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terça-feira, 20 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9631: (In)citações (38): Para uma leitura não-etnocêntrica dos nossos usos e costumes: o caso do casamento tradicional entre os guineenses (Cherno Baldé)



Nota de 50 escudos, emitida pelo banco emissor da Guiné, em 1971, o Banco Nacional Ultramarino (BNU)


 Nota de 100 pesos, emitida em 1990 pelo Banco Central da Guiné-Bissau. Efígie de Domingos Ramos, guerrilheiro do PAIGC morto em Madina do Boé em 1966.






1. Comentário do nosso amigo Cherno Baldé ao poste P9623:


Caro António,


A descrição que fazes da tua estadia na Guiné é muito interessante e tocou-me particularmente porque, também, fui  jubi e  faxina de condutores de um aquartelamento de metropolitanos,  em Fajonquito (1969/74), região de Bafatá, como o foi o teu amigo Sherifo.

No entanto, tenho duas observações a fazer do actual Poste e que, com alguma frequência, tenho lido em vários escritos de ex-combatentes:

Primeiro, referindo-te à moeda local, falas de "Pesos". Na verdade, a moeda que circulava na época colonial, até 1974,  era o "Escudo" e nãoo  "Peso", que foi instituido em meados de 1975/76, depois da independência.

Em segundo lugar, falas de uma menina que alegadamente "estaria vendida",  provavelmente para casamento. Esta interpretação, muito frequente entre os metropolitanos, resulta de uma leitura muito errada dos nossos usos e costumes, enfim da prá
tica relacionada com os casamentos arranjados e muitas vezes celebrados sem consulta e acordo prévio dos principais interessados.

Este tema é do foro cultural e antropológico,  do qual poucos de nós temos a preparação necessária para sua correta compreensão e interpretação, pelo que devemos ter os cuidados necessários no seu tratamento para nao ofender aos outros de uma forma gratuita e desnecessária.

Um casamento, seja ele "civilizado" ou "primitivo",  deve ser visto, sempre, como um contrato social entre partes cujas cláusulas podem ser diferentes e porventura, mais ou menos (in)justas, mais ou menos liberais. Mas nunca é um negócio de compra e venda como, erradamente, se pode supor pelas primeiras aparências de superfície. Se isto fosse verdadeiro, então não haveria lugar para os divórcios que, também, são uma realidade palpável e cada vez mais frequente, ao contrário do casamento cristão e "civilizado" em que os homens não são chamados a intervir. 


[Foto acima: pintura do nosso camarada Jaime Machado, ex-Alf Mil Cav no Pel Rec Daimler 2046, em Bambadinca, 1968/70].


Um abraço de encorajamento,

Cherno Baldé
________________

Nota do editor:

 

terça-feira, 20 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6766: (Ex)citações (86): Casei com uma rapariga de Quelimane, por acaso branca (eu acho que nós, portugueses, somos todos mestiços) (Alpoim Calvão)

1. Comentário ao poste P6640 (*), assinado pelo comandante Guilherme de Alpoim Calvão (aqui na na foto à esquerda, entre dois membros da nossa Tabanca Grande, o João Parreira, de costas, e o Mário Dias, de perfil; local e data: Museu Militar, 15 de Abril de 2010, sessão de lançamento do livro do Amadu Djaló):

Caros camaradas de armas, só pó falar do meu caso pessoal mas casei com uma rapariga de Quelimane [, capital da Zambézia, Moçambique], por acaso branca (eu acho que nós, portugueses,  somos todos mestiços) em Março de 1958, tendo eu o posto de segundo tenente. Continuo casado com ela.

As legislações representam por vezes modas de épocas. O que interessa é que se aperfeiçoem.Ou então continuaríamos com os preceitos de tempos idos em que o sargento da companhia devia saber ler e escrever porque o oficial, por ser nobre, podia não saber.

De Bissau vos mando "muito saudar" e mantenhas, Alpoim Calvão (O teclado he para ingles. As minhas desculpas

[Fixação / revisão de texto / título: L.G.] (**)

__________

Notas de L.G.:

(*) 20 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6440: Da Suécia com saudade (23): O estatuto dos Oficiais do Exército há 60 anos, que não podiam casar com mulheres brancas, nascidas nas colónias, mesmo que filhas de casais brancos (José Belo)

(**) Último poste desta série:  15 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6744: (Ex)citações (68): Fomos muito mais bandos de pardais à solta do que colónias de abutres e aves de rapina (António Graça de Abreu)

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6474: Casamento dos oficiais do Exército discutido, em 1941, na Assembleia Nacional (Carlos Cordeiro)

1. O Carlos Cordeiro, que é membro da nossa Tabanca Grande e professor de história (*), mandou-nos este texto, que agradecemos e  publicamos:

Data: 24 de Maio de 2010 03:19

Assunto: Casamento dos oficiais do Exército discutido, em 1941, na Assembleia Nacional

Caro Luís,

Na sequência do e-mail em que me falaste na possibilidade de mandar um poste sobre o casamento dos oficiais do Exército, envio-te este texto. Sei que está grande, mas fiz o mais pequeno que pude. É só para dar um certo tom da situação.

Propositadamente não entrei em análises críticas (à excepção de uma ou outra expressão). Parece-me que as transcrições falam por si. Estás, como não podia deixar de ser, à vontade para fazeres do texto o que achares melhor, até porque não sei se se trata de um trabalho adequado à natureza do blogue.

Um abraço (também para ti, Carlos)

2.Texto de Carlos Cordeiro:


 Caros camaradas:

O poste de José Belo sobre o casamento dos oficiais do Exército (P. 6440, de 20 de Maio) fez-me pensar e querer saber um pouco mais sobre o assunto. Nos comentários que fiz ao poste forneci as indicações das páginas da Internet que podiam ser consultadas para nos elucidar sobre a questão. Aí vai um pequeno resumo dos postes que consultei.

O Decreto-Lei 31107, publicado no Diário do Governo de 18 de Janeiro de 1941, que regulamentava o casamento dos militares, foi submetido à Assembleia Nacional para ratificação. A discussão prolongou-se por duas sessões (5/2/41 e 6/2/41) e gerou grande celeuma.

Note-se que a legislação em vigor para o Exército datava de 1851 (Decreto de 10 de Dezembro de 1851), que exigia, para os oficiais, a idade mínima de casamento de 30 anos, excepto se o requerente provasse que o casal tinha um rendimento líquido anual de 300.000 réis de bens do carácter dotal.

A legislação para a Armada constava do Decreto 16349, de 1929. Era exigida a idade mínima de 25 anos, ou de 21, caso o militar provasse que, além dos respectivos vencimentos, o casal tinha um rendimento anual mínimo de 6000$00 resultantes de bens próprios.

As questões suscitadas nas intervenções na Assembleia Nacional são, fundamentalmente, as seguintes:

(i) A exigência da idade mínima de 25 anos e o posto de tenente.

(ii) A obrigatoriedade de prova de que ambos os membros do casal possuíam rendimentos condizentes com o respectivo posto.

(iii) A proibição do casamento do oficial com divorciada, sendo, porém, permitido ao oficial casar-se, mesmo que fosse divorciado.

(iv) A demonstração de que a noiva era “portuguesa originária”, “filha de pais europeus”.

(v) A consideração, para que o casamento fosse autorizado, da “situação social da mulher, do seu passado e de sua família”.

Um primeiro grupo de deputados é fortemente crítico ao articulado, mas note-se que nem sempre numa perspectiva “progressista”, se assim se pode dizer. Alguns, por exemplo, ao abordarem o divórcio, referiam-se à “igualdade”, mas não entre os sexos, mas sim entre os oficiais da Armada (que podiam casar­‑se com divorciadas) e do Exército, ainda que outros deputados levantassem o problema na perspectiva da igualdade perante a lei.

Relativamente à exigência de a noiva ser filha de pais europeus, o deputado Belfort Cerqueira afirma mesmo que tal lhe parecia “conter um sabor pronunciadamente racista, e por isso mesmo divergente da ortodoxia mais corrente das nossas tradições cristãs”, ou, como dizia o deputado Botto de Carvalho, porque iria “de encontro a toda a política de unidade do Império”.

Quanto ao facto de a noiva ter de possuir meios de subsistência compatíveis com o posto do futuro marido, isto significaria, como salientaram alguns deputados, que os tenentes, no caso, não tinham um salário compatível com a constituição de família e, portanto, a solução seria outra.

Nesta mesma sessão interveio o deputado Padre Abel Varzim que fez uma importante intervenção em defesa da família e da dignidade da mulher:

“[…] A minha discordância não provém deste ou daquele ponto de regulamentação do casamento dos militares. Aquilo que me repugna, a mim, à minha consciência de católico, e à consciência dos católicos é, fundamentalmente, a regulamentação das condições económicas ou sociais do casamento […].

Durante dezassete ou dezoito séculos a consciência dos católicos travou uma batalha e conseguiu, vencê-la ainda há bem pouco tempo; e neste ponto operou a revolução mais igualitária que se fez em toda a história: perante o casamento não há distinções de classes, de idades, de condições, de raças, de sangue; todos têm o direito fundamental de contrair matrimónio. Esse direito foi-lhes dado pela natureza, ou, melhor, por Deus, e não pode o Estado ou qualquer poder do Estado restringi-lo. E é nesse sentido que me repugna aceitar este ou qualquer outro decreto que venha dificultar a constituição da família segundo aquele princípio da liberdade fundamental da pessoa humana […].

O problema deveria ser posto de uma maneira diferente. A dignificação da família faz­‑se pela dignificação da mulher, pela recondução da mulher ao seu lar. E é universalmente aceite que é o homem quem deve granjear o sustento da família […].

Se queremos dignificar a família não devemos exigir, para que ela se possa constituir, que ambos os esposos, ou um só deles, tenham meios financeiros para a sustentar; o que é necessário - e é por isso que este movimento humano que se chama catolicismo luta há dois mil anos - é que sejam dados ao homem os meios suficientes para o sustento da família que o seu trabalho, a sua profissão, lhe garantam o poder de acudir aos encargos normais do seu lar. O nosso pensamento é o de que o Estado e a economia devem garantir a todos os trabalhadores intelectuais e manuais um salário suficiente para as suas necessidades familiares. E, portanto, para salvaguarda da família para dignificação da vida militar ou de outra qualquer para prestígio e garantia da categoria social dos militares, parece-me que uma só medida seria de aconselhar: a de que eles começassem a ter soldo maior medida que iam aumentando os seus encargos familiares […]”.

A contraposição a estas e outras críticas acérrimas ao Decreto-Lei iria estar a cargo de vários deputados, principalmente, de Carlos Borges, interrompido constantemente com comentários e apartes. Trata-se de uma intervenção que me abstenho de classificar, bastando, para que se conheça o seu teor, transcrever uma ou outra passagem.

Referindo­‑se à questão do racismo aflorada pelo deputado Belfort Cerqueira, diz Carlos Borges:

“O legislador não pôs no decreto, relativamente à ascendência europeia, aquilo que porventura queria exprimir. O que se quis foi evitar aquilo que não quero dizer […]. Mas não se trata de um vago (Cerqueira falara em “pronunciado”) sabor de racismo, mas de manter um certo número de preconceitos, chamemos-lhe assim, que não são inteiramente vãos. Foi isto decerto o que o legislador pretendeu. Não está assim no decreto? Estes ‘pais europeus’ podem significar outra coisa? Nós podíamos emendar o que cá está, traduzindo-o por outras palavras. A forma pode mudar, mas a essência fica a mesma”.

E, para terminar, veja-se esta “pérola argumentativa” relativamente à impossibilidade de casamento de oficiais com divorciadas:

“O legislador viu e pensou que se a mulher foi a ré na acção do divórcio e mostrou que não possuía a honorabilidade e as qualidades morais necessárias para constituir família não está indicado que possa casar com um oficial do exército. Há agora o caso da mulher honrada, da mulher que teve uma conduta irrepreensível, mas que pediu o divórcio contra o marido, e então o legislador pensou: esta mulher é impecável no seu passado, mas não teve a resignação necessária não soube suportar as vicissitudes e tormentas do lar, isto é, não soube manter-se; embora com sacrifício. […]

Neste caso o legislador pode pensar que se a mulher não teve resignação para aturar o primeiro marido é de supor que igualmente o não tenha com relação ao segundo, e é por isso que não distingue um caso do outro e é talvez esta a razão por que vem tal disposição no decreto”.

O problema é que isto se passou em 1941 na Assembleia Nacional de Portugal e o Decreto­‑Lei foi aprovado com 30 votos a favor e 28 contra!

Fonte: http://debates.parlamento.pt/page.aspx?cid=r2.dan

Um abraço,

Carlos Cordeiro

PS - Em próxima oportunidade enviarei algumas citações do Decreto de 1960 sobre o mesmo assunto.

_______

Nota de L.G.:

(*) Resposta ao meu pedido para o Carlos Cordeiro abordar aqui este tema, com o rigor, a competência e a seriedade que são seu apanágio:


Ok, Luís. Irei trabalhar o assunto, com calma, pois estamos no fim do ano lectivo e há toda a questão de avaliações, exames e o diabo a quatro. Por deformação profissional, mandei só as indicações dos documentos. A minha posição enquanto professor de história é a de possibilitar aos alunos o prazer da descoberta - o contacto directo (quando possível) com os documentos. Digo-lhes sempre que eles têm tanto direito de interpretar um documento como os grandes intelectuais.


Mas, tens razão: o melhor será mesmo apresentar (com citações abundantes) todo o processo (talvez em "episódios"). Os debates na Assembleia Nacional são mesmo impressionantes: absolutamente elucidativos e mesmo chocantes. Não propriamente pelas implicações directas na vida dos militares, mas, sobretudo, pelas "mensagens" ideológicas subjacentes ou mesmo expressas. Trabalho bastante com os debates parlamentares, mas sobretudo nos períodos da monarquia constitucional e da I República.


Quanto à legislação anterior, irei tentar ver. Nos debates citam sempre um lei de 1850 (ou por aí) que tinha caído em desuso. Os militares da marinha tinham legislação de 1936 (julgo), diferente dos do exército.


Só mais uma questão: o decreto-lei de 1960 amnistiou os militares que tinham sido condenados com base na lei de 1941. Assim, um oficial pediu ao Supremo Tribunal Administrativo (há pouco tempo) que lhe contasse como de serviço o período em que tinha sido demitido e depois reintegrado pela lei de 1960 e o tribunal não aceitou!!!


É a vida, como diria o outro.


Um abraço,


Carlos

quarta-feira, 31 de março de 2010

Guiné 63/74 - P6084: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (16): Páscoa e Casamento na Mata dos Madeiros


1. Mensagem de José Câmara* (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 25 de Março de 2010:

Caro e amigo Carlos Vinhal,
Junto encontrarás mais um pouco do meu passeio pela Mata dos Madeiros.
A Páscoa de 1971 deixou-me marcas bem vivas. Tenho pena, sim, de no meu álbum de recordações não haver fotos alusivas aos acontecimentos desse dia.
No contexto da história também uso algum palavreadao que, ao tempo, era tabú nos Açores. A intenção é relatar o que então se passou.

Um abraço amigo para ti e para todos os camaradas,
José Câmara


Memórias e histórias minhas (16)
Páscoa e Casamento na Mata dos Madeiros


Para os militares da CCaç 3327 a Páscoa, a festa religiosa mais importante do calendário litúrgico do povo açoriano, passada na Mata dos Madeiros foi diferente. Ali, no meio do mato, o cordeiro pascal seria protagonizado pelo Furriel Miliciano Fernando Pedro Ramos da Silva, que passaria à classe de sargentos milicianos casados.

Não consituíu surpresa que, a meio da tarde do dia de Páscoa de 1971, o Comandante da Companhia Cap Mil Art Rogério Rebocho Alves, um homem culto e humanista, mandasse regressar os dois Pelotões que se encontravam no mato. Para ele, a Páscoa tinha que ser partilhada em família, e a CCaç 3327 já o era; também havia que celebrar o casamento do Furriel Miliciano Fernando Silva do 2.° GComb.

O nubente, sorridente, surgiu do mato acompanhado por muitos amigos. Vinham todos vestidos da mesma cor, com adornos de todos os gostos (fossem eles morteiros, metralhadores, granadas e outros tais), perfumados com o suor de alguns dias, e cheiinhos do pó da terra que lhes servia de leito desde que chegaram à Mata. Tanto assim era que se se passasse a unha na pele, lá ficava um sulco parecido com os regos feitos pelos arados nas terrinhas dos Açores.

José Câmara no seu belo, arejado, solarengo e confortável escritório da Mata dos Madeiros.

A messe improvisada que também foi inaugurada nesse dia, e nunca mais foi usada, cujo ar condicionado era proporcionado pelos buraquinhos entre as folhas de palmeira, serviu de palco a estas celebrações da Páscoa e Casamento por Procuração.

Depois do almoço melhorado (se bem me recordo bacalhau com grão), seguiram-se os discursos, atentamente escutados pelos presentes. O mais aguardado era, sem dúvida alguma, o do Fur Mil Fernando Silva. Estoicamente, com aquele seu ar de bébé sorridente, enfrentou a plateia formada pelos seus camaradas, e botou palavra:

- Porra, eu aqui a ração de combate e ela lá, a comer bolo!

Os camaradas maravilhados com aquele longo e corajoso discurso desataram aos vivas, aos bravos, às palmas e às palmadinhas nas costas do nubente. Ninguém queria perder esta ocasião única na história da CCaç 3327, e desejar a melhor das luas-de-mel ao feliz noivo. A emoção era forte. Em algumas caras viam-se correr algumas lágrimas.

Passada a euforia e a emoção do momento, os chefes de mesa, homens experientes nestas coisas de casamentos elegantes, abriram as portas brancas de um frigorífico a petróleo que por ali tinha sido montado. Por detrás delas estavam as dançarinas que iriam deliciar os presentes.

Aleluia!

Eram todas loirinhas, fossem elas Sagres ou Cucas. Em corridinho saltaram para as mesas improvisadas, chocando umas nas outras. O tilintar dos seus adornos espicaçavam a nossa curiosidade, e aquele "pop" do abrir a boca soava a beijos mandados com a palma da mão, e faziam crescer água na boca. Aquelas meninas evoluíam nuas, frescas, jorrando suor em bica (tal era o calor) por todos os poros. Retorciam-se em velúpias de prazer todas as vezes que lhes tocávamos, para desaparecerem por encantos, todas as vezes que as beijávamos. Eram beijos de paixão contida, sôfregos de dias sem pinga.

José Câmara: na Mata dos Madeiros o visual adaptava-se à medida do tempo ali passado

De repente todos se calaram. A realidade voltava ao presente. Na face de alguns daqueles meninos ainda rolavam algumas lágrimas rebeldes. Ali, ao nosso lado, estava a guerra.

O Fernando Silva tinha que dar continuidade à sua missão. Tinha que voltar para o desconhecido, para a mata, para a segurança nocturna afastada. Vi-o caminhar com o seu grupo.

Dizem as más-línguas do tempo, que o jovem noivo cometeu o pecado de adultério durante a noite. Não se sabe ao certo o que o levou a cometer tamanho sacrilégio.

Agarrado à sua amante de ocasião, a G-3, entre suspiros, ais e velúpias de prazer a que não era alheio a ajuda do mel deixado pelas formigas, mosquitos, e outros picantes e trepadores, o Fernando lá ía atraiçoando a sua jovem esposa, que ainda comia bolo em Lisboa, perante o olhar maroto e complacente da lua que pairava sobre a Mata dos Madeiros. O barro vermelho da Mata era testemunha silenciosa dos orgasmos prazenteiros da sua traição.

Nunca se soube, se a jovem esposa perdoou o facto de ter sido, assim, repudiada na sua noite de núpcias.

No dia 13 de Abril de 1971 escrevi uma carta à minha madrinha de guerra. Foi assim que me referi a esta história:

"Tivemos uma jantarada especial, pois houve um casamento por Procuração de um Furriel da minha Companhia. Um casamento que nós jamais poderemos esquecer... discursos... e algumas lágrimas à mistura.
Enfim, este foi o meu Domingo de Páscoa. Saudade e nada mais."


Infelizmente, e após a nossa comissão, nunca mais tive contacto com o Fernando Silva. Dele apenas sei que viveu durante alguns anos na Póvoa de Santo Adrião.

José Câmara
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 30 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6067: (Ex)citações (53): As tropas Pára-quedistas preparavam-se para a guerra como para uma cerimónia em Parada (José da Câmara/Hoss)

Vd. último poste da série de 18 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6018: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (15): Um erro de periquitos e o piar dos nossos camaradas

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3048: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (38): No HM241, em Bissau, voando sobre um ninho de jagudis

Guiné > Bissau > Abril de 1970 > "A Cristina em Bissau... A Cristina chegou a 15 de Abril [de 1970],vivemos em Bissau cerca de três semanas, incluindo a minha baixa à neuropsiquiatria, no HM241. Passeámos, fomos muito bem acolhidos, jantámos em todos os tasquinhos da Península. Bissau, confirmo por estas fotografias, tinha um cosmopolitismo de guerra, era um crescimento articial de bem-estar em torno da presença das tropas" (BS).


Guiné > Bissau > Maio de 1970 > "A Cristina chegou a 18 de Abril [de 1970] e praticamente nunca saiu de Bissau a não ser umas curtas visitas a Safim, Nhacra e Quinhamel. Não podíamos, evidentemente, ir passear a quaisquer teatros de operações. Durante os praticamente 20 dias que ela aqui viveu, visitámos as amizades feitas em Bambadinca e Bissau e fomos recebidos regularmente pelo David Payne, Emílio Rosa e mulheres. Não resistíamos à curiosidade de andar pelos mercados, ver artesanato e pequenas festas locais. Muitas vezes, o Cherno acompanhou-nos, insistia que não havia pausas no seu papel de guarda-costas.

"À volta do mercado velho havia uma excitação entusiasmante, era o colorido, os pregões, os encontros imprevistos, a discussão dos preços, os odores de África. Depois da lua de mel no Grande Hotel (nome sofisticado para uma pensão onde se comia razoavelmente) fomos viver em casa do Emílio Rosa e começaram aqui as idas à praça. Recordo a fruta, o peixe e alguns legumes. Fugi sempre da carne na Guiné e nunca esqueci os meus 19 dias a pé de porco com feijão verde enlatado, tudo acompanhado com leite achocolatado holandês" (BS).

Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.

Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1), enviado em 11 de Abril de 2008:


Meu caro Luís, Segunda-feira mandar-te-ei imagens dos livros aqui referidos. Não te esqueças que tens fotografias da Cristina em Bissau e há igualmente imagens do HM 241. Vê se nos podemos encontrar sexta-feira , 21, para mim era o ideal. Gostava que a nossa reunião de Monte Real aprovasse novos projectos e eu estou disponível para continuar a contribuir com a minha dedicação ao blogue.

Um abraço do Mário



Operação Macaréu à vista > Episódio XXXVIII > NOS LABIRINTOS DA FEBRE CEREBRAL (*)
por Beja Santos



(i) Os duelos entre o capitão Oliveira e o furriel Alves


O capitão Oliveira, para quem o ouve, repete a todo o instante que quer ver clarificada a razão do seu internamento compulsivo, pretexta em tom muito alto que as evacuações Y eram um dever para quem tem uma mãe tão frágil e só como a sua.

O furriel Alves, que não pára de mexer as mãos, e que também fala em tom muito alto, continua incrédulo por não ter perdido uma grama do seu corpo nas minas que pisou, por não ter uma só fractura, um simples hematoma, lança-lhe um riso escarninho, chama-lhe tarado, um capitão que pede por duas vezes uma evacuação Y para mandar aerogramas à mãe e não percebe a gravidade do seu gesto, insiste ele com o dedo em riste, ou perdeu o siso ou então (aí a sua voz ganha uma cor escura, e vai silabando e escorrendo a insinuação em tom lento) não passa de uma comédia ardilosamente montada para regressar à metrópole. E resmoneia entre dentes:
- Apanhado pelo clima, o tanas!”.

Estes duelos tinham a particularidade de se tornarem mais dramáticos num momento crucial para o meu sono. Passo a explicar. Com o toque de alvorada, o primeiro cabo Morais entrava na enfermaria e ferrava as injecções em três rabos, pondo em cima da mesa da cabeceira os respectivos comprimidos multicolores. Dóceis, seguíamos para o refeitório onde nos aguardava uma cafeteira de alumínio, havia pão e marmelada à disposição. No regresso à enfermaria, o 1º cabo Morais apontava para os comprimidos e seguia a trajectória dos mesmos até às nossas bocas. Dóceis, ingurgitávamos as cápsulas, mecanicamente.

Quando era esperável que serenassem os ânimos e fizéssemos o primeiro sono do dia, o Alves subvertia os efeitos da química, excitava o Oliveira. Em quinze minutos estava armada a cena, eu deitado na cama do meio com vontade de dormir, sujeitava-me à gritaria infrene e quando tenho o corpo já mole e o cérebro noutro sítio, voavam cadeiras, caiam as mesas, soltavam-se os impropérios mais soezes.

No terceiro dia, ainda a tentar adaptar-me a este espectáculo ensurdecedor, vejo os dois em cima das respectivas camas, pegam nas facas da marmelada e ameaçam-se. À cautela, gritei por socorro, já com a voz empastada, foi bom assim, descobri que a loucura é democrática, da enfermaria das praças acorreram dois calmeirões de olhar embrandecido pelos comprimidos, Oliveira e Alves foram separados e levados não sei para onde, respirei de alívio, adormeci até à hora do banho.


(ii) A visita das ilustríssimas senhoras


Enquanto almoçamos comida intragável com o corpo a cheirar a sabonete, o nosso zelador informa:
- Agora vão descansar, atrevam-se a desobedecer-me e verão. Pelas 15h30, vem a esposa do nosso brigadeiro e as senhoras do Movimento Nacional Feminino. Como é a primeira visita que vão ter, digam às senhoras do que é que precisam, elas são prestáveis e trazem umas revistas até em línguas estrangeiras. Vão estar deitados, ai de quem usar de maus modos com as senhoras, carrego-vos na dose dos comprimidos, vocês quando saírem daqui nunca mais serão gente!.

Lá fomos para a deita, tomámos nova porção de comprimidos multicolores, o 1º cabo Morais, à hora aprazada, depois de confirmar a decência da nossa postura, deu passagem a um conjunto de senhoras capitaneadas pela mulher do comandante militar da Guiné, trazia uma bata com as insígnias do Movimento e uma braçada de revistas encostadas ao peito. Sorriu, vinha muito bem penteada e falou suavemente:
- Boas tardes aos três. É muito triste estar doente, viemos para vos fazer companhia, tomar nota se precisam dos nossos préstimos, trazemos aqui algumas revistas para vos aliviar o sofrimento. As vossas mães, as vossas irmãs e namoradas estão certamente intranquilas. Peçam, nós contactamo-las. Façam o possível por ler. Ler promove o espírito.

Eram de facto revistas estrangeiras, Paris Match, Jours de France, havia até uma revista que falava de casamentos e baptizados da realeza europeia. A visita foi confrangedora para quem trazia tanta cordialidade, tiveram que enfrentar o nosso silêncio glacial, nada havia a pedir às senhoras, o 1º cabo Morais recolhia as revistas e agradecia por nós aquela prova de tanta bondade. As senhoras saíram, o 1º cabo Morais felicitou o nosso comportamento.

Uma hora mais tarde, de novo com as mãos fora do lençol, devidamente esticadas, foi a vez de recebermos a mulher do comandante-chefe das forças armadas e a sua comitiva, todas com a indumentária da Cruz Vermelha Portuguesa. Igualmente bem penteada e portadora de um sorriso doce, D. Maria Helena Spínola revelou-se solícita, perguntou se queríamos escrever para a família e foi aí que o capitão Oliveira estragou tudo, contou a história da mãe com a tensão alta e diabética, a simplicidade tocante do seu gesto em querer mandar-lhe um aerograma, a brutalidade das leis militares, ele sabia muito bem que uma evacuação Y não era para uso comum, desviar uma avioneta ou um helicóptero pode ceifar vidas, mas ele era filho único, aquele grupo de seis senhoras avançava para a cama dele, ouviam-no atentamente, o olhar era de puro pesar, alegaram nada poder fazer mas se o senhor capitão entendesse que deviam contactar a mãe, elas fariam isso prontamente.

Com o tronco soerguido na cama, agitando as mãos, o capitão Oliveira, de olhar súplice, lançou um apelo dramático:
- Minhas senhoras, perdi a reputação, sou um homem desonrado, imagino o que me vão dizer quando regressar ao meu quartel, vêem-me aqui rodeado destes dois doentes mentais, o da ponta se as senhoras lhe derem trela não engana ninguém, tem o juízo despachado, pisou umas minas e não pára de falar, este aqui ao meu lado tem a calma fria dos assassinos, até me arrepio quando penso que ele andou a fazer atrocidades lá no mato, quem vê caras não vê corações. Por favor, tirem-me daqui, eu não quero ficar doente, eu sou um bom filho.

Foi aqui que o furriel Alves começou a disparatar, a chamar tratante ao capitão Oliveira, os ânimos aqueceram, as senhoras recuaram com olhar atónito, o 1º cabo Morais atropelou uma explicação dizendo às senhoras que o senhor capitão sofria de um forte distúrbio, pediu-lhes para abandonar imediatamente a enfermaria, à saída de um grupo atarantado e compungido apanhámos com o olhar furibundo do nosso zelador. O 1º cabo Morais regressou momentos depois e deu-nos notícia do castigo: estavam proibidas as visitas às enfermarias, hoje e amanhã. Olhou-me depois da sua sentença e disse-me:
- Um dos médicos psiquiatras, o nosso alferes Payne, quer vê-lo daqui a um bocado. Arranje-se e venha comigo.

(iii) A minha confissão a David Payne


Depois de inúmeras lavagens em autoclave, visto um pijama descolorido, entre o azul desmaiado e o cinzento cor de rato, uso sandálias de plástico e inexplicavelmente apresento-me na consulta com dois livros, na presunção de que vou ter muito tempo para ler. O David Payne gaba-me o ar repousado, o ar bem dormido, os movimentos sem nenhuma tensão. Refere que já falou com o psiquiatra de serviço, saio feita uma semana de enfermaria, fico ainda uma outra semana em consulta externa. Ainda hoje não sei o que se passou, mas senti que me estava a confessar a este grande amigo:
- David, nunca te poderei agradecer esta possibilidade que me deste de estar com a Cristina, o que era impossível aconteceu, senti-me muito feliz por ela ter vindo. Não medi as consequências de um casamento com internamento psiquiátrico forjado, tens que me ajudar a esclarecer esta terrível sensação de estar feliz por ter a Cristina em Bissau e ao mesmo tempo sentir que isto é um estado que me divide e dificulta a exteriorização de sentimentos. Não paro de pensar que tenho que regressar mais uns meses a Bambadinca, ainda ontem aqui esteve o Teixeira das transmissões a despedir-se, regressa dentro de dias à metrópole, falei com o Teixeira como se estivéssemos operacionais activos, houve um momento em que lhe estendi a mão como se fosse receber uma mensagem para ir a Mato de Cão. Não devo ser caso único, mas sinto que este estado não me faz bem nem à Cristina. Vou propor-lhe que cada um regresse ao seu ponto de partida, aceito esta tua ideia de ficarmos mais uns dias juntos, vê lá o que é que me aconselhas como boa comunicação para a nossa despedida temporária.

O David olhava-me com o seu olhar penetrante, fazendo circular a língua nos seus lábios finos, de próximo e centrado na minha cara passou a divagar pelos móveis e paredes da sala, voltou a olhar-me e serenou-me sobre tudo quanto se estava a passar, concordou que o prolongamento da situação poderia ser danoso para os dois, ele próprio iria falar com a Cristina, hoje ou amanhã. E recomendou-me que tirasse partido destas férias à força, não valorizando as tensões que eu presenciava na enfermaria. Mais me informou que a redução dos medicamentos iria permitir-me regressar a Bambadinca numa quase perfeita desabituação terapêutica.


(iv) Um telefonema para Cherno Suane


É quando arrumo o correio enviado à Cristina a partir de Bambadinca, a partir de fins de Maio de 1970, que me assaltam dúvidas e sou instado a telefonar ao Cherno: ele acompanhara a Cristina em Bissau enquanto eu estava hospitalizado, que visitaram, por onde passearam?

Estava eu ainda em Bissau quando a 7 de Maio ocorreu um patrulhamento ofensivo em Sinchã Corubal, a operação “Gato Irritado”, em que participara o Pel Caç Nat 52, e um grupo de combate da CCaç 12, o que é que acontecera? Numa carta datada do início de Junho, referia uma operação que começara por um patrulhamento entre Amedalai e Moricanhe e numa emboscada em Madina Colhido houvera um contacto com uma coluna do PAIGC em que Mamadu Camará alvejara uma mulher, o que é que realmente se passara?

Ele que me desculpasse o inusitado das perguntas, tinha ainda uma outra dúvida sobre a Sociedade Agrícola do Gambiel, sucessora da antiga Companhia de Fomento Nacional, fundada em 1921, ele que tinha trabalhado na Socotran, ali para os lados de Biassa, a partir de 1978, lembrava-se de ter visto alguma vez vestígios dessa empresa no regulado do Cuor?

Do outro lado do telefone, Cherno não se fez rogado: como se estivesse a gargalhar, referiu que ia buscar a “senhora” ao Grande Hotel, primeiro, e, depois, à pensão da D. Berta, junto da igreja dos cristãos. Que iam aos mercados e passeavam pelo cais e depois sentavam-se no café da Associação Comercial; completamente a despropósito, lembrou-me que passámos a levar o morteiro 81 para Mato de Cão a partir de Junho e até Novembro de 1969, e precisou:
- Era Jam Djaló, milícia de Missirá, quem fazia questão de levar o tubo do morteiro em cima do ombro, o Queirós levava um colar de granadas.

Mais informou que um dia saímos numa coluna com um Unimog 404, ia no seu interior sentada Cadi Soncó, mulher de Mussá Mané, chefe de tabanca de Missirá, com um bebé ao colo, ficou aterrorizada quando o Unimog virou em Canturé a caminho de Gambana, ninguém a avisara que íamos primeiro a Mato de Cão e só depois a Bambadinca, sarilhos destes com população civil tinham sido muitos; que o patrulhamento ofensivo de Sinchã Corubal fora uma grande canseira, sim, continuava a haver indícios de presença da gente de Madina no velho trilho, que fora usado diariamente antes da guerra mas não se encontraram canoas; que nos iríamos reunir em breve para se falar da emboscada de Madina Colhido onde se ficara a saber que os do Buruntoni vinham nas calmas abastecer-se na tabanca do Xime, o que não era novidade para ninguém, era pena não se falar com os soldados africanos sobre aquela situação em que os do mato falavam regularmente com as populações que viviam junto dos nosso quartéis; e surpreendeu-me lembrando que eu nunca lhe fazia perguntas sobre as aulas que dava na escola de Bambadinca e as aulas de ginástica nas imediações do quartel, quando eu regressara de Bissau. Agradeci tudo e finalmente fazia-se luz quanto às referências insistentes que eu encontrara no correio dos últimos três meses acerca das actividades escolares e de um estranhíssimo programa de ginástica que metia manutenção e marcha, tudo em calção, para gáudio do BCaç 2852, que partiu no início de Junho, e do BArt 2917, que o viera render.


Nº3 da Colecção Contemporânea, Portugália Editora,1966.Tradução de Marília Guerra de Vasconcelos, capa de João da Cãmara Leme.É, acima de tudo, um romance inesquecível,perdura na lembrança pela originalidade da trama, mensagem, arquitectura da escrita.1943, Londres, bombardeamentos,uma atmosfera de intimidação e resistência.Um homem naufragado,Arthur Rowe,é apanhado numa estranha conspiração,tudo começa na banalidade de ter ganho um bolo posto a prémio numa quermesse.Segue-se uma perseguição, um encarceramento e depois uma redenção ao serviço da pátria.Mais que a intiga atabafante num enredo kafkiano,é o cheiro de um medo sem direcção que perpassa toda a obra e vai ficar quando tudo ,parece, teve um desfecho favorável à salvação do Reino Unido.Só há redenção depois de se sofrer muito com e pelos vivos...


(v) Uma semana de suculentas leituras britânicas

Os livros que sobraçava quando fui à consulta do David Payne proporcionaram-me momentos de grande satisfação. Começando por “O Ministério do Medo”, de Graham Greene, fui reconduzido ao universo kafkiano, uma mistura de espionagem e intriga, havendo a redenção do herói depois do seu profundo abatimento e desorientação.

É uma história estranha. Estamos em plena guerra, em Londres. Arthur Rowe, que se supõe estar a viver um drama por uma acusação de ter assassinado a mulher, vai a uma quermesse, entra numa barraca de uma quiromante, segredam-lhe o peso exacto de um bolo posto a prémio, e é graças a este bolo que começa uma aventura do medo, feito de sucessivos equívocos. A quermesse tinha a ver com as mães livres (isto é, as mães de todas as nações livres), uma estranha associação de que Rowe nunca tinha ouvido falar. Rowe regressa a casa com o bolo, aparece um desconhecido que adopta um comportamento também bastante bizarro, eis quando um bombardeamento alemão destrói a casa. Rowe procura um detective privado com o objectivo de apurar o que está por detrás da ansiedade daquela associação em reaver o bolo que ele, tudo indica, tinha ganho legitimamente. Recebido na associação das mães livres, descobre que um grupo no seu interior persegue outro, também da associação, pretende-se enviar para fora de Inglaterra um segredo importantíssimo. Está estabelecida a atmosfera de intriga, o irracional ganhou plausibilidade, Rowe vive em fuga, um vendedor de alfarrábios vai conduzi-lo a uma clínica que é um universo concentracionário, sob o pretexto de que é necessário reganhar a memória de tudo quanto Rowe esquecera no passado.

A charada não se consegue esclarecer completamente, quem é inimigo de quem, qual a natureza daquele segredo que pode abalar a Grã-Bretanha pelos alicerces. O medo viera para ficar, mesmo na relação amorosa que une o herói e a sua amada: “Durante largo tempo ficaram sentados, imóveis e silenciosos; acabavam de alcançar a orla da sua provação, semelhante a dois exploradores, que do cume da montanha, contemplam a vasta e perigosa planície. Durante uma vida inteira teriam de caminhar cautelosamente, pensar duas vezes antes de falar; e porque se amavam tanto, teriam de espiar-se mutuamente, como dois adversários. Nunca saberiam o que era viver sem o temor de serem descobertos”.

Romance notável, que comprova o elevado talento de Greene, quando falada da traição e da iniquidade, e como a partir do grotesco e do sórdido se alcança a face de Deus.

Nº162 da Colecção Vampiro,tradução de Lima da Costa,capa de Lima de Freitas.Não é a primeira vez que o potencial assassino se revela imediatamente ao leitor, mas a configuração é original.O único filho de um escritor de livros policiais é mortalmente atropelado à porta de casa.Começa uma investigação metódica em estado de vingança por parte do pai que tudo perdeu, à margem da polícia.Rapidamente se descobre quem e como atropelou a vítima inocente. Começa a congeminação de um plano para executar um motorista imprevidente. É como se o leitor estivesse no cinema, os olhos vêem e lêem o sofrimento de alguém, na maior expectativa. Depois, executor e vítima confrontam-se verbalmente, é a ruptura e, imprevistamente, a vítima aparece morta por envenenamento. Um detective é convocado e descobre que todo o diário que lemos inicialmente do potencial executor está ardilosamente forjado. É uma pedra preciosa do romance policial, assinado por um dos maiores nomes da literatura britânica.

Não menos valiosa foi a leitura de “A Fera Tem de Morrer”, de Nicholas Blake. A trama é original. A primeira parte gira à volta de um diário em que um conceituado escritor de obras policiais pretende vingar-se de um motorista desconhecido que lhe matou o filho, Martie, à porta de casa. Diário intimista de Frank Cairnes, aliás Felix Lane ou vice-versa. Por sua iniciativa, acaba por descobrir quem ia na viatura que dera morte imediata a Martie, o filho que era a sua razão de viver. É ele, e não a polícia, quem descobre a jovem que acompanhava George, o motorista imprevidente que fugira cobardemente. Insinua-se perante a jovem e entra assim na vida de George. Escreve metodicamente no diário os preparativos do assassínio de George.
Na segunda parte do livro, dá-se o frente a frente de Felix Lane com George Rattery, ambos estão informados da morte de Martie, ocorre uma discussão brutal, Felix não tem condições para executar a sua vingança. Na terceira parte, entra em cena um detective que é contactado por Felix depois de George ter aparecido morto por ingestão de estricnina. Julga-se ter sido o filho de George a procurar assassinar o pai, o detective, que entretanto teve acesso ao diário de Felix, vai desvendar a maquinação espantosa de um diário concebido para provocar uma grande ilusão. A despeito de uma vivência na enfermaria psiquiátrica, li assim do bom e do melhor.

Em breve, serei restituído a Bissau. Estou emocionalmente dividido e sem escolhas possíveis. A Cristina regressa a Lisboa e eu parto para Bambadinca. Apanho nova transição de batalhões, o pesadelo da ponte de Udunduma, as últimas operações, acompanharei o dia a dia do alcatroamento da estrada Xime-Bambadinca. Mais tarde, para o fim de Julho, converso com o deputado José Pedro Pinto Leite, da ala liberal, em Bambadinca, pouco antes de ele morrer num acidente no rio Mansoa. E, de repente, chega o meu substituto, fonte de grandes preocupações. Tudo isto será aqui contado.

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Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 6 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3027: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (37): Com baixa psiquiátrica, no Hospital Militar de Bissau

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3041: Simpósio de Guileje: Notas Soltas (José Teixeira) (6): O cabaço da bajuda

Foto 1 > Soldados da Milícia de Mampatá

Foto 2 > A Ádada, mulher do régulo Suleimane


Foto 3 > O Aliu Baldé
Foto 4 > A mulher do régulo Shambel de Contabane, mãe do Suleimane
Foto 5 > Nobia na tem kabaço. Manga de ronco Fotos e legendas: © José Teixeira (2008). Direitos reservados.


1. Publicamos hoje mais umas Notas Soltas do nosso camarada José Teixeira, ainda a propósito da sua ida à Guiné-Bissau, por altura do Simpósio Internacional de Guiledje (1-7 de Março de 2008).

2. O Cabaço da Bajuda. 

Por José Teixeira 

 Na minha recente peregrinação à Guiné-Bissau, fui visitar um velho amigo de Mampatá, agora régulo em Sinchã-Shambel – Saltinho. O Suleimane Shambel é filho do falecido régulo de Contabane, tabanca assaltada e queimada pelo IN em 22 de Julho de 1968. 

Parte de uma Companhia operacional que lá estava estacionada, regressou em 24 de Junho do mesmo ano a Aldeia Formosa com a roupa que tinham aquando o ataque, tal foi a violência do mesmo. O régulo Shambel fixou-se em Aldeia Formosa. A população dividiu-se entre Aldeia Formosa e Saltinho, até ser reagrupada em Sinchã-Shambel. 

O meu amigo Suleimane fixou-se em Mampatá, integrando o Pelotão de Caçadores Nativos (Milícia local), tendo casado com a Ádada (*), filha do régulo local, Aliu Baldé. 

 Aí convivemos durante seis meses. Agora voltámo-nos a encontrar, para reviver velhos tempos. Sentado num trepo (banco de três pernas) conversávamos os três animadamente, recordando outros tempos, recordando amigos(as), alguns vivos e localizáveis, outros em lugar incerto e tantos que já partiram… 

 Eram cerca de três da tarde, quando se começa ouvir um burburinho, que se deslocava na nossa direcção. Um coro de vozes femininas a cantarolar em simultâneo com gritos e risos que reflectiam alegria e boa disposição. Poucos segundos depois, passa à nossa frente uma procissão de bajudas e jovens mulheres. Uma das da frente levava um pau tipo bandeira com um pequeno pano vermelho pendurado na ponta. A algazarra era enorme. As mulheres espreitavam e batiam palmas, os homens lançavam uns sorrisinhos marotos, face àquela festa. 

 Eu, embasbacado, perguntei: 

- Ádada, que festa é esta? 

 Ela com um sorriso malandro retorquiu: 

- Ontem houve casamento, grande ronco. A noiva ergueu-se agora da cama e mostrou o lençol com sangue. Bajuda na tem kabaço. É ronco, é festa. As outro bajudas estão a mostrar a população qui noiva na tem kabaço mesmo

- Até ontem! - Comentei. 

- Sim, hoje já não tem. 

- O lençol tinha sangue dela ou de alguma galinha que lá puseste. - disse eu com ar de malandro. 

 Uma gargalhada geral encerrou a conversa enquanto eu seguia com os olhos o grupo de mulheres que se deslocava tabanca fora na sua alegre cantilena. 

 Hoje recordo como foi diferente o casamento em Dezembro de 1968 da Mariama de Mampatá: 

 (i) Os preparativos, desde o pentear do cabelo que demorou horas; 

(ii) A chegada do noivo e sua comitiva, vindo de Aldeia Formosa; 

(iii) A festa contida pela necessidade de não se fazer demasiado barulho para não acordar o IN; 

(iv) O batuque que acabou ao escurecer para que o silêncio se impusesse e os ouvidos se concentrassem em possíveis ruídos ameaçadores; 

(v) A expectativa no dia seguinte em ver o lençol pintalgado de manchas vermelhas, sinal de que a Mariama ainda tinha kabaço. Cena de que fui delicadamente afastado por uma mulher grande. 

 Zé Teixeira

(*) Em escritos anteriores falei da alegria que senti quando a Ádada me reconheceu em 2005, 

altura da minha primeira visita à Guiné-Bissau no pós-guerra.

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  Nota de CV: 

 Vd. último poste da série de 7 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2816: Simpósio de Guileje: Notas Soltas (José Teixeira) (5): Água, fonte de vida para as gentes de Cabedu

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2968: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (35): Just Married

Finda a desastrosa Op Anda Cá, fomos enviados para Mansambo,para participar na Fado Hilário, um reconhecimento ao antigo acampamento de Galoiel,região do Corubal.Identifiquei a situação por causa dos lenços: a picada parecia pão ralado,chegámos a Mansambo acastanhados pelo fulvo da laterite. O lenço ajudava a respirar melhor, a manter a atenção a tudo quanto se passava nas bermas, cheias de capim muito alto. Dois picadores sinistraram-se com gravidade à saída de Mansambo.

Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1), enviado em 12 de Março de 2008:

Luís, Estou finalmente casado, chegou o momento de todos irem à festa. Já seguiu hoje uma imagem, recordo-te que tens aí uma fotografia minha com a Cristina, há aí mais três da Cristina em Bissau. Seguem ainda hoje mais duas imagens. Mesmo com dois pequenos períodos de férias até Julho, confirmo que tudo farei para termos o segundo livro pronto em 31 de Julho. Um abraço do Mário.

Operação Macaréu à vista - Parte II > Episódio XXXV > TU ÉS A NOIVA MAIS BONITA DO MUNDO

por Beja Santos

(1) A chegada da Cristina, o Bissau velho, a última noite de solteiros


Quando estamos a chegar a Bissalanca, ouve-se o ronco do avião que se atira sobre a pista, segue desabrido até parar com um grito angustiado, depois volta o focinho para a torre do aeroporto e imobiliza-se, dando o último silvo. Lá vamos à desfilada, ninguém quer ver a minha noiva desorientada e só, entre a tropa que chega e a tropa que parte. Arrumado o carro, corremos para a galeria de vidro de onde é possível ver todos os passageiros a descer até ao cimento a escaldar que leva à chegada das bagagens.

A Cristina aparece protegida por uma capeline azul, parece que está a sorrir para os mirones que acenam, depois são aqueles minutos das bagagens, abrem-se as portas e saem magotes de militares, que senhoras e crianças há muito poucas. Avanço desajeitado, confirmo que é mesmo a Cristina que se despediu de mim em 24 de Julho de 1968, parece que a sufoco com abraços e beijos. A Cristina traz o sorriso largo e mais franco do mundo, vê-se que vem exausta, arrumamos tudo no carro e regressamos a casa dos Rosa, seguem-se os cumprimentos, as bebidas frescas, ela dá as primeiras notícias com interesse para aquela plateia a cinco, a Isabel Payne ainda não chegou. Proponho voltar um pouco mais logo, o Emílio parte para o Beng 447, o David para o HM 241, chega a Isabel e a Elzira declara ter coisas a fazer no liceu. Saio dali e vou pôr-me à sombra na Associação Comercial de Bissau, mesmo ao lado do Palácio do Governo, a minha noiva tem que descansar.

Levo comigo Maigret na Escola, um Simenon excepcional, um comissário mítico a escalpelizar a vida de uma aldeia, num ritmo literário perfeito. Tudo começara na Judiciária onde Joseph Gastin, professor em Saint-André-sur-Mer, perto de La Rochelle, lhe solicita uma audiência. Gastin vem pedir ajuda, uma velha pérfida, odiada por todo o povoado, fora assassinada com um tiro de carabina, insinua-se que o mestre-escola é o autor de tal barbaridade. Inicia-se aqui o primeiro de uma série de diálogos prodigiosos: Gastin é professor e secretário da autarquia, recusa-se a fazer favores aos ricos, remediados e pobres, exige que os pais mandem os filhos à escola, uma pessoa que age assim só cria inimizades à volta.

O mestre-escola adianta pormenores sobre o homicídio, Maigret, enquanto o escuta, recorda-se do vinho branco e das ostras daquela região. Toda esta história é tão intrigante que ele não resiste a ir à terra das ostras e mexilhões, nas Charentes. Maigret chega a Saint-André-sur-Mer e instala-se num albergue, começa a coscuvilhar, vai cheirando a atmosfera, esgravata as intrigas, não investiga oficialmente mas acaba sempre por obter resultados, o professor é detido, Maigret fala com todos: o tenente da polícia, o médico, a mulher do mestre-escola, o funileiro, a clientela do bar, os alunos.

A velha odiada tinha diferentes poderes: trabalhara no correio, roubara cartas e conhecera alguns segredos importantes daquele povoado, insultava tudo e todos, ameaçara deserdar a sua sobrinha, enfim, não havia uma razão óbvia para aquele crime, as pistas contraditavam-se, mas Maigret através de sucessivas conversas com alunos de Gastin vai descobrir como um pobre alcoólico, um eterno perdedor, disparara enfurecido devido às denúncias daquela velha perversa e tinha-a atingindo mortalmente num olho. Ninguém como Simenon obtém efeitos destes desencontros do destino mediante interrogatórios que verrumam paixões silenciadas, e ódios adormecidos. Concluído o inquérito, Maigret oferece os resultados da investigação ao tenente da polícia, toma o combóio da noite e regressa a Paris, um pouco triste ou fatigado como aliás sucede sempre que termina os seus inquéritos.

Como uma omeleta com pão, olho para o relógio, são horas de ir buscar a Cristina e fazermos compras. A minha noiva recuperou alguma energia e mostra-me a indumentária que vestirei amanhã na cerimónia do casamento: o fato mais leve que deixara em Lisboa, azul às riscas brancas, uma linda gravata vermelha, uma camisa branca nova. Começa a arrefecer, partimos para o Bissau velho, vamos à ourivesaria, a escolha das alianças não é demorada, a Cristina mostra-se curiosa com aquele comércio estabelecido, entramos na Casa Gouveia, ela está embasbacada com o estanco monumental, ali encontra-se de tudo desde nastro e petromaxes, sementes, pratas, porcelanas dispendiosas ou despretensiosas.

Depois, convido-a a passear junto ao cais, é impossível não se ficar deslumbrado com toda aquela azáfama de pesca e estiva, os caudais de marisco descarregado, as redes que chegam e as que partem, as pequenas embarcações que tracejam as águas em todas as direcções. Ambos estamos cautelosos, escolhemos com suavidade aveludada as perguntas, fugimos à nitroglicerina escondida dos desencontros e das más interpretações, dos choques familiares, do ferro e fogo da correspondência que eu recebi.

Centro-me nos estudos dela, por ora suspensos, pergunto-lhe como vamos viver logo que finde a guerra. Considerei que esta nota introdutória ao nosso futuro tinha um poder apaziguador, travava qualquer viagem às guerras do Sector L1. Falámos de amigos, das suas mensagens de parabéns, a Cristina propôs tratar de arranjar a nossa casa logo que regressasse e dá algumas pistas. Com discrição, relembrei-lhe que tinha vindo com uma guia de marcha para as consultas de neuropsiquiatria e oftalmologia, o David não tinha encontrado outra alternativa para negociar com o comando de Bambadinca, uma semana a descansar numa cama de hospital não fazia mal a ninguém, comentei sardónico. A Cristina calou-se, o facto em si era suficientemente insólito para poder merecer reparo ou aplauso. E seguimos para casa dos Rosa, íamos todos jantar ao Solar do 10, a sopa de ostra parecia-me uma boa surpresa para a Cristina.

Findo o jantar, fomos até ao bar do Quartel General, era noite de cinema à volta da piscina, recordo a soberba interpretação de Rod Steiger, parece que ele fazia de dono de uma casa de penhores, desempenhava magistralmente um carácter sórdido. Despedimo-nos, fiquei proibido de ver a noiva a não ser na igreja, nessa noite fiquei em casa dos Payne, aonde não entrava desde Janeiro, naquela inesquecível semana em que tomei Vesperax por atacado.


(ii) A minha última manhã de solteiro


Levantei-me com um dia soberbo, chega a estar uma ligeira brisa, a luz do sol coa-se pelo arvoredo, repito o passeio da véspera, vou antes de mais fazer algumas leituras no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa. Ali também está um tempo magnífico, ficaram arrumadas numa mesa algumas obras que pedi para consultar. Retiro e abro o meu caderninho, faço transcrições. Escrevo logo um parágrafo que encontrei num boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, de 1883, referente à Província da Guiné Portuguesa:

“A Guiné é na actualidade um tristíssimo documento da nossa culpável inércia, documento que muito pouco depõe em abono de um povo que se diz civilizado, e que menos ainda pode ilustrar a nossa história colonial”.

Do artigo intitulado “Da Guiné e do seu valor no Império”, de António Pereira Cardoso, publicado no Boletim da Agência Geral das Colónias, de Agosto-Setembro de 1935, encontro finalmente mais um elemento concreto sobre o enigmático Abdul Indjai:

“Em 1912, Teixeira Pinto recrutou quem quis, escolhendo o nativo Abdul Indjai, oriundo do Senegal e que na Guiné se refugiara desde 1891. Ele era um antigo soldado da colónia vizinha de onde desertara depois de ter praticado um crime qualquer. Na nossa Guiné, depois de servir de criado de casas estrangeiras, dedicou-se ao comércio de permuta com o gentio, percorrendo o interior da colónia. Embora pouco escrupuloso na sua maneira de proceder, era dotado de uma coragem, lealdade e valentia que sobejamente desculpavam a sua irregular conduta e ulterior atitude que bem caro lhe custaram”.

É quando me preparo para folhear alguns documentos sobre a campanha contra Abdul Indjai, publicados no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, em Janeiro de 1951, que sinto uma enorme vontade de voltar à luz crua da rua, está confirmado que este meu dia de casamento é ameno, se bem que se sinta uma crescente humidade e subida da temperatura.

Como um autómato, ouvindo a sirene que vem do Pidjiguiti, avanço para aquele porto sempre em azáfama, ponho-me à sombra e acabo a leitura de uma belíssima novela de Somerset Maugham, Um Casamento em Florença, com uma sugestiva capa de Bernardo Marques. Um pouco à semelhança do que eu sentia pela obra de Eurico Veríssimo, nunca entendi o preconceito sobre a obra literária de Maugham, de quem ouvi apreciações pouco lisonjeiras. A verdade é que a sua escrita é directa, melodiosa, atrai o leitor e não lhe dá tréguas.

É assim nesta novela: “A villa ficava no alto de uma colina. Do terraço da frente, descortinava-se uma magnífica vista de Florença. Nas traseiras, havia um velho jardim com escassas flores, mas com lindas árvores, sebes de buxo aparado, caminhos de relva, e uma gruta artificial onde a água caía de uma cornucópia, com um som fresco e argentino”.

Há uma jovem viuva, Mary Panton, fora emprestada esta villa de onde se podia admirar a paisagem toscana, na sua inocência requintada. Fora um casamento infeliz, uma experiência amarga e agora um velho amigo, Edgar Swift, que ia ser nomeado governador de Bengala, vinha pedi-la em casamento. Mary Panton está indecisa, respeita profundamente o amigo mas não o ama. Promete dar-lhe uma resposta em breve, e ela depois parte para Florença onde vai jantar com a princesa San Ferdinando e os seus amigos. É aí que conhece Rowley Flint, um jovem com péssimas credenciais, ainda por cima sem uma figura muito atraente. Rowley corteja Mary Panton, que mantém uma total indiferença perante os seus avanços.

No regresso, e nesse estado de pura indiferença, Mary Panton desabafa abertamente com o jovem pretendente acerca aquele casamento calamitoso que a deixara aliviada, depois de anos de traição e de dissipação do marido. No episódio seguinte, um violinista exilado passeia-se perto da villa, aqui se desencadeia um flirt tumultuoso que culminará com o suicídio do jovem, em perfeito desespero e que se julga ultrajado por Mary Panton. Esta pede a ajuda de Rowley para se desembaraçar do corpo, quando Edgar Swift regressa a Florença para saber a resposta ao seu pedido de casamento, Mary Panton confessa-lhe o que se passou, Swift fica embaraçado, ela aproveita para se libertar do compromisso. Rowley reaparece e começa a conquistar o coração de Mary Panton. Ambos falam de riscos daquele casamento que se perfila, e ele responde-lhe no final da novela: “Minha querida, é para isso que serve a vida: para nos arriscarmos”. Com o sorriso nos lábios, levanto-me e regresso a casa dos Payne. Está na hora de me indumentar e partir com os meus padrinhos para a Catedral de Bissau.

N.º 5 da Colecção Miniatura, tradução de Leonel Vallandro, capa de Bernardo Marques. Hoje é uma raridade para bibliófilos. Somerset Maugham, se dúvidas houvesse, revela nesta escrita o seu talento superior: Não há uma falha no encadeado, os personagens estão perfeitamente caracterizados, a concisão e a simplicidade tomam rapidamente conta do leitor

(iii) A noiva veio atrasada mas muito linda!


Quem passava junto à Catedral, a partir das 18h, sentia imediatamente a atmosfera do casamento. Padrinhos bem ornamentados, noivo conversador e engravatado dirigindo a palavra aos seus convidados, alguns dele informalmente vestidos mas muito festivos: capitão Laranjeira Henriques e mulher, Benjamim Lopes da Costa, Domingos Silva, Teixeira das transmissões (para que conste: António Fernando Ribeiro Teixeira), o Barbosa da boina verde, o ruidoso Vidal Saraiva que a todos surpreendeu por vir fardado, pára um carro e saem cerimoniosos a Inês e o Alexandre Carvalho Neto.

São exactamente 18h30 da tarde quando se ouvem no órgão os acordes iniciais da Toccata e Fuga BWV 565, em ré menor de Johann Sebastian Bach. O organista aprimora-se e vibra, recomeça mas a noiva demora a chegar. Caminha para as 19h quando a noiva se apresenta na companhia do David Payne, logo atrás a Isabel, vem linda num fato que parece atapetado de penas, uma grinalda engastada no penteado, poucas jóias mas exibindo os trabalhos do ourives de Bafatá. A igreja enche-se, o padre Afonso preside a cerimónia. Houve primeiro missa, segue-se a cerimónia.

O fotógrafo recrutado na véspera desloca-se por todos os lados, parece que não há ninguém que não fique no registo. Numa fotografia que ainda não conseguia recuperar, já na sacristia parece que saímos todos da estufa: o penteado da noiva desmancha-se, o semblante do noivo está luzidio, o olhar vago, os padrinhos nitidamente afogueados, até o padre Afonso não escondia o desespero com o calor. Antes, tínhamos vivido momentos tocantes, quando a Cristina levou as suas orquídeas a um altar lateral, aproximaram-se duas senhoras que nos cumprimentaram e arranjaram as flores numa jarra. Alguém comentou: “É a mãe e a irmã do Amílcar Cabral”. Regressámos a casa, mudámos de roupa, partimos para o jantar no “Pelicano”.

(iv) Uma boda em que me endividei por vários anos


Quem viu gente a esvoaçar à nossa volta na igreja e no restaurante deverá ter imaginado que o registo de imagens era impressionante. Não foi, como passo a explicar. Ainda estávamos na sobremesa, aparecia o bolo de noiva, e entrou o fotógrafo congestionado a dizer que toda a reportagem se tinha perdido. Atreveu-se a sugerir que nos voltássemos a vestir, a Cristina ouviu tudo atordoada, para mim, alferes em Missirá e arredores, aceitei a lacuna e pedi ao senhor fotógrafo que não se preocupasse mais. Há fotografias avulsas, a há um filme em super-8 que captou a chegada à igreja da lindíssima noiva, aspectos da cerimónia, depois o jantar, os padrinhos e os amigos todos sorridentes.

Mas houve acontecimentos que não ficaram no filme: o abraço do Cherno, sempre tímido, que comunicou a realização de batuque e baile em nossa homenagem, dois dias depois; a taça de champagne que derramei sob a mulher do capitão Laranjeira Henriques enquanto agradecia os brindes de outros convidados; e a dívida que contraí com o Rui Gamito que insistiu em emprestar-me cerca de cinco mil escudos em dinheiro guineense, escapou-me completamente esta dívida, um dia, talvez em 1976 ou 1977, a Cristina e eu entrámos na cervejaria Portugália para comer o bife com ovo a cavalo, apareceram o Rui Gamito e a mulher, num instante recordei tudo, corri para eles envergonhado, entreguei logo um cheque, desfazendo-me em desculpas.

Foi uma boda lindíssima, eu estava feliz pelos padrinhos, pelos queridos amigos, é certo que um pouco amargurado pela falta das nossas famílias e de todos os meus soldados. Missirá estava ali, representada pelo Teixeira, pelo Barbosa, pelo Domingos e pelo Benjamim, estavam ali os dois médicos de Bambadinca, a quem tanto eu devia, sabia que outros podiam ter participado, mas eu não podia iludir ter vindo a Bissau com uma guia para as consultas de oftalmologia e neuropsiquiatria.

Capa do livro Maigret na Escola. No final da década de 50, Maigret era um detective consagrado e o Brasil editou-o do princípio ao fim. A editora era a Bestseller, de São Paulo, a tradutora a Carla de Almeida, as capas eram semelhantes, só mudava a cor e, obviamente, os títulos. Estas traduções não tiveram grande sucesso entre nós, a Bertrand começou nesse tempo a publicar muitos títulos.

Eu tinha aqui a noiva mais bonita do mundo, era escusado lançar mais penas sobre o meu destino. Aquela guerra reorganizara as nossas vidas, entreguei-me totalmente àquela mulher que soubera preencher ausências, silêncios e muitas incompreensões, de Julho de 1968 até hoje. E procurei amá-la, dividido entre a nossa felicidade pela vida que começava e pela guerra que iria continuar. Começámos o nosso conhecimento, dentro de dias seremos surpreendidos por um massacre no “chão manjaco“, seremos recebidos na caso dos nossos amigos, o Cherno preparou um glorioso batuque, perto do bairro da Ajuda. Vale a pena contar.

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Nota de L.G.:

(1) Vd. poste de 15 de Junho de 2008 Guiné 63/74 - P2945: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (34): Presentes de casamento

domingo, 15 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2945: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (34): Presentes de casamento

"A Cristina em Bissau... A Cristina chegou a 15 de Abril [de 1970],vivemos em Bissau cerca de três semanas, incluindo a minha baixa à neuropsiquiatria, no HM241.Passeámos, fomos muito bem acolhidos, jantámos em todos os tasquinhos da Península. Bissau,confirmo por estas fotografias,tinha um cosmopolitismo de guerra,era um crescimento articial de bem-estar em torno da presença das tropas" (BS).


"Abdul Injai é uma das figuras lendárias da pacificação do Oio, na 1ª campanha de Teixeira Pinto. Valente cabo de guerra de origem senegalesa, comandou fulas, futa-fulas e mandingas. Como prémio, foi nomeado régulo do Oio e do Cuor. Terá cometido excessos e confrontado a administração portuguesa. Em 1918 foi demitido de régulo do Cuor, terá pilhado armas da população, recusou-se a prestar contas a Bolama[, capital da colónia], segue-se uma campanha a partir de Farim, em 1919 que levou a sua prisão e partida para o exílio. O capitão-tenente João Quadros chamou-lhe «rebelde ardiloso que não merece quartel».




Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.

Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1), enviado em 5 e 10 de Março de 2008:


Luís, junto mais um episódio, se tudo correr bem ainda haverá mais quatro em Março. Seguirão ilustrações referentes a Abdul Indjai e o livro do Ellery Queen. Recordo-te que tens aí muitas imagens de Bissau, tais como a Catedral e a Praça do Império. Uma outra possibilidade era a imagem do reordenamento dos Nhabijões. Estou ansioso que voltes da Guiné e nos contes o que viveste. Um abraço do Mário.



Operação Macaréu à vista > Episódio XXXIV > TOCCATA E FUGA BWV 565, em ré menor, de Johann Sebastian Bach

por Beja Santos
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(i) Os presentes de Bambadinca

Num ápice, vou a Bafatá buscar os presentes destinados à Cristina: uma pulseira e um anel em filigrana de prata que encomendara ao ourives, passei pela casa Teixeira e trouxe La Traviata, cantada por Joan Sutherland, Miti Truccato Pace, Carlo Bergonzi e Robert Merrill, orquestra e coro do Maggio Musicale Fiorentino, conduzida por Sir John Pritchard, e o 5º Concerto de Beethoven, executado por Wilhelm Backhaus, Hans Schmidt-Isserstedt dirige a Filarmónica de Viena.

No regresso a Bambadinca, acompanho aos Nhabijões uma delegação que vem de Bissau com um jornalista que me é apresentado como o príncipe Xisto Bourbon-Parma. Príncipe ou não, é um jovem gentil, traja uma fatiota de caqui, de vez em quando estaca, surpreso, perante uma situação dispara umas fotografias, faz perguntas, toma notas. O visitante, ao que consta, pretende visitar a Guiné, conhecer todos os recantos possíveis e avaliar a fundo o projecto da Guiné Melhor. Terá sido ele quem escolheu o reordenamento dos Nhabijões, nessa altura em franco desenvolvimento, erguem-se dezenas e dezenas de moranças alinhadas substituindo a espontaneidade dos aldeamentos Cau, Bedinca, Imbume, Bulobate, Mancanha e Mandinga.

É um reordenamento ousado, e dispendioso, envolve o batalhão de engenharia com muitos meios, muita negociação com os homens grandes dos Nhabijões, os patrulhamentos ficam a cargo da CCaç 12, da CCS e do Pel Caç Nat 52. A experiência dirá que as gentes de Madina-Belel, bem como as do Baio-Buruntoni não foram dissuadidas, continuaram a vir abastecer-se e a obter informações junto da sede do batalhão. Aliás, quem vinha do mato não precisava de grandes exercícios de estilo: perto do reordenamento, tivessem cambado o Geba, vindo a pé por Samba Silate ou cambado o Udunduma, escondiam as armas, punham um pano a tapar o tronco, a partir daí deixava de haver qualquer interpelação militar, a denúncia civil estava praticamente interdita.

A 14 de Abril [de 1970], reuno pela última vez com o Pires (em breve vai trabalhar na CCS / BCAÇ 2852), com o Cascalheira e com o Ocante, as folhas dos pagamentos estão prontas, já se efectuou a troca do fardamento, para a semana chegarão botas novas, mosquiteiros, bem como cantis e cartucheiras, todo o equipamento estava por um fio.

Fomos ainda ao paiol ver o estado as munições, o Pel Caç Nat 52, foi-me garantido pelo major de operações, durante as duas próximas semanas ficará no posto avançado de Udunduma, fará patrulhamentos no Cossé e Badora, apoiará uma coluna ao Xitole, e haverá outras actividades congéneres, mas operações de grande porte não. O sargento Cascalheira dá-me a sua palavra que não haverá desmandos nem se envolverá em desacatos. Despeço-me de todos, há uma enorme risada para aquele alferes que vai comprar a bajuda a Bissau... Benjamim Lopes da Costa, Domingos Silva, Barbosa e Teixeira irão representar o pelotão no meu casamento. Pedi ao Queirós, com a maior discrição, que ficasse, o diabo tece-as, um apontador de morteiro 81, um de 60 e dos bazuqueiros são especialistas indispensáveis. Cherno marcou férias, vai para Bissau, pois claro, mas Seco e Tunca garantirão o apoio aos morteiros 60.

É quando me vou fardar e acabar de arrumar as minhas coisas que a professora Violete me acena à porta de casa. Convida-me a entrar na sala e na presença de D. Ema, silenciosa mas com um sorriso beatifico, entrega-me um embrulho: ´
- É um presente insignificante. É uma peça de biscuit, apercebi-me que o Sr. alferes gosta destes objectos. Não tenho herdeiros directos, é uma arte europeia que não é aqui muito apreciada. A nossa casa, nos bons tempos, estava aberta aos convidados do administrador Aires. Agora somos duas mulheres sós, ninguém olha para estes objectos. Com sinceridade, faço votos para que tenha uma longa e feliz vida matrimonial.

E entregou-me, pedindo todas as cautelas, um embrulho em papel lustroso com um lindo laçarote, sem deixar de me anunciar:
- Quando vier, vamos continuar com as nossas leituras. Se tiver tempo, não se esqueça de passar pelo Centro de Estudos da Guiné e trazer aqueles boletins de que lhe falei.

Subo para o Unimog, os camaradas do batalhão acenam, é um contentamento sincero que me comove. Mas a emoção maior é o Pel Caç Nat 52 me rodear em circulo fechado, pela primeira vez toda a gente me vem abraçar, a minha mão direita é segura com firmeza por uma outra mão direita, vai apoiar-se no corações de todos os meus soldados. É a maior prova de consideração que um guineense presta a um amigo. Parto contrito, esmagado pela grandeza da hospitalidade destes fulas e mandingas.


(ii) Em Bissau, recebo ordens dos meus padrinhos

De Bissalanca a Brá é um pulo, quem me dá boleia larga-me no interior do BENG 447, atravesso as barracas mague, vejo por toda a parte longos corredores de cimento ensacado, nunca se construiu tanto como agora, entro numa estrutura metálica com tecto de lusalite e vou cumprimentar o meu padrinho. O Emílio Rosa está investido da sua responsabilidade de monitor espiritual e mestre de cerimónias, dá-me as informações mais frescas: hoje durmo lá em casa, amanhã também, a noiva fica amanhã em casa dos Payne, o melhor é aproveitar a tarde de hoje e ir tratar das coisas da alma, o padre Afonso pretende falar comigo, se possível amanhã com os nubentes. Alargo o meu sorriso face à seriedade da declaração e ao anúncio das medidas protocolares.

Entretanto, chega o Rui Gamito, não vem por acaso, quer saber qual o tipo de prenda que nos faz falta, eu não tinha resposta a dar, muito superficialmente a Cristina e eu tínhamos abordado o aluguer da casa a partir do seu regresso, em Maio, estando os electrodomésticos, postos de parte, por razões de transporte, e sendo eu um noivo sui generis, que oferecia à noiva discos como prenda de casamento, era impossível dar uma resposta sobre as nossas necessidades quanto ao recheio da casa. Deixei a minha mala e sacos entregues ao Emílio Rosa e parti de jeep para o centro de Bissau. Apanhei o padre Afonso, ele ia dar catequese, acordámos que conversaria comigo depois da missa das 18h30.



"Capa do romance policial Dez Dias de Mistério, de Ellery Queen. Nº 73 da Colecção Vampiro,tradução de Elisa Lopes Ribeiro, capa de Cândido da Costa Pinto. Indiscutivelmente uma obra-prima do romance policial dos anos 40,inscreve-se no ciclo de Wrightsville,uma imaginária povoação não muito longe de Nova Iorque que será o palco de outros romances imaginosos de Queen. Desta feita, uma mente cruel urde uma vingança que leva à destruição um jovem casal amoroso. Queen trabalha com anagramas e os 10 Mandamentos para chegar à verdade. O desfecho clarificador, no final, é esmagador, os Van Horn desaparecem, depois de 10 dias de mistério" (BS)...


Entrei na 5ª Rep, um dos cafés mais buliçosos de Bissau, àquela hora todos bramavam aos gritos sobre histórias havidas com minas e emboscadas, a um cantinho andei a vasculhar por livros e tirei dois, um policial de Ellery Queen e chamou-me a atenção um livro de Doris Lessing, com um título assombroso, A Erva Canta. O primeiro, intitulado Dez dias de mistério, li-o sofregamente nas minhas duas últimas noites de solteiro. Ellery Queen volta a Wrightsville, desta vez para ajudar Howard Van Horn, que conheceu há dez anos em Paris. Howard é escultor, parece que sofre de amnésia, está num grande sofrimento, Ellery aceita acompanhá-lo até Wrightsville. Começa aqui um policial gigantesco, cheio de anagramas num enredo onde a tragédia grega se insinua. Existe Diedrich Van Horn, o pai de Howard, e Sally, a jovem madrasta de Howard, bem como Wolfert, o tio de Howard e irmão de Diedrich. É à volta deste quarteto que se desenvolve uma tragédia genialmente urdida por uma mente vingativa, em dez dias desenvolve-se um projecto de ódio que gira à volta dos Dez Mandamentos. Ellery Queen em poucos momentos terá alcançado no romance policial uma construção tão poderosa com um desfecho que se vai descodificando como uma espiral de angústia, de modo a que o criminoso vai deixando cair as suas guardas, ficando nu perante a ruína e destruição que provocara de premeio, num projecto diabólico que conduzira dois jovens apaixonados à morte.

Nunca resisto ao fascínio do cais do Pidjiguiti, as fainas do embarque e do desembarque, a estiva, a gritaria dos pescadores, o ilhéu do Rei como pano de fundo. Olho à direita, para o edifício do Comando Naval, sou assaltado pela saudade do comandante Teixeira da Mota.

Regresso à catedral, e depois da missa procuro o padre Afonso. Imprevistamente, sem nenhuma preparação aparente, ajoelho-me e confesso-me. Levanto-me depois da absolvição, chegou a minha vez de reclamar o que venho pedir à Igreja para a minha festa. Existe órgão mas não sei se existe organista. O padre Afonso diz que sim, posso contar com música de órgão. Pergunto se é possível casar ao som da Toccata e Fuga BWV 565, de Johann Sebastian Bach. É uma peça magnificente, é um céu que se rasga, na minha imaginação Deus Todo Poderoso tem os braços abertos para receber os seus filhos, é um triunfo do Juízo Final. Isto na Toccata, e na minha imaginação. A fuga é um passeio por este mundo, um calcorrear até chegar a Deus, obter a Sua misericórdia, ao som das trombetas. Claro, tudo na minha imaginação, depois do piano e do violino nada me sacia mais na música que o órgão, ali encontro sempre imagens, ali alcanço alguma serenidade. Está prometido, casarei ao som da Toccata e Fuga BWV 565.

Prevê-se que a Cristina chegue ao princípio da tarde de amanhã, há algumas compras a fazer, prometo que voltaremos a seguir à missa das 18h30. E vou para casa dos meus padrinhos. Ao jantar, volto a receber directivas: o Emílio e o David acompanhar-me-ão a Bissalanca; a noiva desloca-se para casa dos Payne, a Isabel sairá connosco, nesse dia jantaremos no Solmar, iremos a seguir ao Quartel General tomar uma bebida, depois deitar cedo e cedo erguer, os padrinhos trabalham, os nubentes que passeiem, desfiando as suas promessas e juras de amor.


(iii) Recordações do último passeio de um oficial só


Tenho a manhã do dia 15 por minha conta, a leitura do Ellery Queen está a encher-me as medidas, sinto necessidade de me passear no meio da sublime arte africana e vasculhar papéis. Despeço-me da Elzira e do Emílio, estou de regresso antes da uma da tarde, para seguirmos para Bissalanca. Desço o bairro, em minutos estou na Praça do Império, olho sempre intrigado para aquele monumento que comemora a pacificação da Guiné, em 1936, uma viga colossal de pedra que parece vigiar o Geba ao fundo; e entro no Centro de Estudos, uma casa onde já me sinto bem. Compro os boletins que D. Violete me pediu e começo a cirandar, ocioso, à volta das estantes. Por puro acaso, encontro uma fotografia de Abdul Indjai, em pose de estado, magnífico, quase luxurioso.
A obra intitula-se Memória da Província da Guiné destinada à Exposição Inter-Alliada, de Paris, por Armando Augusto Gonçalves de Moraes e Castro, Bolama, Imprensa Nacional,1925.Encontrei aqui um parágrafo assombroso:«A Guiné é, de facto, a mais rica das nossas Províncias africanas nas possibilidades de produção agrícola.Quem for activo e inteligente,quem tiver na vida o grande sonho de vir a ser rico pelo esforço próprio-aqui encontrará o El-Dorado das suas legítimas ambições.»Esta fotografia mostra-nos o Bissau Velho, confirmo o que anotei nos meus cadernos e escrevi nos aerogramos: é a arquitectura que se encontrava em Mortágua, Mangualde ou Penalva do Castelo. Tenho saudades de me passear no Bissau Velho,onde comprei livros, música e alguma roupa (BS).


Depois sento-me a ler um relatório de 1890, escrito pelo então governador interino Joaquim da Graça Correia e Lança. Passo para o meu caderninho viajante o seguinte: “Ainda recentemente em Geba terminou uma luta que nos convence que não podemos contar com a afeição dos fulas pretos. Mussá Muló praticou tais violências que Ambucu, régulo de Ganadu, os expulsou dos seus territórios. Corrae, irmão de Ambucu, que via em Mussá Muló o verdadeiro senhor do território fula de Geba, sonhava com a independência deste presídio, sob a autoridade daquele régulo. Corrae pretendia declarar guerra ao presídio de Geba e o pretexto que encontrou foi a protecção dada pelo Governo aos mandingas e beafadas, que recentemente tinham fundado duas tabancas em São Belchior e Sambel Nhantá. Na sequência, o chefe de Geba convocou os régulos aliados a pegar em armas contra o rebelde Corrae. Este foi derrotado e deportado para Moçambique”.

Arrumo este relatório e logo me desperta a atenção dois artigos, um sobre a Guiné em 1893 e outro referente ao período 1907-1908, ambos publicados na Revista Militar, em 1946. O tenente-coronel José Augusto Velez. Falando de 1893 escreve que a guarnição militar era constituída por três companhias de polícia, sediadas em Bolama, Bissau e Geba e que havia três postos militares, um no chão dos mandingas, nas margens do Geba, Sambel Nhantá; outro no chão dos beafadas, em Sambel Chior; e mais um outro no chão dos fulas, o de Bula.

É bem curioso o artigo do brigadeiro Nunes da Ponte sobre a Guiné de 1907-1908. Escreve ele, e eu registo metodicamente: “A ilha de Bissau, com 35 km de comprido e 10 de largura não era suficientemente conhecida porque nunca tinha sido explorada. Nem mesmo se sabia ao certo qual a sua população, então avaliada em oito mil homens, distribuídos por grande número de tabancas, das quais as principais eram Intim, Bandim, Safim, Contume e Antula, todas impenetráveis ao branco”. E, mais adiante: “Não havia uma carta regular da ilha. A Praça de São José de Bissau era insignificante como povoação. Era triste, lúgubre, soturno o aspecto daquele pequeno aglomerado populacional. A vista esbarrava-se contra a muralha escura, de traçado rectangular, com um baluarte em cada ângulo, que cercava a Praça em toda a extensão, contornada por fosso largo e profundo”. Olho para o relógio, está na hora de regressar.



Despedi-me da Cristina no cais da Rocha do Conde de Óbidos em 24 de Julho de 1968. Espero vê-la dentro de uma hora. Neste momento nem me ocorre pensar que a lua de mel vai desaguar no internamento da neuropsiquiatria. O importante é que tudo vai mudar, espero em Agosto regressar a Lisboa e aos estudos. Caminho pensativo com a sorte que está reservada aos meus soldados, de quem me irei separar e muito provavelmente perder-lhes o rasto. Vou pensativo, é injusto viver-se, partilhar-se tanto sofrimento em conjunto e depois afastarmo-nos.

E lá vamos os três a conversar em voz alta, a caminho de Bissalanca. O padrinho Emílio não deixa de observar:
- Sê gentil, já não estás na guerra. Que a Cristina não se aperceba da guerra durante este tempo.
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Nota de L.G.:

(1) Vd. poste de 30 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2902: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (33): A correspondência epistolar na véspera do meu casamento

Por razões de viagem ao estrangeiro do editor L.G., que tem esta série a seu cargo, não se publicou, na semana passada, o episódio nº 34. As nossas desculpas ao Mário e aos seus fãs.