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segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22740: Notas de leitura (1394): "Madrinhas de guerra, A correspondência dos soldados portugueses durante a Guerra do Ultramar", de Marta Martins Silva, prefácio de Carlos de Matos Gomes; Edições Desassossego, 2020 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,

É uma terna surpresa, esta investigação de Marta Martins da Silva, uma viagem circundante pelas guerras do Império, as madrinhas de guerra vinham procurar aplacar a solidão daqueles jovens que procuravam amarras na comunicação com o mundo de onde provinham, alguém fora dos contatos estabelecidos pelos vínculos familiares ou um quadro afetivo de onde se sabia de antemão que vinham abraços de coragem, família e amigos situavam uma atmosfera de identidade, as madrinhas de guerra era outra coisa, propiciavam oportunidade de abrir portas a um mundo desconhecido, quem escrevia ignorava a vida do outro e numa espiral podia crescer a intimidade, a madrinha enviava dados da sua vida e prometia companhia a quem combatia lá longe. 

Marta Martins da Silva vai ao passado da I Guerra Mundial, exatamente como faz agora com livro recém-publicado e intitulado Cartas de Amor e de Dor, recordações íntimas e poderosas do Ultramar, Edições Saída de Emergência, 2021, de que mais tarde falaremos. Posso estar equivocado, mas não há relato tão belo sobre o desempenho destas mulheres anónimas como este livro que se revela um verdadeiro prodígio de História Oral.

Um abraço do
Mário



A madrinha de guerra sabe que é importante distrair o seu afilhado

Mário Beja Santos

"Madrinhas de guerra, A correspondência dos soldados portugueses durante a Guerra do Ultramar", de Marta Martins Silva, prefácio de Carlos de Matos Gomes, Edições Desassossego, 2020, é um livro surpreendente, pela inovação da pesquisa, pela abrangência do tratamento da temática, pelas questões sociológicas que ousa levantar. E Carlos de Matos Gomes abre as hostilidades com um magnífico prefácio:

“É uma obra sobre as estratégias pessoais dos jovens portugueses feitos soldados para preservarem a corrente que os liga à origem, para resistirem às várias mortes, a física e a emocional. As madrinhas de guerra constituíram uma das amarras que permitiram ao mobilizado continuar a fazer parte da sua comunidade, enquanto ser social (…)

A correspondência trocada entre os militares portugueses e as suas madrinhas de guerra revela que aquela não era uma guerra que pudesse ser ganha por aqueles soldados. As primeiras cartas falam do cumprimento de um dever, de um tributo a pagar, mas, logo de seguida, do regresso, do vazio da missão que cumprem. Não se vislumbra nenhum sentimento de orgulho por estarem os militares mobilizados a contribuir para uma vitória ou para uma grande causa. As cartas manifestam, isso sim, preocupações com a sobrevivência, com o desejo que o tempo passe sem deixar grandes marcas (…) 

Da leitura das cartas subentendemos que a guerra também foi o pretexto para procurar uma companhia, um destino, um futuro. Umas vezes o resultado foi feliz, noutras nem tanto. Em muitos casos, os correspondentes e as madrinhas perderam o rasto um dos outros. Quando as promessas trocadas nos aerogramas não se concretizavam na chegada dos militares à metrópole, muitas madrinhas e muitos dos mobilizados acabaram por queimá-los e a outras recordações da guerra, como um adeus ao passado. Marta Martins Silva reconstrói com emoção parte dele”.

A primeira surpresa que a autora nos proporciona é falar-nos de um livro de um pioneiro da arqueologia, Coronel Afonso do Paço que escreveu o livro "Cartas às madrinhas de guerra", com data de 1929, e nos fala da guerra das trincheiras. E temos a história de um grupo de mulheres que incentivou esta forma de comunicação, os extratos que a autora nos oferece dão conta da evolução do estado de espírito do combatente Afonso do Paço, basta o extrato de uma carta de fevereiro de 1918:

“Se a madrinha soubesse o quanto nós sofremos nesta vida de trincheira!? Se pudesse imaginá-lo!? Diria que era uma vida inteira votada à dor e ao sofrimento, porque só de dor e sofrimento é feita a nossa vida na trincheira. Sofre-se de metralha que nos corta as carnes em paroxismo de dor. Sofre-se de gases que nos queimam o corpo, que secam as goelas, fazem espirrar como cabritos ou chorar como Madalenas. Sofre-se de frio, os pés na lama, a roupa pegada ao corpo, as articulações emperradas de reumatismo. Sofre-se de piolhos que nos roem a pele. Sofre-se na terra de ninguém rastejando sobre a lama ou cadáveres em putrefação”.

E daqui partimos para os aerogramas, em Jumbembém Manuel de Sousa vai contando o seu fadário, e vem logo a propósito conhecer a popularidade do chamado bate-estradas, grátis para um militar, a preço insignificante para as famílias, envolveu o Movimento Nacional Feminino (MNF), o Serviço Postal Militar, a TAP, os transportes marítimos. 

A dirigente do MNF, Cecília Supico Pinto, define a competência da madrinha: escreve ao afilhado pelo menos todas as semanas, procura ser sempre agradável, versando os assuntos que mais possam interessá-lo, escreve para o distrair. Porque, como nos recordou Carlos Matos Gomes, quem partiu para aqueles teatros de guerra a tudo quer resistir quando sentiu que quebrava uma ligação ao que lhe era matricial à sua terra, à sua família, à sua comunidade, aos seus projetos de vida. E a autora desenvolve habilmente a origem e o sucesso deste meio de comunicação, dá-nos o essencial do que foi o papel do MNF, como se chegava à madrinha de guerra, muitas vezes era graças às revistas mais populares da época, caso da Crónica Feminina, talvez o maior sucesso de todos os tempos em Portugal de uma revista de entretenimento. Um meio que permitiu enredos, aproximações que levaram à descoberta do amor ou que respeitaram à mera formalidade da ajuda que era pedida para distrair um militar.

E temos uma correspondência que permite conhecer o perfil de quem escreve, como vive, do que gosta, como ocupa o tempo, como trabalha. O militar responde, começa então respeitoso e vai-se desprendendo, pergunta se há namorado na costa, pede fotografia, umas vezes é comedido a descrever os horrores da guerra, outras vezes não tanto, trabalha na padaria, na manutenção de viaturas ou na secretaria, e não quer dar parte de fraco. 

Essa riqueza epistolar é-nos dada pela autora através de uma transcrição muito bem escolhida que intitula “Amor em tempo de guerra”, no fundo o triunfo dos aerogramas, tudo vai acabar bem, no altar ou na conservatória, com o copo-de-água possível. O primeiro contacto é sempre tocante, caso de Mário Silva para a menina Rosa Maria:

“Menina, você dizia-me que gostava de saber de onde eu era, pois eu sou de aí de perto, tão perto que pertenço à mesma freguesia. Sou natural de Vilarinho, mas já vivo fora da terra natal há 10 anos, estando os últimos anos como padeiro em Lisboa. Menina, quando me escrever, não se importava de me mandar dizer se é natural de Cacia e ao mesmo tempo agradecia que me trates por tu. Se por acaso a menina não se importasse podíamos escrever como madrinha e afilhado? Agradeço uma vez mais a atenção dispensada".

Nem todos os casamentos irão ocorrer pouco depois da chegada do jovem, a autora deixa-nos para o fim um amor de longa espera entre Maria do Céu Cadima e Fernando Paredes. A Maria do Céu nunca deu ao Fernando qualquer sinal de que queria ser mais do que a sua madrinha de guerra, nunca se ultrapassava a linha da amizade, o Fernando queria mais. A vida trocou-lhes as voltas, Fernando casou com Maria Olinda, sem nunca deixar de pensar na sua Céu. A mulher de Fernando adoeceu e morrer em 2010, pouco depois Fernando também adoeceu com linfoma nos ossos, chegou a ir viver para um lar, onde contava a sua antiga história de amor, os moradores, comovidos, encorajaram-no a encontrar-se com a amada. E como no romance de Gabriel García Márquez, "O Amor nos Tempos de Cólera", cinquenta anos depois, Fernando plantou-se à porta da Céu, ela disse que não mas aceitou reatar a amizade. O resto merece ser transcrito:

“Casaram a 13 de maio de 2015 pelo civil e a 1 de agosto passaram a morar os dois em Alfarelos, a terra do noivo. O casamento pela igreja fez-se a 7 de novembro, na Igreja de S. Martinho, em Montemor-O-Velho, a terra da noiva. A cerimónia teve guarda de honra dos Bombeiros Voluntários. Mas a felicidade que tardou a chegar para o casal não ficou durante muito tempo e por isso Céu não pôde ajudar Fernando a contar esta história, a história de um amor que venceu passado 50 anos com uma guerra pelo meio e muitas adversidades. ‘Só estivemos juntos um ano e meio, a Céu teve uma pneumonia e como tinha as defesas em baixo não resistiu a uma bactéria hospitalar. Foi um golpe duro depois de tanto lutarmos por este amor’, conta Fernando comovido. Céu, a fininha de voz doce que lhe disse naquele primeiro baile que não sabia dançar, morreu no dia 8 de janeiro de 2016. ‘Céu, eu nunca te vou esquecer’."

E com este ponto culminante finda um itinerário que é mar ignoto para as novas gerações, tudo parece inacreditável ter havido mulheres que escreviam a um desconhecido, por sugestão do Movimento Nacional Feminino, dando alento e por vezes lugar a declarações apaixonadas, algumas que chegaram ao altar.

É uma dádiva maravilhosa, a de Marta Martins Silva, pôr estas mulheres esquecidas em cena pela voz das próprias, acabaram por ser protagonistas de uma guerra que seguramente nada lhes dizia, cumpriram o seu dever e até por vezes encontraram amor para toda a vida.

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Nota do editor

Último poste da série de 15 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22721: Notas de leitura (1393): "História da África Contemporânea, da Segunda Guerra Mundial aos nossos dias", por Marianne Cornevin, I Volume; Edições Sociais, 1979 (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 21 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22303: Notas de leitura (1362): “Itinerários de Amílcar Cabral”, organização de Ana Maria Cabral, Filinto Elísio e Márcia Souto; Rosa de Porcelana Editora, 2018 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Novembro de 2018:

Queridos amigos,
Em 2016, aqui se fez menção ao livro "Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena: a outra face do Homem", um conjunto de mais de 50 cartas que versam a relação entre Amílcar Cabral e Maria Helena Vilhena Rodrigues, um arco de missivas que vão desde a aproximação amorosa até aos preparativos da partida de Maria Helena para acompanhar o líder do PAIGC no exílio. Iva Cabral, a filha mais velha do casal, era a depositária deste valioso espólio. Agora a investigadora Aurora Almada e Santos, de colaboração com a segunda mulher de Amílcar Cabral, Ana Maria Cabral, que vive em Cabo Verde e é membro-dirigente da Fundação Amílcar Cabral, coligiu e contextualizou com rigor este acervo de bilhetes-postais que o líder revolucionário endereçou à mulher entre 1966 e 1972. Um documento indispensável para conhecer melhor o homem e a causa pela qual deu a sua vida.

Um abraço do Mário



Postais de viagens de Amílcar Cabral, cânticos de amor e saudade

Beja Santos

“Itinerários de Amílcar Cabral”, organização de Ana Maria Cabral, Filinto Elísio e Márcia Souto, Rosa de Porcelana Editora, 2018, é uma reunião de postais de Amílcar Cabral endereçados à sua segunda mulher, Ana Maria Sá Cabral e aos filhos, da Escandinávia à África Ocidental, de Marrocos ao Médio Oriente, ficou-nos o legado de bilhetes-postais vintage onde se fala da saudade, dos cuidados, dão-se informações ligeiras sobre congressos e meetings, é permanente a preocupação com o estado de saúde da mulher amada. Esta é credora de todo o seu afeto.

Logo no postal de 10 de dezembro de 1966, de Genebra: “Ana, Sem ti, as maravilhosas entrecôtes do café de Paris não valem nada”. A Suíça era uma plataforma para se alcançar outros países e Cabral mantinha contactos regulares com organizações de solidariedade no país. No ano seguinte, expede do Cairo outro postal onde se vê mar, rochas e palmeiras: “Olha bem para este postal: a ânsia de vida dos rochedos espelhada no verde das palmeiras, da esperança no isolamento do mar. Do infinito também, porque o dever fecunda a certeza – e a saudade, amor”. Cabral ia assistir à conferência da Organização de Solidariedade com os Povos Afro-asiáticos, com sede no Cairo. E escreve ao filho: “Querido Raúl, o papá tem pena de estar fora de casa no dia dos teus anos. Mas pensa muito em ti, faz votos para que cresças bem e sejas um grande militante do nosso Partido, para servires bem o nosso povo. Que a mamã não se esqueça de te fazer um bolo bonito”

Em julho do ano seguinte, escreve da Argélia: “O Osvaldo (talvez Osvaldo Vieira) trouxe-me um raio de sol: a tua carta. Acho que em vez de te resignares a viver só, deves decidir-te a acompanhar-me, que sou o teu companheiro”. Ainda em Argélia, nessa viagem, escreve à mulher: “Ana querida, Um dia será erigido um monumento ao camelo, pilar silencioso da presença do homem na aridez do mundo. Eu admiro os camelos na sua elegância própria, mas sobretudo na altivez do seu olhar”

Em outubro desse ano escreve de Dacar para a RDA, envia um postal como a imagem de uma aldeia africana: “A beleza de uma paisagem pobre está mais no sonho do seu progresso do que no equilíbrio dinâmico do seu espaço, humano ou físico. O sonho só é realizável no conhecimento: assimilar o essencial da realidade para transformá-la. Esta é a nossa luta: conhecer para transformar no sentido do progresso, a realidade física e humana da nossa terra. Nela, estou convencido dar mais do que tenho ou posso. Não, porque tu existes como minha companheira”

No ano seguinte, novamente do Cairo: “Espero que estejas já menos triste ou só com a tristeza da minha ausência. Eu estou triste porque não estás comigo, mas me alegra imenso o crer que cada dia estarás mais ao meu lado mesmo quando não estou. E eu ao teu lado também”. Recorde-se que o Cairo, tal como a Argélia, tornara-se num centro de apoio à luta contra o colonialismo. Nasser entendia que a República Árabe Unida não poderia ficar indiferente perante a persistência do colonialismo. Em 1970, de Túnis, envia um postal com a vista portentosa de Monastir: “Quando estou ao pé de ti – e estás bem-disposta, sorridente – a vida brilha como este dia de sol azul nos desertos da Tunísia. Que sejas o meu oásis – e eu o teu – nos vendavais desta luta gloriosa”

No ano seguinte, em Addis Abeba: “Ana querida, Apesar das pobrezas, das misérias e grandezas de um ‘império’, a Etiópia é rica de cores humanas e naturais. Espero que um dia, que não tarda muito, tu virás aqui para, juntos, admirarmos e aprendermos. Tenho muitas saudades tuas e penso nos dias que vais ter com o tratamento, porque os ouvidos são muito delicados”

Dias depois, ainda no decurso da sessão da Organização da Unidade Africana, envia à mulher um postal com uma jovem etíope, num quase perfil e com uma cabaça na cabeça: “Esta deve ser uma das expressões de mulher das mais belas do mundo. Mas será de certeza a segunda, porque, para mim, a primeira és tu, meu amor”

Tempos depois, em Estocolmo, a imagem do bilhete-postal é uma tulipa: “Aqui está uma tulipa: bela, altiva, rica de silêncios e de mistério. Como tu, companheira. Que tenhamos longa vida na luta difícil mas gloriosa pela libertação e progresso do nosso povo: para que à luz da tua beleza, na altivez cada dia mais construtiva dos teus gestos, transformemos os silêncios em alegria de viver e o mistério na força da nossa vida: o amor pela justiça”

Em março de 1972, envia de Trípoli um postal com a imagem do mercado de Leptis para o filho: “Raúl, Um dia, que não tarda muito, tu serás um homem, viajarás pelo mundo e conhecerás as maravilhas que o Homem criou. E saberás que a melhor maravilha que o Homem criou é o próprio homem de que as crianças como tu, são as flores.
Beijos do papá”.

Trata-se de uma edição cuidadosíssima, a contextualização histórica coube a Aurora Almada e Santos, insere textos de António Guterres, Guilherme D’Oliveira Martins, Jorge Carlos Fonseca e José Maria Neves. Márcia Souto e Filinto Elísio já nos tinham brindado com outro livro igualmente de Amílcar Cabral, “Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena: A Outra Face do Homem”, Rosa de Porcelana Editora, 2016, versa um conjunto de 53 cartas que o líder do PAIGC enviou à colega, namorada e primeira mulher, é um documento relevante na justa medida em que permite aquilatar a dimensão afetiva do estudante de agronomia até à partida para o exílio do líder revolucionário. 

Voltando aos itinerários de Amílcar Cabral, eles poderão ser muito importantes dado o facto de cartografar e calendarizar o percurso de um dos mais reconhecidos dirigentes da luta pela autodeterminação, são testemunhos de um desvelo amoroso, de uma presença constante a pedir ajuda para a sua causa, fala insistentemente na saudade, esteja em Moscovo, Nova Iorque ou Estocolmo, permitem conhecer o estado de espírito do lutador, ir sentindo a palpitação pela credibilidade e aceitação do líder do PAIGC na cena mundial.

António Guterres refere o livro de memórias de Gérard Chaliand, “A Ponta da Navalha”, onde o intelectual conta que quando disseram a Nelson Mandela “Tu és o maior”, este terá replicado: “Não, o maior é Cabral”.
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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22279: Notas de leitura (1361): "Forças Expedicionárias a Cabo Verde na II Guerra Mundial", de Adriano Miranda Lima; Março de 2020, Edição de Autor (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Guiné 61/74 - P17669: Notas de leitura (988): “Cartas do Mato, Correspondência Pacífica de Guerra”, por Daniel Gouveia, Âncora Editora, 2015 (1) (Mário Beja Santos)

"Cartas do Mato, Correspondência Pacífica de Guerra”
Autor: Daniel Gouveia - Âncora Editora, 2015



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Agosto de 2017:

Queridos amigos,
Este alferes que cumpriu o serviço militar no Norte de Angola não é, no blogue, um forasteiro. Já aqui se apreciou a sua gema literária "Arcanjos e Bons Demónios - Crónicas da Guerra de África", ficou uma enorme vontade de ler mais.
Entende-se a experiência e os conhecimentos que são vazados nesta correspondência, era aluno de Românicas, foi pianista no Quinteto Académico, multiplica-se em atividades, até a musicologia do fado não lhe escapa. Faz jus ao título da obra: correspondência pacífica, porque é um homem de cuidados, há no que escreve a curiosidade de um antropólogo, preza sem prosápias cuidados que até se estendem à enfermagem.
Este livro é não só um belo regresso a narrativas onde não há amargor, desquites ou maledicências. Vale a pena continuar. Atenção, vejam com cuidado a alegria daquela malta do nosso tempo a exibir o correio recebido, nunca vi fotografia igual.

Um abraço do
Mário


Cartas do mato, por Daniel Gouveia (1)

Beja Santos

De Daniel Gouveia já aqui se saudou o seu notável “Arcanjos e Bons Demónios – Crónicas da Guerra de África”, DG Edições, 3.ª edição, 2011. Em abono dessa sua preciosa narrativa, vamos agora dar atenção a “Cartas do Mato, Correspondência Pacífica de Guerra”, Âncora Editora, 2015. Por uso e costume, o centro das nossas atenções vai para o que se escreve sobre a guerra da Guiné, mas faz-se sempre o reconhecimento de que só ganhamos em comparar o que é comparável em toda a literatura da guerra; em comparar e distinguir, pois claro, cada teatro tem as suas especificidades, houve diferentes hostilidades. Mas ao comparar e distinguir também elevamos o nosso olhar para um patamar de princípios, de ética, de fusão da camaradagem: os valores e os sentimentos universais, aquilo que é transversal no combatente, seja a descoberta dos novos ambientes, as formas de adaptação, o quinhão da solidariedade, as angústias e os medos, a repartição dos farnéis, o combate contra a solidão, e o medo das picadas, a angústia das esperas, o caminhar dentro das florestas húmidas, a reação à emboscada; e a caraterização dos protagonistas, o cozinheiro, o padre, o apontador de bazuca, o oficial e o sargento, a ansiedade na chegada do correio.

Todos os escritores são diferentes, e dentro deste gozo da personalidade Daniel Gouveia tem opções claras, mesmo como agora em que se socorre de estratos de correspondência: vê à sua volta e transmite apreciações construtivas, é cuidador, tem bom ouvido para o chasquear dos outros, adapta-se perguntando, está mortinho por saber, daí a sua admiração pelo pisteiro de Tomboco, localiza as viagens, dá nota das chegadas, não esconde a satisfação pela pilhéria, nunca o iremos ver alcandorado em triunfos militares, na sua narrativa é impensável a pesporrência e nunca descuida qualquer comentário crítico, a propósito. Tudo começa no Grafanil (a sua comissão militar é em Angola, naquele amplo território denominado Zaire, acima de Ambrizete e não muito longe de S. Salvador. Foi em rendição individual, conheceu o seu pelotão a bordo do Vera Cruz e escreve:
“… Conheci, finalmente, o meu pelotão! É constituído, na sua maioria, por transmontanos, rijos como penedos, rudes e simples. São mais ou menos pequenitos de estatura, mas que peitaças!”.

Pois no Grafanil já há hinos e quadras, segue-se para Tomboco, o pisteiro Teixeira é uma fonte de sabedoria para conhecer a selva. Informa quem ama que lhe vai falar do pingómetro, um tal aparelho que serve para medir pingos, foi inventado pelo Capelão, o Padre Campos, havia o grande problema de saber quando é que o depósito de água estava vazio. Mostra os desenhos da invenção do padre e escreve:
“É fácil, como se vê: se está cheio, a pedra está em baixo! Se o calhau está próximo da roldana, é bom ir ligando o motor, pois já ninguém se atreve a meter-se no duche. A medida-padrão do pingómetro é o furco, uma medida regional da terra do capelão que equivale à distância entre o polegar e o indicar no máximo do seu afastamento”. 
Assim tornava-se compreensível dizer que faltam “três furcos para acabar a água” ou que “daqui a dois furcos já há água nos quartos”. As suas pitadas de humor fazem ressaltar o seu espírito faceto, a estampada ingenuidade de quem ouve e não sabe pôr em palavras rigorosas, é diversão sem humilhação:
“… Em certas circunstâncias usa-se o very-light, um artefacto pirotécnico de luz verde, vermelha ou branca que fica a pairar no céu por uns momentos, iluminando ou dando sinal para qualquer ação. Claro que os soldados recebem instrução sobre isso. Mas ontem verificou-se que não lhe ensinamos devidamente a palavra.
Um soldado estava de sentinela, à noite, vê uma estrela cadente particularmente intensa. Deixou um camarada no posto e veio a correr, muito aflito, avisar os oficiais: 
- Meu Capitão, meu Capitão! Vi agora mesmo um pirilaipe! Ainda gozámos, pois o capitão insistiu: 
- O que é que tu viste? - Um pirilaipe meu Capitão”.

Meses depois está no Lufico, a 80 Km de Tomboco, e escreve deslumbrado:
“… Uma coisa aqui é soberba: a paisagem. Vassalo, como sou, da Natureza, encontrei neste quartel perdido do Norte de Angola todo o esplendor africano que não poderia encontrar em todos os filmes sobre a selva, juntos. O acidentado do terreno coloca toda esta exuberância vegetal em cenários sucessivos de colinas e vales, com maciços de palmeiras a bordejar os rios turbulentos de cascatas e rápidos. Os cabeços, de vegetação mais rala, estão, no entanto, povoados de monumentais embondeiros cujos ramos, quase nus, se organizam numa incomparável filigrana quando o sol, feito enorme bola de fogo, se lhes põe por detrás. Colocaria aqui, sem hesitar, o presépio do Menino Jesus de raça negra”. 

Segue para Zau-Évua, a 90 Km de Tomboco, houvera uma emboscada em Quibala, 100 Km ao Sul de Zau-Évua, com 7 mortos e 11 feridos. Novo comentário, tal a embriaguez da paisagem: 
“A toda a volta do quartel é uma interminável planície, verde-acastanhada do capim a ficar seco, onde se implantam, como ilhas, alguns morros colossais e dispersos, só rocha, dos quais um grupo de 9, cujas cristas lembram o dorso de elefantes, deu o nome ao local”.

A 9 de Junho está em S. Salvador do Congo, a capital do distrito do Zaire. A sua descrição mostra o seu permanente olhar divertido, espraia-se na apresentação do espaço e situações:
“Ainda existe, morando na cidade, em casa construída pelo Governo e com uma pensão vitalícia, a última rainha do Congo, D. Isabel, uma negra de meia-idade, afável e senhora do seu papel, que não come comida se não cozinhada por si, desde que o marido, o rei do Congo, morreu envenenado há alguns anos.
A cidade – se é que, em tamanho, tal se lhe pode chamar – é formada por ‘parte branca’ e ‘parte preta’. A parte branca tem uma vintena de casas civis, dois quartéis, edifícios da administração, arame-farpado e postos de vigia a toda a volta. A pista de aviação atravessa-a de meio a meio, já que assenta no que deveria ter sido uma das avenidas. Assim, há ruas que desembocam diretamente na pista, há lojas cuja montra e entrada dão para ela”.

Em Julho estão em Quiximba e comenta:
“O Quiximba é muito bonito, mas também é muito frio. Estamos no cacimbo. Autêntico Inverno. Anda-se de mãos nos bolsos, ponta do nariz gelada, camisola de gola alta, meias de lã. À noite, quatro mantas e pijama de flanela, com camisola interior e meias calçadas para não ter de inventar uma botija”.
E começa a poetar, Quiximba vai dar muito que falar.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de Agosto de 2017 > Guiné 61/74 - P17663: Notas de leitura (987): “Portugal e o Império Africano - Séculos XIX e XX”, coordenação de Valentim Alexandre, Edições Colibri, 2013 (2) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15254: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XVII Parte): Fima, enfermeira do Partido; Cassaprica e Correspondência

1. Parte XVII de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 14 de Outubro de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - XVII

Fima, enfermeira do Partido 

As cordas apertadas demais, os pulsos a inchar, amarrados atrás das costas. Tinha acabado de ser apanhado pelos tugas, ainda nem sabia como, e logo a ele é que deveria acontecer. Como comandante do acampamento, sempre fora muito rigoroso com os homens que estavam sob o seu comando, sempre exigira que se deslocassem separados uns dos outros, que parassem de vez em quando, escutassem a mata e só depois voltariam a caminhar. E afinal, fora apanhado desprevenido, sem arma, sem nada. 

Viera a semana passada1 dos lados de Sano no Senegal. Muito cansado. Estivera com os camaradas do sector, os dias pelas noites fora, analisaram o trabalho do mês, cada um apresentou o seu trabalho, as emboscadas que fizeram, as minas que plantaram, os ataques aos quartéis da tropa. 
Tinham feito o balanço da situação em cada zona, leram em voz alta as directivas do camarada secretário-geral, as orientações gerais para a luta, a referência expressa à luta dos povos da Guiné e Cabo Verde, para a independência nacional, para a libertação, nunca contra o povo português, juntos na mesma luta contra o colonialismo e o imperialismo, depois as orientações locais, o plano para o mês, não descansar a tropa, escrever papel para deixar junto aos quartéis deles, para desmoralizar, e a ordem para mudar, outra vez, o acampamento de Uália. 
Enquanto regressava com os camaradas, ia pensando nos locais, escolheu o melhor, bem dentro da mata, uma centena de metros a seguir à bolanha, um barraco junto a esta para vigiar tudo em volta. 
Sacos de arroz, mancarra, bicicletas, cunhetes de munições, armas, tanta coisa, casas às costas, tão pouca gente, precisaram mais que uma vez.

Acampamento da guerrilha. Foto de Knut Andreasson. Com a devida vénia. 

Tinha acabado de cavar um abrigo, precisava de se lavar. Fora à bolanha para tomar banho e trazer água.
Viu-se cercado por dois soldados de arma apontada, sem saber como, os tugas emboscados ali mesmo, os garrafões na mão dele, que a tropa tinha deixado em Morés da última vez.

Abriram-me a boca à força, eu não sabia para quê, um lenço preto nos dentes, atado na nuca, outra vez que me levantasse, sem palavras, corda nos pés, uma à cintura presa ao soldado fula. 
Tropa diferente esta, não era a que estava habituado a ver passar. Sem emblemas, sem anéis, sem fitas que os outros tugas trazem sempre ao pescoço, ronco nenhum, sem capacetes até, aquele tem barrete diferente, caras pintadas de preto, nunca vira tropa assim. 
Estranhos, calados, o cano das armas deles também têm olhos, vêem por ele, para a esquerda, para a frente, para a direita, aquele está sempre a olhar para as árvores, tudo muito devagar, assim é mais difícil camaradas vê-los. 
Vi-os à frente, no carreiro para Uália, nosso pessoal descuidado a esta hora da manhã, sem aviso, pode ser uma desgraça, tanto trabalho para nada. Todos não estão, felizmente, mandei pessoal para Mansabá, dois para montar mina e mais dois para segurança. 
Aquelas bajudas com os cestos à cabeça vão ser apanhadas, gritai, gritai com toda a força que puderdes, mais alto, mulheres do PAIGC, glória da nossa luta, assim, para camarada ouvir! 
Os tugas todos a correr, o traidor fula amarrado a mim, não deixa andar, se eu pudesse! Aquelas crianças ali também! 
A enfermeira de Morés? A mulher do Ramos, do Pedro Ramos com a criança às costas?! Porque não fugiu? Não, não lhe façam mal, ela trata do nosso pessoal da luta, faz curativos só, os tugas não me ouvem, lenço não deixa.

Enfermaria do PAIGC. Foto de Knut Andreasson. Com a devida vénia. 

Não sei, não tenho nada para dizer, meu nome é Fima2, sou enfermeira, não falo nada de guerra, trato de feridos só, não pode mexer nesse papel, é carta de meu marido, ouviu? Não pode tirar bilhete de meu marido, não pode! Tenho filhinha às costas, não vê? É hora de ela mamar, deixa!

Bilhete encontrado em poder de Fima Siga 
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Notas
1 - Adaptado do depoimento do Prisioneiro.
2 - Informações posteriores confirmaram que um dos capturados era uma enfermeira da base de Morés e mulher de Pedro Ramos, comandante da guerrilha.
3 - Uma ou duas semanas depois houve informação sobre queixas que terá apresentado sobre a forma como terá sido tratada no momento da captura.

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Cassaprica 

Ofegante, braços cruzados, calada, a exigir respostas. Já não tenho novidades, é?
Olhos, uns olhos grandes, agora cinzentos, brilhantes, húmidos, silêncio, tréguas.
A força das mãos nos braços dele, os olhos a exigir-lhe silêncio agora, não digas nada de que te arrependas a seguir, pára um minuto só, pára!
Gente a passar, a olhar para eles, os dois a olharem para o lado, como se nada se passasse, a mão dela na boca dele, a tapá-la.
A história a andar para trás, tudo a correr para o fim e agora outra vez, tentativas para se descolar, ela a arrastá-lo para o jardim, a empurrá-lo para a rede, em cima dele, vencido.
Passou pelo Bento, arranjou transporte para Brá, um bom banho e meteu-se na cama com os documentos que lhe deram na 2.ª Repartição.

"Cassaprica é o maior acampamento IN existente na área deste posto administrativo. Há um caminho bastante perigoso, porém muito importante, uma vez iludida a vigilância dos sentinelas, pois corta a retirada do IN para a República da Guiné-Conakry em caso de operação em Camissorã. Ainda o mesmo disse que em Bagadai perto de Cane Faque, estão a construir uma jangada de paus para transportar a Cane Faque e daí para Caule uma arma bastante pesada. Também informou que mais de metade dos elementos da guerrilha passou para Caule onde existe um acampamento e um pequeno estabelecimento. Que no entroncamento da estrada velha de Cacafal com a estrada de Cambeque, do lado esquerdo de quem vai para Cabo Nepo, junto a uma árvore grande, existe um abrigo onde o IN aguarda oportunidade de montar emboscada à tropa. (...)"
Três folhas com os depoimentos de guerrilheiros apanhados. Tinham dito tudo o que sabiam e, nada de admirações, também coisas que só se recordaram, certamente, quando os polícias lhes apertaram as unhas, localização dos acampamentos, disposição, quantos guerrilheiros em cada, armas, os nomes dos comissários políticos em alguns casos.
Dentro de uma pasta, uma etiqueta na capa a classificá-los. Estivera a lê-los, o sono a chegar, enfiara-os na pasta e fechou o mosquiteiro.

No outro dia, no QG, deu andamento às informações. Documentos vistos outra vez um por um, algumas notas ao lado, localização de guias, onde falar com eles, transportes, esboçar o plano de operação. Na 3.ª Rep. ficaram de marcar a data, os meios, as horas das marés, as coisas do costume.
Entrou no VW preto que tinha alugado para o fim de semana e meteu a pequena pasta dentro do porta-documentos. Começou a descer para Bissau, um fim de tarde agradável, sentia-se bem sem saber porquê, nada que fazer agora, e se passasse pela casa da Teresa, era capaz de ser boa ideia arrumar o assunto hoje, não?
Rua sem movimento àquela hora, viram-se logo, ela sentada na espreguiçadeira a ler, cadernos espalhados pela relva.
Vamos dar uma volta?
É só um instante, vou-me arranjar.
Parecia outra, que nada tinha acontecido no dia anterior. Dentro do carro, à espera, e o pai dela a subir a rua. Olhos a cruzarem-se, teve que sair do carro.
Senhor alferes, então?
Como está, senhor Vasco?
Então o que diz àquela história da orelha?
Orelha?
Então, olhos fixos nele, o caso do Hotel Portugal, não sabe? Toda a cidade sabe, um horror! Um grupo de fuzileiros ao passar na esplanada do hotel, um deles foi directo a uma mesa com gente de cá, puxou pela orelha de um, sem dizer nada, facalhão na mão, zás, cortou-a, a correr pela rua abaixo, a rir-se, o ferido a escorrer sangue atrás deles, dá-ma, dá a minha orelha!
Não acredita? Testemunhas é o que não falta!
Não sabias ainda, a Teresa parecia que tinha acabado de tomar banho, toda fresca a chegar, a dar um beijo ao papá.

Como da primeira vez em que saíram sós, pouco movimento a esta hora, o carro devagar, mal se ouvia o motor, pelas ruas a descer para o porto, algumas fardas verdes na esplanada do Bento, cortaram para a direita, quartel da marinha, a caminho da Sacor.


Encostou o carro, o Geba orgulhoso lá em baixo, o ilhéu do rei em frente, ele a abrir a porta, a pé pela estrada uns metros até lá à frente, a olhar para o rio com a Ricoh na mão, a magicar como abordar o assunto. Deu a volta por dar, olhou para o carro, pareceu-lhe ver a Teresa com a pasta na mão. Deu-lhes a pressa aos dois, ele a voar sem correr, ela atrapalhada, pareceu-lhe, a fechar o porta-documentos.

Para onde vamos? Então ainda agora chegámos, que pressa é que te deu? Não te estou a perceber, andas tão estranho ultimamente, o que se passa contigo?

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Correspondência

"Faz hoje 15 meses que cheguei. Não é ainda tempo para pensar no fim, muitos meses ainda à frente. Há quem tenha calendário no quarto e todas as noites risque o dia, menos um que falta!
Começo a ter dificuldades em escrever. Não tenho novidades para contar, continua tudo igual, vida calma, sem grandes sobressaltos, o que é óptimo. Estou de boa saúde, desde que estou aqui só tive uma vez paludismo, umas ligeiras febres, aliás, os dentes têm-me deixado sossegado. De vez em quando dou uma corrida para desenferrujar os músculos das pernas. Estou cansado de descansar. Nas horas vagas, que são muitas, leio o que aparece. Os Lartéguys já os li todos, da Indochina à Argélia, as últimas aventuras do império francês a desmoronar-se, os Centuriões, os Pretorianos, os Mercenários. Livros de guerra, que, não sei porquê, são os que se vendem mais aqui. Contraditório, julgo. Livros com outros assuntos vêem-se pouco por aqui. Acabei ontem 'A Confissão do Silêncio' de um tal Shlumberger, uma história de espionagens, passada na 2.ª Guerra. Entre mãos para começar tenho um do Urbano, “Terra ocupada”, a seguir se não tiver outro, a 'Náusea do Sartre', há meses em espera para o retomar. Não sei é se vou conseguir acabá-lo.
O café Bento, uma instituição cá de Bissau, já te falei dele, com uma esplanada enorme debaixo de árvores, onde a gente se junta no final do dia a saborear o fresco, tem um pequeno quiosque onde além do Português Suave, do SG Ventil e de outras marcas de tabaco, rebuçados e chocolates, também vende livros, as últimas novidades literárias acabadas de chegar da metrópole. E é lá que costumo ver o que há de novo.
Cinema não tenho visto nada ultimamente, as fitas que mais passam são coboiadas, o mais interessante destes filmes é ver a assistência, entusiasmada com a cavalaria a chegar quando os peles-vermelhas estão quase a entrar no círculo das carroças dos colonos, ficam tão contentes que se põem a pé, a aplaudir, boinas ao ar. Qualquer coisa serve para o pessoal fazer uma festa. Na montra do cinema está há já algum tempo anunciado um filme do 007, quando vier sou capaz de o ir ver.
Como vês, levo uma vida pacata, tranquila. E pronto já contei a minha vida destes dias, tudo o que escrever daqui para a frente, é só porque não se manda uma carta com tão poucas linhas, até podes pensar que não escrevo mais, por outras coisas, estou a brincar com a menina dos meus olhos, claro.
E por aí, ora conta, como vão as coisas? A vida pelo Porto, pelo Carvalhido, pelo teu trabalho, pelos teus estudos, as aulas de alemão com a Frau Kissau, como vai isso tudo? O 6 ainda não foi substituído pelo trólei? Continua a trilhar pachorrento, da Praça para o Monte dos Burgos para cima e para baixo?
Quando será que nos voltamos a sentar, os dois juntos nesses bancos tão apertados, a ver a chuva do Porto a bater nas vidraças, tu com o teu sobretudo azul escuro, de botões prateados, a cheirar a Madame Rochas ou será Lancôme, e as tuas mãos macias de Atrix? Trouxe os teus cheiros comigo, tenho-os guardado bem pelos vistos, quando me lembro de ti, vêm também.
(…)
Nunca tive muita facilidade em falar de mim, dos meus afectos, em dizer o que sinto. Àqueles de quem gosto, então sempre me foi ainda mais difícil dizer quanto os aprecio, por vezes é-me mais fácil feri-los que reconhecer quanto gosto deles. É uma força mais forte que eu, é uma fraqueza, talvez. Nunca soube como devia fazer, nunca fui capaz de exprimir o afecto que me liga a ti. E, no entanto, foste até agora a melhor coisa que me aconteceu.
Uma estrada tão comprida, falta tanto, tanto tempo ainda, que às vezes penso, será que vamos conseguir?"

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(Continua)
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Nota do editor

Poste anterior da série de 8 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15221: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XVI Parte): Cabral no Oio; Uma carta e Galinha à cafriela

quarta-feira, 15 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14882: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (4): Os amigos e amigas que nos ligaram ao nosso mundo (José Teixeira)

1. Mensagem do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enf, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), com data de 12 de Julho de 2015, onde nos fala dos amigos que,  de alguma maneira, foram o suporte moral de muitos de nós, combatentes, enquanto em campanha.

Caríssimos
Não foram apenas a família e as namoradas que nos ligaram ao mundo do lado de cá da guerra, como podem ver nos anexos.

Abraços
Zé Teixeira


OS AMIGOS E AMIGAS QUE NOS LIGARAM AO NOSSO MUNDO

Alguma coisa se tem escrito sobre as noivas e namoradas que viram os seus “amores” partirem para Guerra Colonial. Seguiam-se normalmente cerca de dois anos de separação em que o amor e os afectos eram alimentados pelas cartas e “bate-estradas”,  vulgo aerogramas. Tempo de sofrimento. Tempo que nunca mais passava.

Um camarada meu recebia um montão de cartas sempre que a avioneta chegava com notícias frescas. A sua namorada assumiu o compromisso de lhe escrever todos os dias e ...ele correspondia de igual modo. Teve azar o Miguel. Uma mina traiçoeira roubou-lhe uma perna. Os seus gritos de dor eram entremeados com gritos de desespero porque pensava que ela, a sua querida, não ia querer um manco como marido. Felizmente o drama acabou bem. Hoje são um casal feliz.

E, quantas vezes, o tempo que teimava em não passar, fazia arrefecer o calor desse amor jurado e selado com beijos de saudade. Namoradas que, cansadas de esperar, por quem nunca mais chegava, mandaram o parceiro dar uma volta ao bilhar grande, para desgosto e sofrimento deste. O contrário, creio bem, que também aconteceu.

Os que conseguiram vencer esta difícil etapa tiveram com certeza uma recompensa proveitosa.
As madrinhas de guerra e o seu excelente papel no apoio aos seus afilhados. Algumas, deixaram-se apanhar pelo “cupido” e transformaram-se com o andar dos tempos em namoradas e até esposas. Outras, assumiam o papel de madrinhas de guerra como uma missão humana quando não patriótica. Elas eram raparigas novas cheias de vida, quantas vezes com compromissos de namoro assumidos com outro, eram mulheres casadas e até velhinhas.

Recordo o caso da madrinha de guerra de proveta idade, já avó e viúva que decidiu entrar nesta roda. Deu o seu nome a uma revista fofoqueira da época e lá lhe apareceu um candidato. Ao fim de algum tempo o “atrevidote” pediu-lhe uma fotografia, que teimava em não chegar. Depois foi mais longe e pediu em namoro. Claro que recebeu uma carta da senhora a dizer que aceitava o seu pedido de namoro.

Aproveitou para lhe enviar uma fotografia pessoal e informou-o do seu estado civil. Calculem o estado de espírito com que ficou o nosso camarada.

Havia ainda os amigos e amigas, sem qualquer rótulo, que nos acompanharam com a sua palavra escrita, naquele tempo de sangue, suor e lágrimas.

Há dias em conversa com uma amiga e esposa de um camarada combatente na Guiné, ao tempo, estudante na ESBAP – Escola Superior de Belas Artes do Porto, hoje uma conceituada pintora da nossa praça, disse-me ela que, em determinado ano escolar, os rapazes da sua turma desapareceram. Apenas ficou um porque era deficiente motor. Os outros “voaram” todos para a Guerra Colonial. A turma ficou vazia. A colega e amiga, tomou a iniciativa de manter uma ligação de carinho e amizade com os desventurados estudantes que desde há vários anos eram os seus amigos do dia-a-dia, assumindo o compromisso de lhes escrever a contar as novidades da escola e da terra. A linguagem que utilizou foi a que eles como estudantes de Belas artes melhor entendiam. O desenho com arte e imaginação, como se pode ver nas imagens.

Um dos colegas com quem ela se correspondeu, muitos anos depois, recordou esta forma de estar e devolveu-lhe com carinho alguns dos belos desenhos que recebera na selva africana, que aqui se reproduzem.

Eu fui dos que tive a sorte de ter alguém que de vez em quando me presenteavam com notícias frescas do meu País. Muito lhes devo pela sua presença fraterna e amiga que de vez em quando, dava sinais de vida, a lembrar-me que eu não estava só. A sua forma de escrita era diferente. Liberta de sentimentos amorosos e preocupações, enviavam notícias, comentários, contos e ditos, enfim!
Transportavam-me de novo ao meu mundo.

Acabada a guerra. Regressado ao ninho de afectos. Abraços distribuídos. Algumas cenas do outro mundo, contada. E a vida recomeçou. Cada um de nós seguiu o seu caminho. A amizade e a gratidão, essas ficaram cá dentro de nós, estejam eles ou elas onde estiverem.

Nunca mais pensei nesses amigos e amigas como os tais que se preocuparam com o meu bem-estar durante a guerra. Apenas a amizade ficou mais solidificada.

José Teixeira





(Cortesia de uma amiga que, ao tempo da guerra colonial, era estudante de belas artes. JT)
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Nota do editor

Primeiros postes da série:

26 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14799: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (1): Carta aberta aos camaradas da Tabanca Grande: o que fiz (e não fiz) como cofundador e dirigente da associação APOIAR (Mário Gaspar, ex-fur mil at art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)

sábado, 14 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12449: O que é que a malta lia, nas horas vagas (17): Jornais, revistas, ordens de serviço, circulares, autos, correspondência, etc (Carlos Vinhal, ex-Fur Mil Art MA da CART 2732, Mansabá, 1970/72)


Como qualquer um, eu lia mais ou menos o que aparecia. Confesso que não me mandavam nada, mas lia aquilo que os outros camaradas me emprestavam.
Diga-se em abono da verdade que passava praticamente todo o tempo que estava no quartel, a ler, porque desde o início da comissão estava "dado" à Secretaria da Companhia, função que mantive mesmo após ter passado a operacional pelo acumular das baixas nos efectivos no pelotão e não só.
Lia Ordens de Serviço, Notas e Circulares, Autos disto e daquilo, etc.
Nas horas vagas, mesmo vagas, tão poucas elas foram, lia o que aparecia, revistas, jornais, livros, etc.
Não posso esquecer a leitura da imensa correspondência que recebia. Acho que posso afirmar, sem faltar à verdade, que era o campeão da 2732. Só me vencia, às vezes, o camarada Branco do Pel Art. A minha noiva escrevia-me seis dias por semana e os meus pais uma a duas vezes. Tinha ainda uma amiga no Algarve (Portimão) e outras familiares que me escreviam regularmente. Ainda trocava correspondência com camaradas em Moçambique e noutros SPMs da Guiné.

Das leituras avulsas, lembro-me de uma notícia incluída naquelas folhas que nos mandavam de Bissau, com notícias de todo o mundo, onde aparecia um tal Vignal (ou Vignale) que tinha protagonizado um assalto ou coisa parecida em França. Claro que naqueles dias fui conotado como parente daquele sujeito nada recomendável.
Outra notícia menos abonatória ao "meu bom nome", esta vinda em revista,  foi o caso de um conhecido jogador de futebol, natural de Matosinhos, por acaso também meu contemporâneo na Escola Industrial, então atleta do clube da águia, que supostamente terá torturado uma mulher da noite lisboeta. - Eh pá, cuidado com os gajos de Matosinhos, diziam-me.

Na foto em cima, tirada de certeza num domingo, estou a ler um livro que fez parte da minha formação escolar, dos quais levei alguns para a Guiné para não esquecer o que tinha aprendido. No caso é o livro de Laboratório de Electricidade (já com capas não originais), do qual os camaradas que passaram pelo Curso de Formação de Montador Electricista, se lembrarão, tinha capas tipo cartolina encarnadas.
Este livro que foi e veio da Guiné comigo, que "resistiu" a imensos ataques ao aquartelamento de Mansabá, acabou por "morrer afogado" em Leça da Palmeira. Passo a explicar.

O escritório onde trabalhava ficava a cerca de 100 metros do mar, separado do areal por uma muralha que, supostamente, nos defenderia do mar em caso extremo.
Num temporal, de intensidade felizmente nunca mais repetido, ocorrido na madrugada do dia 13 de Fevereiro de 1979, o mar, coisa nunca vista até então, galgou toda a praia, saltou a muralha, partiu portas e janelas do edifício, entrou sem pedir licença e mudou o mobiliário da minha sala para as salas contíguas mais recuadas. Por azar meu, a minha secretária que estava situada próximo das janelas por onde a água entrou, partiu-se, sendo despejados todos os meus haveres, entre eles os meus livros técnicos escolares, e entre eles o meu companheiro de comissão de serviço. Nunca mais lhe pus a vista em cima.

Voltando às leituras na Guiné, mal cheguei a Bissau, depois de abandonarmos Mansabá, logo no dia 29 de Fevereiro de 72, comprei um livro, na época um "best-seller", que mais tarde deu origem a um filme, o "Papillon" de Henri Charrière, que, acusado de homicídio, protagonizou uma das mais fantásticas fugas da Guiana Francesa. Viria a falecer a 29 de Julho de 1973, vítima de cancro.

Para provar que além de ler, sabia escrever, anexo foto.

Carlos Vinhal
Ex-Fur Mil Art MA
CART 2732
Mansabá, 1970/72

Mansabá - Arma em repouso porque é hora de escrever à família
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de Dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12447: O que é que a malta lia, nas horas vagas (16): A correspondência que me era enviada, e os autores Ramiro da Fonseca, José Régio, Vergílio Ferreira, etc. (António Eduardo Ferreira)

Guiné 63/74 - P12447: O que é que a malta lia, nas horas vagas (16): A correspondência que me era enviada, e os autores Ramiro da Fonseca, José Régio, Vergílio Ferreira, etc. (António Eduardo Ferreira)

1. Mensagem do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, MansamboFá Mandinga e Bissau, 1972/74) com data de 12 de Dezembro de 2013:

Amigo Carlos
Antes de mais votos de boa saúde, para ti e restante pessoal, como dizem os mais sensatos, há coisas que só depois de as perdermos sabemos o seu valor, talvez por isso eu agora a valorize tanto.

Falando de momentos de leitura, pela parte que me toca foram poucos, a não ser a muita correspondência que recebia e, como era importante essa leitura… ainda que não raramente chegasse bastante atrasada.

Algumas vezes, recebia também um jornal ligado à igreja que me era enviado por familiares, chamado a Voz do Domingo, de Leiria.

A certa altura, não sei precisar a data, na nossa companhia todos recebemos alguns livros, creio ter sido oferta do Movimento Nacional Feminino, desses apenas recordo o título de três; o Médico em Casa, do Dr. Ramiro da Fonseca, O Vestido Cor de Fogo, de José Régio e, a Aparição, de Vergílio Ferreira, este que comecei a ler num dia à tarde, apenas fiz uma pausa para o jantar, depois continuei noite fora até chegar ao fim. Ainda hoje continua a ser um dos livros que mais gostei de ler.

Estas leituras aconteceram em Mansambo, pois em Cobumba apesar de ter muito tempo disponível, apenas lia a muita correspondência que sempre recebia, no abrigo não havia luz e, todas as noites fazíamos reforço.

Durante o dia a vontade de ler era pouca, mesmo não estando de serviço a maior parte do tempo era passado no mesmo sítio, junto ao abrigo, de preferência de ouvido à escuta. Na zona todos os dias havia “festa” quando o foguetório começava nos primeiros instantes não sabíamos quem eram os contemplados, talvez também por isso, a disponibilidade mental para a leitura não fosse a melhor.

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Notas do editor

Capa do livro Aparição do site da WOOK, com a devida vénia

Último poste da série de 11 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12430: O que é que a malta lia, nas horas vagas (15): Livros oferecidos pelo Movimento Nacional Feminino e os meus livros pessoais, tais como: Seleta Literária, História Universal, Inglês e os Lusíadas (Joaquim Cardoso)

terça-feira, 5 de junho de 2012

Guiné 63/74 - P10001: Memórias de Manuel Joaquim (6): Um acidente epistolar: "Furriel Mil Paulo Gabriel Péri Éluard"

1. Mensagem de Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67), com data de 1 de Junho de 2012:

Meus caros Luís, Carlos e Eduardo
Aqui vai mais um texto das minhas memórias de guerra.
A importância que lhe dou é capaz de ser muito maior do que a que realmente tem, já que aborda um acontecimento de cariz muito pessoal.

Como sempre, sem qualquer espécie de reserva da minha parte, deixo ao vosso critério a sua publicação.

Um grande abraço
Manuel Joaquim


Um acidente epistolar: “Furriel Milº Paulo Gabriel Péri Éluard”

Olhava para a carta da namorada, carta já “mastigada” em segunda leitura, carta linda, substantiva, essencial mas… era a única carta recebida naquele dia!

- Oh Henriques, há p’raí malta que recebe cartas c’mó cara…!
- Eh pá, se calhar são de gajas que arranjam na Plateia!
- O quê?!
- Sim pá, a Plateia publica pedidos de correspondência, traz sempre manga deles, não sabias?
- Ah!…então se calhar é isso!!!

Fiquei a pensar, a remoer o assunto. Sentia falta de contactos novos com o “mundo” que tinha deixado, precisava de dialogar e de desabafar com outras personagens para além das do meu círculo pessoal. Surgiu-me uma ideia: e se eu enviasse para a Plateia um pedido de correspondentes femininas? O género sexual não teria importância mas, não sei explicar, naquela altura precisava de vozes femininas. Talvez porque, de machos, estava bem rodeado!

Pelo conteúdo das páginas da revista, seria difícil encontrar nas suas leitoras quem eu pretendia, mulheres com alguma cultura e que, ao mesmo tempo, se interessassem pela vida política e social do país e também por este tipo de contactos. Não estava com muita confiança nos resultados. Mas… por que não tentar?

Olho para a mesa-de-cabeceira, fixo a capa do livro "Poèmes", uma compilação de poemas de Paul Éluard (1), cuja poesia era minha companhia quase diária e… sonhei com a hipótese de arranjar uma correspondente com quem pudesse partilhar tal poesia.

“EUREKA! Surgiu-me uma ideia excitante e desafiadora, a de usar um pseudónimo “éluardiano” que também fosse a chave que me facilitasse a escolha das possíveis futuras correspondentes.

Naquela altura “funcionavam” na minha cabeça dois belíssimos poemas de Éluard, cujas palavras tão sonoramente belas eu tentava decorar para recitar mentalmente. De um, “Liberté”, bastante longo, decorei partes que às vezes recitava de viva voz. O outro era “Gabriel Péri”. Estes dois poemas, digo-o do alto dos meus 70 anos, foram peças importantes na minha estruturação emocional e cívica, são belas tatuagens que transporto na alma desde os meus 20 anos e que não apaguei nem quero apagar.
(Obs: para os conhecer, procurar na Net «eluard liberte» e «eluard peri»)

E a ideia foi avante! Com os nomes de Paul Éluard e de um seu poema de homenagem a um resistente francês ao nazismo, Gabriel Péri (2), compus o meu pseudónimo.

Em carta enviada à revista Plateia, um tal furriel miliciano Paulo Gabriel Péri Éluard, SPM 2838, pede correspondentes do sexo feminino. Fiquei a aguardar com alguma expectativa, mais curioso até do que outra coisa. Alguém iria achar algo estranho naquele nome, para além de o achar de origem estrangeira? Alguém iria descobrir a “chave”?

Não demorou muito para, durante cerca de um mês, o “tal” furriel receber uma mancheia de cartas todas as semanas.
De todas elas seleccionou apenas três, as de quem, à primeira vista, poderia corresponder ao tipo pré-definido. Das outras, algumas foram recuperadas por camaradas interessados, as restantes foram eliminadas.

As três “meninas” que reservei para mim eram, duas delas, professoras primárias e a outra identificou-se como estudante universitária. Esta foi a única a quem o “meu” nome surpreendeu e confundiu. Fiquei radiante!

Dizia ela, a propósito: - Que coincidência o seu nome ter tanto a ver com o poeta francês Paul Éluard! Será pseudónimo? Se não o é, então é espantosa a coincidência!

Fiz uma festa! Entusiasmado, agarrei-me ao Poèmes numa leitura mais atenta e aprofundada pois iria ter pela frente alguém que conhecia P. Éluard, imaginando eu que a sua poesia seria o lastro de muitas das nossas mensagens futuras. Estudante universitária a conhecer tal poeta ao ponto de identificar o seu poema Gabriel Péri, era cá das minhas!

Atirei-me ao trabalho de elaborar uma resposta, em grande. De água na boca e pensando já num futuro relacionamento, cultural e politicamente gratificante, fiz “explodir” o pseudónimo para aparecer, entre os estilhaços, o plebeu e “proletário” Manuel Joaquim. Atirei-me de cabeça à resposta a dar-lhe. Falei de poesia e do seu valor na resistência às forças políticas de opressão, à imagem da de Paul Éluard. Abri-me ideologicamente, discorrendo sobre aquela guerra e sobre a minha posição nela, numa onda de pacifismo e de revolta, brandindo a espada contra o regime político que a sustentava e que me tinha enviado para tal sítio! Isto tudo sobre citações de Éluard cuja poesia era para mim, na altura, o combustível que alimentava as minhas chamas “de amor, de sonho e de revolta” (assim alguém tinha caracterizado essa poesia)! Que prazer poder falar com quem gostava de tal poeta!

Enviada a carta, “fiquei em pulgas” à espera da resposta. Esperei pouco tempo, talvez tenha vindo na volta do correio. E ali estava ela, uma volumosa carta! Respirei fundo e abri-a com entusiasmo, ávido pelo seu conteúdo. Primeiros parágrafos atenciosos, palavras de simpatia para com os militares mobilizados nos campos de batalha, e neste tom continuava a escrita de tal modo que comecei a estranhar. As palavras começaram a parecer-me vagas e insípidas, a afastarem-se cada vez mais do que eu esperava nelas. Vai uma, vão duas páginas e no decorrer da leitura sentia o meu inicial entusiasmo a esvair-se aos poucos até que cheguei a um ponto em que “não me atirei ao chão” porque não calhou! Tinha começado o discurso!

Fiquei de “boca aberta”, espantado, enquanto ia lendo o discurso. Discurso, sim, uma espécie de “direito de resposta” a alguma ofensa minha. Era um discurso que se queria demolidor da minha maneira de pensar, muito paternalista e ainda por cima com ares de admoestação. Não digo que me ameaçava mas atirava-me à cara a doutrina política do governo como sustentação ideológica da guerra do ultramar, apelava à minha “dignidade de combatente pela Pátria” atento à responsabilidade histórica que as Forças Armadas tinham na preservação de um Portugal indivisível, quer dizer, toda a cassete ideológica do regime político de então!

Perplexo com o que lia, fiquei algo amedrontado e expectante. Seria aquilo um aviso, teria a minha carta sido intercetada? Não podia ser, eu era uma peça insignificante para se darem a tal trabalho. Alguém conhecedor da poesia de P. Éluard quis “brincar” comigo? Perante o pseudónimo que usei, alguém sob a capa dum pseudónimo feminino (ou não) e dizendo-se apreciador do poeta, aproveitou a ocasião para me desancar?

É verdade que nas universidades havia, na altura, uma franja de extrema-direita salazarista, muito culta e militante (conheci alguns, mais tarde) onde podia haver amantes de poesia. Mas gostarem de P. Éluard, da sua poesia tão marcadamente ideológica, de esquerda? Ná …!

Tudo era possível. Mas ainda hoje acho que o mais certo foi eu ter “batido” mesmo numa jovem “torre” da direita ideológica universitária, culta e militante, com força para encher uma dezena de páginas a discorrer politica e ideologicamente sobre as minhas ideias e na defesa do regime político de então.

Perante esta “ensaboadela”, paralisei. Nem dava para responder por carta, poderia tornar-se perigoso, nem que fosse só para dizer que o “sabão” não se adaptava à minha “sujidade” porque não me tinha “lavado” nada. Não respondi, de vez! E, interessante, do outro lado sucedeu o mesmo, um silêncio total após o recado dado.

Mas no fim de tudo, o resultado desta minha procura de correspondentes foi-me muito gratificante. Mantive correspondência com as minhas duas colegas durante todo o restante tempo de comissão. Também me identifiquei, falei-lhes no significado do meu pseudónimo, dei-lhes conta do meu modo de ver e sentir a vida e a guerra. Foram excepcionais no nosso convívio epistolar, nunca me faltando o seu carinho e apoio emocional para me ajudarem a suplantar aquela dura prova.

Conheci as duas, pessoalmente. A uma delas, na altura do meu regresso, encontrei-a na sua casa de Bissau para onde tinha ido há pouco para junto de um irmão. Não mais a vi depois. À outra também a perdi de vista mas o nosso relacionamento pessoal durou ainda cerca de dois anos após a minha desmobilização. Espero que tenham sido muito felizes, que estejam vivas e de boa saúde e que, de mim, mantenham boas e gratas recordações como as que eu delas retenho.

E os poemas de Paul Éluard cá continuam a fazer-me companhia: ( Excerto do poema Gabriel Péri. Segue-se a minha tradução:)

… … … Il y a des mots qui font vivre / Et ce sont des mots innocents / Le mot chaleur le mot confiance / Amour justice et le mot liberté / le mot enfant et le mot gentillesse / Et certains noms de fleurs et certains noms de fruits / le mot courage et le mot découvrir / Et le mot frère et le mot camarade / Et certains noms de pays de villages / Et certains noms de femmes et d’amis / Ajoutons-y Péri / … … …

… … … ..Há palavras que fazem viver / e são elas palavras inocentes / A palavra calor a palavra confiança / Amor justiça e a palavra liberdade / A palavra filho e a palavra gentileza / E alguns nomes de flores e alguns nomes de frutos / a palavra coragem e a palavra descobrir / E a palavra irmão e a palavra camarada / E alguns nomes de países de lugares / E alguns nomes de mulheres e de amigos / Juntemo-lhes Péri / …

(1) Paul Éluard (1895-1952): poeta, herói da Resistência francesa contra a ocupação da Alemanha nazi, militante do PCF.
(2) Gabriel Péri (1902-1941): jornalista e político, herói da Resistência francesa contra a ocupação nazi, preso pelos alemães e fuzilado. Militante do PCF.
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Notas de CV:

Capa da Revista Plateia retirada do Blogue Dias que Voam, com a devida vénia.

Vd. poste de 24 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9396: Memórias de Manuel Joaquim (5): Raios e Carícias

domingo, 15 de março de 2009

Guiné 63/74 - P4036: Documentos (7): PAIGC: Cartas (1): Meu querido pai, Ansumane Camará... (Umaru Camará / Manuel Maia)

Guiné > Região de Tombali > Cantanhez> Cafal Balanta > 2ª CCAÇ / BCAÇ 4610 (1972/74)> O Manuel Maia, um turista no seu exótico bungalow... do Cantanhez

Foto: © Manuel Maia (2009). Direitos reservados



Imagens digitalizadas: © Manuel Maia (2009). Direitos reservados

1. Reproduzimos acima duas cartas que foram apreendidas, aquando de uma "operação para lá da bolanha de Cafal/Balanta", no Cantanhez, já em 1973.

Foi o Manuel Maia, ex-Fur Mil, membro da Tabanca de Matosinhos que as fez chegar até nós, em 24 de Fevereiro último. Diz ele que uma está "escrita em árabe enquanto a outra está em crioulo". Na realidade, não se trata do idioma árabe (que poucos guineenses sabiam, na época da luta armada), mas sim de um idioma local (provavelmente mandinga ou beafada), arabizado...

Em relação à segunda carta, não se pode dizer que seja redigida em crioulo, será mais justo dizer que é em português. É uma carta (terna) de um jovem militante do PAIGC, Umaru Camará, que está a trabalhar na base de Kandiafara (ou Candjafara), na Guiné-Conacri, aparentemente em tarefas de apoio (administrativo ou logístico), antes de seguir para a região do Gabu, frente leste...

O destinatário é seu pai, Ansumane Camará, um apelido tipicamente mandinga. É seguramente gente escolarizada. Há um outro irmão, mais velho, no PAIGC, Laminá Camará. Não se sabe onde vive a família: Bafatá ? Gabú ? Conacri ? Cantanhez ? Provavelmente, Cantanhez, onde a carta foi encontrada pelas NT, três anos e meio depois de ter sida redigida...

A carta (uma página) está escrita em papel quadriculado, e o seu autor revela uma boa caligrafia. Pormenor que me chamou a atenção: o nosso jovem, que trata o pai com muita deferência (estamos numa sociedade patriarcal), não se esquece de mandar cumprimentos para a Mãe, Djassi, de seu apelido...

Em resumo: os homens que os portugueses combatiam, os famigerados turras, também tinham pai, mãe e irmãos, como eles... E também tinham saudades de casa, como os tugas...

Tentativa de fixação e revisão do texto: L.G.

27-9-69, PAIGC, Candjafara

Querido meu pai , Ansumane Camará, apresento-lhe, a seguir, os máximos cumprimentos, fraternais e combativos.

Meu pai, antes de começar a falar-lhe, vou pedir ao Senhor Deus (?), para que aumenta em sete vezes mais a saúde para a família da minha casa.

Meu pai, hoje é pena, eu que estava debaixo das tuas ordens, que nunca, nunca pensava que ia estar longe de ti, durante dois, três ou mais anos (…), mas se virmos bem, tudo isso é por causa da luta pelo progresso do nosso povo de Guiné e Cabo Verde.

Meu pai, vou-lhe pedindo sempre crescimento (?) na nossa vida. Eu não sei falar muito mas tu sabes (?) que estamos aqui, eu com o meu irmão grande Laminá Camará. É pena dois irmãos estarmos o mesmo trabalho. Eu agora trabalho como civil. É um trabalho de louco (?), não é coisa separada as em conjunto (?) [Parte rasurada].

Meu pai deve arranjar jeito sobre a nossa causa (…) Eu durmo todas as noites. Sobre a nossa vida, pai, eu fico aqui em Candjafara. (…) Ainda estamos sempre bem mas a direcção do Partido diz-me o que vou fazer. Só três meses depois é que vou regressar ao Gabu, frente leste.

Mas antes de isso, queria ver-te, pai (?), só isso, não tenho mais oportunidade de falar muito.

Abraço para a família de casa, cumprimentos para a Mãe Lisca (?) Djassi. Sou eu, Umaru Camará (?).

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3803: As nossas mulheres (7): As minhas correspondentes e a minha mulher (José Colaço)

1. Mensagem de José Colaço, ex-Sold de Trms da CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65, com data de 22 de Janeiro de 2009:

Se te parecer que a mensagem possa servir de incentivo aos nossos camaradas para dar um pouco de vida à rubrica lançada pelo V. Briote, publica.
Assim se desanuvia um pouco a importante controvérsia da Retirada de Guileje.

Tentando dar voz ao desafio que o V. Briote lançou
As nossas mulheres, namoradas, madrinhas, correspondentes


Enfim, aquelas que estão sempre prontas para nos acompanhar nos bons e maus momentos.

Sei por conhecimento próprio que eu não sou a pessoa indicada para promover tal rubrica, devido ao modo como me portei, que vou tentar resumir.

Um dos meus passatempos era a correspondência. Chegar o dia do correio e eu receber tanto ou mais correspondência que os meus camaradas era uma pequena vitória, devia ser um meio de promoção pessoal, não ser um Zé ninguém que estava esquecido naquelas longínquas terras da Guiné.

Recebia as cartas da namorada, das duas madrinhas de guerra, duma correspondente espanhola e mais o correio da família que por motivo de vida e saúde estava um pouco dispersa, pois no Hospital do Rego hoje Curry Cabral tinha deixado o meu irmão agarrado aos ferros de uma cama, devido a acidente de moto do qual ficou paraplégico.

Por que não sou a pessoa para promover a mensagem!

Primeiro, a da madrinha de guerra residente em Lisboa que nunca cheguei a conhecer por culpa minha, pois quando faltavam duas semanas para o meu regresso, deixei de lhe dar resposta. Razão nenhuma. Só o que ainda existe aqui em casa, que pode confirmar o que digo, esta foto que tem a dedicatória ao afilhado da madrinha amiga Helena, que envio para embelezar a mensagem.

A então, jovem Helena, madrinha de guerra do José Colaço

Da namorada e a outra madrinha que sabiam da existência uma da outra, com as visitas a ambas tudo se desmoronou.

Com a correspondente, também houve um interregno entre 1966 e 1969, mas como 1969estive na Alemanha e sabendo que ela lá se encontrava, resolvi recomeçar a troca de correspondência no que fui bem recebido. Encontrei-me com a Paquita algumas vezes na cidade de Mainz, onde a visitava aos fins de semana, já que eu estava em Dusseldorf. Se já éramos amigos, mais amigos ficámos.

Após o meu regresso a Portugal, ainda esteve combinado um encontro, que devido a um acidente quando a Paquita se dirigia ao nosso País. Desfez o coche e assim se desfez o encontro, possivelmente também por culpa minha por se aproximar a data do meu casamento, os contactos tiveram fim.

Eis as estórias das minhas namorada, madrinhas, correspondente, Mulheres.

A minha estada na Guiné sempre ficou ligada à minha futura vida, pois aquela que em 5/08/73 casou comigo e ainda hoje por vezes me acorda do sonho que se transforma no chamado pesadelo, deve-se em grande parte à minha estada na Guiné.

Em Bafatá, do batalhão 757, fazia parte o 1.º cabo José Alexandre Peres, um conterrâneo meu que recebia correspondência de uma prima à qual fazia grandes elogios. Tive ocasião de lhe dizer: - Porque não lhe falas em namoro - nesse tempo ainda era normal esse termo, mas para ele seria bom demais e nem pensar em tal proposta.

O meu conterrâneo regressou a Portugal cerca de ano e meio após o meu regresso.

Como residíamos os dois na zona de Lisboa, o meu conterrâneo em Santa Iria de Azóia e eu em Moscavide, os nossos contactos e passeios eram constantes. Num desses passeios, numa ida à nossa conhecida praia de Carcavelos, conheci a prima. Falámos pouco devido eu namoriscar com uma rapariga que fazia parte do grupo. Como houve mais encontros, tornamo-nos amigos, namorados, marido e mulher, felizmente, há 35 anos. Desta união há um fruto, uma filha licenciada em Informática.

Um alfa bravo
Colaço
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Vd. último poste da série de 23 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3779: As nossas mulheres (5): Ni, uma combatente em Mansoa (1973/74)

domingo, 28 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3676: As Nossas Mães (1): Um poema da minha Mãe, Leopoldina Duarte (António Duarte de Paiva, ex-sold cond, HM 241, BIssau, 1968/70)


A minha Mãe


Caros Carlos, Luís e Virginio

Andando por aqui, nesta casa só, vasculhando malas e caixinhas, algumas do meu tempo de menino, pertences de minha mãe que me deixou em 96, sou surpreendido por uma folha de papel dobrada em 12 partes, da qual não tenho a mínima ideia de ter tido conhecimento e com os nossos tertulianos quero partilhar. Minha mãe também a eles se dirigia.

Se entenderem, que merece ser publicada, podem fazê-lo.

Minha mãe, mal sabia ler ou escrever, mas em quadras soltas era mestra, hoje tenho pena de nunca ter escrito o que ela dizia. Não sei quem lhe escreveu isto à máquina, mas pouco importa.

Está com data de 10 de Dezembro de 1969, em cima, mas não consegui aqui no scan apanhar data e assinatura, preferi assinatura Leopoldina Duarte.

Quero aqui deixar a todos os tertulianos e suas famílias um Feliz ANO NOVO.

Um abraço a todos


António Paiva


Meu filho, a tua mãe
Tanto suspira por ti,
Até chego a pensar
Que não te lembras de mim.

Se tu soubesses, meu filho,
O amor que a tua mãe te tem,
Vejo vir os aviões
E notícias tuas não vêm.

Será que tu me esqueceste
Ou a carta se perdeu ?
Mas perdoa-me, meu amor,
Se a criminosa sou eu.

Tinha a carta quase feita
E ainda fui ao correio,
Agora estou satisfeita
Porque a notícia já veio.

Lá vinha o meu querido filho
A ler o que me mandava,
Com uma cara de riso
E eu com saudades chorava.

Agora estou satisfeita
Assim como tu também,
Já recebeste notícias
Da tua mãe por alguém.

Adeus, meu filho querido,
Eu do coração te peço
Que não esqueças a tua mãe
Que aguarda o teu regresso.

Trago-te no coração
Mas ando sempre em cuidados,
Daqui mando um forte abraço
Para todos os nossos soldados.

Eu aqui peço, a Deus
E à Virgem Santa Maria,
Que seja a vossa protectora
E de todos a vossa guia.

Adeus, amor, que eu cá fico,
Com o coração em pedaços
E saudades de não te ver
Para te apertar nos meus braços.

Leopoldina Duarte

[Revisão e fixação do texto: L.G.]
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Nota de vb:

1. António Paiva foi Sold Cond no HM 241 de Bissau, entre 1968 e 70

2. Artigos da série em

22 de Dezembro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3662: As Nossas Mulheres (1): As que casaram com ...a Guiné. (Virgínio Briote)

24 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3667: As Nossas Mulheres (2): De Bissau a Lisboa, com amor (Cristina Allen)

sexta-feira, 30 de maio de 2008

Guiné 63/74 - P2902: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (33): A correspondência epistolar na véspera do meu casamento

Angola > Luanda > Abril de 1970 > "O meu primo José Augusto Gândara de Oliveira, um dos homens mais generosos que conheci, advogado brilhante em Luanda, angolano como a minha Mãe, enviou-me um outro tipo de aerograma, uma edição que não tinha nada a ver com o Movimento Nacional Feminino. Pedi ao José Augusto para receber o Comandante Teixeira da Mota, então colocado no Comando Naval. Recebi muita e imprevista ternura epistolar, quando me casei".


Portugal > Açores > São Miguel > 1967 > "Muitas saudades dos soldados açoreanos! Foi este o pelotão que me caíu na rifa, entre Outubro e Dezembro de 1967, nos Arrifes, ilha de S.Miguel. Eram predominantemente micaelenses, mas havia gente de mais 4 ilhas. Ajudaram-me a preparar a festa de Natal, com satisfação andei, na companhia da minha amiga Cremilde Tapia, a levar lembranças a suas casas, tudo coisas que angariei através dos familiares e amigos, em Lisboa".


Portugal > Açores > S. Miguel "Os meus amigos de Arrifes, 1967-1968. Estes meninos, mal me apanhavam de oficial de dia no BII18, S.Miguel (mais propriamente nos Arrifes), apareciam a contar com as sobras do rancho. Há 40 anos atrás, havia muita provação nos Açores, os soldados gostavam da vida de quartel pois comia-se carne ou peixe todos os dias. O menino da esquerda chamava-se Gabriel, no dia de Natal teve roupa nova. Como eu gostava de os rever!"


Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.

Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1), enviado em 29de Fevereiro de 2008:


Luís, As ilustrações já seguiram. Imagina tu que num dos livros que consultei na Sociedade de Geografia de Lisboa encontrei uma fotografia do régulo Abdul Indjai, dilecto amigo de Teixeira Pinto, régulo do Oio, e que mais tarde caiu em desgraça. É uma figura enigmática, tem este chamariz de procurar desvendar o segredo da sua queda: traição? cabala organizada pelos invejosos? excesso da administração que teve medo da sua popularidade? É palpitante andar à procura da verdade. Estamos a cerca de vinte episódios de concluir este livro, vê tu. Eu ainda não acredito que isto está a acontecer, um abraço do Mário.


Operação Macaréu à Vsta -Parte II Episódio XXXIII > CARTAS DE UM MILITAR DE ALÉM-MAR EM ÁFRICA PARA AQUÉM EM PORTUGAL (4) E OUTRAS PARAGENS EM ÁFRICA
por Beja Santos (*)


(1) Para Comandante Avelino Teixeira da Mota

Senhor Comandante e meu querido amigo,

Parto amanhã para Bissau, onde casarei no próximo dia 16. Pode imaginar a felicidade que estou a viver. Participei em várias operações, de Fevereiro a Abril, nos últimos dias de Março regressei à zona mais ocidental do Cuor, tanto quanto sei é a primeira vez que tropas não especiais entram em Belel desde que há guerra, e a destroem. Foi um sacrifício tremendo, não sei se alguma vez me vou perdoar ter-me esquecido, durante os preparativos da operação, de ter levado carregadores com jerricans de água. O mal está feito, regressámos com dois feridos ligeiros e muita gente febril e com insolações.

Imagine que uma professora em Bambadinca me tem facilitado documentação interessantíssima e que bem gostaria de um dia poder divulgar, para um melhor conhecimento sobre as gentes da Guiné. Encontrei um relato de um seu camarada da Armada, Frederico Pinheiro Chagas, publicado nos Anais do Club Militar Naval, em 1909, sobre Infali Soncó. Penso que Sambel Nhanta é hoje Sansão (está abandonada, como sabe, fui lá visitar o túmulo de Infali Soncó) e Gã Sapateiro é Caranquecunda. A propósito, o Pinheiro Chagas fala em Ponta Joaquim da Costa, do outro lado do Xime, já a caminho de Bambadinca, não será Mato de Cão?

Gostei igualmente de ler um artigo do Rogado Quintino sobre os povos da Guiné, veio num Boletim Cultural aqui da Guiné, de 1967. Repertoriei cobras, espécies aladas, aves e mamíferos, tenho tido a preocupação de pedir a toda a gente a confirmação destes nomes, asseguro-lhe que é a primeira vez que oiço falar no papa-figos dourado e na cabra cinzenta. Um dos meus caçadores, Cibo Indjai, falava-me no sim-sim, uma espécie de porco selvagem que ele trazia para Missirá, o Rogado Quintino também fala nele.

A propósito de madeiras, venho pedir a sua ajuda sobre o seguinte: encontrei referências a ébano, bissilão, pau-sangue, pau-carvão, pau-conta, maceta, poilão, pau-bicho e zimbrão ou goma arábica. Ora ninguém conhece o que é o zimbrão. Não pode adiantar mais pormenores? Lembra-se de me ter escrito um aerograma a propósito da fundação de Bucol, no regulado de Joladu, e de me ter falado que estava a escrever um artigo sobre os sônôs?

Finalmente encontrei um texto, trata-se do artigo “Usos e costumes jurídicos dos mandingas”, por Artur Augusto da Silva, foi publicado no Boletim Cultural, também em 1967. Leio em determinada altura: “Soninqués, beafadas e mandingas tinham uma cultura específica, caso dos sônôs, hastes de ferro com cerca de 1,2 metros de altura com vários braços laterais terminando em esculturas de bronze, geralmente pequenas cabeças humanas”. Se o seu trabalho sobre os sônôs já estiver publicado, envie-me, por favor.

Já que estou em maré de pedidos, ainda a propósito de madeiras, gostava de saber se há literatura sobre o uso das madeiras na Guiné, por exemplo no madeiramento das casas, a madeira que é usada nas esculturas ou na construção das canoas, peças caseiras, etc. No trabalho do António Carreira sobre os mandingas da Guiné Portuguesa, ele fala nos artífices mandingas e fala concretamente nos ferreiros, sapateiros, alfaiates, ourives, tintureiros e tecelões. Conheci um ourives em Bafatá onde comprei lindas peças como prenda de casamento para a Cristina. Esta tradição de ourivesaria é uma constante da cultura mandinga?

Estou consciente do abuso dos meus pedidos. Deixo para o fim uma notícia que provavelmente ainda não lhe foi dada pelas suas fontes de informação daqui. Consta que o comandante-chefe mandou suspender temporariamente toda a actividade operacional, estão em curso negociações para se chegar a um processo de paz. A mim a notícia surpreende-me pois estive num patrulhamento ofensivo no Poidom de onde voltei no passado dia 10. É provável que em Bissau haja informações mais consistentes, depois escrevo-lhe. Receba a gratidão deste seu jovem amigo que tem sido contemplado por inúmeras manifestações da sua generosidade.

(2) Para Ângela Carlota Gonçalves Beja

Querida Mãezinha,

Tem sido um tempo muito duro, foi um mês com intensa actividade operacional, muitas deslocações e as noites que passo na tal ponte de Udunduma são um perfeito inferno. Amanhã parto para Bissau, a Cristina chega a 15, iremos fazer compras juntos, caso das alianças, tenho que tratar do fotógrafo e de alguma roupa, juntei dinheiro para pagar a boda, na noite de 16 haverá um jantar para o qual já convidei os nossos padrinhos e amigos. Penso que me vou emocionar muito, participarão na cerimónia todos aqueles que me têm ajudado em Bissau, alguns dos meus soldados e até camaradas de Bambadinca.

A missão católica é muito reduzida, creio que os católicos na Guiné não passam de 2 a 3 por cento, são missões de franciscanos e de padres italianos muito ligados à educação e ao apoio aos leprosos. Vou pedir acompanhamento com música de Bach, mas é um assunto que ainda quero conversar com a Cristina. Ficaremos cerca de dez dias em Bissau e depois eu tenho de ser hospitalizado, faz parte do acordo com o comandante de Bambadinca. Não gosto mesmo nada deste acordo, ter que ser internado na neuropsiquiatria, ainda resmunguei, o comandante perguntou-me seu eu tinha alternativa, é evidente que eu não tinha nenhuma.

Depois volto para o comando do meu pelotão, prevê-se que de fins de Maio até Julho ou Agosto, quando terminará a minha comissão, eu ficarei a colaborar diariamente nos patrulhamentos de uma estrada que está a ser alcatroada entre o Xime e Bambadinca, é uma solução que irá permitir que as tropas e o armamento, bem como as mercadorias e as matérias primas não afluam todos ao o porto de Bambadinca, que começa a estar muito saturado. A Cristina regressa a Lisboa em Maio, irá procurar casa e mobilá-la. Entretanto, concluirá os seus estudos, eu estou ansioso de recomeçar os meus mas sei muito bem que antes de mais irei decidir o meu rumo profissional.

Obrigado por ter ido aos funerais do Carlos Sampaio e ter consolado a sua mãe. Sei que foi de bengala e muito mal das suas pernas. Rezo para que tenha alivio das suas dores. O nosso primo José Augusto enviou-me felicitações pelo casamento, virá breve a Lisboa e vai visitá-la, ele é profundamente seu amigo.

Agora que a minha vida vai mudar, agora que se abrem novos sonhos e promessas com o meu casamento, não me canso de agradecer a Deus todo o bem que me fez, os princípios que me inculcou, preparou-me para tarefas difíceis e estou absolutamente certo que não a desapontei. Em breve, telefono-lhe de Bissau e dentro de meses vou ter a enorme alegria de a beijar e abraçar. Tive muita sorte na vida, a começar pela mãe que Deus me deu. Despeço-me com muita saudade e não se esqueça que eu tenho o coração em festa.

Carta, datada de lisboa, 4 de Abril de 1970 > "O Eduardo é o Amigo mais antigo, começámos a relacionarmo-nos aí pelos 11 anos, já lá vão mais de 50. Nunca me escrevera, eis que me envia as felicitações, com que entusiasmo e afecto. Carta inesquecível, que tão bem me fez naquele tempo"... A carta começava assim: "Caro Mário: Quero em primerio começar por felicitar-te pelo teu casamento com a Cristina: não há dúvida que o Amor é qualquer coisa que vem dar significado à Vida, por mais 'racionalistas' que às vezes as pessoas pretendam ser"...


Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.

(3) Para Cristina Allen

Meu adorado Amor,

É claro que só lerás esta carta quando regressares a Lisboa. Não podes imaginar o contentamento das mensagens que recebo. É o Eduardo Canto e Castro a falar de uma amizade que começou quando tínhamos onze anos e que nos deseja as maiores felicidades. É o José Augusto Gândara de Oliveira, o meu querido primo em Luanda que nos felicita e comunica que aguarda a visita do Teixeira da Mota, agora colocado no Comando Naval de Angola. São mensagens risonhas, portadoras de optimismo.

Quero que saibas que vou muito confiante para Bissau, que iremos fazer compras e preparar a nossa cerimónia. Quero igualmente que saibas que não encontrei alternativa a partir para Bissau com guias para a consulta externa de neuropsiquiatria e oftalmologia, ao princípio barafustei, achei indecoroso ir tratar de problemas inexistentes, agora estou resignado, sempre são mais uns dias em que te vejo, tu vais visitar-me ao hospital, espero que não seja acabrunhante.

Termino esta cartinha dizendo-te aquilo que sinto: até amanhã, meu querido amor. Cuida de ti é bom que estejas feliz como eu me sinto neste momento, é bom que saibas que te amo tanto e que te quero oferecer uma doce companhia.

Cap do romance de A. Moravia, O Desprezo. Editora Ulisseia, s/data, tradução de M.Teresa de Barros Brito, prefácio de Pedro de Moura e Sá, sem indicação de autor da capa. Foi o primeiro livro que li de Moravia, trouxe-me a novidade do ambiente italiano do após-guerra,recusa do neo-realismo,uma crueza e uma recusa da narrativa fácil, Moravia era cultíssimo e não tinha vergonha. O Desprezo centra-se numa ruptura dilacerante,é uma evocação serena e dolorosa que espelha a solidão do homem contemporâneo.O romance impressionou-me,marcou-me até hoje,seja a qualidade litérária seja a temática do casal nuclear,,nada lera de semelhante até então.
Fotos (e legendas): ©
Beja Santos (2008). Direitos reservados.

(4) Para Ruy Cinatti

Ruy, dear Father,

Recebi o disco com a música do Aaron Copland, adorei sobretudo Rodeo, mas gostei também muito de El Salón México, a sinfonia do Utah é muito bem dirigida pelo Maurice Abravanel. Muito obrigado pela surpresa, como igualmente lhe agradeço “O desprezo” do Alberto Moravia.

Como é diferente ler um escritor sobre o qual já ouvi referências depreciativas chamando-lhe amoral ou materialista. Moravia é cultíssimo, já sabia que estudara encenação e fizera cinema, ele trabalha muito bem estes caracteres, tal como a cultura clássica a propósito da Odisseia de Homero. O que me maravilhou foi a escrita, uma evocação serena e melancólica de um marido desprezado e que nunca entendeu o afastamento da mulher. Moravia é magistral na construção de um enredo possível numa sociedade desenvolvida em que o casal já não presta constas nem à sociedade e dispõe de vínculo precário, sempre ameaçado. Temos Ricardo, Emília e Battista, um falso triângulo amoroso, num dado momento veio a revelação do desamor, perfila-se uma relação vazia que só é salva porque Ricardo é dominado pela profissão e Emília estabelece consigo uma dissolução doce. Desculpe estar a escrever o que para si é obvio, estou rendido à escrita de Moravia, ao seu talento, ao enunciado e desenvolvimento de caracteres. É um falso livro de memórias, um grande romance.

Não se admire se lhe telefonar de Bissau, caso a 16 e penso que lá estarei três semanas. Nem coragem tenho para lhe contar que para casar aceitei baixar à neuropsiquiatria, ainda me arrepio cada vez que penso no assunto. Vivi um período intenso no plano operacional, o resto é penar naquele posto avançado que dá pelo nome de ponte de Udunduma. A novidade é que fizemos reparações na ponte e que passámos a picar até à povoação mais próxima, que se chama Amedalai, há rumores que o PAIGC decidiu minar a estrada. As noites são um inferno, nem ler posso, não pode haver iluminação para não sermos avistados, caso o inimigo pretenda flagelar-nos.

Não sei o que será o nosso futuro nos próximos meses, estarei cá pelo menos até fins de Julho ou princípios de Agosto. Muito obrigado por ter levado os meus soldados ao Cais do Sodré, o Alcino escreveu-me e contou-me o jantar que lhes ofereceu. Suspiro por conversar consigo em breve, em Bissau vou escolher uma escultura para lhe levar. Até breve, pois, receba todo o reconhecimento pelo bem que me tem estado a fazer .

(5) Para José Luís Botelho de Melo

Meu estimado amigo,

É para mim um desconforto voltar a Bissau e saber que não o vou ver. Habituei-me à sua companhia, a ouvi-lo falar dos feridos que trata, foi graças a si que pude conversar sobre a minha experiência em São Miguel. Adorei aquela natureza, tenho muito orgulho nas amizades que fiz, escrevo regularmente a um dos meus soldados que está agora em Moçambique. Venho, cheio de entusiasmo, informá-lo que caso no dia 16 e conto visitar a nossa ilha muito em breve. Acima de tudo, escrevo-lhe porque estou muito feliz e desejo que o regresso à sua vida familiar e profissional esteja a decorrer sem sobressaltos. Ou talvez o mais importante seja dizer-lhe que gosto muito da sua amizade e não esqueço o bem que me fez. Até São Miguel e aqui vai toda a minha estima.


Capa de O Túmulo de Prata, de Frank Grube. Colecção Vampiro nº98,capa de Cândido da Costa Pinto, tradução de A. Maldonado Rodrigues.

Estão permanentemente em cena Johnny Fletcher e Sam Cragg, uma dupla espantosa da Grande Depressão dos EUA: pelintras mas ardilosos, um inteligente, outro latagão,vendendo livros para adquirir musculatura, safando-se umas vezes com expedientes, outras vezes envolvendos em investigações policiais,sempre com uma acusação de envolvimento no homicídio. Desta feita,há minas abandonadas,há um estranho filão de prata,aparece um morto no carro da dupla,começa a investigação, Johnny encontra a solução num velho alfarrábio. Ainda hoje se lê com pleno agrado.

Foto (e legenda): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


(6)Para Paulo Simões da Costa

Paulo, meu querido amigo,

Obrigado pelo bilhete postal que me mandaste de Durban, durante as tuas férias. Em Moçambique estás tu e um soldado mariense, de quem sou profundamente amigo. Aconteceu-me uma tragédia que foi a morte do Carlos Sampaio. São perdas atrás de perdas, depois há este mistério das amizades que chegam, que ficam a fermentar. Mandei-te livros, poucos porque o porte dos correios é muito caro e tenho as despesas do casamento. Ainda não te disse, caso dentro de dias.

Por muito que te surpreenda (afianço-te que eu próprio me surpreendo), continua a ter vontade para ler coisas muito sérias, só que a vadiagem em que vivo impede-me a atmosfera propícia. Aproveito as viagens dentro dos regulados aqui próximo, havendo um bocadinho disponível, distancio-me e leio. Os policiais têm sido uma boa companhia. Por exemplo, acabei agora a leitura de “O túmulo de prata”, de Frank Gruber. É uma dupla espantosa de vendedores de livros sobre musculatura, são dois aldrabões de feira, um é o detective cerebral e imaginativo, o outro uma carga de músculos, um amigo seguidor e inocente que pede sempre ao primeiro para nunca se envolver nessas histórias de descobrir assassinos. Já li vários destes livros e dão-me sempre imenso prazer. Desta vez á uma mina de prata abandonada mas com vários compradores interessados, aparece um cadáver no carro da dupla, o detective cerebral vai desvendar as razões do homicídio e o nome do assassino graças a um alfarrábio que guarda um segredo.

Se te conto isto é porque há muitas maneiras de resistirmos, ler policiais é uma, também encontro na música um poderoso refúgio, escrevo sempre que posso, não me esqueço que em breve vou recomeçar tudo quanto interrompi e de que tanto gosto. Mas agora, agora mesmo, só me interessa ver a mulher amada e como meu amigo posso imaginar que tu partilhas esta alegria de partir rumo à felicidade. Não te esqueças que qualquer dia estamos em Lisboa e vamos estudar juntos. Um grande, um grande abraço e obrigado pelas tuas cartas.

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Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 19 de Maio de 2008 >
Guiné 63/74 - P2861: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (32): Operação Pavão Real

Este episódio devia ter sido publicado na semana passada, o que não aconteceu, por razões de sobrecarga editorial. Pede-se desculpa ao autor, aos amigos e camaradas da nossa tertúlia, aos fãs da série Operação Macaréu à Vista e aos demais leitores do blogue.