notícia da Agência Lusa, através do nosso amigo, guineense, Nelson Herbert, correspondente de A Voz da América:


Bissau, 30 Abr (Lusa) - Um engenho explosivo da guerra colonial matou duas crianças e feriu gravemente dez pessoas na localidade de Djendú, a 80 quilómetros da capital da Guiné-Bissau, informou um responsável da aldeia situada nos arredores de Mansabá.

Citado pela rádio privada Galáxia de Pindjiguti, Malam Cissé informou que o engenho explodiu quarta-feira à tarde quando as crianças estavam a assar a castanha do caju e as mulheres na extracção do óleo de palma.

“As crianças assavam a castanha do caju, como fazem quase todos os dias, as mulheres estavam a extrair o óleo de palma, de repente há um estrondo enorme na aldeia. Foi uma tragédia. Uma menina morreu logo ali, a outra viria a falecer a caminho do hospital”, declarou Malam Cissé.

Este responsável pediu às autoridades centrais em Bissau que façam deslocar técnicos ao local para que possam vistoriar a aldeia.

“Temos medo. Quem sabe não haverá lá mais engenhos explosivos”, afirmou Cissé.
De acordo com este responsável, a ‘Tabanca’ (aldeia) de Djendú “está de luto” pela morte das duas crianças, mas também “apreensiva”, uma vez que dez pessoas foram atingidas pela explosão, encontrando-se internadas em diferentes hospitais do país.
“Só Deus sabe o que vai acontecer a essas pessoas”, declarou Malam Cissé, acrescentando que a população está com medo dos engenhos explosivos.

“Quem nos garante que podemos apanhar o nosso caju sem correr o risco de pisar numa bomba?”, questionou Malam Cissé, sublinhando que o engenho que explodiu estava na aldeia “há muitos anos”. MB.


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Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 16 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXIII: Do Porto a Bissau (17): Finalmente entrámos em Sinchã Jobel (A. Marques Lopes)

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2498: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (18): Operação Punhal Resistente

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca)> 1969 ou 70 > Belíssimma vista aérea da tabanca de Samba Juli, sendo visível o perimetro de arame farpado, as valas e os abrigos individuais > Em Fevereiro de 1969, aquando o desastre do Cheche, a CCAÇ 2405 estava sediada em Galomaro, com um pelotão em Samba Juli, outro em Dulombi e um terceiro em Samba Cumbera. Samba Juli fazia parte de um conjunto de tabancas fulas, em autodefesa no regulado do Corubal, ao longo da estrada Bambadinca-Xitole, onde se incluía Dembataco e , Moricanhe (a oeste da estrada), Samba Culi, Sinchã Mamajã, Sare Adé, Afiá, Candamã, entre outras (a leste)... Tudo nomes que ainda ressoam estranhamente nas nossas cabeças: em muitas delas contávamos as estrelas à noite e esperávamos o alvorecer não sem alguma ansiedade... Nós e os nossos nharros da CCAÇ 12... Neste episódio, passado m Dezembro de 1969, Beja Santos refere a sua ida a Samba Juli, fazer um transporte de doentes, com o seu Pel Caç Nat 52, agora destacado em Bambadinca e morrendo de saudades de Missirá ... A lealdade dos fulas(ou a sua aliança política com os tugas contra o PAIGC) era paga com estes e outros serviços... (LG)

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.

Capa (deteriorada) do livro de Georges Simenon, Maigret em Nova Iorque. Lisboa: Livros do Brasdil., s/d. (Colecção Vampiro, 111). Capa de Cândido Costa Pinto. "Luís, foi assim que ficou o Maigret quando cai em Ponta Varela. Cheira ainda a água da bolanha" (BS)

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2008). Direitos reservados.

Texto enviado, em 18 de Novembro de 2007, pelo nosso camarada e amigo Beja Santos (ex-Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70):


Luis, aqui te entrego mais um texto, não sei porquê fora da medida habitual. Não te esqueças que já te enviei as ilustrações do Tennessee Williams, o livro do Simenon segue hoje pelo correio. Dou-te a notícia cheio de alegria: telefonou-me ontem o escritor Mário de Carvalho a dizer que aceita, na sessão de lançamento de Na Terrra dos Soncó apresentar o livro, com o general Lemos Pires. Tenho uma profunda admiração pela obra dele, sinto que ele está a crescer e se aproxima do Saramago e Lobo Antunes. Espero não fazer pausa até ao Natal, para depois fazer uma semana de férias. Recebe um abraço do Mário

2. Operalção Macaréu à Vista - Parte II > Episódio XVIII > OPERAÇÃO PUNHAL RESISTENTE
por Beja Santos

(i) Bambadinca, entreposto de encontros e desagravos


Já se passou um mês, Bambadinca entranhou-se finalmente na minha vida desde o cais até às tabancas próximas, desço com a toda a naturalidade até à povoação, vou palrando com militares e civis, estonteio-me com os cheiros do mercado, no cais olho ao fundo, com pudor, os palmares de Finete, subo a rampa para o quartel a conversar com Queta Baldé, Serifo Candé e Tunca Sanhá, vamos ver o estado das munições, convoco o pelotão para a revisão das armas, quero ver os carregadores dos apontadores de dilagrama, as granadas de bazuca e de morteiro.

Nisto, aproxima-se de mim o milícia Gibrilo Embaló, de Missirá, já tinha saudades deste excelente soldado, sempre amável e de uma compostura inexcedível. Olhando para o chão, pede-me para vir para o pelotão, conversamos sobre tal impossibilidade, se ele quer ser caçador nativo terá que se inscrever e depois fazer a recruta em Bolama, estou pronto a fazer uma declaração que refira as suas qualidades. Queta Baldé aproveita para lhe dizer que no seu tempo (isto é, 1966) a recruta e a especialidade eram 8 meses a fio, agora é menos, em seu entender isso é mau, reflecte-se na preparação das tropas...

Há quem esteja a ouvir a conversa e manifeste discordância, é malta da CCAÇ 12, Serifo manda calar os meninos, pergunta-lhes se eles já estiveram debaixo de fogo em Porto Gole, Enxalé, Bissá, se já subiram a Madina, se fizeram a estrada Xime-Ponta do Inglês, se entraram no Buruntoni, se sabem o que é uma emboscada de duas horas ou ver Missirá em chamas, a contar as balas, se sabem o que é ir todos os dias a Mato de Cão, depois a gritaria sobe de tom, insultam-se, vejo punhos ameaçadores, olhares chamejantes, é o momento exacto em que partimos para ver o estado das munições, eles ainda não sabem mas ao anoitecer partiremos para Fá Mandinga, daqui andaremos às voltas entre Fá de Baixo, Santa Helena e Mero, o pretexto é um recenseamento das populações, a verdade é que apareceu um grupo armado em Bricama, teme-se que tenham atravessado o Geba, um informador avançou mesmo que é gente que terá vindo através de Bucol, da base de Sinchã Jobel.

As munições estão em ordem, com uma secção ainda vamos buscar doentes a Samba Juli, chegou depois a hora do almoço. As refeições na messe, já constatei, podem ser litigiosas. O tenente Gilde apanhou dez dias de prisão por ter gritado com o major Sampaio, recordando-lhe que já se servira três vezes de leitão, havia oficiais que ainda não tinham comido, era o meu caso, que ouvi toda esta discussão aos berros na porta de vaivém, o tenente Gilde saiu aos palavrões, o major Sampaio perseguiu-o a gritar, comi o mais rapidamente que foi possível, agoniado por estas guerras da comida.

Sim, ao fim de um mês, quase esqueci os petromaxes de Missirá, o bingo a feijões na messe, as rondas de madrugada, tenho muitas saudades das conversas com o Lânsana, o gralhar das crianças, recordo agora o Natal passado, que vivemos tão intensamente. Pelo meio, o Moreira e o Abel, os meus camaradas de quarto, são muito tolerantes com os meus gostos musicais. O Moreira, no entanto, logo me advertiu:
-Pá, aquela gaja que canta em italiano e parece que está a morrer, ainda podes ouvir um bocadinho alto, não sei o que ela canta mas é bonito. Mas aquela outra gaja que está mais de vinte minutos aos berros e que consegue cantar mais alto que a música, por favor, ouve-a quando estiveres aqui sozinho.

O Moreira, afinal, gostava de La Bohème, de Puccini, e detestava o final da Salomé, de Strauss, cantada pela Inge Borkh. Até o correio aqui tem outro sabor. Recebo notícias do Fodé Dahaba, parece que a distância aumentou. O filho de Quebá Soncó, Mamadu, bateu-me à porta, dá-me um beijinho, deixa-me uma carta e foge. Afinal, pede-me material escolar e quer ir comigo a Bafatá para eu lhe comprar livros de aventuras.

Oiço a voz alta do nosso médico no corredor, o nortenho Vidal Saraiva anda furioso, vai ser ouvido nos termos do art.º 130º do RDM, foi encontrado pela polícia militar uma noite em Bissau sem a boina na cabeça, arrisca uns dias de prisão, anda apavorado, desinibe-se com este vozeirão, é assim que ele afasta os maus presságios.

Saio em direcção à secretaria, tenho o Braima Mané à minha espera. Os médicos de Bissau conseguiram pôr o seu braço direito a mexer, mas de resto tudo lhe corre mal. Veio pedir-me cinco escudos para comprar arroz, está todo sujo do barro dos adobes, pois anda a fazer uma morança no Bambadincazinho, não quer viver em Finete onde o seu irmão mais velho lhe engravidou a mulher e depois escorraçou-o da tabanca.

Na secretaria tenho alguns autos à minha espera, afago a minha caneta Montblanc, que me chegou ontem pelo correio, oferta da minha Mãe quando eu fiz o 5º ano, deixei-a em Lisboa, a que ardeu em Missirá era uma Parker 21. Aliás, toda a correspondência que passei a enviar já tem a marca da tinta Quick, a Bic é sempre um último recurso. Chega o correio, recebo um aerograma do Chico Henriques da Silva, que está agora no Olossato, passa semanas isolado num destacamento chamado Ponta Maquê, parece-me, abro um sobrescrito e sai de lá a revista O Tempo e o Modo, é um número dedicado a António Sérgio e vejo que há um artigo assinado pelo José Medeiros Ferreira (2), o Pina escreve a dizer que tem o dedo engessado e em breve regressa...

Alguém entra na sala e dá a notícia que o Pimbas, o primeiro comandante do BCAÇ 2852, já regressou a Lisboa, com o atestado de inapto... É nisto que entra de repelão o Gomes da messe, pede para me falar em particular, como sou o gerente venho imediatamente, pode haver alguma falta, afinal o motivo é outro, a queixa dos faxinas que nos limpam os quartos deixa-me embaraçado: o Cherno entrou com um balde e vassoura, vinha pronto a lavar-me o quarto, não aceitou que sejam outros a fazer a limpeza, houve discussão:
-Talvez seja melhor o meu alferes convencer esse tipo que diz que é seu guarda-costas a não voltar a aparecer aqui, ele tinha um olhar furioso, o que mais nos impressionou foi aquela quantidade de granadas de morteiro que ele trazia à volta do pescoço e na cintura, diz que é assim que anda consigo. Se aquilo rebentasse, estávamos feitos.

É assim que vivo em Bambadinca, penso que é normal na minha idade adaptar-me a isto tudo, onde eu estou a quebrar, a sentir diferenças brutais, é nas insónias, quando de manhã me levanto, depois de ouvir os camaradas a dormir bem, toda a luz do dia me magoa e me recorda o corpo moído, sem vontade de afrontar as idas à picada.

(ii) Em Fá Mandinga, o território do Jorge Cabral

Eu tinha as notas de uma ida a Fá Mandinga, nas vésperas de partir para a operação Punhal Resistente, que se realizou um pouco antes do Natal. Segundo o Jorge Cabral, comandante do Pel Caç Nat 63, ter-nos-emos conhecido em Julho, na tasca do Zé Maria (3). O 63, nessa altura, fazia de pau para toda a obra em Bambadinca, o que é hoje o nosso destino.

O Jorge Cabral recebeu-me há pouco tempo na Universidade Lusófona, onde conversámos sobre este patrulhamento a Mero e Santa Helena. Quando lhe perguntei se ele se lembrava de um ataque de abelhas que apanhámos na operação Lua Nova, perto do rio Bissari, ele confirmou tudo com o seu sorriso maroto e manhoso. E lembrava-se perfeitamente do nosso mano-a-mano a partir de Fá Mandinga, ele descendo a bolanha até ficar em frente à aldeia do Cuor, eu patrulhando Santa Helena, Fá de Baixo e depois Mero, numa tentativa de enxotar os intrusos de Madina em direcção ao Geba estreito, onde seriam apanhados pelo 63 ou no caso de atravessarem a nado terem do outro lado à espera o Alves Correia, de Missirá [Pel Caç Nat 54]. Ajudou-me a reconstituir o quartel de Fá Mandinga, de que guardo uma imagem difusa, não tendo esquecido, no entanto, a boa qualidade das instalações, que eu sempre associara a um quartel destinado a uma companhia e que precedera, de facto, a construção do quartel de Bambadinca.

Quando se entrava em Fá, tinha-se a noção de que houvera ali um centro agrícola experimental, lojas coloniais, talvez um presídio. O Cabral tudo confirmou, Fá tivera importância noutros tempos (tal como Geba, era a ponta avançada da presença colonial, até ao séc. XIX), havia uma zona de instalações antigas que estavam vedadas à tropa (tinha mesmo um guarda civil do Governo da Província), possuía excelentes instalações para a tropa ficar acantonada (4) , o quartel tinha valas e não havia abrigos, toda aquela região do Joladu era calma, sabia-se da cambança da gente de Madina, em Bissaque havia muitas tensões, os patrulhamentos eram completamente infrutíferos, os apoios das populações aos rebeldes eram uma realidade, só que nós não sabíamos os códigos de entendimento.

O que fizemos foi mais um patrulhamento pelas bolanhas e uma acção psico entre Mero, Santa Helena e Fá Mandinga. Era pelo bombolom que a gente de Madina chegava ao Joladu, mas nós naquele tempo nada sabíamos. E foi assim que passámos a tarde, a noite e a madrugada, entre as lamas e os mosquitos das férteis bolanhas da região de Fá, ouvindo sempre dizer que gente do mato nunca vinha à região... regressámos ao amanhecer a Bambadinca, informei os soldados que fossem dormir bem pois, a meio desta tarde iríamos partir durante dois ou três dias.

(iii) As andanças infernais da Punhal Resistente

Chegado ao quartel, fui logo falar com o major Sampaio para saber mais detalhes da batida prevista paras a região do Buruntoni, a partir do Xime. Segundo o oficial de operações, haveria dois destacamentos, um com gente de Mansambo [, CART 2404,], outro com o 52 e a gente do Xime [, CART 2520].
-Esteja descansado, os guias são muito bons. Estarei amanhã sobre vós, procurarei acompanhar as vossas rotas, vocês vão cercar o Buruntoni por terra firme, escolhi a tropa mais experimentada que disponho.

No regresso, escrevi à Cristina:

“Saí do Xime de madrugada com mais três pelotões, fugimos sempre da estrada Xime-Ponta do Inglês, junto a Ponta Varela atravessámos a estrada em direcção Gundaguê Beafada, a ideia era ao princípio da manhã juntarmo-nos com as tropas do capitão Neves em Gundaguê Futa-Fula, e daí avançarmos para o Baio e depois o Buruntoni. Ao meio dia, o guia diz que já não sabe o caminho, os soldados da região avisam-me que estamos a avançar para a Ponta do Inglês, a avioneta não nos dá indicações. Do Buruntoni os rebeldes desataram a fazer fogo de morteiro, aperceberam-se da insistência da avioneta sobre aquela área que eles controlam completamente. Pelas 5h da tarde, o guia confessa-se perdido, justificando que o capim alto alterou todas as referências.

"Se na operação de Mansambo estava um frio de esfarelar os ossos, alí era uma humidade asfixiante. Sem saber como, acampámos a 200 metros das tropas do capitão Neves, pelo meio dia do dia seguinte chamámos outra vez a avioneta, não tínhamos apoio da carta, começavam a chegar as insolações, a tropa exausta por andar às voltas, fugindo dos itinerários que se suspeitavam minados.

"A meio da tarde a avioneta deu ordens de retirada, isto debaixo do fogo do Buruntoni. Ao anoitecer partimos do Xime para Bambadinca, sempre a picar a estrada até Almedalai. No dia seguinte, já em cima do Natal, coube-nos emboscada, escolta e reforço.

"A 24, de manhã, o pelotão dividido em três secções andou pela ponte de Udunduma, Nhabijões, Madina Bonco e Galomaro, a levar e a trazer pessoas e coisas, eu fiquei nas ferroadas burocráticas dos processos por ferimentos em combate. À tarde, começou a nossa semana na Ponto de Udunduma”.


Em conversas recentes com o Pires e o Queta, pedi-lhes que me ajudassem a recordar pormenores daquela malfadada Punhal Resistente. O Pires foi sintético:
-Partimos a meio da tarde para o Xime, picámos tudo até ao quartel, naquele tempo, nada estava alcatroado. Fez-me muita confusão o fogo de obus, ao anoitecer e até sairmos para a operação. Recordo-me que andámos sem parar, desviámo-nos para junto do Corubal, ouvíamos os barcos no Geba, andámos na bolanha aos tombos, ao amanhecer houve discussão entre vários soldados e o guia, caminhámos à esquerda e à direita, a água dos cantis desapareceu rapidamente. Ou os guias não gostaram dos itinerários de aproximação e tudo fizeram para se afastar deles ou desconheciam o terreno, o capim estava muito crescido. O que interessa é que foi mais uma operação inútil, a juntar a tantas outras. Ficava-se sempre com a ideia de que inimigo era verdadeiramente inacessível.

Com Queta, natural da região, as memórias ainda estão em ebulição:
-Adulai Djaló, o Campino, ameaçou matar o guia que era de Madina, frente a Taibatá, de nome Samba. Estou certo que era um homem leal e não lhe deram as indicações mais certas. No meio da discussão, durante a manhã do primeiro dia, quando já estávamos perdidos, ele disse-me que procurava o trilho de Gundaguê Futa-Fula em direcção ao Buruntoni, mas que sabia que os sentinelas iriam certamente ver-nos na extensa bolanha à volta do Baio e do Buruntoni. Era o acampamento melhor situado naquela região do Corubal, todas as aproximações são difíceis, foi aqui que se instalou o PAIGC e logo começou a luta armada, a barraca deles ficava no mato fechado entre bolanhas. Ainda agora lembro a morte de Mário Adulai Camará, um dos nossos bazuqueiros, em 1967, nunca percebi por que é que não lhe deram uma condecoração, combateu mais de meia hora lançando fogo da bolanha para dentro da mata, nós não podíamos andar mais, tal o fogo dos morteiros 82. Aquela operação foi uma grande canseira, nosso alfero, nós não gostávamos daquelas correrias dentro da mata, era pena nunca perguntarem às pessoas da região, como eu, quais os sítios possíveis para se chegar lá. Quando atacámos Belel, em Março do ano seguinte, nosso alfero escolheu a pessoa certa, Cibo Indjai, ele escolheu o trilho possível, entrámos na barraca de Belel quando eles estavam a descansar ao almoço. Foi pena os oficiais brancos não quererem falar connosco antes das operações. Nós éramos fiéis à bandeira portuguesa, nunca pensavam em nós como gente interessada em acabar rapidamente com a guerra.


(iv) A semana Tennessee Williams

Não resisto a contar a história de um livro Maigret em Nova York, de Georges Simenon. Levava sempre no camuflado um ou dois livros revestidos em plásticos, para aguentarem as águas da bolanha e as chuvadas. Levei para o Xime o n.º 111 da colecção Vampiro, uma leitura emocionante, Maigret já está reformado em Meung-sur-Loire é procurado pelo um jovem, Jean Maura, que lhe pede que vá a Nova Iorque ver que perigos corre o pai, ideia que é corroborada pelo notário da família.

Maigret viaja num paquete transatlântico, o jovem Jean Maura desaparece à chegada, o encontro com o pai, Little John, e o seu secretário é acidentado mas Maigret continua a investigar com auxílio de colegas norte-americanos e detectives recrutados. São deambulações mirabolantes, há recordações de artistas que se lembram de uma dupla de dois irmãos, em que um deles era Little John. Há momentos fulgurantes, mas nada tem a força com um telefonema que Maigret faz a Joseph Daumale, de Nova Iorque para Bourboule, é um interrogatório a cinco mil quilómetros de distância como nunca mais lerei nas obras de Simenon. Vou devorando aos bocados, todas as pausas disponíveis são boas para ler. Nas bolanhas de Ponta Varela entrei dentro de água até à barriga, quando saí o meu livro policial deformara-se. Gostei tanto dele, no entanto, que resolvi guardá-lo até hoje, uma homenagem às leituras emocionantes, em tempos tão difíceis.

Mas as leituras da semana centraram-se em Tennessee Williams. Primeiro, li um Eléctrico Chamado Desejo, premiado com o Pulitzer. Vira a peça no teatro de São Luís, no dia dos meus anos, em 1966, na companhia do Carlos Sampaio, Eduardo Canto e Castro e José Nogueira Ramos. Mariana Rey Monteiro desempenhara Blanche DuBois, que no cinema dera a Vivien Leigh um Óscar. É um drama que nos fala da desambientação, da repressão sexual, da doença mental, as múltiplas mentiras a que por vezes nos entregamos na construção dos nossos sonhos. Blanche, que tem poses de aristocrata, vai viver para casa de Stella, a sua irmã, casada com o musculado e abrutado Stanley Kowalski. Numa atmosfera de permanente tensão, Blanche procura transmitir aos outros a ideia de um mundo refinado de onde provém, que se vem a descobrir ser fruto de uma imaginação delirante. Blanche é um caso único de mulher a caminho da meia idade que arquitecta situações amorosas, acantonada numa juventude inexistente. De ficção em ficção, Blanche irá ser internada, e a casa dos Kowalski voltará à normalidade.

A noite de Iguana que vi no filme de John Huston, com Ava Gardner, Richard Burton, Deborah Kerr e Sue Lyon nos principais protagonistas, é um outro drama de sexo reprimido, solteironas em fúria, um padre em sofrimento perseguido por uma adolescente, uma viúva sempre em festa, um avô poeta que vai recitar o seu mais belo poema e morre ao pé da sua neta tão amada. A iguana, um animal perseguido e acorrentado que o reverendo Shannon liberta naquela noite de todas as libertações, é o símbolo da verdade que se solta, da vida que é possível ser vivida. Gosto cada vez mais de Tennessee Williams e dos seus personagens em afrontamento, em que nada fica como dantes.

Aproxima-se o Natal, vivo o dissabor de não poder fazer uma festa, não tem sentido particularizar o evento no ambiente de um grande quartel. Entrego-me à pira das recordações, procuro compor uma exaltação ao Deus menino. E a 24 de Dezembro, já na noite escura, um pouco antes da nossa consoada na messe de Bambadinca os enfeites verbais conjugaram-se, todo o marulhar de saudações e saudades afluiu numa prosa poética. Afinal, o meu coração estava lá e cá, continuava a combater e, julgava eu, estava pronto a recomeçar uma vida onde se apagava a guerra da Guiné.
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Notas dos editores:

(1) Vd. o último poste desta série:

25 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2480: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (17): Cartas de Bambadinca, Dezembro de 1969

(2) Vd. poste de 15 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1282: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (1): duas baixas de vulto, Beja Santos e Medeiros Ferreira

(3) Vd. poste de 18 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1534: Estórias cabralianas (19): O Zé Maria, o Filho, Madina/Belel e um tal Alferes Fanfarrão (Jorge Cabral)

(4) Vd. poste de 27 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2135: Estórias cabralianas (26): Guerra escatológica: o turra Boris Vian (Jorge Cabral)

terça-feira, 16 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P763: Do Porto a Bissau (17): Finalmente entrámos em Sinchã Jobel (A. Marques Lopes)




Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Jobel > 22 de Abril de 2006 > Bombas da Força Aérea Portuguesa que foram lançadas sobre a base do PAIGC, durante a guerra, e que não chegaram a explodir. Na foto de cima, o nosso amigo e camarada A. Marques Lopes.

Fotos: © Xico Allen (2006)

Texto de A. Marques Lopes, coronel DFA, na reforma, ex-alferes miliciano na Guiné (1967/68) (CART 1690, Geba, 1967/68; e CCAÇ 3, Barro, 1968)... Visitou recentemente a Guiné-Bissau, num viagem de grupo organizada pelo Xico Allen...

Pois, camaradas e amigos, eu e o Allen acabámos por entrar na base do IN em Sinchã Jobel, que nunca foi tomada pelas NT, nem quando eu, sem querer, lá fui em 24 de Junho de 1967 (Op Jigajoga) (1), nem em 31 de Agosto de 1967 (Op Jigajoga II), nem em 16 de Setembro de 1967 (Op Jacaré), nem 15 e 16 de Outubro de 1967(Op Imparável), nem em 27 de Outubro de 1967 (Op Insistir), nem em 28 de Outubro de 1967 (Op Instar), nem em 19 de Dezembro de 1967 (Op Invisível) e nem em 21 de Dezembro de 1967 (Op Invisível II), a última que se fez para tomar essa base, comandada durante esse período por Lúcio Soares, como ele próprio me disse (2).

A clareira de Jobel (a tal onde sofri uma emboscada) tem agora uma tabanca (vd. fotos a seguir). Como chegámos lá? Fomos, eu e o Allen, até Sare Banda [vd. carta de Banjara] e aí encontrámos um homem que nos acompanhou, indicando-nos o caminho para Sinchã Jobel.




Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Jobel > 22 de Abril de 2006 > Aspectos da actual tabanca, sita no local da antiga base do PAIGC.

Fotos: © A. Marques Lopes (2006)

Durante a guerra, Sare Banda era uma grande tabanca, fruto do reordenamento da zona, e onde esteve um destacamento da CART 1690. É agora pequena, vendo nós pelo caminho já várias outras tabancas, explicando-nos o homem que nos acompanhou que muita gente saíu de Sare Banda para formar outras tabancas. Naturalmente, é claro.

E chegámos a Sinchã Jobel, com alguma dificuldade, é verdade, pois existe para lá um simples carreiro. E eu cheguei à conclusão que seria mais fácil ter chegado à base se as NT tivessem ido por ali, apesar de a mata ser muito cerrada. Lá encontrámos o Dirami e o Mulé (2), dois ex-guerrilheiros daquela base e agora moradores na tabanca de Sinchã Jobel.


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Jobel > 22 de Abril de 2006 > A actual tabanca fica a 200 metros da antiga base do PAIGC.

Foto: © A. Marques Lopes (2006)







Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Jobel > 22 de Abril de 2006 > Antiga base do PAIGC. Está-se ainda em plena época seca.

Fotos: © A. Marques Lopes (2006)

Disse o Dirami que conseguiram rebentar várias, mas aquela que vimos não tinham conseguido... e lá está ainda. Muitas delas, eu já sabia, rebentavam nas árvores, outras batiam nelas e caíam sem rebentar, porque já não caíam da forma adequada para rebentarem as espoletas.




Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Jobel > 22 de Abril de 2006 > Vestígios ainda bem visíveis, nas árvores, dos bombardeamentos feitos pela Força Aérea Portuguesa.

Fotos: © A. Marques Lopes (2006)

Duas coisas nos indicou o Dirami:

(i) uma, está ele de cócoras, "ali em frente, no tronco daquele poilão era o posto de vigia" (as NT disseram que eles estavam em cima das árvores, mas o que sucedia é que o vigia começava logo a disparar assim que nos via entrar na clareira);


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Jobel > 22 de Abril de 2006 > Local onde se situava o posto de vigia ou sentinela dos guerrilheiros, segundo indicação do Dirami.

Foto: © Xico Allen (2006)

(ii) outra, está ele a dizer-me (vd. foto do cemitério, tirada pelo Allen), "aqui, por baixo destes arbustos está um poço, para onde lançávamos os mortos, pois não havia tempo para fazer covas individuais", e está lá o poço, coberto de arbustos e já tapado com terra;

(iii) e - eu cá para mim - que "lá estarão os corpos do soldado Agostinho Francisco da Câmara, morto em 16 de Outubro de 1967 (3), e do alferes Fernando da Costa Fernandes, morto em 19 de Dezembro de 1967 de Dezembro de 1967, corpos esses que não foi possível recuperar durante as operações feitas nessas datas" (4).


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Jobel > Local onde se situava o poço, agora tapado, para onde eram lançados os cadáveres.

Foto: © Xico Allen (2006)

E ficou-me também a pena de as cabeças pensantes que mandavam na guerra terem insistido em várias operações, a começar nas bolanhas de Sucuta e Canhagina [vd. carta de Bambadinca] e na travessia do rio Gambiel, quando teria sido mais fácil e, se calhar, eficaz terem feito o caminho que eu fiz agora, tanto mais que em duas daquelas operações entrou a tropa especializada dos comandos. Coisas.

Abraços
A. Marques Lopes
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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXV: Uma estória de Sinchã Jobel ou a noite em que o Alferes Lopes dormiu na bolanha (1967)

(2) Vd post de 16d e Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXI: Do Porto a Bissau (16): Encontro com o IN (A. Marques Lopes)

O comandante Lúcio Soares tem agora 64 anos. Copm 25 anos, era o comandante de Sinchã Jobel, base que foi montada em maiod e 1967. O comissário político era o Gazela (que morreu há cerca de dois meses). No princípio de 1968, Lúxio Soares saíu para ir comandar a base do Morés, passando o Gazela a comandar Sinchã Jobel. Em 1970 o Gazela foi para sul, para a zona de Empada.

"Após o 25 de Abril integrou o grupo do Pedro Pires, em Londres, para negociar a formalização da independência. Mais tarde foi Ministro da Defesa no governo de Luís Cabral. Após o golpe de Nino Vieira, em 1980, exilou-se em Cabo Verde, onde esteve durante 14 anos. Regressou depois e está, agora, reformado como coronel (mantem o nome comandante porque é histórico" (...).

(3) Vd post de 3 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XL: Sinchã Jobel IV, V e VI (A. Marques Lopes)

"17. Op Imparável. 15 de 16 de Outubro de 1967:

(...) "A operação foi comandada do PCV (Posto de Controlo Volante) pelo Comandante do Agrupamento. O Agostinho Francisco da Câmara (e não Camará), morto na operação, era açoriano e do meu grupo de combate; o Armindo Correia Paulino, aqui referido, também era do meu grupo de combate, o Bigodes, como lhe chamávamos, um minhoto que foi, mais tarde, aprisionado pelo PAIGC em Cantacunda e que acabou por morrer no cativeiro, em Conakry" (...)

(4) Vd. post de 5 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XLV: Sinchã Jobel VII (A. Marques Lopes)

"22. Op Invisível. 16 de Dezembro de 1967

(...) “Começou também nessa altura o IN a fazer fogo com o Mort 82, com que abateu o alferes miliciano Fernandes. Verifiquei que nessa altura já o Dest B tinha as seguintes baixas: Alferes Miliciano Fernandes, 1º. Cabo Sousa da CART 1742 (que estava a fazer fogo com a ML MG-42), soldado metropolitano Fragata e um soldado milícia que não consegui identificar, além de vários feridos.

“Procurei trazer o alferes miliciano Fernandes para a rectaguarda, e quando o puxava pelos pés, fui surpreendido por um grupo IN, que corriam em direcção aos furriéis milicianos Marcelo e Vaz e em minha direcção gritando que nos iriam apanhar vivos. Note-se que neste grupo IN avistei elementos brancos os quais usavam o cabelo bastante comprido (a cobrir as orelhas), facto também confirmado pelos já citados furriéis milicianos. Devido a tal, tive que abandonar o corpo do alferes Miliciano Fernandes e retirar" (...).

domingo, 5 de junho de 2005

Guiné 63/74 - P45: Sinchã Jobel VII (Marques Lopes)

Texto de A. Marques Lopes:


O Alferes Fernandes, referido no relatório que se segue, foi, mais tarde, substituído pelo Alferes Carlos Alberto Trindade Peixoto, o Aznavour, por ser parecido com o Charles Aznavour, que morreu também, em 8 de Setembro de 1968 num ataque a Sare Banda (ver relatório).

O soldado Fragata (Manuel Fragata Francisco), um alentejano de Alpiarça, do meu grupo de combate, ficou nesta operação. Mas a história toda foi-me contada pelo Comandante Gazela [do PAIGC ]: ficou furado por vários estilhaços de uma roquetada e foi levado, em maca, pelos guerrilheiros desde a mata do Óio até a um hospital de Ziguinchor, na Casamansa, Senegal. Foi obra, hão-de concordar, e não foi fácil, como calculam. Aí, em Ziguinchor, foi tratado pelo portugês Dr. Pádua, um médico desertor, e que me confirmou isto quando, há alguns anos, o encontrei em Lisboa.

Depois desse tratamento foi repatriado pela Cruz Vermelha Internacional e foi para o Anexo do HMP, na Rua Artilharia Um, em Lisboa. Disse o Comandante Gazela que, com a simplicidade própria daqueles nossos soldados, o Fragata, ao apanhar o avião de regresso, disse: "Obrigado. Graças ao nosso partido – referia-se ao PAIGC -, "posso voltar para casa".

Infelizmente, o Fragata, passado pouco tempo após a saída do Anexo, morreu num desastre de motorizada na sua terra.

Depois desta operação, aquela zona foi considerada ZLIFA (Zona Livre de Intervenção da Força Aérea), isto é, só os T6 e os Fiat é que passaram a voar para lá para despejarem toneladas de bombas e napalm sobre a floresta que rodeava a clareira de Sinchã Jobel. Sem grande efeito prático, pois as bombas rebentavam no cimo das copas das árvores, deixando praticamente intactas as partes no solo. E a guerra continuou...

Em 1998, o Comandante Gazela confidenciou-me que, naquele dia 24 de Junho de 1967, eles não se aperceberam que eu tinha ficado na bolanha. Só o souberam dois dias depois, quando o Suleiman Baldé, chefe dos milícias de Sare Madina, lhes disse que me tinha emprestado uma bicicleta.

Este Suleiman Baldé, embora nas milícias, era do PAIGC e acabou por ser morto mais tarde pelas NT. Quando consegui sair de Sinchã Jobel, no dia 25, cheguei a essa tabanca de Sare Madina e foi, de facto, o Suleiman Baldé que me emprestou uma bicicleta. E foi de bicicleta que cheguei à sede da companhia, em Geba.

Fui chamado, depois, ao Comando do Agrupamento. Primeira preocupação dele: se eu tinha trazido a G3... e, não sei se a sério se a brincar, “há um problema, é que você passou 24 horas no campo do inimigo”… Não fiz boa cara, com certeza, pois o Comandante do Agrupamento teve de sorrir e disse-me: "Você, agora, tem aí história para contar num livro”. Não sei quando ele aparecerá, mas estou a trabalhar para isso.

Uma reflexão: na Guiné, e estas operações são prova disso, quem fez a maior parte da guerra dura e prolongada não foram as tropas especiais (sem pôr em causa o seu valor), mas sim o sacrificado Zé Soldado, isolado no mato, sem farras em Bissau, pau para toda a colher e, as mais das vezes, sacrificada carne para canhão.


“22. Op Invisível. 16 de Dezembro de 1967

“Situação particular:
Em face das acções realizadas sabe-se que o IN actua no regulado de Mansomine onde possui a base de Sinchã Jobel.

“Missão:
Executar uma batida nesta região tentando desalojar o IN.

“Força executante:

Dest A – CART 1742, a 2 Gr Comb.

DEst B - CART 1690 a 2 Gr Comb ref. c/ 1 PEL MIL 110 / C MIL 3


“Desenrolar da acção:
"Em 18 de Dezembro de 1967, às 22H00, as forças intervenientes saíram auto transportadas de Geba em direcção a Sare Gana, progredindo em seguida apeadamente em direcção a Ganhagina, que atingiram em 19 , às 04H00. Não se pôde efectuar a cambança da bolanha nessa altura, em virtude do guia não conhecer o caminho, para atingir a bolanha pelo que as forças intervenientes se instalaram, montando a devida segurança.

“Pelas 06H00 as forças intervenientes iniciaram novamente a progressão à bolanha, que atingiram pelas 07H50 hora a que se iniciou a cambança da mesma. Nesta altura foram avistados elementos IN em cima de árvores, pelo que se tomaram as devidas medidas de segurança para a travessia da mesma. A cambança terminou às 08H50, iniciando-se em seguida a progressão à base de patrulhas. Cerca das 11H50 fez-se um alto, devido novamente ao guia se ter perdido e precisar de se orientar. Foi destacada1 Secção reforçada para fazer a protecção ao guia, enquanto a restante força interveniente montava segurança no local de estacionamento.

“Às 12H45 iniciou-se novamente a progressão à base de patrulhas que foi atin- gida às 15H52. Nesta altura ouviram-se vozes de elementos IN, o que levou as forças intervenientes a supor que o IN se encontrava instalado naquele local. Devido a este facto a missão foi alterada e estabeleceu-se que o Dest B faria o assalto ao objectivo enquanto o Dest A faria a detenção do IN. Para o assalto ao acampamento IN o Dest B nomeou 1 Gr Comb, enquanto o 2º. Gr Comb faria a protecção ao 1.º e serviria de reserva.

“Estabeleceu-se também o ponto de reunião das forças intervenientes. Quando o 1º GR Comb progredia em direcção do acampamento IN, foi emboscado e surpreendido por um súbito desencadear de intenso e nutrido fogo IN. Tentou anular-se o mesmo reagindo as NT fortemente. Como o 1° Gr Comb fosse o que nessa altura se encontrasse mais submetido ao fogo IN, veio o2º Gr Comb em auxilio do primeiro, mas o mesmo foi atacado pela rectaguarda e, portanto, não pode proteger a retirada do primeiro.

“Começou também nessa altura o IN a fazer fogo com o Mort 82, com que abateu o alferes miliciano Fernandes. Verifiquei que nessa altura já o Dest B tinha as seguintes baixas: Alferes Miliciano Fernandes, 1º. Cabo Sousa da CART 1742 (que estava a fazer fogo com a ML MG-42), soldado metropolitano Fragata e um soldado milícia que não consegui identificar, além de vários feridos.

“Procurei trazer o alferes miliciano Fernandes para a rectaguarda, e quando o puxava pêlos pés, fui surpreendido por um grupo IN, que corriam em direcção aos furriéis milicianos Marcelo e Vaz e em minha direcção gritando que nos iriam apanhar vivos. Note-se que neste grupo IN avistei elementos brancos os quais usavam o cabelo bastante comprido (a cobrir as orelhas), facto também confirmado pelos já citados furriéis milicianos. Devido a tal, tive que abandonar o corpo do alferes Miliciano Fernandes e retirar. Quando retirava em direcção ao ponto de reunião, encontrei uma secção da CART 1742, e 4 soldados da minha Companhia que me informaram ser impossível entrar em contacto com a CART 1742, enviei 5 soldados desta última Companhia afim de averiguar tal impossibilidade, enquanto se montava a segurança com os restantes elementos. Logo após esses 5 Soldados regressarem, fui informado que a CART 1742 já retirara. Devido a tal e uma vez que o IN já nos estava a envolver, iniciei a retirada em direcção à bolanha.

“Durante a retirada fomos constantemente perseguidos pelo IN que disparava incessantemente rajadas de armas automáticas ligeiras e metralhadora pesada, além de encontrarmos diversos elementos IN já instalados ao longo do caminho que conduzia à bolanha e que fez com que este grupo tivesse que atravessar a bolanha num local diferente do que inicialmente estava previsto, e que batiam o caminho por onde nos deslocávamos.

“Quando atravessámos a bolanha o IN bateu a mesma com granadas de morteiro 82 (algumas das granadas estavam equipadas com espoleta de tempos), rajadas de armas pesadas, ligeiras e roquetadas, tendo o mesmo entrado na bolanha em nossa perseguição, e ainda após concluída a travessia depararam-se-nos alguns elementos IN instalados deste lado da bolanha. Conseguimos, no entanto, fazer a travessia da mesma e iniciarmos a progressão em direcção a Sare Ganá, que atingimos às 21H00.

Chegados a Sare Ganá, verifiquei que a CART 1742 já aí se encontrava e que faltavam 16 elementos da minha Companhia e 1 elemento da CART 1742. [estes militares foram recuperados no dia 21 de Dezembro de 1967, durante a Op Invisível II, realizada com esse objectivo] .

“Resultados obtidos:


Baixas sofridas pelo IN: Mortos confirmados 14; numerosas baixas prováveis.»

sexta-feira, 3 de junho de 2005

Guiné 63/74 - P40: Sinchã Jobel IV, V e VI (Marques Lopes)

Três textos de A. Marques Lopes (mandou uma série de fotos da CART 1690, aquartelada em Geba, que ficarão disponíveis no nosso álbum):


1. Foi a operação que se fez a seguir àquela em que entraram dois grupos de comandos, e que ficou em águas de bacalhau... Esta foi feita com cassanhos, só, e deu o que vão ler.

A operação foi comandada do PCV (Posto de Controlo Volante) pelo Comandante do Agrupamento. O Agostinho Francisco da Câmara (e não Camará), morto na operação, era açoriano e do meu grupo de combate; o Armindo Correia Paulino, aqui referido, também era do meu grupo de combate, o Bigodes, como lhe chamávamos, um minhoto que foi, mais tarde, aprisionado pelo PAIGC em Cantacunda e que acabou por morrer no cativeiro, em Conakry.

Um esclarecimento: os nomes das operações nesta zona começavam todos por "I" ou por "J".

"17. Op Imparável. 15 de 16 de Outubro de 1967:

"Situação particular:

"O IN tem-se revelado no regulado de Mansomine não só durante as operações, como em ataques a tabancas e aquartelamentos. Possui um acampamento na região de Sinchã Jobel que lhe serve de base às suas acções.

"Missão:

-Golpe de mão ao acampamento de Sinchã Jobel seguido de uma batida na região.

"Força executante:

Dest A - C CAV 1748.

Dest B -CCAÇ.1685 a 2 Gr Comb ref. c/ 1 PEL MIL/C MIL 3.

Dest C -CART 1690 a 2 Gr Comb ref. c/ 1 PEL MIL/C MIL 3.

"Desenrolar da acção:

Em 15, às 4H30, o Dest C saiu auto-transportado de Geba, em direcção a Sare Madina, progredindo apeadamente em direcção a Sucuta que atingiu às 08H45. Instalou-se no orla junto à bolanha, tendo mantido essas posições até 16 de Outubro, às 10H30.
"Durante a noite de 15 para 16 fomos flagelados com 4 tiros de morteiro e rajadas de armas ligeiras automáticas. Cerca das 03H00 foi avistado um Helicóptero IN que sobrevoou o acampamento IN.

"Quando o Dest A iniciou a travessia da bolanha, a 16, às 9H00, o mesmo foi atacado por tiros de morteiro e rajadas de armas ligeiras automáticas, tendo o Dest B e C feito fogo de morteiro às minhas ordens, sobre o IN instalado na margem oposta. Este Dest não conseguiu atravessar a bolanha, o mesmo sucedendo ao Dest B embora, quando este último tentou a travessia, já tivesse apoio aéreo (ATAP). O PCV ordenou então ao Dest C para nomear uma secção e tentar a travessia da bolanha às 11H30. Esta secção atravessou a bolanha sob fogo IN e com apoio aéreo dos T-6 chegando ao outro lado da bolanha às 12H45.

"As 15H00 os Dest A e C tinham atravessado a bolanha e preparavam-se para progredir em direcção ao acampamento IN. Antes de iniciarem a progressão teve de se rebentar uma armadilha A/P, constituída por uma granada do LGF. Os dois Dest A e C atingiram a clareira de Sinchã Jobel pelas l6H40, onde se estabeleceu que o Dest C reforçado por um Gr Comb do Dest A iria fazer o ataque ao acampamento IN.

"Pelas 17H00, caiu-se numa emboscada montada pelo IN. Tentou-se anular a emboscada, que seria conseguido senão fosse a hora tardia, a incapacidade de duas armas pesadas (LGF e MORT 60) e algumas G-3 encravadas do Dest C. Outra razão talvez decisiva e que fez com que as NT não calassem a emboscada foi o facto de o Dest A não ter envolvido o IN devido ao fogo cerrado do morteiro 60 e 82 do IN.

"Além destas armas, o IN possuía armas automáticas individuais, 3 MP [metralhadoras pesadas] e alguns lança rocketes ou LGF (Não sei precisar). Uma das MP foi calada pelo nosso LGF [bazuca]. Vários contras para nos surgiram durante a emboscada: O nosso bazuqueiro (passe o termo) Soldado Agostinho Camará que estava a fazer um fogo certeiro, foi atingido mortalmente (note-se que este LGF era o único que estava a fazer fogo). Foi o Soldado enfermeiro Alípio Parreira que se encontrava próximo e que estava a fazer fogo com a ML metralhadora ligeira] MG-42 (para a qual o referido soldado se oferecera como voluntário) pegar no LGF e continuar a fazer fogo com ele. Nesta altura tive que pegar na MG-42 e fazer fogo com ela. Logo a seguir tive que me dirigir à rectaguarda a fim de falar com o PCV que me chamava.

"Quando regressei à frente verifiquei que o já referido soldado enfermeiro recomeçara a fazer fogo com a ML MG-42 e que passado mais alguns momentos ficou impossibilitado de fazer fogo devido a uma avaria, ao mesmo tempo que o soldado enfermeiro e o municiador eram feridos por estilhaços. Mesmo assim este soldado enfermeiro veio para a rectaguarda, onde agarrou no morteiro 60 e continuou a fazer fogo com o mesmo.

"Foi-me impossível continuar o ataque ao acampamento IN, em virtude de se terem esgotado as munições que levava, as armas pesadas não funcionarem, a noite já ter caído por completo e desconhecermos o terreno. Deve notar-se, contudo, que nesta altura já o IN dava sinais de fraqueza e, segundo alguns soldados nativos que se encontram juntamente comigo na frente, estarem a gritar que tinham que fugir.

"Para retirar, pedi auxilio ao Dest A que foi à frente, permitindo que o Dest C retirasse para fora da zona de morte, donde protegeu a retirada do Dest A. Já fora da zona de morte, verifiquei que não se tinham trazido os mortos, pelo que enviei novamente à zona de morte alguns soldados para os trazerem. Tal não foi possível, visto estarem armas automáticas do IN apontadas para o local onde se encontravam os corpos. Ainda foram abatidos a tiro de G-3 dois elementos IN, um destes pretendia agarrar o Soldado Armindo Correia Paulino, quando este estava a arrastar um dos nossos mortos para a rectaguarda e que se salvou devido ao aviso oportuno do soldado Saliu Baldé e que permitiu ao primeiro soldado citado abater esse elemento IN, ao mesmo tempo que o soldado citado abatia um segundo elemento IN, que se encontrava armado e estava a proteger o outro elemento IN abatido.

"Seguidamente efectuou-se a retirada (e friso mais uma vez que esta teve de ser feita devido ao Dest C ter esgotado as munições e as armas avariadas), tendo o IN vindo em nossa perseguição até à bolanha onde os últimos elementos a atravessá-la (o Dest C) foram alvejados por rajadas de armas automáticas.

"Após a travessia da bolanha verifiquei que o Dest B já não se encontrava em Sucuta. Os Dest A e C atingiram Sare Madina pelas 02H00 de 17 [de Outubro de 1967], onde aguardaram viaturas do Dest C que os transportaram para Geba, tendo uma viatura do Dest C seguido para Bafatá com os feridos mais graves.

"Resultados obtidos:

-Baixas sofridas pelo IN: - Mortos confirmados 8 e baixas prováveis numerosas.

-Foi destruída uma armadilha A/P e destruída ou danificada uma MP.

"Comentários:

"O plano de acção inicial não foi cumprido. Se tivesse sido, o acampamento IN teria sido destruído porque o Dest A conseguiu chegar a 50 metros do acampamento IN sem ser detectado.

"Nota:

"Em 27 de Agosto de 1967 foi recebida uma noticia C2 em que referia que o IN tinha sofrido 54 mortos e muitos feridos ainda não controlados.

"As NT tiveram tarefa bastante penosa no regresso devido a terem que transportar 12 feridos graves e 22 ligeiros por as evacuações não poderem ser feitas de Helicóptero durante a noite.»


2. Poder-se-ia pensar que, agora, com a 5ª Companhia de Comandos é que vai ser!... Mas não foi. Este é o relatório da CART 1690, o dos comandos não o conheço e não sei o que disse. Fizeram a batida e não viram nada, com as coordenadas tão bem definidas... o que me parece é que não era ali exactamente. Além de que o IN não terá visto vantagem em confrontar-se com os comandos, também admito. Mas veja-se como a 5ª Companhia de Comandos se põe a andar, deixando para trás dois grupos de combate de cassanhos... A operação foi comandada do PCV pelo Comandante do Agrupamento.


"18. Op Insistir. 27 de Outiubro de 1967

"Situação particular:

"Desde Abril de 1967 que o IN se tem revelado nos regulados de Mansomine e Joladu. Durante a Op Imparável foi finalmente localizado de forma segura o acampamento de Sinchã Jobel que se situa em: 1455 1210 E9-76 [são as coordenadas topográficas].

"Missão:

- Ataca e destrói o acampamento IN de Sinchã Jobel.

"Força executante:


Dest A - 5ª Companhia de Comandos

DEst B - CART l690 ( a2 Gr Comb) + 1 PEL MIL 109/C MIL 3

"Desenrolar da acção:

"Em D pelas 05H00 o Dest B saiu autotransportado de Geba em direcção a Sare Madina, progredindo depois até em direcção a Sucuta que atingiu às 08H15. Instalou-se na orla da bolanha não conseguindo qualquer comunicação através do rádio com Geba ou Baftá para informar a nossa posição. Cerca das 09H45 foi feito fogo de morteiro de amas ligeiras afim de atrair a atenção do IN naquela direcção.

"Após o bombardeamento da FA [Força Aérea] e por ordem do PCV, um grupo de combate iniciou a travessia da bolanha onde permaneceu até que o Dest A fez a batida ao objectivo regressando em direcção ao Dest B.

"Gorando-se o encontro do Dest A com o Dest B, por ordem do PCV o Dest B retirou da bolanha vindo juntar-se ao Dest A que já regressava a Sare Madina.

"Em Sare Madina, o Dest B seguiu em viaturas para Geba onde chegou cerca das l6H30.»


3. Esta nunca entendi. Como continuo a não entender qual foi o "sucesso” da Op Insistir. Foi comandada do PCV.

«19. Op Instar. 28 de Outubro de 1967.

"Situação particular: a do planeamento operacional da Op Insistir.

"Missão: explorar o sucesso da Op Insistir; bater a região de Sinchã Jobel

"Força executante:

Dest A - CCAÇ 1790
Dest B - CART. 1690 (a 2 Gr Comb ref. c/PEL MIL 109/C MIL 3

"Desenrolar da acção:

"Pelas 06H15 iniciou a progressão para Sucuta que atingiu cerca das 08H00. Após instalado o pessoal junto à bolanha, um Gr Comb por ordem do PCV cambou a bolanha instalando-se do outro lado, onde emboscado aguardou a chegada do Dest A. Na passagem da bolanha, após a junção dos 2 Dest. em Sucuta fez-se a progressão para Sare Madina onde o Dest B logo seguiu
de viaturas para Geba aonde chegou cerca das 16H00.»

Guiné 63/74 - P39: Sinchã Jobel II e III (Marques Lopes)

Mais dois textos de A. Marques Lopes, ex-alferes miliciano da CART 1690 (Geba), actualmente coronel (DFA) na situação de reforma:

1. Depois da minha "descoberta involuntária", mas sem surpresa para alguns, iniciaram-se algumas operações mais elaboradas com o objectivo da destruição da base de Sinchã Jobel.

Era, como vos disse, uma antiga tabanca, já destruída, sendo agora uma clareira de cerca de 2.000m2, cercada por uma mata densa, tendo a sul o Rio Gambiel, com água pelo peito e uma "ponte" submersa, isto é, dois troncos de palmeira debaixo de água, (quando fui para lá o meu guia indicou-ma, quando regressei, sem guia, tive de a descobrir); a Oeste e a Este tem várias bolanhas, uma delas mesmo perto da clareira (a tal onde durante a noite toda a minha vida me passou pelo pensamento); a Norte, até Banjara, tem uma floresta muito densa e dezenas de poilões (há lá, na Guiné-Bissau de agora, uma serração).

Nas margens do rio Gambiel e das bolanhas os guerrilheiros tinham sentinelas; pelo lado de Banjara, a floresta impenetrável tornava o acesso impossível. É claro que a base de guerrilha não estava na clareira de Sinchã Jobel (nem antes dela, pois não a encontrei quando ia para lá) mas em algum local deste contexto que vos descrevo, para Norte, muito bem situada e com óptimas condições de defesa.

Nesta fase, certamente ainda em início de implantação, é natural que os guerrilheiros só se manifestassem quando lhes parecesse conveniente (foi o que lhes pareceu quando viram trinta mecos a ir para lá...), por isso não se manifestaram nesta Operação Jigajoga 2. Além de que o seu principal objectivo era montar minas e emboscadas no itinerário Geba-Banjara e atacar os destacamentos. Mais tarde, quando fortalecidos e bem guarnecidos, creio que alargaram a sua acção até Mansabá e para o Xime e Xitole. Este enquadramento da base de Sinchã Jobel expliquei-o ao comandante do Agrupamento 1980, em Bafatá, mas, pelo que vão ver nos "próximos capítulos", não valeu de muito.


"15. OP Jigajoga 2. 31 de Agosto de 1967.

"Situação particular:

O IN tem-se revelado a sul de BBanjara, com mais intensidade nos regulados de Mansomine e Joladu. Em Sinchã Jobel possui uma base forte, que serve de apoio às suas acções.

"Missão:

-Assegura a ocupação do Sector, tendo em atenção os regulados da faixa Oeste e as linhas de infiltração que conduzem ao interior.

-Detecta, vigia ou captura elementos ou grupos suspeitos de subversão que se hajam infiltrado ou constituído no sector, impedindo que a subversão alastre.

-Captura ou aniquila os rebeldes que se venham a revelar, destruindo as suas instalações ou meios de vida e restabelece a autoridade e a ordem nas regiões afectadas.

-Armadilha os itinerários utilizados pelo IN.

"Força executante:

DEST A - CART 1690 (2 Gr Comb); CCAÇ 1685 (1 Gr Comb); CCVA 1693 (1 Gr Comb); 1 PEL SAP / CCS 1877 (2 secções); 1 PEL 109/CAÇ MIL 3

DEST B - CCS 1877 (1 Gr Comb) /CCS 1877 (1 Gr COmb); 1 PEL REC/EREC 1578.

"Desenrolar da acção:


"Em 31 de Agosto de 1967, pelas 4.30h., iniciou-se a progressão a partir de Darsalame. Durante a progressão foi batida toda a zona do itinerário, procurando vestígios e/ou trilhos que indicassem a existência do IN.

"Pelas 09H00 aproximação de Sare Tamba, os cuidados de pesquisa redobraram no sentido de localizar e assaltar o possível acampamento IN. Batida toda a mata durante 2 horas onde se supunha existir o referido acampamento, não foi possível localizá-lo nem o IN se revelou.

"No deslocamento para o objectivo pelas 11H00 foi ouvido um disparo de espingarda tipo Muaser ao longe, não sendo possível determinar a sua direcção. Continuada a batida foram encontrados restos de um camuflado IN não sendo possível, porém, encontrar mais nada. Pelas 11H50 foram ouvidos muito ao longe alguns rebentamentos fora da zona de acção.

"Por parecer mais fácil passou-se a bolanha junto a Sinchã Bolo e a seguir o Rio Jago na direcção de Sucuta (Madina Fali) onde se chegou pelas 15H00. Fez-se uma paragem para se conferir pessoal e material, porque as bolanhas foram de difícil travessia e foi a coluna atacada por um enxame de abelhas durante a transposição da primeira bolanha.

"Reiniciada a progressão em direcção a Sare Budi foi detectada pelas l6H00, em 1445 121.07H, 100 metros após a entrar na mata uma armadilha A/P a qual foi destruída pela Secção do PEL SAP/1877. Em Sare Budi no itinerário para Sare Madina foram montadas 2 armadilhas A/P cujo croqui será elaborado pelo Cmdt SAP/BCAÇ 1877.

"Continuando a progressão em direcção a Sinchã Fero Demori, não foi possível montar mais armadilhas em virtude do adiantamento da hora e não ser possível determinar o itinerário de acesso ao interior do sector desta CART.

"A chegada a Sare Banda verificou-se às 19H30, seguindo em meios auto até Geba, o que se registou às 20H30, tendo regressado às suas unidades o Gr Comb/CCAÇ 1685 e o 1 PEL SAP / CCS 1877 (2 secções)".


2. Nesta altura, as cabeças pensantes do Agrupamento [sedeado em Bafatá] já teriam concluído, e tinham provavelmente informações, que a base se situava a seguir à clareira de Sinchã Jobel, para Norte. Daí a presença de dois grupos da 5ª Companhia de Comandos para o eventual golpe de mão ao acampamento. Só que a guerrilha já se tinha também prevenido com minas A/P (já vistas na Op Jigajoga 2) e A/C como mais uma limitação no acesso à base e, ao mesmo tempo, um factor de alerta. Um dos feridos com o rebentamento de mina nesta operação foi o meu amigo Eng. Domingos Maçarico, então alferes miliciano da CART 1690, que acabou por ser evacuado para o Hospital Militar Principal da Estrela, e anda agora com uma placa de platina na cabeça.


"15. OP Jacaré. 16 de Setembro de 1967

"Situação particular:

"O IN tem-se revelado em operações realizadas nos regulados de Mansomine. Possui um acampamento forte em Sinchã Jobel que serve de base para as suas acções.

"Missão:

- Assegura a ocupação do sector, tendo em atenção os regulados da faixa Oeste e as linhas de infiltração que conduzem ao interior.

- Detecta, vigia ou captura elementos ou grupos suspeitos de subversão que se hajam infiltrado ou constituído no sector, impedindo que a subversão alastre.

- Captura ou aniquila os rebeldes que se venham a revelar, destruindo as suas instalações ou meios de vida e restabelece a autoridade e a ordem nas regiões afectadas.

"Força executante:

DEST A - CCAV 1650 (-); CART 1690 (2 Gr Comb); CCAÇ 1685 (1 Gr Comb); PEL MIL 111/C MIL 3

DEST. B - 01 PEL REC/EREC 1578.

DEST C - 2 Gr. COMANDOS.

DEST D - 1 Gr. Comb /CCS/BCAÇ 1877.

DEST E - 1 Secção / AML 1143.

DEST F - 1 Secção / AML 1143.

"Desenrolar da acção:

"Em 16 de Setembro de 1967, pelas 6H30, o Dest A menos o PEL MIL /C MIL 5 deslocou-se em meios auto em direcção a Cheüel. Após a saída de Geba uma viatura avariou, sendo o pessoal distribuído pelas outras viaturas que constituíam a coluna.

"Cerca das 08H00, uma mina anti-carro destruiu a terceira viatura da coluna a 100 metros de Chüel, projectando os ocupantes, dos quais 8 foram evacuados por Heli para o Hospital Militar 241, tendo os restantes ficado em condições de não prosseguir a operação, o mesmo acontecendo, com outros que ao saltar das viaturas se haviam magoado.

"Montada a segurança aos feridos e viaturas, procedeu-se a escolha e preparação do campo de aterragem para o Heli que imediatamente fora pedido pelo PCV [posto de controlo volante] que na altura nos sobrevoava. Posta a situação ao PCV, quanto a baixas, foi ordenado ao Dest A para regressar ao quartel depois de evacuar as viaturas, e onde chegou pelas 17H00.

"Devido à quebra do segredo foi ordenado pelo CMDT AGRUP 1980 o cancelamento da operação.»

segunda-feira, 30 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P36: Na bolanha dá para pensar... (Marques Lopes)

1. Os meus parabéns ao A. Marques Lopes pelo seu belíssimo texto que eu encontrei no sítio do Didinho e que já havia divulgado, neste meu/nosso blogue, através da indicação de um link…

Mal o descobri, logo achei que ele merecia outro destaque, partindo do princípio de que o seu autor iria autorizar-me a sua reprodução. Tinha desafiado o Marques Lopes a, num dia destes, explicar-nos o texto e o seu contexto: as circunstâncias, o dia, a hora, o local, a operação, que o levaram a escrever esta peça, de grande tensão dramática mas também de fino humor...

Ele acabou por desvendar o mistério, descrevendo-nos as circunstâncias (diria que insólitas, quiçá caricatas e até burlescas, se não tivesse sido tão dramáticas) em que se perdeu no mato e descobriu, atónito, a base do IN em Sinchã Jobel, no decurso da Operação Jigajoga, na noite de 24 para 25 de Junho de 1967 (vd. poste anterior).

É um texto de uma grande riqueza humana e de excelente recorte literário... Um texto de cortar a respiração, ao reconstruir o inferno da guerra, o infermo físico e psicólogico daquela guerra, ao mostrar o absurdo daquela guerra e das raus razões de Estado...Fiquei com a ideia de que, mais do que uma simnples página de um diário, poderia ser o excerto de um livro em curso. Um daqueles livros que se vai construindo na cabeça de cada combatente da guerra colonial na Guiné, depois de passar à peluda. Um livro que todos nós, um dia, gostaríamos de escrever e de publicar. Ou de ter escrito e de ter publicado. Um livro que gostaríamos de dar a ler, porventura com secreto prazer mas seguramente com reserva e pudor, à nossa companheira, aos nossos filhos e netos, aos nossos pais, aos nossos irmãos e e aos nossos amigos, e até aos poucos companheiros da nossa geração que não foram à guerra. Talvez um livro, ou talvez apenas um conto, um conto de guerra, em todo o caso a merecer antologia...

Espero que o nosso ex-camarada de armas continue a escrever, sobre a sua experiência militar e humana na Guiné, que foi tão rica e que lhe deixou marcas no corpo e na alma. Tudo indica, pelo que já sei dele, que foi um grande operacional e um grande sortudo, apesar de tudo. Como todos nós, que regressámos do inferno e ainda estamos vivos para contar, aos vivos, o que um homem é capaz de sentir, pensar e fazer numa situação-limite como a guerra, como aquela guerra. Pelo menos no dia 25 de Junho de 167, de manhã, na região de Sinchã Jobel, o Alferes Lopes regressou do mundo dos espíritos da floresta, e disse: "É tão bom estar vivo e saber onde estou e o que quero! Bem, Braima, rapaziada, toca a sair daqui".

Faço votos para que O A. Marques Lopoes continue a escrever, para ele, para nós e para todo o universo dos falantes da língua portuguesa, agora que, terminada a sua carreira militar, ele está, presumo, mais livre ou se sente mais livre para o fazer... Porque talento de escritor e matéria-prima não lhe faltam. L.G.

2. Na bolanha dá para pensar... (A. Marques Lopes, 2005)

(Originalmente publicado, em 13 de Fevereio de 2005, na página pessoal do guineense Fernando Casimiro, o Didinho)

Bonito! Os outros foram-se embora e aqui estamos, meia dúzia de mecos, no meio da bolanha. Tenho cada ideia, ás vezes... esta, então, de escolher a bolanha para descobrir se eles têm aqui uma base é do caraças. Que havia de fazer?... eles não nos deixaram aproximar mais por outro lado... O que vale é que não perdi o quico. Sempre me dá jeito e vou já mergulhá-lo na água, para ficar com as ideias mais frescas... Sabe di más!... Como é que eu não perdi o raio do quico no meio desta baralhada toda?!... Tem estado agarrado à minha cabeça como qualquer coisa que é parte integrante de mim mesmo... mas não é, claro. No entanto, tenho-o enfiado na cabeça de tal modo que mais parece o contrário, parece que faz parte de mim.

Tenho que pensar para ver como nos vamos safar daqui. Por agora, é de aguentar. Aqueles gajos continuam a andar por aí, que eu bem os oiço, mas não os vejo, no meio destas cortinas de capim. Se eu não os vejo, eles também não me vêem a mim... mas, é melhor não me armar em avestruz e pôr-me mas é a pau! Há barulho de passos no carreiro e na clareira e oiço cortar ramos e bater no chão. Estão a montar armadilhas, com certeza. Com uma base aqui, era o que eu faria também, para prevenir novas aproximações. Não são parvos, não senhor... e isso não me ajuda nada, pois estou a sentir-me cada vez mais entalado. Mesmo que se vão embora daqui a bocado, não me atrevo a meter-me por esses caminhos. É mais que certo que vou topar com uma armadilha, e não me agrada nada... se não lerpei até agora, não será por minha vontade que isso vai suceder daqui para a frente.

É evidente que eles não podem armadilhar toda a zona... têm de garantir o regresso do grupo que foi até à margem do rio Gambiel. Deve haver, evidentemente, um caminho não armadilhado... mas como vou adivinhar qual é? Não me atrevo a voltar por aqueles que conheço, por onde vim até aqui, pois esses estão-no, com certeza... porque são os mais evidentes. Posso procurar outros... mas quem me garante que não vou pisar uma puta duma bailarina? Não me arrisco. Tenho de pensar noutra maneira de sair daqui. Mas como?... só se me armar em Tarzan de árvore em árvore, agarrado às lianas... Havia de ter piada!... De qualquer modo, nem isso pode ser, pois lianas... cá tem. Não vi lianas em lado nenhum deste matagal. Nos filmes é que elas estão ali, mesmo à mão de semear, no sítio exacto e necessário. Mas aqui, de facto, não há nada no seu lugar devido, para me facilitar a vida.

Já lá vai o tempo em que as coisas para mim eram fáceis. Em termos de garantia de subsistência, em termos de programação de vida. Quando eu estava nos padres. Tinha tudo. Pequeno almoço, almoço e jantar a horas certas, brincadeiras e estudos programados e dirigidos. Havia, apenas, que cumprir o regulamento e ser piedoso. Mas tinha um grande contra para mim: não se podia cometer pecados.

(...) Não vou, agora, pensar nessas coisas, senão ainda me ponho aqui a rezar em vez de puxar pela cabeça e ver se nos safamos... O mapa, o mapinha que trago sempre comigo quando venho para estas coisas! Sou um gajo cumpridor das regras...Goza, goza, mas o facto é que o mapa me vai fazer jeito. Braima, dá-me aí o mapa. Sare Ganá... Sinchã Sutu aqui... a picada para sul e, aqui à direita, o desvio de Sare Madina... mais à frente... aqui está Sucuta, a bolanha e o rio Gambiel... que atravessámos com cuidado, por cima do troco submerso... avançámos por este carreiro... e aqui está Jobel... Sinchã Jobel, como vem aqui no mapa!... Aqui, no extremo da clareira, foi a emboscada... e cá está assinalado o palmeiral e, ao lado, a bolanha onde... por aqui, mais ou menos... estou com o cú de molho!... E estou mesmo todo encharcado, pés, botas, calças... Debaixo deste sol, o melhor seria estar só com a cabeça de fora, como as rãs. Mas não pode ser. Já não é mau ter o material ao fresco.

A nossa posição, pelo que estou a ver no mapa, não é famosa. A bolanha, que deve ter servido para as culturas de arroz de Jobel, vai até ao rio Gambiel, formando no encontro com ele um ângulo recto. Portanto, segue paralelamente ao caminho por onde vim para chegar ao local da tabanca. Esta bolanha é uma espécie de braço do rio na época das chuvas, mas na época seca tem mais capim que água. Está à vista. Assim sendo, e se estou a ver bem, se regressarmos ao longo e por dentro da bolanha, vamos ter a umas centenas de metros mais a norte do sítio onde atravessámos o rio. E tem mesmo de ser assim. Não vejo outra alternativa mais segura. E também me parece que, se o local de atravessar o rio era aquele que me indicou o guia quando viemos para cá, é porque não havia outro mais acima. Não, não estou disposto a correr o risco de atravessar noutro sítio que não seja o que já conheço. Esta bolanha não a conheço e não tenho, portanto, outra alternativa senão ir por ela, com cuidado, só se tiver azar é que vou cair nalgum buraco. Mas, quando chegar ao rio, já sei que há um lugar seguro para passar, Sucuta. Temos de descer até lá. Um rio não é uma bolanha, para se ir assim à aventura.

Tem que ser. Descemos a bolanha até ao rio e vamos passá-lo no mesmo sítio da vinda. O problema é que, se nos pomos agora a andar pela bolanha abaixo, caçam-nos que nem patos na água. Topam-nos no meio e é só apontar calmamente. Quer dizer que não posso largar daqui em pleno dia. Não tropeço numa mina nem caio num buraco, mas o mais certo é não dar dois passos sem levar uma rajada nas costas. Merda! Será que tenho mesmo de fazer isto à noite, cair num buraco e enfiar-me pelo rio dentro?... Puta de vida! Mas, não, não posso estar condenado, tem de haver uma saída. Deixa pensar mais um bocado. Vou refrescar os miolos outra vez... mais uma chapelada de água... Parece sopa, mas é mesmo boa! A vantagem de ter abancado neste charco é que tenho água para me refrescar, quanta quiser.

(...) A única possibilidade que temos de nos safar daqui é arrancar amanhã muito cedo. Às 5,30 já se começa a ver alguma coisa. Já podemos ir vendo onde pôr os pés e orientar-nos... além de que, segundo dizem os manuais, as sentinelas têm tendência para abrandar a vigilância pela madrugada e deixarem-se adormecer antes de despontar a aurora... Terá de ser nessa altura que vamos desandar daqui p´ra fora. E oxalá os gajos não tenham lido os manuais também!...

(...) Que calor infernal faz aqui no meio do capim! O sol e o ar quente entranham-se por entre os caules e permanecem também eles poisados sobre a água. Não há a mais leve aragem. A estagnação é total, na água e no ar. Afinal, não é nada bom estar aqui de molho... As rãs devem sentir-se melhor, com certeza, mas eu mais pareço uma azeitona em água parada, opaca e gordurosa. Começo a ter sede. Não trouxe o cantil, pois não contava com esta variante no programa das festas. A estas horas já eu devia estar a comer um bom bife de vaca, isto é, um bife dos cornos da vaca... nesta terra parece que não há carne tenra. De qualquer modo, com batatas fritas e empurrado com cerveja, com muita cerveja, não há nada que não entre pelas goelas adentro. E cerveja não falta para a tropa. Valha-nos isso... Afinal, lamento-me com sede, mas estou rodeado de água por todos os lados, como as ilhas. É só enfiar a cabeça no charco e abrir as goelas... Mas há por todo o tipo de bicharada. Eu seja cão se vou beber esta porcaria. Prefiro beber mijo.

Há vozes e barulho. O IN continua por aqui, a rebuscar no mato e a montar armadilhas. O tipo que eu vi com um penso no braço e companhia não vão largar tão cedo. Devem estar bastante confiantes, uma vez que não largam este sítio e não se preocupam com o barulho que fazem. Devem ter montado uma sentinela do lado de cá do rio. Sabendo de qualquer avanço, poderão organizar a defesa ou montar emboscadas com facilidade e segurança. Este local é de acesso muito difícil. Segundo o mapa, só de um lado é que não está cercado de matagal. É o lado da bolanha e do rio. E mesmo este é um bom bico d'obra. Tenho de aguentar e ver, pois eles não estão com vontade de se ir embora.

Relax e esquece o IN... O IN! Toda a gente usa isto. É mais fácil dizer IN do que "inimigo". Acho que é por isso que usamos estas abreviaturas... No entanto, tornando mais fácil a referência àqueles ou àquele de quem falamos, o "in" e o "turra" são, de facto, expressões meramente referenciais e sem o significado profundo contido nas palavras "inimigo" e "terrorista". Se não abreviasse, é claro que eu acabava por me cansar a pronunciar as palavras por inteiro. Passaria, enfim, a tratá-los com demasiada familiaridade, teria que me arrimar aos inevitáveis "os gajos", ou "os tipos" ou mesmo "os filhos da puta". Era tratá-los como trato, às vezes, os que me são indiferentes, os que me pisam ou dão um empurrão... Isto seria, seguramente, o abandalhamento da guerra. Em vez de balas a malta começava a amandar-lhes com nomes feios, a gritar-lhes que fossem levar no olho, que não chateassem, que nos deixassem em paz... Era complicado. Não havia guerra que durasse. Poderia ser uma das consequências, resultante do cansaço pelas palavras difíceis e compridas demais para inserir na linguagem corrente da soldadesca. E poderia dar noutra coisa, se o maralhal não usasse profusamente estas abreviaturas: ao pronunciar por inteiro as palavras "inimigo" e "terrorista" é natural que começássemos a interrogar-nos sobre a correspondência entre o significado e o significante... Ai estas aulas de Linguística!... O que é isso de "inimigo"? Aqui, na terra deles, são eles meu inimigo?... Atacam-me para me roubar, para ficar com o que é meu?... Têm interesses opostos aos meus e atacam-me, por isso?... Para eles, sou eu o inimigo? Venho roubar o que é deles? Tenho interesses opostos aos deles?... Claro, cinco séculos de história, civilização, blá, blá, blá..., como diz o Salazar. O facto é que isso se traduz nos libaneses a dominar o comércio, no nazi Landorf, fugido da Alemanha depois da guerra, a vender quinquilharias aos pretos de Geba. Eu, aqui, só estou a perder uma coisa: o curso de Filologia Românica que estes filhos da puta não me deixaram continuar. ... Não me parece que o "in" seja meu "inimigo". Eu sou, com certeza, o "inimigo" deles. Linguística à parte, isto é mesmo uma situação aberrante.

(...) Há pouco, quando os vi ali todos juntos, ainda pensei em disparar. Acabei por não o fazer e acho que fiz bem. É claro que eles devem ser muitos mais do que os que andam por aqui... E, sei lá, disparar, assim à queima-roupa sem que eles esperassem, sem mais, ainda era capaz de ficar com algum peso na consciência... Os meus anseios nunca foram matar. Só por medo o faria, por necessidade, pela situação. Tenho encarado isto como uma aventura. A verdade é que nunca desejei vir para a guerra. Se me tivessem dado o adiamento da incorporação, estaria, agora, a terminar o segundo ano de Românicas. Eu até gostava daquilo. Mas aos senhores da guerra não interessam os doutores em Letras. Se eu estivesse em Engenharia ou Medicina, isso sim... há sempre pernas e braços para cortar, certidões de óbito para passar, há que fazer quartéis, arame farpado para erguer e picadas para abrir. Para os doutores ou candidatos de Letras há que pôr-lhes mas é uma canhota nas mãos. Na guerra não servem para mais nada...

(...) Se eu tivesse continuado nos padres, o mais certo era não ter vindo à guerra ou, então, vinha como capelão, um ofício que, aliás, também faz muito jeito na guerra. Há preconceitos a alimentar, consciências a adormecer e angústias para apaziguar. Sou vítima da vingança concertada dos senhores da guerra e dos senhores da consciência: já que não quiseste reconhecer os imensos benefícios da religião, sentir a honra de pertencer ao número dos eleitos, vais sentir as agruras da guerra... que é um inferno na terra.

(...) Dentro em breve será noite. Já se estendeu sobre a bolanha um manto enorme de sombras, sinal de que o sol se começou a esconder por detrás da grande floresta de poilões que rodeiam a clareira de Jobel.

Já não estou tão calmo e seguro. A previsão do perigo eminente, a expectativa da emboscada ou do ataque repentinos não são nada comparados com um perigo que nos rodeia mas que não sabemos qual é, nada em comparação com este manto de escuridão que se abate sobre nós, que se entranha na minha farda, que me cobre as mãos, as pernas, o local onde estou. As trevas, meu Deus, é o pior que me pode acontecer. Mil vezes a emboscada que desaba sobre o grupo, mas que eu vejo, que acabo por limitar em todas as suas proporções, do que o perigo que só se imagina mas que nunca se vê, nem mesmo quando está em cima de nós.

Nesta terra de ténues ondulações a noite surge depressa. Começo a não distinguir as minhas próprias mãos. Não percebo como os outros ao longe as poderão ver. Mas vou fazer o que mandam as regras, barrá-las, e à cara também, com esta lama onde me assento. Mas, antes, vou beber desta água que me tem de molho há várias horas. Os outros já estão também com falta de água...Que remédio, tenho sede. Nunca a fome me atacou durante todo este tempo, mas a sede é um tormento e eu quero que se lixe a limpeza. Vou mesmo beber esta água, agora que já não consigo ver o seu grau de sujidade e inquinação.

Os sons nocturnos assumem proporções descomunais em relação aos diurnos. Aquilo que durante o dia me parece uma grande algaraviada, uma sinfonia de cacofonias, aparece-me agora como uma execução em estereofonia. Consigo distinguir todos os sons e vozes de pássaros. Aquilo que me parecia uniforme na promiscuidade de vozes aparece-me agora como o conjunto de várias espécies de pássaros e mamíferos. Não sei identificá-los pelo nome, a não ser o dos macacos, mas sou capaz de os contar através das diferenças de vozes. Na margem da bolanha, entre as árvores, são os macacos e os periquitos que dominam. Aqui, por aqui mais perto, são as moscas e mosquitos que não cessam de zumbir aos meus ouvidos. De vez em quando há um ruído na água. Pode ser um peixe a saltar, mas também pode não ser... Ao longe, um pássaro, penso eu que é um pássaro, lança um pipilar modulado que mais me parece um uivo de lobo. Mas, segundo sei, aqui na Guiné não há desses bichos...

Quem me dera a mim que se ouvissem só os macacos, os periquitos, as moscas e os mosquitos! O que me enerva e causa medo são os mil sons que eu desconheço. Este borbulhar na água pode ser uma cobra e aquele chapinhar mais além pode ser um javali, o resfolegar que vem das palmeiras pode ser uma onça...

Lá mais para a frente, do outro lado da clareira, precisamente daquele sítio onde os guerrilheiros montaram a emboscada, vêm ruídos que parecem provocados por pessoas. Ia jurar que há uma tabanca para estes lados... Como é que eu não me apercebi destes ruídos durante o dia? Seria mais lógico que os ouvisse melhor , uma vez que as pessoas fazem mais barulho durante o dia do que à noite. As marteladas, ou outras pancadas em madeira, deveriam ser mais audíveis durante o dia, quando não há tanta preocupação em manter o silêncio, em não incomodar. A explicação tem de ser esta: a tal enorme cacofonia diurna, que não deixa qualquer hipótese de identificação dos sons a que nos habituámos no nosso dia-a-dia. Porque a noite não deve ter sons, qualquer um que surja é identificável e sobressai no meio do silêncio, como milhares de pirilampos que, apesar de minúsculos, sobressaem na escuridão sem, no entanto, se conseguirem juntar num sol que torne a noite em dia.

Distingo perfeitamente os toques na madeira. Pilão ou martelo, é bater de gente. E surgem agora sons que só podem ser vozes de gente também. Então, contrariamente ao que me garantiram, esta zona não é desabitada! Isto explica a emboscada. Entrei no terreno deles, com tanto à vontade... e estupidez! Tenho de falar com o palerma do major de operações... se conseguir sair daqui.

(...) De olhar no escuro, tentando fazer luz com os olhos e com a mente, ver mais além do que esta escuridão me permite, na expectativa. Esta noite faz-me lembrar outras noites que passei à janela, de olhar perdido no escuro ou na barreira de ciprestes que cercavam aquele pequeno mundo do seminário. Mas bem pior estava então, apesar de tudo. Neste momento, estou esperando, pacientemente; nervoso, mas não desesperado; receoso, mas não em pânico; sozinho, mas não perdido. Não estou triste, não choro e não desejo a morte. Pelo contrário. Impaciente, desesperado, perdido, em pânico e desejando a morte... assim era eu, não há muito tempo. Passaram-se apenas três anos. Tinha vinte anos e não tinha outros horizontes senão uma vida de torturas e recalcamentos, ou o inferno como alternativa.

Mais do que as obrigatórias meditações em conjunto no seminário, no meio dos maus cheiros dos "irmãos em Cristo", de olhos fechados em atitude piedosa, este é o ambiente ideal para meditar, ligado pela escuridão à natureza. Naquelas mais de mil noites nunca consegui estar sozinho, apesar de me lamentar de uma solidão terrífica. Os outros e a organização estavam sempre presentes em mim, quando lutava sozinho para me ver livre deles. Por isso mesmo. Enquanto tive dúvidas nunca me largaram. Só me deixaram quando eu passei a ter a certeza do que queria e do que não queria.

Aqui, na guerra, não há outra coisa que me ligue aos outros a não ser o desejo de sobrevivência, e este desejo liga-me efectivamente, mas não o sinto como prisão. Pelo contrário, liberta-me para este tipo de meditações, para aceitar e tirar partido desta noite, para estar com todos no desejo de regressar, de não morrer, de viver. Lá, não. Os laços que me prendiam aos outros só me arrastavam para desejos de morrer e de os odiar. Aqui, na guerra, não há perigo de ter dúvidas, a certeza surge-nos dos factos do dia-a-dia. É tudo muito real, muito directo, entra-nos pelos olhos dentro, por todos os sentidos. Quando se nos revela assim, e surge sempre, mais tarde ou mais cedo, é um facto que faz parte de nós e é, portanto, uma certeza. Quando vim para cá não sabia nada o que era esta guerra. Mas já estou a saber o que é.

Tenho-me interrogado variadas vezes sobre as razões por que entrei para o seminário. Mais para carpir uma mágoa por um passo mal dado do que para tentar esclarecer aquilo que já sei. Foi a minha condição de menino pobre que me pôs perante essa necessidade. Mas nem por isso, naturalmente, fui responsável por essa decisão. A necessidade foi dos meus pais, que aproveitaram o desejo de um padre que se arvorou em meu protector. As pressões daí decorrentes, o meio em que passei a ter de me mover, fizeram o resto. À distância, sinto em mim uma grande mágoa por não ter conseguido libertar-me mais cedo dessa catástrofe que sucedeu na minha vida. Mas, nem sei se poderia ter sido diferente. Para quem tinha fome, para quem passava o dia com uma fatia de pão com margarina ou, mais do que uma vez, com uma côdea seca, era impossível recusar a possibilidade de ter refeições a tempo e horas. Como não aceitar a perspectiva do café com leite e pão com marmelada, da sopa, da carne e do peixe, se cheguei, quando era puto, a ter que andar aos caixotes?... Já tenho desejado muitas vezes não acreditar em Deus. Mas não consigo. Numa guerra, nesta guerra em que me encontro como interveniente activo, a fuga, os desejos, a esperança, a ideia de quem morre são os outros e não eu, tudo está depositado em Deus, que me há-de proteger e guardar... Mas porquê a mim e não aos outros?... aos que morreram, aos que ficaram sem braços e sem pernas, aos que ficaram cegos e aos que ficaram loucos? É uma dúvida e, ao mesmo tempo, uma incompreensão muito funda que se afoga e perde naquilo que a minha formação religiosa chama "os insondáveis desígnios de Deus"... Quer dizer que, se eu morrer ou ficar estropeado, foi desígnio de Deus, se eu sair bem disto tudo, será também vontade de Deus. E posso, desta maneira, encontrar em Deus a "explicação" de todas as coisas, poderei continuar tranquilamente a fazer a guerra. Posso matar, porque nos desígnios de Deus tanto pode estar o castigo como o prémio. O desígnio que eu mate, o desígnio que o outro morra. O prémio para mim que matei e não morri e o castigo para o outro que não me matou e morreu? Ou serei eu castigado porque matei e o outro terá um prémio na outra vida porque não me matou? Se eu comparecer perante Deus, durante ou após esta guerra, serei condenado às penas eternas ou entrarei no rol dos bem-aventurados? Serei condenado ou premiado se tiver obedecido aos meus "legítimos superiores", àqueles que " têm sobre si a pesada responsabilidade de governar e mandar"? Serei condenado ou premiado se lhes desobedecer e não matar?

"A Deus o que é de Deus e a César o que é de César". A citação fatal do director do instituto filosófico onde andei, quando seminarista, o qual, desta forma, tentava calar as minhas dúvidas. Que confusão, se o que interessa a César vai contra o mandamento "não matarás"! É uma resposta hipócrita. Procura justificar a passividade da Igreja perante a guerra... Ou consentimento? Como admitir que a Igreja abençoe a guerra? Antes de vir para a Guiné, o meu batalhão foi obrigado - é o termo - a assistir a uma missa na parada do quartel. Tal como no tempo das cruzadas, quando se partia para combater os infiéis e libertar os lugares santos. O padre capelão, o senhor major-capelão, fez uma eloquente exortação ao cumprimento do dever para com a pátria, da necessidade de defender os valores da civilização ocidental e o património legado pelos nossos antepassados... enfim, a mesma conversa dos senhores da política, abstracta, situada em algo que não me toca, em valores que não compreendo, em património que não possuo. E, ainda por cima, era um dos padres do seminário onde andei, um que eu bem conhecia.

Pode a Igreja justificar a sua atitude perante a guerra pela necessidade que há de acompanhar, assistir os soldados que passam dias e meses, anos até, de profunda angústia e desespero? Que o objectivo não é apoiar a guerra, mas sim servir de consolo religioso a quem necessita da religião? Para mim, não serve. Tentando diluir as contradições que naturalmente emergem da mente de quem é religioso, está-se a colaborar na manutenção de uma situação que o soldado não deseja instintivamente, está-se a diluir as dificuldades para que essa situação indesejável se mantenha o máximo possível. E, o que é mais grave para mim, não se responde às angústias e interrogações de quem se vê confrontado com uma realidade que é pura negação de tudo o que lhe incutiram de bom, de justiça, de amor, de fraternidade. Utilizando uma única frase dos Evangelhos - dar a César o que é de César - subverte-se todo o restante texto dos livros sagrados. Por oportunismo, pela mais rematada hipocrisia. São muitas as críticas que tenho a fazer àqueles que dizem representar-te cá na terra, ó Deus. Mas confio que me hás-de ajudar a sair deste aperto.

Tenho os membros anquilosados de tanta imobilidade. A pele das mãos está toda encarquilhada pelo permanente e prolongado contacto com a água. O mesmo deve suceder com os pés e com o material, devo ter tudo mirrado e encolhido.... Sinto nas mãos, nos braços e pelo corpo todo uma imensa comichão que, curiosamente, nunca tive vontade de coçar. Estou cheio de bolhas e ampolas, que só vejo nos braços e nas mãos mas que devem estar por todo o corpo, até na cara. À minha volta há milhares, talvez milhões de mosquitos e moscas tzé-tzé. A minha esperança é que só tenha sido picado por novecentas e noventa e nove moscas do sono... segundo dizem as estatísticas, só uma em mil é portadora da doença do sono, não é?... De qualquer modo, não sei se me fariam efeito: estou tão cheio de vacinas contra tudo que essa tal milésima, se me picou, deve ter morrido entoxicada, com certeza...

Devo ser um nojo completo. Uma merda da cintura para baixo.

(...) Começa a surgir uma luminosidade por detrás das palmeiras, uma luz branca muito mortiça. Por aqui, começo a vislumbrar uma neblina leitosa a empastar a bolanha. Há outro silêncio neste despertar da mata e dos seres que a povoam. Imagino-os dolentes, agora conscientemente enrolados sobre si mesmos, sem se mexerem, como fazem inconscientemente durante o sono. Procuram forçar o prolongamento desse sono. Por isso, este, agitado ou tranquilo, deu lugar a modorra prolongada e estática, intencionalmente silenciosa, para não acordar. No entanto, porque não é só o ouvido que está desperto e atento, como sucede na mais completa escuridão, toda esta imensa calma que precede a agitação e luta de mais um dia na vida da natureza é apenas perceptível ao nível dos sentimentos mais íntimos do meu ser, pois a luz que penetra nos meus olhos desperta nestes uma segunda dimensão que faz sentir as coisas de uma forma avassaladora e total. Tudo aquilo que povoou a minha mente, os ruídos que se apossaram de mim através do ouvido, tudo isso passou a estar submerso pela impressão visual do que me é exterior. Durante estas horas de vigília nocturna estive dominado e cercado por mim mesmo, por toda a minha vida, pelo passado.

Agora não. Sinto que tudo se vai diluindo, que a realidade externa se apossa de mim, que a posse da totalidade dos meus sentidos me introduz novamente no seio do meu destino, composto também de exterior. É uma visão "ruidosa", na medida em que este contacto com a realidade da manhã consegue abafar o domínio exclusivista do ouvido e do raciocínio. O conjunto harmonioso da vida não deixará que prevaleçam as sensações parcelares e limitadas. A total percepção da realidade não deixará que me deixe dominar por um único dos seus aspectos. A prefeita e clara percepção em todos os sentidos, agora, não deixará que me domine o medo do desconhecido ou do indefinido. É tão bom estar vivo e saber onde estou e o que quero!

Bem, Braima, rapaziada, toca a sair daqui.


A. Marques Lopes

Guiné 63/74 - P35: Uma estória de Sinchã Jobel ou a noite em que o Alferes Lopes dormiu na bolanha (1967)

Texto de A. Marques Lopes, coronel (DAF) na situção de reforma, ex-alferes miliciano da CART 1690 (1967/1969) e actual membro da direcção da Delegação do norte da Associação 25 de Abril:


1. Na primeira metade de 1967, o PAIGC montou uma base de guerrilha em Sinchã Jobel. Sem querer (vocês vão ver), fui eu que dei com ela. O responsável militar dessa base era o Comandante Lúcio Soares, que foi, depois da independência, Ministro da Defesa; o responsável político era Cabral de Almada, conhecido como Comandante Gazela, que foi Vice-Presidente da Assembleia Nacional Popular.

Quando estive na Guiné-Bissau, em 1998, pouco antes do golpe de Ansumane Mané, tive uma conversa muito interessante com o Comandante Gazela: lembrámos muita coisa sobre Sinchã Jobel, falámos dos problemas do povo guineense, concordámos que era melhor não termos andado aos tiros uns aos outros (pediu-me desculpa por me ter mandado para o hospital, “mas teve de ser assim”...)... e demos um abraço de despedida.

O objectivo do que mando hoje é lembrar tudo aquilo que nenhum de nós pode esquecer. Para mim também pode ser a, tão vilipendiada por alguns, catarse de mágoas e fantasmas, não tenho problemas em ter consciência daquilo que fui e daquilo que sou. Sobre isto, o nosso caro amigo Professor Luís Graça é que nos pode falar (procurem na Internet os seus impressionantes curricula, académico e profissional).

"Operação Jigajoga. 24 de Junho de 1967:


"Situação particular:

"O IN tem-se revelado em operações realizadas no regulado de Mansomine, ataques a tabancas, a aquartelamentos e outras flagelações. Deve existir algum acampamento que lhe sirva de base para a execução de acções sobre as NT e populações que nos são fieis.

"Missão:

"Assegura a ocupação do Sector, tendo em atenção os regulados da faixa Oeste e as linhas de infiltração que conduzam ao interior. Detecta, vigia ou captura elementos ou grupos suspeitos de subversão que se hajam infiltrado ou constituído no sector, impedindo que a subversão alastre. Captura ou aniquila os rebeldes que se venham a revelar, destruindo as suas instalações ou meios de vida e restabelece a autoridade e a ordem nas regiões afectadas.

"Força executante:

1 Gr Comb da CART 1690 reforçada 1 PEL MIL/CMIL 3
1 PEL do EREC 1578

"Desenrolar da acção:


"O PEL REC/EREC 1578 saiu de Bafatá pelas 05H00, tendo-se-lhe reunido em Sare Geba o Gr Comb da CART 1690 e em Sare Gana o PEL MIL. Entretanto o Dest da CMIL 3 em Sare Madina efectuava a picagem do itinerário Sare Madina-Ponte Rio Gambiel.

"Em Sucuta (Madina Fali) o Dest A iniciou a progressão apeada em direcção a Sinhã Jobel e o Dest B o patrulhamento do itinerário Cheuel - Ponte Rio Gambiel. Depois de atravessar a bolanha de Sucuta, o Dest A detectou pegadas bastantes recentes, deduzindo que se tratasse de una sentinela IN. Junto a Sinchã Jobel as NT foram emboscadas por um grupo IN numeroso, com mort. 82, LGF, MP e Amas Aut., tendo sofrido um ferido grave e 5 feridos ligeiros. Da reacção das NT o IN sofreu 3 mortos confirmados e 3 prováveis.

"Em consequência do pequeno efectivo das NT, da manobra efectuada com pequenos grupos, do grande potencial de fogo IN e da mata bastante densa desapareceu o Cmdt do Dest A, Alferes Lopes, que havia saído de um grupo de manobra para ir a outro trazer um LGF. Como o grupo já não se encontrasse no local previsto pelo Cmdt do Dest A, este viu-se sozinho e a ser alvejado pelo fogo IN pelo que se internou na mata. Pelo que em cada grupo se pensava que o Cmdt. estava no outro, não foi dado grande importância ao facto. Só depois de reunidos todos os grupos se verificou a falta do Cmdt. O furriel, agora Cmdt do grupo de combate, resolveu - porque sendo o seu efectivo reduzido, para o potencial de fogo IN, porque tendo 6 feridos, um dos quais grave e tendo ainda LGF avariado - regressar a Sucuta para pedir reforços. Em Sucuta, onde já se encontrava o Dest B ao corrente do sucedido por via rádio, foi resolvido pedir reforços ao Comando do BCAÇ 1877.

"Comunicado ao Comando do BCAÇ 1877, saiu imediatamente um Gr Comb /CCS constituído pelo PEL REC Inf e pelo PEL Sap. que juntamente com forças da CART 1690 efectuou uma batida na área de Sinchã Jobel até cerca das 21H30, sem resultado e sem contacto com o IN. As forças empenhadas na batida e o PEL EREC, que estava a fazer a segurança às viaturas e o patrulhamento do itinerário Cheuel-Ponte Rio Gambiel regressaram a Geba e Bafatá cerca das 23H30.

"Pelas 09H30 do dia 25 saiu o Gr Comb/CCS/BCAÇ 1877 que, juntamente com as forças da CART 1690, iriam novamente bater a zona de Sinchã Jobel. Ao chegar a Sare Geba foi-lhes comunicado que o Alferes Lopes já tinha aparecido, tendo o Gr Comb/CCS regressado a Bafatá.

Resultados obtidos:

-A detecção de um grupo IN numeroso e bem armado na região;
-A morte confirmada de 3 elementos IN mortos e alguns feridos prováveis.»

2. Foi o meu dia de S. João em 1967. O Alferes Lopes referido era eu. Fui o principal interveniente, mas não fui eu que fiz o relatório (foi feito antes de eu aparecer e enviado para Bissau logo que apareci, e eu fui dado como desaparecido em combate antes de aparecer).

O que sucedeu é que eu tive uma certa sensação de perigo (o subconsciente a funcionar?...) e deixei duas secções na clareira de Sinchão Jobel (onde havia essa aldeia, mas que estava destruída já) e avancei eu e um furriel com outra para atravessar a clareira. Talvez um dia, quando eu acabar de escrever a minha estória, se saiba tudo o que aconteceu. Não vale a pena referir todas as inverdades nele contidas - há gente ainda viva e culpas no cartório. Só uma: eu que estive lá e que passei lá toda a noite (vejam a minha lembrança dessa noite em Na bolanaha dá para pensar...). Eu sei muito bem que não morreram nem ficaram feridos quaisquer elementos do IN!

E uma outra coisa: como podem ver pelo início do relatório ("Situação particular"), os burocratas já suspeitavam que podia haver ali uma base de guerrilha. MAS NÃO ME DISSERAM NADA! Eu e trinta mecos fomos carne para canhão!! Por alguma razão deram à operação o nome de Jigajoga: em qualquer dicionário de português, quer dizer jogo da cabra-cega, ou, em sentido figurado, ludíbrio, engano, coisa pouco firme... Foi assim que nos trataram.
Vou contando, depois, mais estórias de Sinchã Jobel.

Um abraço. A. Marques Lopes