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quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2585: Blogpoesia (8): Viagem sem regresso (José Manuel, Fur Mil Op Esp, CART 6250/72, Mampatá, 1972/74)

1. Texto enviado ontem, através do endereço de correio electrónico Quinta Srª da Graça. Vim a descobrir, através de pesquisa na Net, que a Quinta da Senhora da Graça, com sede em Senhora da Graça, 5030-429 Lobrigos (S. J. Baptista), Santa Marta de Penaguião, distrito de Vila Real, Telef. 254 811 609, era de um camarada nosso, o José Manuel Lopes, autor deste poema.


Viagem sem regresso

não regressar
será o esquecimento
será o vazio
a dor
dor
que já se não sente
o não poder ver a gente
que nos abria o sorriso
e a vontade de amar.

josema
Guiné 1972


2. De facto, confirmei, através de um simples contacto telefónico, que o josema, que assina o poema, era o José Manuel Lopes, produtor de conhecidos e excelentes vinhos DOC, do Douro, e que tem também um turismo de habitação, na sua Quinta da Senhora da Graça. À conversa com ele, disse-me, no essencial o seguinte:

(i) teve conhecimento do nosso blogue, porque viu o programa Câmara Clara, da RTP Dois, da Paula Moura Pinheiro, edição de 24 de Fevereiro de 2004, que foi dedicado à literatura sobre a guerra colonial, e teve dois convidados em estúdio, os escritores Lídia Jorge (autor da Costa dos Murmúrios...) e Carlos Matos Gomes (que assina Carlos Vale Ferraz, o autor de Soldadó); nessa edição, o fundador e editor deste blogue foi entrevistado; o nosso blogue foi amplamente divulgado; o programa passa também na RTP África e na RTP Internacional;

(ii) ficou muito sensibilizado e até emocionado, e foi visitar o blogue de que passou a ser visita diária;

(iii) foi Fur Mil Inf Armas Pesadas, com o curso de Op Esp e a especialidade de Minas e Armadilhas;

(iv) a sua unidade era a CART 6250; esteve sempre em Mampatá, entre 1972 e 1974;

(v) fez segurança aos trabalhos da nova estrada Quebo - Mampatá - Salancaur, que ficou asfaltada antes do 25 de Abril... Tratava-se de uma obra que ia ao encontro da estratégia do Spínola, a da contra-penetração nas regiões libertadas do PAIGC. A obra parou com o 25 de Abril... O novo troço deveria ter uns 30 quilómetros...

(vi) O José Manuel foi inesperadamente mobilizado para a Guiné, já com 18 meses de tropa... Juntou-e à malta da CART 6250, que era constituída por gente do interior (do Alentejo, das Beiras, do norte)... A unidade mobilizadora foi o regimento de Vila Nova de Gaia;

(vii) Depois de Bolama, seguiram em LDG para Buba. onde tuveram logo o baptismod e fogo, como era da "parxe do PAIGC";

(viii) ele e a companhia dele seguiram os acontecimentos de Guileje, e saíram de Mampatá para fazer segurança à CCAV 8530, restantes forças e população civil, que andaram perdidos, nesse perigoso campo de minas, que era todo o corredor de Guileje, montadas umas pelo PAIGC e outras pelas NT; aliás, a sua CART 625o foi uma das unidades que mais minas levantou, durante a guerra e no final da guerra; recorda-se que se pagava mil escudos por cada mina levantada...

(ix) tem histórias fantásticas, como a de um camarada nosso, natural da Régua, que foi encontrado inaninado, desidatrado, doente, no Rio Corubal, numa piroga à deriva, depois de ter fugido de uma zona controlada do PAIGC... Teria sido um dos sobreviventes do desastre do Cheche, na travessia do Rio Corubal, em 6 de Fevereiro de 1969, na sequência da evacuação de Madina do Boé (Oficialmenet não houve sobreviventes!) ... Levado para Conacri, mostrou-se colaborante com o PAIGC e levado para uma zona libertada... Razão por que não estaria em Conacri, na prisão do PAIGC, em 22 de Novembro de 1970, quando os 26 portugueses foram libertados, na sequência da Op Mar Verde... Como tinha liberdade de movimentos, terá decidido mais tarde (em data que o José Manuel não precisou), procurar as NT, seguindo ao longo do Rio Corubal... Foi nessa altura que o encontraram... "Devia ter nais oito anos do que nós... Vive hoje na Régua, e com muitas dificuldades"... Pus a hipótese de ter sido companheiro de infortúnio do nosso morto-vivo do Quirafo, o António da Silva Baptista, que já nos contou que houve, no seu tempo de cativeiro, no Boé, um português que fugiu, seguindo o curso do Corubal... Uma história estranha e misteriosa, que fica por confirmar...

(x) há outras histórias, que vão enriquecer o nosso blogue e a nossa memória, incluindo o período do pós-25 de Abril, em que o José Manuel teve contactos frequentes e intensos com a malta do PAIGC (cujos graduados "andavam sempre com livros e cadernos debaixo do braço e tinham muito nível"); soube do 25 de Abril, quando vinha de uma operação no mato e viu os restantes camaradas, no heliporto de Mampatá, agitadíssimos, muito eufóricos, com os soldados a gritar: "Meu furriel, a guerra acabou, a guerra acabou!"... Isto passou-se a 26 de Abril. A notícia tinha sido escutada na BBC por um dos um militares, que na vida civil era rádio-amador...

(xi) durante a sua comissão , ele próprio costumava andar com um lápis e um caderninho n0 bolso, onde nomeadamente ia escrevendo os seus poemas; tem muitas coisas dessa época, que nunca publicou nem mostrou a ninguém, além de inúmera documentação fotográfica; escreveu versos que eram acompanhados com músicas conhecidas da época, de autores contestatários como o Zeca Afonso; vai-me mandar o Cancioneiro de Mampatá (foi assim que eu logo o baptizei...); inclusive, prontifficou-se a mandar-me um poema por dia...

(xi) durante anos não falou da guerra colonial com ninguém, só mais recentemente foi ao convívio anual do pessoal da CART 6250;

(xii) esteve sempre em Mampatá onde a tropa vivia misturado com a população (maioritariamente, futas-fula), razão por que nunca foram atacados; não tinham artilharia, só mais tarde é que passaram a ter obus 14, que dava apoio às operações de segurança de construção da estrada Quebo-Mampatá-Salancaur... Também aqui, em Salancaur, abriram um destacamento (arame farpado, valas e tendas...);

(xiiii) fala da Guiné com a mesma paixão com que fala do seu Douro (donde nunca mais saiu, desde que regressou da Guiné, em Agosto de 1974)...

Passámos rapidamente a tratar-nos por tu, como velhos camaradas. Convidei-o a integrar a nossa Tabanca Grande, o que aceitou com visível regozijo... Quando puder entregará as fotos da praxe. Fica à espera do filho, para lhe digitalizar as fitos (Ele é um jovem enólogo e está neste momento fazer uma estágio na Austrália).

Convidei-o a assitir ao lançamento do livro do Beja Santos, no dia 6 de Março de 2008, na Sociedade de Geografia de Lisboa... Vai ver se pode. Costuma vir a Lisboa, todos os meses, para fazer entregas de vinhos aos seus clientes.

José Manuel, estás apresentado. Estás em casa, entre amigos e camaradas! Sê bem vindo! Como vês, não há viagens sem regresso... A não ser as da morte. E por falarem regresso, tens histórias fabulosas de Mampatá, escritas por um velhinho, que por lá passou, um anos antes de ti, o nosso camarada Zé Teixeira (2)...L.G.
____________

Notas de L.G.:

(1) Vd. último poste desta série > 12 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2259: Blogpoesia (7): Nas terras de Darsalam, no Cantanhez, adormeceste, para sempre, como herói, meu querido Sasso (J.L. Mendes Gomes)

(2) Vd. poste de 14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2536: Guileje: Simpósio Internacional (1 a 7 de Março de 2008) (19): Cotejando as fotos da Fundação Mário Soares com as nossas

Ocupação do Quartel de Guiledje pelo PAIGC, 22 de Maio de 1973: soldado do PAIGC preparando-se para hastear a bandeira.

Foto: Documentos Amílcar Cabral / Fundação Mário Soares (2008) (com a devida vénia...)


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (Dez 1972/Mai 73), Os Piratas de Guileje > o Fur Mil At Inf Op Esp J. Casimiro Carvalho junto ao monumento aos mortos e feridos da CCAÇ 3325 (que esteve em Guileje de Janeiro a Dezembro de 1971). A penúltima unidade de quadrícula de Guileje foi a CCAÇ 3477 (Nov 1971 / Dez 1972), conhecida por Os Gringos de Guileje.

Foto: © José Casimiro Carvalho (2007). Direitos reservados.


Ocupação do Quartel de Guiledje pelo PAIGC, 22 de Maio de 1973: aspecto do interior do dormitório.

Foto: Documentos Amílcar Cabral / Fundação Mário Soares (2008) (com a devida vénia...)


Ocupação do Quartel de Guiledje pelo PAIGC, 22 de Maio de 1973: aspecto da destruição geral, distinguindo-se, à direita, a entrada de um dos abrigos subterrâneos (e o espaldão do morteiro 81 mm, o mesmo que se vê em maior detalhe na foto a seguir, com o J. Casimiro Carvalho).

Foto: Documentos Amílcar Cabral / Fundação Mário Soares (2008) (com a devida vénia...)



Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) > O Fur Mil Op Especiais Carvalho, no abrigo do Morteiro 81

Foto: © José Casimiro Carvalho (2007). Direitos reservados.

Ocupação do Quartel de Guiledje pelo PAIGC, 22 de Maio de 1973: porta de armas com as insígnias da Companhia de Caçadores nº 3477, os Gringos (1971-1972.

Foto: Documentos Amílcar Cabral / Fundação Mário Soares (2008) (com a devida vénia...)



Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (Dez 1972/Mai 73) > O Fur Mil Op Esp J. Casimiro Carvalho, na famosa porta de armas de Guileje... Guiné > Região de Tombali > Guileje > 1972 > O Alf Mil Médico Mário Bravo (que vive no Porto) na porta de armas... O Mário Bavo, que pertenceu à CCAÇ 6 (Bedanda, 1971/72) ia regularmente a Guileje, para prestar assistência médica aos respectivos militares e população.

Foto: © Mário Bravo (2007). Direitos reservados



Amílcar Cabral e Constantino Teixeira, entre outros, a bordo de uma canoa. Uma das fotos-ícone de Cabral. Fotografia da italiana Bruna Polimeni, a fotojornalista que é autora de algumas das fotos mais famosas de Amílcar Cabral, do PAIGC e da luta de libertação da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. Recebeu o Prémio Amílcar Cabral em 2006.

Foto: Documentos Amílcar Cabral / Fundação Mário Soares (2008) (com a devida vénia...)

A Fundação Mário Soares (FMS) associa-se à realização do Simpósio Internacional "Guiledje: Na rota da Independência da Guiné-Bissau", que se realiza em Bissau, de 1 a 7 de Março de 2008.

Neste âmbito, o Arquivo & Biblioteca da Fundação Mário Soares preparou um conjunto de documentos e fotografias relacionadas com Guiledje, com recurso, designadamente, ao Arquivo Amílcar Cabral.

De entre esses documentos, agora disponibilziados, é de referir o relatório elaborado, em 1973, pelo PAIGC sobre as forças armadas portuguesas no TO da Guiné (exército, força áérea e marinha), sua organização, meios e efectivos, com base em documentos capturados em Guileje em 22 de Maio de 1973 e que as NT não tiveram tempo de destruir. São 55 páginas, incluindo cópias dos originais. O documento está disponível em pdf.

A página da FMS sobre o Simpósio Internacional de Guileje tem um link directo para o nosso blogue > Luís Graça & Camaradas da Guiné. Foram utilizadas algumas imagens do nosso blogue, com a devida autorização do editor Luís Graça ao coordenador Vitor Ramos.

Para além das fotografias, nossas e do Arquivo Amílcar Cabral, veja-se também os textos (sobre anticolonialismo, Guileje, contexto). Os conteúdos são da responsabilidade de Vitor Ramos e Alfredo Caldeira.

sábado, 2 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2499: Guiledje: Simpósio Internacional (1 a 7 de Março de 2008) (13): Enquadramento histórico (I): a importância estratégica de Guileje








Guiné-Bissau > PAIGC > Novembro de 1970 > Belíssimas imagens obtidas algures, no sul, em região libertada, pelo fotógrafo norueguês Knut Andreasson.

Recorde-se que o fotógrafo norueguês acompanhou uma delegação sueca (tendo à frente a antiga líder do parlamento sueco, Birgitta Dahl) na visita às regiões libertadas da Guiné-Bissau, em Novembro de 1970.

Segundo o sítio da Nordic Africa Institute (uma agência dos países nórdicos, com sede na Suécia, em Upsala ), esta visita deu-lhe oportunidade de falar com Amílcar Cabral, em pleno palco da luta pela independência, e ficar a conhecer melhor o PAIGC, a guerrilha e a sua implantação no terreno.

Andreasson e Dahl publicaram mais tarde um livro em sueco sobre essa viagem. Andreasson, por sua vez, realizou uma exposição fotográfica e publicou um álbum fotográfica sobre esta visita.

A maior parte das fotos deste período foram doadas ao Nordic Africa Institute pela viúva de Andreasson. A exposição foi , por sua vez, doada à Fundação Amílcar Cabral pelo Nordic Africa Institute, sendo apresentada por Birgitta Dahl, a antiga líder do Parlamento Sueco, por ocasião das celebrações do 80º aniversário de Amílcar Cabral, em Setembro de 2004.

Fonte: Nordic Africa Institute (NAI) / Fotos: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a autorização do NAI) (As fotografias tem numeração, mas não trazem legenda) (*)


I Parte da brochura, publicada em pdf, pela organização do Simpósio Internacional sobre Guiledje, e que tem como título Guiledje: Na Rota da Independência da Guiné-Bissau. É um notável documento, objectivo, sintético, suportado na investigação historiográfica, e que nos ajuda a perceber melhor a importância estratégica que teve Guileje (e o corredor de Guileje) na estratégia do PAIGC e do seu líder histórico, Amílcar Cabral, nomeadamente a partir de 1965.

É um documento, feito pelos guineenses que hoje podem, com orgulho, apropriar-se da sua própria história, construi-la e escrevê-la. O documento original, em pdf, de 20 páginas é ilustrada com fotografias cedidas por ex-militares portugueses que fizeram parte de unidades de quadrícula estacionadas em Guiledje, desde 1964 a 1973, incluindo vários camaradas da nossa tertúlia. (Fotografias essas que não vamos aqui reproduzir, uma boa parte delas já sendo conhecidas do nosso blogue. Vd. o documento original).

É também um momento bonito, que só vem confirmar a sabedoria de Amílcar Cabral que nunca hostilizou o povo português e os portugueses, nunca os confundindo com o regime político de António Salazar / Marcelo Caetano... Amílcar Cabral gostaria certamente de ver, se fosse vivo, os inimigos de ontem transformados em amigos de hoje...

Como, de resto, temos escrito no nosso blogue, o Simpósio Internacional de Guiledje não celebra a derrota de ninguém mas sim a vitória de dois povos que continuam ligados por laços históricos, afectivos, culturais e linguísticos... Guiledje (mantendo a grafia que é cara aos nossos amigos guineenses, mesmo contra os puristas da língua portuguesa para quem não existe o conjunto consonântico dj...) representa o triunfo da vida sobre a morte, a vitória da paz sobre a guerra, a primazia da memória (viva) sobre o esquecimento e o branqueamento da história, a afirmação da esperança no futuro, o reforço da amizade e da solidariedade entre os nossos dois povos...

Guiledje - Simpósio Internacional - Guiledje: Na Rota da Independência da Guiné-Bissau. Documento em pdf. 2007. 20 pp. (Com a devida vénia...)

Revisão e fixação de texto, para edição neste blogue: L.G.


Parte I >


(i) A estruturação das forças militares do PAIGC e as suas primeiras repercussões

A luta armada de libertação nacional foi iniciada no Sul em Janeiro de 1963. No final do primeiro semestre de 1964, a situação militar era já de grande optimismo para o PAIGC, cuja guerrilha não parava de alastrar para extensas partes do território.

Em cumprimento das resoluções do seu I Congresso, o PAIGC, criou em Fevereiro de 1964 o Exército Popular e a Milícia Popular. A guerrilha foi fortemente reestruturada e transformou-se mais tarde nas Forças Armadas Revolucionárias do Povo, as FARP. Foi constituído um órgão de cúpula – o Conselho de Guerra – que funcionaria como estado-maior e era dirigido pelo Secretário-Geral, Amílcar Cabral.

A criação da Milícia Popular, à qual foram confiadas tarefas de autodefesa bem como a gestão de questões de natureza político-administrativa nas regiões libertadas, permitiu a libertação de parte dos efectivos guerrilheiros. Conferiu-se assim maior poder de iniciativa e mobilidade às unidades de combate do PAIGC. Tal facto criou desde cedo imensos problemas ao Exército português.

Logo no primeiro ano de conflito, a chefia militar máxima do Exército português na então Província da Guiné foi substituída quatro vezes, apenas se registando uma estabilização em Maio da 1964, altura em que chega à Guiné o general Arnaldo Shultz, antigo Ministro do Interior português de 1959 a 1961. Após ter tomado o pulso da situação e visando dar maior operacionalidade e eficácia às tropas portuguesas perante a combatividade dos guerrilheiros do PAIGC, decidiu unificar o comando político com o comando militar da Guiné.


(ii) Guiledje e a logística de guerra do PAIGC

Antes da existência do corredor de Guiledje, a infiltração e o transporte de armamento e víveres do PAIGC eram feitos pelo trajecto Canafá-Quitafine-Cassumba-Canamina e Cubucaré. Este trajecto foi posteriormente abandonado em virtude da apertada vigilância que o Exército português passou a praticar, sobretudo após a batalha de Como (1), ao longo dos numerosos cursos de água. O PAIGC optou doravante por utilizar uma via paralela que se estendia entre Balana, Gandembel e Medjo.

Também o Exército português construiu, em Guiledje, um dos aquartelamentos mais bem fortificados nos finais da guerra. Os objectivos eram não só a de se opor ao trânsito de armamento e víveres vitais para o esforço de guerra do PAIGC, como também o da criação de uma reserva de socorro permanente e geograficamente bem colocada entre os quartéis e destacamentos do Exército português. Estes, estabelecidos ao longo da fronteira Sul, estavam expostos às investidas e ataques constantes da guerrilha.

Com o abandono do eixo Canafá-Quitafine-Cassumba-Canamina e Cubucaré, a única alternativa que surgiu para o PAIGC foi a da via terrestre até a fronteira, operando de Gandembel, Botche Cul, Botche Bunhe, Botche Djaté, Untchulbá,Tchim-Tchim Dari, Ndaba, Balana Balanta, Salancaur e Porto de Santa Clara. Os populares armazenavam armamento e munições que eram posteriormente encaminhados pelos serviços de logística do PAIGC para os diferentes destinos.

Em 1965, o PAIGC abre as hostilidades na sua Frente Leste. Mantém, contudo, o controlo sobre os seus mais importantes santuários interiores: as bases-barraca das matas do Cantanhez a Sul, e do Oio-Morés, a Norte. A partir daqui, e em ligação com bases nos países vizinhos, o PAIGC consolida posições em faixas cada vez mais vastas. Grande parte da região Sul, sobretudo em Cantanhez, passa para as suas mãos, constituindo as chamadas regiões libertadas do PAIGC. Todas as tentativas levadas a cabo pelas forças portuguesas para as recuperar saldaram-se por derrotas, que chegam mesmo, por vezes, a constituir verdadeiros desastres militares. Assim sucede por duas vezes em Cantanhez (2).

O Exército português pôs em marcha vários planos para se assenhorear do corredor de Guiledje com objectivos evidentes de interditar por um lado o trânsito de armamento e víveres e, por outro, de destruir um importante centro de recrutamento da guerrilha. O PAIGC possuía na vasta e muito rica área do Sul uma importante fonte de abastecimento essencialmente em gado, arroz e mandioca (3).

A introdução de armamento na Frente Norte era difícil senão impossível, em virtude da proibição pelo Governo senegalês do trânsito de armamento do PAIGC através do seu território. Esta situação só começou a alterar-se timidamente após 1966, altura em que foi rubricado o primeiro acordo de cooperação entre o PAIGC e o Governo do Senegal.

(iii) O Corredor de Guiledje e a evolução da guerra

O Corredor de Guiledje (também chamado Caminho do Povo e Caminho da Liberdade) (4) estende-se de Kandjafra, Simbel e Tarsaiá (Guiné-Conakry) a Gandembel, Balana, Salancaur e Unal (Guiné-Bissau). Não obstante os altos custos em vidas humanas e perdas materiais que acarretou, o Corredor acabou por funcionar para o PAIGC como o maior e mais importante corredor de infiltração e de abastecimento ao longo da guerra.

A sua função estratégica potenciou-se consideravelmente após o assalto ao quartel de Guiledje em Maio de 1973 até sensivelmente depois do 25 de Abril, quando se instituíram as tréguas entre os contendores. Camiões de fabrico russo do PAIGC (“Gaz” e “Gil”) passaram a transpor a fronteira desde Kandjafra, passando por Gandembel e parte importante do Carreiro de Guiledje no sentido Gandembel-Salancaur e Porto de Santa Clara.

António da Graça Abreu testemunha: “ (…) Com o abandono do aquartelamentode Guiledje em meados do ano passado, foi-lhes possível abrir uma estrada desde a Guiné-Conakry até às florestas situadas entre Bedanda e Iemberém. Vêm com as viaturas até bem dentro do território carregados com toneladas de material de guerra (…) (5)”.

A partir de 1965, a situação favorável ocasionada pelo corredor de Guiledje ao PAIGC passou a ser evidente. Para além de ter permitido às FARP controlar praticamente todo o Sul da Guiné, o corredor permitiu ainda estender esse controlo para a zona Centro-Oeste do território. Em reacção, o Exército português desencadeou uma série de operações militares como as de Cantanhez, Como e Quintafine. Não obstante a sua grande envergadura, essas operações não deram resultados palpáveis. O Governador Schultz optou então por colocar nessas áreas algumas forças que as pudessem (re)ocupar e outras para reagir às investidas dos guerrilheiros do PAIGC.

O PAIGC, profundamente consciente da importância estratégica do Corredor de Guiledje ali colocou uma força considerável capaz de dissuadir o Exército português:

– o 2º Corpo de Exército que irradiava normalmente a partir da região de Salancaur-Unal, com a missão de garantir a liberdade de utilização do importante nó de comunicações e o complexo logístico do Unal;

– o 3º Corpo de Exército do PAIGC que, operando a partir da região de Kandjafra, na Guiné-Conakry, tinha a missão de atacar e isolar o Exército português no extremo sul fronteiriço e assim garantir a utilização do corredor de Guiledje.

Destaca-se, nesse particular o grupo de artilharia comandado pelo lendário Tué Nangamna (6) que, sob as ordens de Amílcar Cabral, logrou destruir e isolar o destacamento de Gandembel e Balanacinho, cujo objectivo era retirar ao PAIGC a função vital que o Caminho do Povo assumia no seu esforço de guerra (7).

O Exército português tinha na altura numerosos destacamentos militares junto à fronteira com a Guiné-Conakry o que o obrigava a desmedidos esforços de reabastecimentos de munições e alimentos por meio de colunas militares. Estas envolviam normalmente grande número de viaturas, algumas delas em estado avançado de degradação, para além de numerosas forças terrestres e aéreas para a sua protecção.

No geral, as colunas militares portuguesas possuíam um arsenal bélico de qualidade inferior ao dos guerrilheiros. A guerra começou então a desequilibrar-se claramente a favor do PAIGC.

O general Schulz reconheceu: “ (…) quando cheguei à Guiné a situação era complicada, o PAIGC atacava em todas as frentes a partir do Senegal e da Guiné-Conakry e de bases onde se refugiavam no interior da Província – as matas do Sul (Cassacá, Como....) e as de Oio, Gã-turé, Cantanhez... –, chegando ao ponto de flagelar o quartel de Brá, situado entre Bissau e o aeroporto de Bissalanca, ou seja, nas barbas do poder mmilitar português, e de noite ouviam-se ataques a outros destacamentos, por vezes com alguma violência e durante largos períodos de tempo (… )” (8).

É consensual que a situação nunca mais parou de se agravar desfavoravelmente para o Exército português, exceptuando uma ou outra fase conjuntural, em que este último logrou estabelecer um tangencial e frágil equilíbrio militar. A tentativa de reocupar extensas áreas sob o controlo do PAIGC, não produziu os efeitos desejados.

O Exército português na Guiné teve que recorrer a um crescente aumento do contingente, que passou de 2000 homens em armas nos finais dos anos 50 para cerca de 10.000 em 1960 e cerca de 25.000 em 1968. Foi continuando ao longo dos anos da guerra a crescer até atingir um máximo de 42.000 efectivos, sobretudo graças ao recrutamento africano (9).

(Continua)
_______

Notas dos autores da brochura:

(1) A batalha de Como durou mais de dois meses em 1964. A operação Tridente do Exército português, cujo objectivo era o de expulsar os guerrilheiros do PAIGC da Ilha, falhou completamente e Como permaneceu como área libertada controlada pelo
PAIGC. A operação é comummente considerada a de maior envergadura no contexto das guerras coloniais portuguesas em África.

(2) Em Dezembro de 1973, sob o nome de código Estrela Telúrica já depois da tomada de Guiledje, ao todo cerca de 500 homens, ou seja, três companhias de comandos africanos, mais a conhecida 38ª de Comandos e fuzileiros, tentaram em Cantanhez enfraquecer os guerrilheiros e bases do PAIGC com uma grande operação que se prolongou por mais de uma semana, todavia, não bem sucedida.

Segundo António da Graça de Abreu, um testemunho presencial dos acontecimentos, confessa num seu livro/diário da guerra que “acho que nunca ouvi tanta porrada, tantos rebentamentos, nunca vi tantos mortos e feridos num tão curto espaço de tempo. E a tragédia vai continuar. A Estrela Telúrica prolongar-se-á por mais uma semana. Tudo começou em grande, com três companhias de Comandos Africanos, mais os meus amigos da 38ª, fuzileiros e a tropa de Cadique a avançarem sobre Cantanhez. O pessoal de Cadique começou logo a levar porrada, um morto, cinco feridos, um deles alferes, com uma certa gravidade. Ontem de manhã, dia de Natal, foi a 38ª de Comandos a embrulhar, seis feridos graves, entre eles os meus amigos alferes Domingos e Almeida, hoje foram os Comandos africanos comandados pelo meu conhecido alferes Marcelino da Mata, com dois mortos e quinze feridos O IN, confirmados pelas NT, só contou seis mortos, mas é possível que tenha morrido muito mais gente, os FIATs a bombardear e os helicanhões a metralhar não têm tido descanso" (...). Vide, Abreu, António Graça de, Diário da Guiné, Lama, Sangu e Água Pura. Lisboa: Guerra e Paz. 2007, p.175.

(3) O Sul da Guiné representa o maior espaço de produção agrícola de arroz, sendo as terras situadas na bacia do rio Cumbidjã as mais dotadas para a produção de arroz no território.

(4) Entre os soldados portugueses, vulgarizou-se a expressão Corredor da morte, referindo-se obviamente à intensidade dos combates pelo controlo do Corredor de Guiledje.

(5) Abreu, António Graça de, Diário da Guiné, Lama, Sangue e Água Pura. Lisboa: Guerra e Paz Editores S.A., 2007.

(6) Tué Nangamna, recentemente falecido, possuía como última residência o Bairro de Impantcha, nos arredores de Bissau. Tido consensualmente como dos melhores artilheiros do PAIGC, comandou cerca de 60 morteiradas em algumas operações de alto risco e responsabilidade, como a de destruição do destacamento português de Balana e de Balanacinho.

(7) Leia-se, à propósito, os diversos artigos publicados no site Luís Graça e Camaradas da Guiné, de autoria de Idálio Reis.

(8) Entrevista com o general Arnaldo Shultz, realizada a 18 de Julho de 1985, e conduzida por Josep Sanches Cervelló, In A Revolução Portuguesa. Sua Influência na Transição Espanhola, (1961-1976). Lisboa, Assírio e Alvim , 1993, p. 93.

(9) O contingente militar português foi-se africanizando na medida em que Portugal continental estava a atingir os limites máximos da sua capacidade de recrutamento, pelo que o recrutamento local que começou em 1966 e foi aumentando até 1971, se bem que na própria Guiné a população era muito limitada comparada com a das outras colónias, dado que nunca ultrapassou os 21 por cento do total dos habitantes.

O peso das milícias foi aumentando com o decurso da guerra, e nas últimas etapas, eram responsáveis por 50 por cento do contacto com os guerrilheiros do PAIGC.

Vide Cann, John P., A Contra-insurreição em África (1961-1974), O Modo Português de Fazer a Guerra. Lisboa, Atena, 1988, p. 122.

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Nota de L.G.

(*) Mensagem da Webmaster:

Dear Luís Graça,

I am glad to hear that you like the photos and that you use them.

Best regards,
Agneta Rodling
Information/Webb
Nordiska Afrikainstitutet
The Nordic Africa Institute
Box 1703,
SE-751 47 UPPSALA
+46-18 56 22 21

Mensagem anterior de L.G.:

Dear webmaster:

Please note that, as the founder and main editor of Portuguese blog 'Luis Graca e Camaradas da Guine' (in English, Luis Graca and Guinea-Bissau camerades), I have postd some photos from the great photographer Knut Andreasson I have found out on your Nordic Africa Insitute site as public domain material... I am very grateful for this. Best wishes. Luis Graca.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2493: Estórias de Guileje (6): Eurico de Deus Corvacho, meu capitão (Zé Neto † , CART 1613, 1966/68)

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68)> Um secretaria improvisada, com um telheiro assente em duas palmeiras... Álbum fotográfico de José Neto (1929-2007). Embora ele não nos tenha deixado legendas, não nos parece que o Cap Corvacho esteja neste grupo, segundo informação do Cor Art, na reforma, Nuno Rubim, que é do curso a seguir ao dele (LG).

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68)> O grande momento do dia, a distribuição do correio, a chegada dos aerogramas que vinham da Metrópole, através do SPM - Serviço Postal Militar, com notícias dos entes queridos e dos amigos (O aerograma, na Guiné, era também conhecido por bate-estradas...) (LG)


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68)> Alguns dos quadros da companhia, vestidos com trajes fulas... Presume-se que fosse uma brincadeira de Carnaval... Dois militares parodiam a PM- Polícia Militar... O Cap Corvalho pode ser o terceiro a contar da esquerda, pelo menos ostenta é alguém que ostenta as divisas de capitão. "Aqui de certeza é o Corvacho, um bom amigo", garante-me o Nuno Rubim ... (LG).


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68)> O então 2º Sargento José Neto, vestido com traje fula... (LG).


Fotos: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). (Fotos do José Neto † , reeditadas por Albano Costa). Direitos reservados.


1. Texto, da autoria do saudoso Cap José Neto (1929-2007), que exerceu funções de 1º Sargento na CART 1613 (São João, Brá, Guileje, Bula, 1966/68), sob o comando do Cap Eurico Corvacho (1)


O Capitão de Artilharia Eurico de Deus Corvacho
por José Neto

Fixação, revisão do texto e subtítulos: L.G.

Creio que é esta a primeira vez que alguém traz ao blogue uma figura concreta dum comandante da campanha da Guiné. Não se trata dum vulgar panegírico, que seria natural nas palavras do seu primeiro-sargento, mas sim duma homenagem devida ao Homem que transformou e comandou a CART 1613/BART 1896, desde 25 de Dezembro de 1966 até duas semanas depois de 9 de Setembro de 1968.


(i) A tragédia da noite de Natal de 1966, em São João, em que o Cavaco matou o comandante da companhia, o Alf Art, graduado em Capitão, Fonseca Ferraz

Inicialmente, na orgânica do Batalhão, o Cap Corvacho era o oficial mais antigo no seu posto e desempenhava as funções Oficial de Pessoal e Reabastecimento.

Na nossa primeira noite de Natal, com pouco mais de um mês de Guiné, em São João, um soldado nosso matou, a tiros de G3, o comandante da companhia (2).

No dia 25 de Dezembro [de 1966] vieram dois helis com oficiais que indagaram, investigaram, fotografaram e regressaram a Bissau sem o Cap Corvacho, que ficou a comandar, interinamente, a companhia.

Eu já tinha lidado com ele em Brá, pois foi o oficial instrutor dum processo disciplinar que exigi ao comandante, na iminência de ser punido por uma infracção de trânsito - excesso de velocidade da viatura que me transportava - apenas em face da participação dum furriel da PM e dum sistema de detecção de velocidade discutível.

O Cap Corvacho (que tinha o curso de Polícia Militar) levou as suas averiguações até ao mínimo pormenor e concluiu – e assim o exarou no final do processo – que a minha ordem ao condutor (não dada, mas assumida) de ultrapassar uma camioneta do BENG [Batalhão de Engenharia] que travou ao ver a patrulha da PM, foi a adequada para evitar a possível colisão, e o excesso de velocidade assinalado pelo aparelho, 12 Km/hora (62-50) em nenhum momento pôs em perigo a circulação na faixa contrária.

Estas conclusões não foram do agrado do comandante. Atirou o processo para as mãos do Capitão e ordenou-lhe que reformulasse os autos porque me queria punir.

O Corvacho voltou a pôr o processo em cima da secretária do comandante e disse-lhe que a única solução era ele nomear um oficial (teria de ser o 2º comandante) para lhe instaurar, a ele Capitão, outro processo, este por desobediência, porque se negava, terminantemente, a alterar uma vírgula que fosse no que ali estava escrito.

Este gesto valeu-lhe a inscrição na lista dos coirões mal-amados do comandante, onde já figuravam, desde fins de Maio, a 2ª Companmhia de Instrução do RAP 2 (mais tarde CART 1613) no seu todo, o seu falecido comandante e este vosso modesto escriba.

O primeiro acto de comando do Capitão Corvacho foi mandar formar a companhia. A sua breve alocução resumiu-se a:
- Estou aqui para vos comandar até à chegada do novo comandante que há-de vir da Metrópole. Enquanto esta situação se mantiver vou exigir-vos o máximo e dar-vos todo o meu apoio. A minha primeira exigência fica já aqui: O que se passou esta noite foi uma tragédia que, contada e recontada, pode vir a sofrer deturpações que em nada favorecem a companhia. Por isso não vos peço que esqueçam, mas sim que não alimentem as coscuvilhices de Bissau e acho que a melhor resposta que podemos dar aos curiosos é: Isso é um assunto interno da companhia, ponto final.

Mandou destroçar e convocou os oficiais e sargentos para uma reunião. Disse-nos que queria o pessoal o mais ocupado possível. Que fossem à lenha, que fossem jogar a bola, que fossem banhar-se na praia, e que o resto do programa de treino operacional era para cumprir no duro.
Depois chamou-me à parte e fomos dar uma volta para conhecer o quartel – eu tinha chegado ali na véspera, pois tinha ficado em Brá a tratar da papelada e pedi para ir passar o Natal com os “meus rapazes” – e a nossa conversa andou à volta da situação algo calamitosa em que se encontrava o sector da alimentação com os desvarios que o Furriel vaguemestre tinha apontado na reunião.

Ficou assente que eu não ia regressar a Bissau no dia 27, como estava previsto, e ficava em São João a fazer um balanço e pôr um pouco de ordem no sector administrativo enquanto ele ia tentar tirar a pele ao pessoal até fazer deles uns combatentes de verdade.


(ii) Uma inédita manifestação de soldados, em apoio ao novo Comandante


Em princípios de Janeiro de 1967, a CART 1613 que regressou a Brá para ficar como companhia de intervenção à ordem do Comando-Chefe, era outra.

Entretanto chegou a Bissau o oficial nomeado para comandar a companhia, o Capitão de Artilharia Lobo da Costa, e gerou-se um pandemónio dos diabos.

Eu nunca tinha visto, nem achava possível, uma manifestação de soldados. Mas o que é certo é que, por organização espontânea, a minha tropa foi postar-se frente ao gabinete do comando do batalhão a gritar:
- O nosso comandante / é o capitão Corvacho.

Com a voz embargada pela comoção, o Capitão Corvacho disse-lhes:
- Vocês não sabem o que me estão a pedir… mas fico na companhia. Vou trocar as funções com o vosso novo comandante. Ponham- se a andar.

Toda a companhia, desde o Básico ao Alferes mais antigo, compreendeu aquela decisão do Homem que trocava o sossego da Messa e da Gestetner (máquinas dactilográficas e policopiadoras) pela terrível G3.


(iii) Uma postura do anti-herói

Seguiu-se um período de cerca de quatro meses de vai e volta. A companhia, aquartelada em Brá, era mandada para os mais diferentes pontos do território, andava por lá dez, quinze dias, e voltava estoirada, mas com um sentimento de dever cumprido cuja expressão máxima era o uso, em qualquer dos uniformes, do Lenço Verde que nos tinha calhado em sorte ainda em Viana do Castelo (todas as companhias do batalhão tinham o seu, de cores diferentes).

Foi numa dessas operações, na área de Pelundo/Jolmete, zona de responsabilidade dum Batalhão de Cavalaria sediado em Teixeira Pinto, que a CART 1613 mais se notabilizou, tendo o comandante do BCAV atribuído ao Cap Corvacho um extenso louvor que deu origem à condecoração com a Medalha de Cruz de Guerra de 2ª Classe.

Ironicamente, saliento que o meu Capitão tinha a postura característica do anti-herói que o cinema nos impinge e afinal a Pátria consagrou-o como Herói.

E para adensar a narrativa acrescento que o Cap Corvacho estava, nessa altura, em litígio com as chefias militares, porque no dia em que completou oito anos de serviço como oficial, requereu, ao abrigo do EOE (Estatuto do Oficial do Exército), a sua passagem ao escalão de Complemento (milicianos) desligando-se assim da actividade militar.

Com torneados e floreados, foi-lhe indeferida a pretensão. Só eu e poucos graduados tínhamos conhecimento desta faceta.

Este revés provocou-lhe uma imensa raiva interior, mas em nada buliu na sua condição de militar e o pessoal continuou a seguir o seu capitão até às profundezas do inferno se tal fosse necessário e a cantar, quase como hino, “Eles comem tudo/Eles comem tudo/Eles comem tudo/E não deixam nada" - a canção Os Vampiros do Zeca Afonso, proibida no Chiado e arredores, mas difundida em alto som em Guileje, onde morámos e combatemos cerca de um ano.

Podia terminar aqui a minha narrativa. Porém, falta esclarecer o motivo porque, no princípio, eu escrevo os limites temporais do seu comando entre 25 de Dezembro de 1966 e 9 de Setembro de 1968 e mais duas semanas.


(iv) Enfrentando a burocracia militar, no fim da comissão

O dia 9 de Setembro de 1968 foi o do embarque de regresso da CART 1613. Nessa altura nós ainda andávamos às voltas com a liquidação das três cargas de materiais à nossa responsabilidade. Uma deixada em Colibuia para entregar a quem aparecesse; outra entregue aos nossos substitutos de Guilege, cheia de falta isto, falta aquilo; e a última, a de Buba e destacamentos de Nhala e Chamarra. Até das Mauser entregues à população em auto defesa éramos responsáveis sem nunca as termos visto.

Perante a situação de eu ir ficar sozinho com 124 (cento e vinte e quatro) autos de ruína, extravio, etc. em curso, e alguns a elaborar, pois o reles 1º sargento das cargas, na Bolola, tinha o prazer sádico de ir descobrir mais uma ficha que não estava a zero e chapar-ma na cara, em face disto, dizia, o Capitão Corvacho resolver adoecer e faltar ao embarque.

Usando a sua influência junto dos seus conhecidos (por sorte o chefe do Serviço de Material tinha sido seu condiscípulo na Academia Militar) em dez ou onze dias coleccionámos os carimbos, vistos e despachos para, posteriormente, ficar tudo a zero, com algum ressabiamento do reles da Bolola.

Duas semanas depois o Niassa voltou e levou o meu Capitão.

Eu fiquei até meados de Outubro, dependente do fecho de contas do CA (Conselho Administrativo) do BART 1896 nas quais a minha (conta da CART 1613) estava incluída.

Este, embora descrito a traços largos e descoloridos, foi o Capitão de Artilharia Eurico de Deus Corvacho, ainda hoje o meu Capitão. O seu envolvimento no 25 de Abril de 1974 e período subsequente [em que nomeadamente foi brigadeiro graduado em 1975, tendo estado à frente da região Militar do Norte], considerado, por muitos, algo controverso, para mim foi absolutamente coerente, não obstante o meu modo de ver possa não coincidir com o meu modo de ser.

Nos dias que correm o meu Capitão emprega a sua enorme coragem na luta contra uma doença grave. No passado dia 4 de Junho de 2005, amparado pelo nosso grande amigo Dr. Joaquim de Oliveira Martins, o ex-Alferes Médico do Batalhão que preferia estar connosco em Guileje em vez da ainda calma Buba, não deixou de ir almoçar a Braga com os seus homens. Vi muitos ex-soldados a disfarçar os soluços ao verem a dificuldade de locomoção do Homem que, nos seus imaginários, era o primeiro a avançar lá longe nas matas da Guiné.

José Afonso da Silva Neto


Comentários:

Gostei muito de ler esta memória. Ela confirma a excelente opinião que tenho de Corvacho, que conheci e com quem conversei muita vez depois do 25 de Abril, nas décadas de 70 e 80 mas de quem deixei de ter notícias há muitos anos. Foi com tristeza que li que não se encontra bem de saúde. Se me puder facultar algum contacto dele ou da família, ficar-lhe-ia agradecido.

Raimundo Narciso, 2/24/2006.

Embora conhecesse o relato aqui descrito, contado na primeira pessoa, não posso deixar de ficar emocionado com a forma como é retratado o meu pai. Cumpre-me informar a todos os seus camaradas de que, mais uma vez com muita coragem, continua a sua luta contra a doença.

Estou contactável pelo e-mail e_corvacho@netcabo.pt

Eurico C. Corvacho, 1/29/2008

3. Comentário de L.G.:

Os nossos camaradas da Guiné que estão hoje em sofrimento, devido a doença prolongada, merecem a nossa solicitude, compaixão, solidariedade, amizade, camaradagem... Lembrá-los enquanto estão vivos é a maior homenagem que podemos fazer-lhes. Daí eu ter decidido recuperar este texto, já antigo, publicado na 1ª série do nosso blogue pelo nosso patriarca Zé Neto que continua, também ele, bem presente na nossa memória.

Peço ao seu filho, Eurico C. Corvalho, que transmita ao seu pai e nosso camarada as nossas saudações bloguísticas. Um grande Alfa Bravo da nossa Tabanca Grande. Aqueles de nós que forem proximamente a à Guiné-Bissau e a Guileje levarão a incumbência de lhe fazer uma pequena homenagem a ele, ao Zé Neto e aos demais camaradas da valorosa CART 1613.

Vd. outros postes desta série Estórias de Guileje (3).

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Notas dos editores:

(1) Vd. poste de 23 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXVI: O meu capitão, o capitão Corvacho da CART 1613 (1966/68) (Zé Neto)


(2) Vd. poste de 11 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXI: Memórias de Guileje (Zé Neto, 1967/68) (7): Francesinho e Cavaco, o belo e o monstro

(...) O Soldado Condutor Auto Rodas José Manuel Vieira Cavaco abateu a tiro o primeiro comandante da companhia, Alferes de Artilharia, graduado em Capitão, Fausto Manteigas da Fonseca Ferraz, na noite de 24 para 25 de Dezembro de 1966 (Natal), no aquartelamento de S. João, frente a Bolama, onde a unidade se encontrava em treino operacional (...).

(...) O Cavaco foi condenado, em Bissau, no Tribunal Militar, a uma pena de vinte e três anos de prisão maior, a cumprir em estabelecimento penal adequado na Metrópole. O Zé Neto nunca mais o vi, mas teve "notícias de que o rapaz não cumpriu nem metade da pena".(...)


(3) Vd. postes anteriores:

30 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2492: Estórias de Guileje (5): Os nossos irmãos artilheiros Araújo Gonçalves † e Dias Baptista † (Costa Matos / Belchior Vieira)

29 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2489: Estórias de Guileje (4): Com os páras, na minha primeira ida ao Corredor da Morte (Hugo Guerra)

27 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2483: Estórias de Guileje (3): Devo a vida a um milícia que me salvou no Rio Cacine, quando fugia de Gandembel (ex-Fur Mil Art Paiva)

23 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2473 - Estórias de Guileje (2): O Francesinho, morto pela Pátria (Zé Neto † )

14 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2437: Estórias de Guileje (1): Num teco-teco, com o marado do Tenente Aparício, voando sobre um ninho de cucos (João Tunes)

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2492: Estórias de Guileje (5): Os nossos irmãos artilheiros Araújo Gonçalves † e Dias Baptista † (Costa Matos / Belchior Vieira)

Guiné > Região de Tombali > Bedanda > CCAÇ 6 > 1971 > Um das famosas imagens da guerra da Guiné, a saída do obus 14, de noite, tirada com a máquina rente ao chão, pelo então Alf Mil Médico Amaral Bernardo (hoje médico do Hospital de Santo António, Porto, e membro da nossa Tabanca Grande) (1).

Foto: © Amaral Bernardo (2007). Direitos reservados.

1. Texto enviado pelo Cor Art, na reforma, Costa Matos:

Agora que Guileje está, por motivos vários, na ordem do dia, envio-lhe, por sugestão do meu camarada de curso Coronel Nuno Rubim, um extracto de uma conferência proferida em 2004, na Liga dos Combatentes, pelo Tenente General Belchior Vieira (2).

Era bom que tantos episódios reveladores de rara corgem e abenegação protagonizados por humildes e esquecidos Portugueses (com letra grande), fossem trazidos ao conhecimento dos seus concidadãos e, em sua memória, fossem exaltados como merecem. Talvez com isso se minimizasse a injustiça com que têm sido omitidos da História.

É pena que não saibamos merecê-los e é triste que se tenham sacrificado em vão!

Bem haja pelo trabalho que vem realizando e pelo contributo que tem conseguido dar à História que, um dia, alguém virá a a contar com rigor,verdade e isenção.

Com os meus cumprimentos.
Costa Matos,
Coronel de Artilharia na reforma


2. Comentário do editor L.G.:

Agradecemos ao Cor Costa Matos esta gentileza. Tomamos a liberdade de publicar, com a devida vénia, o texto agora recebido na série Estórias de Guileje (3)

3. Estórias de Guileje > O irmão artilheiro

Extracto de uma conferência sob o título “O IRMÃO ARTILHEIRO”, proferida em 2004, pelo Tenente General Belchior Vieira, na Liga dos Combatentes, e publicada nesse mesmo ano na Revista Combatente, editada pela Liga.

(...) Do episódio, Guileje 1969, tive conhecimento quando, em 1982, como Director da Revista de Artilharia, me foi facultada pelo então Brigadeiro Ricardo Durão, Director do Serviço de Justiça e Disciplina, a consulta do processo sobre ele elaborado.

A Revista de Artilharia obteve ainda o depoimento do então Major Barbosa Henriques (4), que fora Comandante da Companhia de Caçadores 2316.

Com a retracção do nosso dispositivo na Zona Sul do TO da Guiné, desenvolvida desde 1968, o aquartelamento de Guileje, sede da Companhia de Caçadores 2316, passou a estar, em 1969, isolado, a oito quilómetros da fronteira Leste com a Guiné-Conacri.

As acções desencadeadas pelo PAIGC, até então repartidas pelos aquartelamentos evacuados (Cacoca, Sangonhá, Gandembel e Mejo), vieram a concentrar-se, a partir daí, sobre Guileje, de tal modo que, desde 28 de Janeiro de 1969 (data em que ficou concluída a evacuação do Mejo) até 14 de Fevereiro, se registaram 59 flagelações.

Na noite de 14 de Fevereiro, o aquartelamento foi submetido a um violento bombardeamento de morteiros e de canhões S/R, precedido de uma regulação de tiro e prolongando-se por cerca de duas horas.

Com os postos guarnecidos de acordo com o plano de defesa e referenciadas, pelos clarões dos disparos, as posições das armas inimigas, imediatamente a única boca de fogo de artilharia, um obus de 10,5 do 6° Pelotão da Bataria de Artilharia de Campanha n°1 (o outro obus fora evacuado para reparação) e um morteiro de 10,7 abriram fogo, quer sobre as posições referenciadas, quer sobre posições donde, do antecedente, o inimigo desencadeara as suas acções.

Verificava-se, entretanto, uma crescente intensidade do fogo inimigo, o que obrigou ao empenhamento dos dois morteiros de 81 disponíveis. 0 Alferes José Manuel de Araújo Gonçalves, Comandante do Pelotão de Artilharia, e o Furriel António da Conceição Dias Baptista, Comandante de Secção, que eram sempre os primeiros a guarnecer a boca de fogo, aperceberam-se da intensidade de fogo e da violência do ataque.

De imediato, ordenam aos serventes, na sua maioria guineenses, que se abrigassem numa trincheira junto da posição, permanecendo os dois junto do obus, carregando, apontando e disparando, indiferentes ao bombardeamento que atingia, com excepcional precisão, o aquartelamento. Um impacte directo de uma granada de canhão S/R numa das conteiras do obus provoca-lhes a morte imediata.

0 Alferes Araújo Gonçalves, natural de Lisboa, terminou o Curso de Oficiais Milicianos na Escola Prática de Artilharia em Junho de 1968 e desembarcara em Bissau em Novembro do mesmo ano, destinado à Bataria de Artilharia de Campanha n° 1. Foi condecorado, a título póstumo, com a Medalha de Prata de Valor Militar, com Palma.

0 Furriel Dias Baptista, natural de S. Domingos de Rana, terminou o Curso de Sargentos Milicianos na Escola Prática de Artilharia em Dezembro de 1967 e desembarcara em Bissau em Abril do mesmo ano. Foi condecorado, a título póstumo, com a Cruz de Guerra de 1.ª Classe. (...).

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Notas dos editores:

(1) Vd. poste de 2 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1489: Tertúlia: Formalizo o meu pedido de entrada (Amaral Bernardo, ex-Alf Mil Médico, Catió, BCAÇ 2930)

(2) Há dias o Nuno Rubim tinha-nos mandado a seguinte mensagem sobre "os materiais de artilharia de Guileje":

Caro Luís Graça: Este é apenas um email para te elucidar sobre a problemática da utilização de bocas de fogo de artilharia em Guileje, questão ainda em aberto no que concerne às datas de serviço.Julgo que não vale a pena colocá-lo no blogue.

A 1ª referência que tenho é a de que foram atribuídos a Mejo (então um destacamento de Guileje) dois obuses de 8, 8cm, em data ainda não averiguada (possivelmente 1967, segundo uma foto do Cap Neto). No meu tempo, 1966, não foi.

Aquando do abandono de Mejo (Janeiro de 1969) foram recolhidos em Guileje. Em data ainda indeterminada foram substituídos por 2 (?) obuses de 10,5 cm e posteriormente (possivelmente em 1972 ) vieram 3 peças de 11,4 cm (daí teres as fotos do Casimiro Carvalho com o 10,5 e depois com o 11,4, em Guileje) [Em Gadamael, esclareceu posteriormente o José Casimiro Carvalho: é que em Guileje ele não andava em calções de banho...].

E, como sabemos, em 16 de Maio de 1973 estes [, as peças 11,4,] foram substituídos por 2 obuses de 14 cm. Continuarei as pesquisas (...).

(3) Vd. postes anteriores desta série Estórias de Guileje:

29 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2489: Estórias de Guileje (4): Com os páras, na minha primeira ida ao Corredor da Morte (Hugo Guerra)

27 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2483: Estórias de Guileje (3): Devo a vida a um milícia que me salvou no Rio Cacine, quando fugia de Gandembel (ex-Fur Mil Art Paiva)

23 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2473 - Estórias de Guileje (2): O Francesinho, morto pela Pátria (Zé Neto † )

14 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2437: Estórias de Guileje (1): Num teco-teco, com o marado do Tenente Aparício, voando sobre um ninho de cucos (João Tunes)

(4) Sobre Barbosa Henriques, nascido em Cabo Verde, e que também foi instrutor da 1ª Companhia de Comandos Africanos, em Fá Mandinga, em 1970, vd. postes de:

19 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1536: Morreu (1)... Barbosa Henriques, o ex-instrutor da 1ª Companhia de Comandos Africanos (Luís Graça / Jorge Cabral)

19 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1611: Evocando Barbosa Henriques em Guileje (Armindo Batata) bem como nos comandos e na PSP (Mário Relvas)

domingo, 27 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2483: Estórias de Guileje (3): Devo a vida a um milícia que me salvou no Rio Cacine, quando fugia de Gadamael (ex-Fur Mil Art Paiva)


Guiné > Região de Tombali > Gadamael > Junho de 1973 > Uma Lancha de Desembarque Média (LDM) com militares e populares no Rio Cacine.

Foto: © Delgadinho Rodrigues / Manuel Rebocho (2006). Direitos reservados.


1. Só sabemos que se chama Paiva, e foi furriel de artilharia, no pelotão de artilharia que estava em Guileje, quando esta unidade foi abandonada por decisão do comandante do COP 5, Major Coutinho e Lima... É um testemunho dramático, de um homem, de fuga em fuga, que atravessou a nada o Rio Cacine, já na fuga de Gadamael, e foi salvo por um milícia de que não se lembra o nome...

Peço ao Paiva que nos contacte de novo e nos dê as suas coordenadas (pelo menos o endereço de –email e eventualmente o número de telemóvel ou telefone), sobretudo para o ajudar a reencontrar os seus antigos camaradas de Guileje e de Gadamael (e a reorganizar as suas memórias, doridas, daquele tempo)... Seria uma pena que este pungente testemunho ficasse escondido sob a forma de comentário a um dos nossos postes (1)...



2. Estórias de Guileje (3) > Fiquei a dever a minha vida, no Rio Cacine, a um milícia de que nunca soube o nome

por ex-Fur Mil Art Paiva

Revisão e fixação de texto: L.G.:


(i) Artilheiro em Guileje, até ao dia do seu abandono: recordando os Furriéis Araújo (de Braga) e Queirós


Começo por pedir as minhas desculpas pelo facto de não utilizar sinais gráficos. Acontece que estou neste momento provisoriamente na Alemanha e o computador de que disponho tem teclado alemão, não reconhecendo assim parte dos referidos sinais.

Por obra do acaso, deparei hoje com alguns blogues sobre os acontecimentos ocorridos em Guileje e Gadamael no período de 1972 a 1974 (2). Porque na oportunidade desempenhava funções de furriel miliciano afecto à Unidade de Artilharia localizada inicialmente em Guileje, e posteriormente retirada para Gadamael (após o abandono do primeiro daqueles aquartelamentos), tomei parte nos referidos acontecimentos.

Embora a minha memória tenha hoje alguns hiatos que a passagem do tempo provocou, a documentação que li parece-me correcta na substância, embora com algumas imprecisões de pormenor.

Em Guileje, parece-me que o pelotão de artilharia era constituído por 3 secções, cada uma delas sob a chefia directa de um furriel (recordo o furriel Araújo, de Braga, e o furriel Queirós, meus contemporâneos, sendo que o Araújo foi posteriormente rendido, salvo erro pelo furriel Santos, de S. João da Madeira) e comandadas por um alferes, posteriormente substituído por outro. Tenho ainda na minha mente a foto mental de ambos, embora lamentavelmente me não recorde já dos seus nomes.


(ii) A retirada do meu Pelotão de Artilharia para Gadamael

Este pelotão de artilharia retirou na totalidade para Gadamael quando foi dada ordem de abandono do aquartelamento de Guileje. Para além dos graduados e oficial acima referidos, retiraram ainda os cabos e praças (estes últimos naturais da Guiné).

Em Gadamael, a artilharia passou efectivamente muito maus bocados mas não ficou totalmente inoperacional, tanto quanto me recordo. O seu alferes teve aliás um comportamento de bravura pois foi ferido e continuou a desempenhar as sua funções, embora numa situação bastante precária.

Também a Companhia que foi envolvida nestes dramáticos acontecimentos não foi a dos Gringos (açorianos); na verdade, esta Companhia tinha já terminado a respectiva comissão de serviço e tinha sido substituída por uma Companhia do Continente. Foi já pois no tempo desta que o teatro de guerra alastrou e se complicou e foi nesta altura que tivemos que abandonar o aquartelamento de Guileje, de conformidade com o relato que é feito e que coincide no essencial com o que se passou.


(íii) Pânico em Gadamael, entre militares e população, com várias mortes por afogamento na atravessia do Rio Cacine

Já agora poderia acrescentar que uma parte dos militares que se deslocaram para Gadamael, acabaram por abandonar também este aquartelamento, acompanhados de parte da população. Porém uma parte dos militares conseguiu aguentar este aquartelamento até à chegada de reforços que entretanto para ali foram enviados.

Alguns oficiais, sargentos e praças (acompanhados de parte da população) - nos quais me incluía eu -, iniciaram uma retirada para Cacine que foi efectuada debaixo de fogo e que se processou em botes dos fuzileiros. Já agora poderei acrescentar que a evacuação não foi totalmente conseguida nesse dia porque entretanto as operações de resgate foram suspensas por ter começado a anoitecer.

Curiosamente não ficou junto da população nenhum oficial, mas apenas dois furriéis, eu e outro camarada de armas, que, com a população, lográmos atravessar para o outro lado do rio (após a maré ter baixado) e ali tivemos, com muito custo, que conter a população em silêncio para não sermos detectados pelo PAIGC. Esta tarefa foi dramática já que connosco estavam muitas crianças que pela sua natureza são habitualmente ruidosas. Passámos ali a noite até conseguirmos ser evacuados no dia seguinte.

Essa experiência foi traumatizante porquanto assistimos a cenas dramáticas, com muita gente a precipitar-se para o rio e para o tentar atravessar a nado, antes que a maré permitisse o seu atravessamento quase total, a pé. Dessa precipitação resultaram mortes por afogamento, pois a corrente ainda forte arrastou alguns.


(iv) Na travessia do Rio Cacine perdi a G3 e ía perdendo a vida

Eu próprio iniciei a travessia antes de se ter completado o vazamento da maré e, porque não era um nadador exímio, e por outro lado com o peso das botas e da G3 e a força da corrente, tive que a meio da travessia me desembaraçar da minha arma (foi para o fundo do rio) para não morrer afogado. E fiquei a dever a minha vida a um milícia guineense que na outra margem do rio - e a partir do lodo onde se encontrava e para onde eu pretendia arrastar-me - me estendeu a coronha da sua arma a que eu, num esforço titânico, consegui agarrar-me. Fiquei a dever-lhe a minha vida e, no meio da confusão e do caos, sem saber a quem concretamente (ainda hoje...).


(v) Helicópteros ameaçando disparar sobre nós

Também poderei acrescentar que houve lamentavelmente algumas situações obscuras, como um helicóptero (recordo-me de um, pelo menos) que nos sobrevoou quando já estávamos a bordo de um bote, retirando para Cacine, e que ameaçou disparar sobre nós se não regressássemos de imediato ao aquartelamento de Gadamael.


(vi) A morte do meu amigo Furriel Faustino, que regressou a Gadamael

Quando chegámos a Gadamael, fui avisado pelo Faustino (Furriel de quem era amigo, pertencente à Companhia) de que o General Spínola se havia ali deslocado e ameaçado com Conselho de Guerra quem não regressasse de imediato a Gadamael. No dia seguinte quando acordei soube que o Faustino, pressionado pela ameaça, havia regressado. Morreu ao fim da tarde desse dia, vitimado por um estilhaço que lhe entrou pelas costas!


(vii) Em busca dos antigos camaradas

Já agora, e para terminar, gostaria de referir que as informações que circulavam era que a precisão de tiro do PAIGC quer para dentro do aquartelamento de Guileje quer para o de Gadamael devia a sua eficácia a uma suposta bateria de cubanos. Por a minha substituição (comummente designada por rendição) se ter processado em regime de rotação individual, não consegui localizar nunca antigos camaradas de armas (quer afectos ao pelotão de artilharia quer às Companhias - duas- com quem estive: à dos Gringos [ CCAÇ 3477, ] e à que se lhe seguiu [ CCAV 8350,] com a última das quais partilhei estes dramáticos acontecimentos que tantas vidas custaram.

Ao fim de alguns dias voltei a ser deslocado para Gadamael numa altura em que a situação continuava perigosa mas já mais controlada. O único que consegui contactar algumas vezes foi o furriel Queirós que entretanto ingressou na Lusalite, em Lisboa, onde o visitei ainda algumas vezes. Porém essa unidade encerrou e nunca mais o vi. Gostaria de reencontrar todos esses Camaradas.

Um abraço. Paiva,

________________

Notas de L.G.:

(1) Vd. poste de 20 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1860: Gadamael, 2 de Julho de 1973: Um ataque de mais de 4 horas do PAIGC, apenas travado pelo nossos Fiat G-91 (Jorge Canhão)

(2) Sobre a batalha de Guileje e Gadamael, e outros temas relacionados com as unidades que por lá passaram, vd. entre outros mais os seguintes postes:

27 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2137: Antologia (62): Guileje, 22 de Maio de 1973: Coutinho e Lima, herói ou traidor ? (Eduardo Dâmaso / Luís Graça).

5 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2083: Em busca de... (10): Coutinho e Lima, o comandante do COP5 que decidiu abandonar Guileje e foi acusado de deserção (Beja Santos)

22 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1869: Convívios (19): Os Gringos de Guileje, a açoriana CCAÇ 3477, encontram-se ao fim de 33 anos! (Amaro Samúdio).

18 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1856: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (5): Gadamael, Junho de 1973: 'Now we have peace'

24 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1784: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (4): Queridos pais, é difícil de acreditar, mas Guileje foi abandonada !!!

14 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1759: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (3): Miniférias em Cacine e tanques russos na fronteira

13 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1727: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (2): Abril de 1973: Sinais de isolamento

25 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1699: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (1): Abatido o primeiro Fiat G 9

25 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1625: José Casimiro Carvalho, dos Piratas de Guileje (CCAV 8350) aos Lacraus de Paunca (CCAÇ 11)

31 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1478: Unidades de Guileje: Coutinho e Lima, ligado ao princípio e ao fim (Nuno Rubim)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1293: Guileje: do chimpanzé-bébé aos abrigos à prova do 122 mm (Amaro Munhoz Samúdio, CCAÇ 3477)

10 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1162: Guileje: CCAÇ 3477, os Gringos Açorianos (Amaro Munhoz Samúdio)

5 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1151: Resposta ao Manuel Rebocho: O papel do Orion na batalha de Guileje/Gadamael (Pedro Lauret)

4 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1150: Carta a Pedro Lauret: A actuação do NRP Orion na evacuação das NT e da população de Guileje, em 1973 (Manuel Rebocho)

15 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P878: Antologia (42): Os heróis desconhecidos de Gadamael (Parte I)

15 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P879: Antologia (43): Os heróis desconhecidos de Gadamael (II Parte)

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2479: Guileje: Simpósio Internacional (1 a 7 de Março de 2008) (10): Lançamento oficial, ignorado pela RTP-África

Guiné-Bissau > Bissau > Universidade Colinas do Boé > 24 de Janeiro de 2008 > Cerimónia de lançamento oficial do Simpósio Internacional de Guileje > Mesa, presidida pela Ministra dos Combatentes da Liberdade da Pátria, Isabel Buscardini.

1. Mensagem, com data de ontem, do nosso amigo Pepito, da comissão organizadora do Simpósio Internacional: Guileje na rota da Independência da Guiné-Bissau (1):

LANÇAMENTO OFICIAL DO SIMPÓSIO

Foi hoje, dia 24 de Janeiro, feita a apresentação oficial e pública do Simpósio Internacional de Guiledje.

O acto decorreu nas instalações da Universidade Colinas do Boé sob a presidência da Ministra dos Combatentes da Liberdade da Pátria, Isabel Buscardini, na presença dos Embaixadores da União Europeia, de Portugal, da Guiné-Conakry, de Cuba, do Senegal, dos representantes do INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, AD - Acção para o Desnvolvimento e Universidade Colinas de Boé, dos orgãos de comunicação social privados e comunitários, bem como de muitos jovens interessados pela História da Guiné-Bissau.

Como o assunto era relativo à História e Cultura, a televisão nacional e a RTP África, sempre mais preocupadas em dar relevo a outras questões mais relevantes como o narcotráfico e a presença da AL-QAEDA, primaram pela ausência. Critérios....

A sessão começou com a apresentação de um conjunto de slides evocativos de Guiledje, das companhias portuguesas que por lá passaram, dos combatentes do PAIGC e do Quartel antes e depois do assalto final.

O Grupo Os Fidalgos apresentaram um excelente conjunto de músicas guineenses, algumas das quais serão repetidas no Sarau Cultural que ocorrerá durante o Simpósio [Vd. programa no sítio ofical do Simpósio].

Guiné-Bissau > Bissau > Universidade Colinas do Boé > 24 de Janeiro de 2008 > Cerimónia de lançamento oficial do Simpósio Internacional de Guileje > Dois momentos da actuação do Grupo Teatral Os Fidalgos ( 2).

Seguiram-se as diversas intervenções dos promotores e patrocinadores (3) que realçaram a importância do Simpósio como contributo para a reconciliação nacional à volta de valores fundamentais como a Independência e a figura impar de Amílcar Cabral, a aproximação ainda maior dos guineenses e portugueses, os ensinamentos da Luta para esta nova fase de desenvolvimento e o facto de ser a primeira vez na história que antigos povos que se confrontaram de armas na mão se vão encontrar de forma fraternal para abordar o seu passado comum.

Todos consideraram que o Simpósio irá contribuir para a criação de uma nova imagem da Guiné-Bissau, um país de HISTÓRIA e CULTURA.



Guiné-Bissau > Bissau > Universidade Colinas do Boé > 24 de Janeiro de 2008 > Cerimónia de lançamento oficial do Simpósio Internacional de Guileje > Dois aspectos da assistência

A finalizar, procedeu-se a uma breve degustação de algumas bebidas feitas com aromas silvestres e que serão consumidas durante o Simpósio, tendo três delas ganho o primeiro combate: Grad, Pó di Pila e Patchanga.


Guiné-Bissau > Bissau > Universidade Colinas do Boé > 24 de Janeiro de 2008 > Cerimónia de lançamento oficial do Simpósio Internacional de Guileje> Três bebidas, de produção artesanal, premiadas...

Repare-se no nome das bebidas, associadas ao armamento do PAIGC: Grad, Pó di Pila e Patchanga. Recorde-se que: (i) o Grad, ou Graad, ou Jacto do Povo, era o Foguetão 122 mm; (ii) a Patchanga era a famosa irritante 'costureirinha' (segundo a designação dos 'tugas'), a Pistola-Metralhadora SHPAGIN Cal 7,62 mm M-941 (PPSH), de origem soviética; (iii) O Pó de Pila deveria ser o Lança Granadas-Foguete PANCEROVKA P-27 (também conhecido, na giría dos guerrilheiros do PAIGC, como Bazuca Bichan, Lança Grande, Pau de Pila)(4). (LG).

Fotos: © Pepito / AD- Acção para o Desenvolvimento (2008). Direitos reservados. (Texto e fotos editados por L.G.)

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Notas de L.G.:

(1) Vd. último poste desta série:

24 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2478: Guileje: Simpósio Internacional (1 a 7 de Março de 2008) (9): Inimigos de ontem, amigos de hoje

(2) Este grupo de teatro tem um blogue próprio, um "sítio que aborda a cultura na Guiné Bissau", e que se chama justamente Os Fidalgos. Animam também o Centro de Intercâmbio Teatral de Bissau, que é uma parceria com a AD - Acção para o Desenvolvimento (do nosso Pepito) e a Cena Lusófona.

Em meados de 2007 tive o privilégio de assistir, no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, ao espectáculo apresentado por este grupo, com a peça Namanha Makbunhe (escrita a partir da obra-prima Macbeth, de William Shakespeare).

Vd. também poste de 10 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1831: Macbeth em África ou Namanha Makbunhe no Teatro da Trindade, com os Fidalgos, grupo de teatro de Bissau (Beja Santos)

(3) Promotores:

Acção para Desenvolvimento (AD)
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP)
Universidade Colinas do Boé (UCB)

Patrocionadores:

Governo da Guiné-Bissau
União Europeia
Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento (IPAD)
Instituto Marquês de Valle Flôr

Comissão de Honra:

Presidente da República da Guiné-Bissau, General João Bernardo Vieira
Dr. Francisco Benante, Presidente da Assembleia Nacional Popular da Guiné-Bissau
Dr. Martinho N’Dafa Cabi, Primeiro-Ministro da Guiné-Bissau
Doutor Nuno Severiano Teixeira, Ministro da Defesa de Portugal
Doutor João Cravinho, Secretário de Estado da Cooperação Internacional de Portugal
Prof Doutor Patrick Chabal, docente da King’s College, Londres, Grã-Bretanha
Prof Doutor Luís Moita, Vice-Reitor da Universidade Autónoma de Lisboa, Portugal
Dr. Óscar Oramas, Ex-Embaixador de Cuba na Republica da Guiné-Conakry.
Prof Doutor João Medina, Professor Catedrático da Universidade de Lisboa, Portugal
Flora Gomes, Cineasta guineense
Prof Doutor Peter Mendy, docente no Rhoad Islands College, Boston, USA.

Links > Outros Sites

Luís Graça & Camaradas da Guiné

Xitole

(4) Vd. poste de 27 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1890: PAIGC: Gíria revolucionária... ou como os guerrilheiros designavam o seu armamento (A. Marques Lopes)

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2473: Estórias de Guileje (2): O Francesinho, morto pela Pátria (Zé Neto † )















Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (167/68) > Álbum fotográfico de José Neto (1929-2007) > Aspectos da vida quotidiana da companhia... Na primeira foto, assinala-se a vermelho o Francesinho, com a sua concertina... Na foto a seguir, também foto de grupo (a segunda a contar de cima), o então 2º Sargento Neto, de pé, de óculo escuros, vem assinalado a vermelho... As fotos seguintes falam por si, não precisando de legenda...

Fotos: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). (Fotos do José Neto † , reeditadas por Albano Costa). Direitos reservados.

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68) > Álbum fotográfico de José Neto (1929-2007) > Ao centro, o Francesinho, o herói desta estória (1). Foto do saudoso Cap José Neto (1929-2007), o nosso primeiro tertuliano a deixar-nos, pelas leis naturais da vida.

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2008). Direitos reservados.


1. Comentário de L.G.:

O Zé, que foi (e é ou continua a ser, velando por nós) o patriarca da nossa tertúlia (onde estve apenas um ano e picos), quis partillhar connosco, aos setenta e seis anos, uma parte "muito significativa" das memórias da sua vida militar.

Um pouco antes de morrer - inesperadamente, vítima de cancro do pulmão -, enviou-nos "trinta e três páginas retiradas (e ampliadas) das 265 que fui escrevendo ao correr da pena para responder a milhentas perguntas que o meu neto Afonso, um jovem de 17 anos, que pensava que o avô materno andou em África só a matar pretos enquanto que o paterno, médico branco de Angola, matava leões sentado numa esplanada de Nova Lisboa (Huambo). Coisas de família"...

Tenho que te agradecer, mais uma vez, Zé, onde quer que estejas! As tuas memórias de Guileje foram (são) também as memórias das nossas vidas, dos teus rapazes, dos nossos camaradas.. Eras o mais velho de todos nós, já partiste mas a tua saudosa memória ficou connosco. Deste-nos ume exemplo de generosidade, de energia, de alegria de viver, mas também de coragem e de abnegação na fase terminal da tua doença (que foi fulminante). Em tua memória e à memória dos teus rapazes da CART 1613, de quem falavas comos e fossem teus filhos e que estiveram contigo em Guileje, volto reproduzir, agora na 2ª série do teu/nosso blogue, o sumaríssimo mas incisivo retrato do Francesinho que tu desenhaste com mão de mestre, sentido de justiça, humor e sobretudo com grande sensibilidade humana...

Olha, em Março de 2008, estaremos em Guileje e far-te-emos uma pequena homenagem. Pepito, não esqueceremos o Zé, nosso amigo comum, amigo de Guileje, amigo da Guiné e e do seu povo!... Um (e)terno Alfa Bravo para ti, camarada, que repousas no céu dos guerreios! (LG)


2. Estórias de Guileje > O Francesinho (2)
por José Neto †

Com pouco mais de metro e meio de altura, franzino, quase imberbe, era um poço de força, energia e boa disposição que a todos espantava.

Geralmente, quando o pessoal regressava das duras caminhadas pelas matas e bolanhas vinha estafado e atirava-se para cima do catre para descansar. Essa não era a prática do Francesinho. Tomava um duche, ficava como novo e, com a sua concertina algo desafinada, espalhava alegria por toda a tabanca e arredores.

Era emigrante em França, para onde foi com os pais ainda criança, e pela nossa Lei não estava sujeito ao serviço militar, mas quando atingiu a idade própria veio apresentar-se e foi incorporado.

Constava nos seus documentos que era analfabeto e agricultor e, no entanto, falava correctamente francês e era operário especializado da indústria metalomecânica.

O mais surpreendente, se é que o Francesinho não fosse ele uma permanente surpresa, era a correcção com que falava português com a pronúncia e os ditos da sua região, as terras do Basto.

A sua única preocupação era a de que, quando acabasse a tropa, as nossas autoridades lhe passassem um papel para apresentar no birú [bureau, escritório, em francês] da fábrica onde trabalhava, justificando que esteve ao serviço da sua Pátria.

Desgraçadamente não foi preciso o papel, mas julgo que o tal birú da fábrica decerto deu por falta do portuguesinho, alegre e diligente, nascido na freguesia de Ribas, concelho de Celorico de Basto e falecido heroicamente em combate na Guiné Portuguesa (3).

As últimas mãos que afagaram aquele rosto de menino, antes de se soldar a urna de chumbo que o trouxe de volta, foram as do Capitão [Eurico] Corvacho e as minhas. Não é vergonha dizer que não contivemos as lágrimas que nos correram pela cara abaixo.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. poste anterior desta série > 14 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2437: Estórias de Guileje (1): Num teco-teco, com o marado do Tenente Aparício, voando sobre um ninho de cucos (João Tunes)

(...) Na expectativa do Simpósio Internacional Guiledje na Rota da Independência da Guiné-Bissau (Bissau, 1-7 de Março de 2008), que será também o da celebração da amizade entre os nossos dois povos e entre os antigos combatentes de um lado e do outro, damos início à publicação de histórias/estórias tendo como sujeito/objecto o aquartelamento e a tabanca de Guileje, as NT que os defenderam e, eventualmente, os guerrilheiros do PAIGC que nos combateram até ao abandono daquela posição militar no sul da Guiné, em 22 de Maio de 1973 (...).

(2) Extracto da VII parte das memórias do primeiro-sargento da Companhia de Artilharia nº 1613 (Guileje, 1967/68), o então 2º Sargento José Afonso da Silva Neto (falecido em Maio de 2007, com o posto de capitão, reformado).

Vd. postes de:

11 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXI: Memórias de Guileje (Zé Neto, 1967/68) (7): Francesinho e Cavaco, o belo e o monstro
25 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXXV: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (Fim): o descanso em Buba

Vd. ainda os seguintes postes de (ou sobre) o nosso camarada José Neto:

31 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1805: In memoriam (1): Adeus, Zé Neto (1929-2007) (José Martins, Humberto Reis, Luís Graça, Virgínio Briote e outros)

2 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1910: Cap Zé Neto (1929-2007): Homenagem da AD - Acção para o Desenvolvimento, de Bissau

(3) Julgo tratar-se do soldado António de Sousa Oliveira, da CART 1613/BART 1896, natural de Celorico de Basto, freguesia de Cruz-Ribas, morto em combate no dia 28 de Dezembro de 1967 (segundo elementos que colhi na lista dos mortos do Ultramar, organizada por concelhos, pelos nossos camaradas que criaram e que gerem a página Moçambique, Guerra do Ultramar, e a quem endereço os meus cumprimentos e os meus agradecimentos pelo trabalho realizado, contribuindo para a preservação da memória da guerra do ultramar/guerra colonial, não apenas em Moçambique como nas restantes frentes).