1. Em mensagem do dia 28 de Setembro de 2012, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim,
1964/66), enviou-nos esta carta aberta destinada ao outro nosso camarada Tony Borié:
Lisboa, 28 de Setembro de 2012
Caro Tony Borié,
Depois de uns dias de férias no Centro-norte do país (a Troika não permite mais), eis-me de regresso às lides rotineiras. Apenas hoje tive oportunidade de ler o teu comentário
(1) ao texto sobre o Engrácia, um digno soldado do meu pelotão. Obrigado!
Nunca escondi de ninguém que eu era rigoroso com os meus soldados; quer no cumprimento de horários, quer no seu comportamento individual, quer ainda no seu relacionamento com outros soldados ou com os seus superiores. Fui sempre muito exigente, mas eu dava o exemplo! Nunca ordenei aos meus subordinados que fizessem o que eu não fazia.
À primeira falta, eu, normalmente, não atuava a não ser que fosse muito grave; avisava e explicava pormenorizadamente as minhas razões; à segunda raramente não castigava. O oficial, comandante de homens, também deve ser, penso eu, um educador.
Tenho a certeza que nunca fui injusto na aplicação de qualquer castigo – corporal ou não – porque na dúvida, não actuava disciplinarmente; sem dar a entender que me tinha apercebido que alguém teria prevaricado, eu conversava sobre determinada falta (a tal) e que deviam ter cautela com o seu comportamento. Eles logo entendiam que alguém teria pisado o risco.
Nunca castiguei um soldado “à ordem” – isso só podia acontecer
in extremis – porque era um ferrete que o acompanharia durante toda a vida e prejudicava-o tremendamente, como bem sabes. O meu pelotão foi o único da gloriosa CCaç 675 que não teve problemas disciplinares graves até ao final da comissão.
Os meus homens tinham plena liberdade de me alertar, respeitosamente, se entendessem que eu não tinha agido corretamente; eu tinha de descalçar a bota.
Um dia em pleno mato, na fase final de uma “batida”, mal eu subi para a viatura, um soldado que foi sempre muito frontal, mas educado, perfilou-se e pediu-me licença para me interpelar; eu respondi afirmativamente, e ele desabafou:
- Nós temos um alferes para nos comandar em qualquer situação; não queremos sair com qualquer outro oficial, a não ser que o nosso comandante esteja impedido de o fazer. Se tal voltar a acontecer, nós decidiremos se saímos ou não com outro, arriscando as consequências da nossa decisão.
Aceitei, respeitosamente, a “reprimenda” e de seguida, expliquei:
- O nosso alferes sentiu-se mal e eu aceitei sair com o seu pelotão por respeito aos seus soldados, pois não gosto que um pelotão vá para o mato sem alferes; não houve tempo para vos avisar que eu ia sair com outro pelotão e que vocês sairiam com outro oficial que não eu. Apenas exigi ao nosso alferes que teria de vos comandar nas viaturas para “recolher” aqui os que fizerem a “batida” pois não aceitava que o meu pelotão saísse do quartel, mesmo que apenas na coluna auto, sem um oficial.
- O problema é que nós fomos apanhados de surpresa, mas já está tudo esclarecido! - Comentou outro soldado.
Eu dava tudo pelos meus soldados e continuo a dar; mas sabia e sei ainda que o contrário, era também verdadeiro.
Um dia, em Bissau, fui informado que um cabo do meu pelotão estava na prisão, na companhia de adidos; fui logo de táxi para o quartel.
O 1.º Cabo A. F. Santos, encontrava-se dentro de uma cela… de porta aberta; mas um soldado com uma G3 na mão vigiava-o no seu cubículo. Ele era acusado de ter assaltado a cantina; ele negou perante mim ter sido o autor do assalto e isso bastava-me! Eu confiava nele!
De cabeça meio perdida procurei o capitão (um oficial do serviço geral) e transmiti-lhe que ele não podia manter o meu soldado na prisão. Se o assunto não fosse sério, a resposta do capitão até seria cómica:
- Ele não está preso! A porta da cela está aberta!
Perdi as estribeiras! Abri a boca e saíram asneiras em catadupa. Ele, porém, não teve coragem para agir disciplinarmente contra mim.
Quando lhe transmiti que eu só aceitava que o Santos fosse autor do assalto se ele confessasse, o capitão riu-se descaradamente. A sua resposta condizia perfeitamente com a sua mentalidade:
- São todos iguais! Roubam e negam, enquanto podem!
No dia seguinte - nem eu sei como - o verdadeiro assaltante foi detetado e não era o Santos. Desabafei de novo com o capitão… mas a asneira estava feita.
Um dia um soldado comunicou-me que o alferes X lhe deu uma bofetada.
- Porquê !?
- Eu estava a “massajar” uma preta, mas ele estava a fazer o mesmo com outra.
- Foi mesmo assim? - Perguntei.
- Foi tal e qual, meu alferes!
Falei com o outro oficial que me respondeu:
- Ele estava a apalpar uma preta!
- O mesmo que tu fazias! Ficas a saber que se voltares a agredir um soldado meu e acima de tudo sem motivo, ver-me-ei obrigado a agredir-te também.
Outra vez a companhia de Adidos. Eu estava na consulta externa – otorrino – e fazia serviço naquela companhia. Um 1º cabo da minha companhia perguntou-me:
- Oh meu alferes! No mato nós temos lençóis! Porque será que aqui não os temos?!
- Fiquei surpreendido, mas era verdade!
O capitão já não estava na companhia. Perguntei ao 1.º Sargento se na companhia não havia lençóis para os praças. Ele respondeu que havia, mas que o capitão
“mandou guardá-los porque os soldados não os merecem”.
Ordenei ao 1.º Sargento que preparasse tudo para distribuir lençóis imediatamente às praças que os quisessem.
No dia seguinte tive de aturar o capitão, mas pus termo à conversa como segue:
- O meu capitão deve exercer os seus poderes disciplinares, participe! E não se preocupe com o que possa acontecer-me! Não será difícil defender-me!
Isto já vai longo! Mas só mais uma pitada!
De maneira alguma levaria a mal o teu comentário! Eu exponho-me com a verdade dos factos! Nunca escondi o meu comportamento; passei a falar mais disto quando vi duas causídicas ficar assustadas, surpresas, de cabelos em pé por eu lhes ter declarado que castiguei corporalmente alguns soldados menos bem comportados.
Mais um cheirinho: na CCaç 675 os soldados comiam razoavelmente bem. Talvez em nenhuma outra companhia “do mato”, os soldados comessem tão bem como os nossos. O cozinheiro deles era um profissional – era 2.º cozinheiro num hotel do Porto -; um soldado, pescador, em Peniche, cozinhava para oficiais e sargentos.
Quanto a matas, bolanhas, emboscadas e quejandos, os soldados da CCaç 675, não ”levavam“ mais que os oficiais e sargentos que sempre os acompanhavam; a dose era a mesma para todos.
A conversa é como a cerejas… é preciso travar às quatro… ou nunca mais acabo.
Na fase final da comissão, um alferes da CCaç 675 – a gloriosa – repreendeu asperamente um soldado que reagiu grosseira e insolentemente. O alferes agrediu-o, quanto a mim tarde de mais; o soldado ripostou e engalfinharam-se. Não foi necessária a minha intervenção. O alferes dominou a situação e aplicou-lhe um castigo tão severo… que me recuso a citá-lo.
Imaginei que ia haver complicações o que agravaria as circunstâncias. Cerca de meia hora mais tarde decidi dar uma volta pelo aquartelamento, para me antecipar a qualquer surpresa. Mais vale prevenir que remediar! Foi sempre – e ainda é – o meu lema.
Uns tantos soldados conversavam acaloradamente no refeitório, a briga era o tema.
A meia noite aproximava-se; abeirei-me do grupo e comentei:
- Tanta gente sem sono?! Eu também não tenho! Por isso ando por aqui!
Um dos meus soldados, ali presentes, perguntou-me:
- O meu alferes acha justo o que está a passar-se?
- Passa-se tanta coisa, por aqui, meu rapaz! A que te referes?
Era mesmo o que eu pensava! Tomei a iniciativa:
- Os soldados do meu pelotão não têm que meter o nariz naquilo que não lhes diz diretamente respeito. Assim sendo, o meu pessoal deve ir já para a cama.
Todos se dirigiram à caserna, mas o mesmo soldado comentou, meio zangado:
- Isto não podia acontecer! Temos de tomar uma atitude!
- Oh Pinela! Vem cá! Como é que tu tentas mostrar, agora tanta valentia e há dias na emboscada em “tal parte” escondeste-te atrás do teu medo e só não foste abatido porque o guerrilheiro tinha a espingarda em segurança e entretanto foi abatido. Vai deitar-te e não te metas onde não és chamado!
Sem resposta ele dirigiu-se à caserna.
De seguida, perguntei se havia ali mais alguém que não fosse do pelotão em causa. Três ou quatro levantaram-se e eu aconselhei-os a ir dormir, pois pretendia conversar apenas com os soldados mais diretamente ligados ao caso.
Conversei com cerca de dez praças; contei o que tinha acontecido e que eu presenciara; transmiti-lhes que comigo o soldado teria “levado” mais cedo mas que considerava o castigo exagerado. Contei tudo com tal minúcia que não deixei grande margem de manobra aos ouvintes. Consideraram que, na verdade, estavam decididos a agir erradamente, etc etc.
Convenci-os a ir dormir e que colocassem uma pedra sobre o assunto.
Solicitei, no entanto, a um cabo ali presente, que ficasse comigo mais um pouco. Sugeri-lhe determinada actuação, mas que não podia falhar. Juntos conversámos com o soldado castigado. A minha proposta foi cumprida… em rigoroso sigilo. E por aqui me fico. Transmiti-lhe que se algo corresse mal… eu assumia a responsabilidade.
Quer o soldado castigado, quer o cabo por mim envolvido no assunto nunca compareceram nas nossas reuniões… por razões díspares; nunca descobri o paradeiro do cabo.
Creio que ficou demonstrado que o relacionamento com os meus soldados não era mau de todo. Bem ou mal não me arrependo do que fiz; a intenção era boa! Os meus soldados sempre mostraram que não ficaram zangados.
Se tiveres paciência, lê o meu texto,
“ser ou não ser disciplinado” – está no blogue!
(2) Não o cito aqui para não me repetir. É interessante, digo eu!
As minhas desculpas por tanta parra! Só mais um toque: há 46 anos, eu organizo as reuniões anuais da minha muito querida CCaç 675… e muitas minis pelo meio.
Há anos temos vindo a colocar lápides, nas sepulturas dos nossos mortos: os três que faleceram na Guiné cujos os corpos foram entregues às famílias a expensas nossa e 38 que faleceram depois da guerra.
A CCaç 675 foi ímpar e continua a sê-lo! Mais bofetada ou menos… valeu a pena!
Um grande abraço!
PS1 - Se vives em Lisboa ou na zona passa um dia pelo Hotel Dom Carlos Park e tomamos um copo. Fica na Av. Duque de Loulé, 121 – mesmo ao lado do Marquês!
PS2 - Creio que não pertences ao blogue… o teu nome não está na lista; e tratas-me por “você”. Aqui é “tu cá… tu lá…” como dizia a Cilinha S. P.
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Notas de CV:
(1) Comentário de Tony Borié no poste
Guiné 63/74 - P10378: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (27): O "Engrácio" de 13 de Setembro de 2012
Caro Belmiro.
Gostei da história, é uma homenagem ao "Engrácio".
Não
sei se, ao mencionar: "dei algumas bofetadas e pontapés aos meu
soldados...", está a fazer uma confissão, ou se é um desabafo, pois como
deve de saber, havia outras maneiras de colocar o pessoal no devido
lugar, a violência, gera violência, e no caso já chegava aquela que
sofriamos dos guerrilheiros. Esteve em 64/66, foi no meu tempo, e vejo
que afinal não era só em Mansoa, que se batia nos soldados.
Pobres
soldados, levavam em tudo, era no comer, no corpo, nas matas, nas
bolanhas, enterrados na lama e na água, nas emboscadas, era difícil ser
soldado.
Não leve a mal este comentário, pois isto é conversa entre combatentes, e longe de mim, ofender.
Um abraço e escreva mais.
Tony Borie
(2) Vd. poste de 17 de Setembro de 2010 >
Guiné 63/74 - P7001: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (3): A(s) Disciplina(s): Ser ou não ser... disciplinado, eis a questão
Vd. último poste da série de 28 de Setembro de 2012 >
Guiné 63/74 - P10451: (Ex)citações (196): Um funeral balanta, em Barro, no tempo da CART 2412 (1968/70) (Adriano Moreira)