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sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23775: Fauna e flora (21): "Ó Falcão, o Jagudi não vai ao fanado, mas olha que não é parvo de todo!"... Uma "fabulosa fábula" guineense sobre o último dos últimos, o que ri melhor...


Portal dos animais > Abutres 
(com a devida vénia...)

1.  A propósito dos pobres dos  jagudis, aqui lembrados pelo nosso JBelo (*), sacrificados no altar da estupidez e da cupidez de algns dos piores exemplares desse bicho que se chama "Homo sapiens sapiens", não resistimos à tentação de reproduzir um dos primeiros postes do nosso blogue, o nº 52, de 8 de junho de 2005 (**).

É uma fabulosa fábula (passe o pleonasmo) guineense que merece ser objecto de leitura, de reflexão e de divulgação. É uma joia da sabedoria humana, com uma mensagem universal, que cala fundo. Podia ser o décimo quinto conto dos "Bichos" (1940), do português e transmontano Miguel Torga, se em Trás-os-Montes houvesse jagudis.  Não havia o jagudi mas havia o primo, o abutre-preto (Aegypius monachus), agora em recuperação na Pemínsula Ibérica. O abutre-preto é a maior ave de rapina da Europa, mas também do grupo dos abutres do velho mundo e da família Accipitridae, atingindo os 98–120 cm de comprimento e uma impressionante envergadura de asas de 268–310 cm. Os maiores indivíduos podem atingir os 13,5 kg de peso.

Como todas as estórias de animais, encerra uma lição, neste caso uma grande lição (filosófica, política e ética) em relação ao exercício do poder, aos detentores do poder, aos que são arrogantes e aos que não têm pejo em oprimir, desprezar ou marginalizar os mais fracos, os mais pequenos, os socialmente menos qualificados... A História, passada e recente, está cheia deles, das suas histórias pérfidas, malvadas, cruéis...

O jagudi (abutre-de-capuz, nome científico Necrosyrtes monachus) nã
o é ágil, elegante, superior, altivo, nobre, aristocrático e guerreiro como o falcão, mas nem por isso deixa de ter o seu lugar na criação e de desempenhar o seu papel na natureza. É certo que ele é pouco considerado tanto pelos humanos como pelos outros animais. É feio, é repelente, é necrófago...

Que o diga, aliás, o provérbio crioulo-guineense

(i) Kal dia ku sancu fala jugude manteña si ka pa rispitu di kacur;

 ou, noutra variante:

(ii) Kal dia ku sancu fala sakala manteña si i ka na disgustu di kacur 

Entenda-se: o macaco só conhece ou cumprimenta o jagudi no velório do cão.

Mas também há um outro provérbio que, de certo modo, vem em defesa do jagudi: 

(iii) Jugude ka bai fanadu, ma i kunsi uju... Leia-se: o jagudi não foi à circuncisão, não passou pelo ritual do fanado, mas consegue ver as coisas, ou seja, não é parvo de todo, não o tomem como tolo...

Em suma, uma estória que vem a propósito da História (com H grande) dos nossos dois países, Portugal e a sua ex-colónia da Guiné que,  quase meio século depois da independência (política), ainda está longe de ter encontrado os caminhos seguros da paz, da construção da unidade nacional, da liberdade, da democracia, da tolerância, da justiça, da equidade e do desenvolvimento sustentado. Coisas, de resto, que nunca estão asseguradas de uma vez por todas, mesmo no melhor dos mundos (dos EUA à Suécia)...

Que a elite dirigente da Guiné-Bissau (mas também as elites dos outros países como a Rússia ou  Ucrânia, dois "irmãos" eslavos hoje em guerra fratricida....) saiba, com humildade e inteligência, ouvir, aprender e aplicar a grande sabedoria do  povo guineense ... 

O falcão desta história é muito provavelmente o alfaneque (nome científico, Falco biarmicus). Mas também podia ser  o falcão-peregrino ou falcão-real (Falco peregrinus), que existe em todos os continentes, exceto na Antártida. Não nidifica na América do Sul.  De qualquer modo, não consta do Guia das aves comuns da Guiné Bissau (2017). 

O falcão-peregrino é uma ave de médio porte, corpo compacto, pescoço curto e cabeça arredondada com grandes olhos negros. Na Península Ibérica, o seu comprimento varia entre os 40 e os 50 cm, com um peso médio de 600 gramas (para o macho adulto) e de  900 gramas, aproximadamente, para a fêmea. Laragura das asas (ou envergadura): 74 - 120 cm. 

Sobre os falcões, em geral,  diz a Wikipédia:

(...) Falcão é o nome genérico dado a várias aves da família Falconidae, mais estritamente aos animais classificados dentro do género Falco. Os falcões são as menores aves de rapina medindo cerca de 15 a 60 cm de comprimento. São também muito leves pesando entre 35 g a 1,7 kg. 

O que diferencia os falcões das demais aves de rapina é o fato de terem evoluído no sentido de uma especialização no voo em velocidade (em oposição ao voo planado das águias e abutres e ao voo acrobático dos gaviões), facilitado pelas asas pontiagudas e finas, favorecendo a caça em espaços abertos — daí o fato dos falcões não serem aves de ambientes florestais, preferindo montanhas e penhascos, pradarias, estepes e desertos.

Os falcões podem ser identificados pelo fato de não planarem em correntes termais, como outras aves de rapina. O falcão-peregrino, especializado na caça de aves médias e grandes em voo, pode atingir 430 km/h em voo picado e é o animal mais rápido da terra. Diferentemente das águias e gaviões, que matam suas presas com os pés, os falcões utilizam as garras apenas para apreenderem a presa, matando-a depois com o bico por desconjuntamento das vértebras, para o que possuem um rebordo em forma de dente na mandíbula superior.

Na Idade Média, os falcões eram apreciados como animais de caça acessíveis apenas à elite (reis e nobreza). (...)

Fonte: Guia das aves comuns da Guiné Bissau / Miguel Lecoq... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Monte - Desenvolvimento Alentejo Central, ACE ; Guiné-Bissau : Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas da Guiné-Bissau, 2017, p. 43. Ilustração de PF - Pedro Fernandes) (Com a devida vénia...)

Acrescente-se que este é um notável trabalho, financiada pela União Europeia e pelo Camões, Instituto da Cooperação e da Língua através do projecto Gestão Sustentável dos Recursos Florestais no Parque Natural dos Tarrafes do Rio Cacheu.
 

2. A fábula do Jagudi e do Falcão

por Álvaro Nóbrega


À sombra duma árvore, um alto poilão secular, descansa tranquilo um jagudi (abutre-de-capuz). No mesmo ramo em que ele se empoleira, caiado de branco devido aos dejectos de tantos outros jagudis que por ali passaram, veio pousar um altivo falcão.

Depois de trocarem um breve e seco cumprimento, o falcão, sempre palrador, fanfarrão e irrequieto, começou a insultar o jagudi, chamando-o de desprezível, de cobarde, de preguiçoso, de oportunista e de muitos outros termos insultuosos e pejorativos que lhe vieram à cabeça, à sua cabeça, tonta e leviana. Acusou-o, repetidamente, de ser a mais miserável e feia das criaturas de Deus.

O jagudi ouviu tudo, sem nunca ter tido o mais pequenino gesto de impaciência, protesto ou de indignacão. Nisto, passa entre os dois, a grande velocidade, uma linda ave, de penas multicores.

Logo o falcão se lançou em perseguição da pobre vítima. Mas fê-lo de maneira tão desenfreada que por azar foi bater, em cheio, com o peito, de encontro a um tronco robusto de uma árvore da floresta que se lhe atravessara no caminho. Louco, cheio de dor, lançando pios lancinantes, caiu ao chão, mortalmente ferido, sobre o tapete de folhas secas que cobria o trilho da mata.

Nesse preciso momento, o jagudi levanta voo, com o seu ar pesado e pachorrento, e toma o seu lugar, imperturbável, à cabeceira do moribundo. O falcão, no estertor da agonia, ainda teve tempo de descortinar, horrorizado, a silhueta tenebrosa e agoirenta do jagudi, o seu bico afiado como aço e o seu pescoço descarnado.. E, trémulo, perguntou-lhe:

— Que vens aqui fazer, jagudi?

Ao que este respondeu, impávido e sereno:

— Aguardo o teu fim, meu amigo.

Fonte: Adapt. de Nóbrega, Álvaro (2003) - A luta pelo poder na Guiné-Bissau. Lisboa: Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCPS). Universidade Técnica de Lisboa (UTL). 2003.23.


[ Revisão / fixação de textos  / negritos, para efeitos de publicação deste poste:

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23772: Fauna e flora (20): crime contra a natureza: mortos, por envenenamento, em 2020, segundo a revista "Science", mais de dois milhares de jagudis (Necrosyrtes monachus) na Guiné-Bissau (José Belo, Suécia)



Jugudé (cr) | Necrosyrtes monachus | Jagudi (pt) | Abutre-de-capuz (pt)  | Hooded vulture (en) | Comprimento  70 cm | Envergadura  176 cm.


Bem conhecido da maior parte das pessoas, é fácil observá-lo em cidades e tabancas, frequentemente em pequenas lixeiras, matadouros e portos onde se alimenta de desperdícios
deixados pelo Homem e de animais mortos. 

O seu papel ecológico na natureza e nas cidades é essencial, ajudando a eliminar doenças e parasitas. Escasso no sudeste e no sul do país. Embora ainda seja abundante na Guiné-Bissau, está muito ameaçado de extinção em toda a África.

Fonte: Guia das aves comuns da Guiné Bissau / Miguel Lecoq... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Monte - Desenvolvimento Alentejo Central, ACE ; Guiné-Bissau : Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas da Guiné-Bissau, 2017, p. 36. Ilustração de PF - Pedro Fernandes) (Com a devida vénia...)


Segundo o portal Bird Life International, "suspeita-se que esta espécie esteja atualmente a sofrer uma redução populacional extremamente rápida devido ao envenenamento indiscriminado, tráfico para efeitos de medicina tradicional, caça para alimentação, perseguição e eletrocussão, bem como a perda e degradação do habitat".  Estima.se que 
as taxas globais recentes de redução excedam 80% durante o período atual e futuro de três gerações. O o é, portanto, avaliado como "Criticamente Ameaçado"  população estimada: 131 mil. Área de criação e residência: 22,5 milhões de km2.


1. Mensagem de José Belo, o mais "internacional" dos membros da Tabanca Grande (vive entre a Lapónia sueca, a Suécia e os EUA, Florida, Key West);

Data - sábado, 29/10, 19:45 

Assunto - Os Jagudis de uma saudosa….Guiné

Em Outubro de 2020 foram mortos na Guiné-Bissau mais de 2000 “jagudis”, abutres da espécie Necrosyrtes Monachus (abutres de capuz).

Foi, segundo a revista Science, o envenenamento mais letal de abutres em todo o mundo.

Os abutres terão sido envenenados propositadamente para remover as suas cabeças, asas, unhas e patas para uso em práticas de feitiçaria em diversos países da África Ocidental.

Este envenenamento foi comprovado pela Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa.

Ainda, e segundo a revista Science,  desapareceram na África Ocidental entre 60 a 70% destas aves.

A Guiné-Bissau alberga mais de 1/5 da população mundial destas aves, sendo um dos mais importantes países para a conservação desta espécie a nível mundial.

Como muitos recordarão, os “jagudis” com os seus voos circulares eram imagem quotidiana no céu da Guiné aquando do feliz (!) tempo colonial.

Na sua função essencial para os humanos e ecossistemas eliminavam grande parte do lixo orgânico nas cidades e vilas do país evitando a proliferação de doenças.

As multas aplicadas pela Administração Colonial quanto ao abatimento destas aves eram elevadas no contexto económico da época.



Um par de jagudis, "pormíscuos e exibicionistas, naturalizados americanos". Imagem fornecida pelo autor, cortesia de "The Guardian" e "CNN" (on line).

Em 2022 a espécie está longe de uma recuperação significativa.

Será que alguns exemplares artificialmente (!) introduzidos na exótica fauna da tão hospitaleira Flórida irão conseguir restabelecer um equilíbrio populacional destas aves?

Tendo vindo a demonstrar uma acentuada capacidade de adaptação a um certo tipo de decadência local (bem característico de, por exemplo, Key West) estão a tornar-se em inesperados e promíscuos... exibicionistas!

As maravilhas da natureza na sua luta pela sobrevivência nunca deixam de surpreender.

Um abraço do JBelo
___________

Nota do editor:

Último poste da série > 10 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22987: Fauna e flora (19): O grou-coroado ou "ganga" (em crioulo), uma ave que "matou a malvada" a alguns de nós, em tempo da guerra... Está agora ameaçada de extinção.

quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19242: Fauna & flora (15): As aves em algumas superstições indígenas da Guiné - “Portugal em África, Revista de Cultura Missionária” (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Maio de 2018:

Queridos amigos,

Quando confrades guineenses, como o nosso avisado Cherno Baldé, lerem este trabalhinho de alguém que foi professor da Escola Superior Colonial, é capaz de contestar os elementos apresentados como curiosos aspetos folclóricos ou casos etnológicos ultrapassados. Aqui se fala de superstições com galinhas, os íbis sagrados, a galinha-do-mato, o grã-duque cinzento, os jagudis, aves de mau presságio ou perniciosas, inevitavelmente há referências aos jagudis e, segundo o autor, os Beafadas consideram-nas almas dos seus antepassados. Mas será que ainda assim é, ou já deixou de ser?

A palavra é dada à confraria guineense.

Um abraço do
Mário


As aves em algumas superstições indígenas da Guiné

Beja Santos

“Portugal em África, Revista de Cultura Missionária”, que teve duas séries, a segunda percorreu um período da década de 1940, revela-se uma publicação de consulta obrigatória para quem pretenda estudar sobre os mais diversos ângulos a História da Colónia. Veja-se, a título de curiosidade, o trabalho publicado por António de Almeida, professor da Escola Superior Colonial e bolseiro do Instituto para a Alta Cultura, intitulado "As aves em algumas superstições indígenas da Guiné e de Cabo Verde", para se avaliar a importância de muita pesquisa que urge fazer e publicitar.

Convém não perder de vista que estes trabalhos datam de há cerca de 75 anos, muita água correu debaixo das pontes, muitos comportamentos se alteraram, pois claro.

Começando por nos descrever a importância do culto de animais nas primícias da civilização, logo vai centrar a sua análise na Guiné e Cabo Verde dizendo que a criação das aves domésticas desperta escassa atenção aos naturais destas duas colónias. Diz adiante que a carne de algumas delas faz parte dos seus repastos:  

“Se os incultos Bijagós e Balantas estimam comer galinhas mortas por doenças ou em estado de putrefação – por vezes, mal assadas e com intestinos e penas – já aos indígenas muçulmanos é interdito servir-se de despojos destes animais sem que, previamente, os hajam sangrado, de harmonia com a liturgia corânica. Porém, nenhuma mulher Mandinga, Fula ou Biafada ou de outra tribo, fiel sectária da religião de Maomé, se aventuraria a matar uma galinha ou sequer a repartir-lhe o corpo em pequenos pedaços, para não adoecer gravemente, abortar ou tornar-se estéril”, observa depois que “Entre os Manjacos e Brames, os pitéus de galinha reservam-se para mimos, a oferecer aos hóspedes de elevada condição social”. 

E logo suscita um comentário de índole religiosa: 

“Nenhum Manjaco se ausenta para fora do seu chão sem previamente haver consultado o Irã, ocasião em que lhe sacrificam um galo; analogamente, os Bijagós, quando constroem gamboas imolam uma galinha em honra de Nodô ou Uindô”.

Diz igualmente que não se observam nem na Guiné nem em Cabo Verde os combates de galos e entre o gentio da Guiné parece não verificar-se a crença nos poderes mágicos dos galos. Referindo-se ao piar das aves, acrescenta:

“Como na Metrópole, também em Cabo Verde e na Guiné, os cantos da coruja e do mocho suscitam temor supersticioso, por prognosticarem morte ou desgraça iminentes. Para os Mandingas, os feiticeiros gentílicos podem metamorfosear-se em mochos a fim de se apoderarem do corpo e alma das pessoas; evita-se este grave perigo prendendo ao pescoço ou cozendo às vestes das gentes talismãs ou amuletos protetores.

Outra ave bastante temida na Guiné é o grã-duque cinzento ou fraque, espécie de cegonha. Em Cabo Verde, na Guiné, como na Serra da Lousã, há abutres. Tinha-se por criminoso quem abatesse um abutre. Facilmente domesticáveis, continuam a ser agentes de limpeza, apanham os restos e dejectos humanos. Atribuem-se ao corpo desta espécie ornitológica miríficas propriedades terapêuticas; com fel destilado preparam-se mezinhas para as dores dos ouvidos, constituindo a bílis infalível antídoto do veneno das serpentes e escorpiões.

Quem se lavar na água em que, anteriormente, se tiver banhado a umbreta do Senegal, fica, fatalmente, afectado de erupção cutânea; quando se atira às abetardas aves, igualmente conhecidas entre os Fulas pelo nome de galinhas do Faraó, e não sendo atingidas, a espingarda utilizada rebentará irremediavelmente.

Mas nem só as aves de mau presságio vivem na Guiné e Cabo Verde; o martelo ou espécie de popa, o cuco indicador ou pássaro-do-mel, o pombo da Guiné e o pelicano são animais muito queridos dos naturais. A garça-bovina, o pica-bois e a alvéola-amarela também suscitam afecto devido aos bons serviços que prestam aos mamíferos domésticos, defendendo-os dos parasitas.

Na Guiné, os pombos, domesticados ou não, suscitam grande consideração aos prosélitos de Maomé. O profeta, perseguido pelos seus inimigos, refugiou-se numa gruta, aberta em rochedo escarpado, à entrada da qual uma pomba chocava num ninho e que não se assustou com a sua presença.

Entretanto, chegaram os perseguidores e a ave espantou-se; entenderam não entrar na gruta porquanto, concluíram, se o profeta se houvesse acolhido aí, certamente que a pomba tivera deixado o ninho… 

Os pelicanos frequentam as correntes de água da Guiné. Grandes bebedouros de água – absorvendo cerca de dez litros de uma vez – os pelicanos são figuras de relevo no folclore muçulmano.

Na Guiné, os Beafadas nunca comem nem molestam jagudis, aves parecidas com os perus, porque as consideram almas dos seus antepassados, nem permitem maus tratos a quaisquer aves que pousem nas árvores vizinhas das suas palhotas, tomando-as como seus hóspedes.

Ignoramos se a carne de grou é aqui tida como remédio de longevidade. Tucanos igualmente se mostram na Guiné Portuguesa.

Lindos colibris ou beija-flores, tão abundantes no Brasil e nas Guianas, também há muitos na Guiné Portuguesa.

Na Guiné Portuguesa é vulgaríssimo o papagaio-cinzento, ao qual os árabes denominam ave-homem.

E não poremos termo a este artigo sem citar outra ave interessantíssima: o avisador do crocodilo – designação que lhe impuseram os árabes; trata-se de uma pernalta a que os Fulas chamam ave-da-areia. Quando o réptil se expõe ao sol, o passarito sobrevoa-o e, célere, introduz-se sem medo nas fauces hiantes e hediondas do monstro; entra na boca escancarada do sáurio com o fito de retirar-lhe de entre os dentes as partículas de carne e apanhar os vermes que as infestam. O crocodilo nunca importuna o seu comensal; é que este, além de ser agente de limpeza bucal, ao pressentir qualquer animal perigoso para o réptil, salta rapidamente para cima das mandíbulas e não se cansa de as picar enquanto o lagarto não se precipitar nas águas fundas do rio. Também a tarambola armada do Senegal, ave odiada pelos caçadores, dá sinal da presença deles aos animais da selva.”



Jagudis, os melhores varredores de lixo da Guiné-Bissau…
____________

Nota do editor

Último poste da série de 16 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18426: Fauna & flora (14): quando os animais emigram para o vizinho Senegal... (Cherno Baldé)

segunda-feira, 23 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18866: Memórias de Gabú (José Saúde) (69): Pássaros que esvoaçavam os céus da Guiné. Abutres. (José Saúde)



1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série. 

Pássaros que esvoaçavam os céus da Guiné 

Abutres 

Numa breve reflexão sobre a passarada guineense, que era e é enorme, detenho-me perante uma veracidade que me fora conhecida, ousando trazer à estampa o universo dos abutres, pássaros necrófagos que proliferavam em todo o solo e que amiúde observava com algum interesse. O seu aspeto atirava para um horripilante semblante e o habitat natural passava pela procura sistemática de restos de cadáveres. 

Não vacilo, porém, recordar Hitchcock na sua análise psicanalítica sobre um filme onde o tema era, obviamente, “Os Pássaros”. O conteúdo do emaranhado de imagens remetiam-nos para o ataque dos pássaros aos seres humanos. Um filme que se estreou nas telas cinematográficas mundiais no ano de 1963 e que bom dinheiro rendeu à produção, sobrando as inúmeras interpretações feitas pelos amantes do cinema que assumiam presumíveis traduções que esbarravam em análises científicas. 

Mas demos um passo em frente, ouçamos abstratamente o clarinete e apresentemos armas numa infindável parada, falando nos abutres conhecidos numa Guiné em tempo de guerra e não numa outra espécie de “aves de rapina” que se multiplicavam na metrópole lusitana. Estes rapazes de então, bem ou malvestidos de acordo com as circunstâncias propostas, pareciam “bandos de pardais à solta” que esmiuçavam vidas e citavam, com ênfase, a provável falsificada ideologia de um patriotismo entendido, por eles, como inigualável. 

Simultaneamente ao evoluir das desgraças conhecidas onde a morte de camaradas se amontoavam nas frentes de combate, lá vinham os senhores de gravatas acetinadas e fatos à príncipe de “Gales” que na hora da despedida no cais portuário de Alcântara, incentivarem um contingente de jovens mergulhados em porões de navios cuja etiqueta transportada era, tão-somente, o pregão ao dito popular que a encomenda que seguia a bordo registava “carne para canhão”. 

Passemos licitamente à vanguarda porque esses fatídicos tempos foram maus de mais para ser verdade. Com efeito, concentremos atenções no respetivo pássaro e observemos que o abutre é uma ave accipitriforme e originária da família chamada de accipitridae. Refletindo em pormenor sobre estes necrófagos, diz-se que as aves são também conhecidas como abutres do velho mundo. A sua longevidade chega a atingir os 30 anos, sobretudo quando se encontram em cativeiro. 

Conheci o seu esvoaçar num horizonte interminável e os seus impulsos animalescos na procura de um lugar para pernoitar. Conheci, também, a obstinada azáfama na procura de alimentos. Conheci, ainda, as suas visitas quotidianas às proximidades do barracão do Seidi, “magarefe-dia” onde o nosso quartel angariava carne de vaca fresca para uma pontual refeição mais abastada, sendo que este rapaz fula matava, esfolava e dividia a carcaça do animal de acordo com os pedidos previamente feitos. 

Lembro, e foram muitas vezes a que assisti, o Seidi, após a trabalheira da matança lançar para o bando de abutres pequenas dádivas para os pássaros se deliciarem com primor. 

Recordo, simultaneamente, as lutas desenfreadas travadas entre eles pelo melhor naco, ou, as guerras para limparem parte das ossadas do animal, ficando a certeza que no grupo havia regras que os mais desenfreados comilões, sempre de bico “afiado”, assumiam por inteiro, tendo em conta o posto hierárquico emanado pelo bando. 

Claro que as lutas dos pássaros desenhavam ávidos momentos em que a prioridade era o encher o papo. Noutros lugares existiam sequiosos “abutres” mas estes literalmente curvados ao faustoso e recheado prato que lhe fora colocado na mesa. A nutritiva refeição era tão-só uma pausa pontual ao arroz com salsichas. 

Para outros, pássaros de rapina imbuídos num minucioso calculismo, a tal vaca morta e desmanchada pelo Seidi tinha os seus dividendos. Restava a certeza que a mão “milagrosa” do Seidi jamais recusou atirar para os abutres as sobras da carcaça que, por razões evidentes, “não iam à mesa do rei”. 

Hoje, ao lembrar as memórias de Gabu detenho-me perante as minhas vulgares idas ao matadouro do Seidi. A sua azáfama era de todo interessante. A túnica, veste que usualmente transportava no seu corpo e que aparentava alguma sagacidade, estava normalmente manchada de sangue, tal como as mãos que reproduziam um trabalho que ele próprio assumia com dignidade. Era, aliás, dessa árdua faina constante que o nosso amigo recolhia proveitos monetários para alimentar a família. 

Retalhos de vidas que em tempo de guerra abasteciam tabancas de gentes que faziam do momento imponderáveis desejos de uma existência vergada pelos horripilantes sons vindos de outras batalhas campais que ocorriam ali por perto. 

Lá longe, muito longe, os arautos do despotismo debitavam discursos, qual abutres esvoaçando sobre negros horizontes, dizendo às massas que os militares portugueses lutavam nos palcos de guerra com honra e dignidade. 

Na verdade, nós jovens lutávamos como heróis visando a essencial salvaguarda da nossa “carcaça”, mas numa guerra que não era decididamente nossa. Os defuntos “abutres” que num limiar de cautas razões que na época ostentavam, levantem-se dos sepulcros, escutem o julgamento final e defendam a triste tese que certamente não transitará em julgado. 

Histórias avulsas de incautos cenários onde fomos meros “pássaros” andantes de uma imigração obrigatória em território alheio. 

 A hierarquia dos abutres a devorarem uma carcaça (foto retirada via internet) 

Com o Seidi no seu local de trabalho 

Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.

___________
Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:
 

28 DE JUNHO DE 2018 > Guiné 61/74 - P18787: Memórias de Gabú (José Saúde) (68): As minhas memórias de Gabu: A antiga Nova Lamego (José Saúde) 

quarta-feira, 18 de janeiro de 2006

Guiné 63/74 - P437: Estórias cabralianas (4): o Jagudi de Barcelos

Guiné-Bissau > Saltinho > 2005 > "É uma casa portuguesa, concerteza...". Uma morança com um homem grande e a sua família...
© José Teixeira (2005)

Guiné-Bissau > Saltinho > 2005 > A mulher do régulo e a filha...
© José Teixeira (2005)


Texto de Jorge Cabral (ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, destacado em Fá Mandinga e depois em Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71):

Companheiro Luís,

Continuo a acompanhar diariamente o teu/nosso blogue, o qual me tem permitido repescar do sótão da memória inúmeros episódios, alguns sofridos e outros intensamente gozados.

Na Guiné, além da guerra real, havia outra mais absurda – a dos papéis. Como Comandante de um Pelotão Independente, era inundado por um vultoso expediente, quer por via postal, quer através da rádio, o qual ia arquivando debaixo da cama.

A estória que hoje envio foi uma das minhas raras respostas às solicitações de Bissau, e ia tendo um péssimo resultado... Remeto, porque também tive momentos de tristeza, dois poemas, um escrito em Fá e outro em Finete, onde passei quinze dias à espera do "IN".

Um Grande Abraço de até Sempre e em Todos os Dias,
Jorge


O Jagudi de Barcelos (1)

Dos quatro Comandantes de Bambadinca que conheci, apenas o Polidoro Monteiro me mereceu consideração. Dos outros nem vou dizer o nome, e de dois a imagem que guardo é patética (2).

Assim, no rescaldo do ataque ao Batalhão (3), lembro o primeiro, à noite, de G3 em bandoleira, pedir-nos:
- Se houver ataque, acordem-me . - Eu, então periquito, fiquei inteirado…

Do substituto deste, recordo o Xime e o Posto de Socorros, no qual ele resolveu tratar uma fístula anal, cena presenciada por toda a tropa que ali se encontrava, para iniciar uma operação. (Estava lá a CCAÇ 12, foi a do dilagrama)(4).

Quanto ao Polidoro, não sei porquê, meteu na cabeça que eu devia ser louvado pelo Com-Chefe, tendo até, para o efeito, ido a Bissau. Afinal estraguei tudo… Em vez de tal louvor, o que o Tenente-Coronel conseguiu, foi livrar-me de uma porrada.

É que, precisamente nessa altura (meados de Julho de 71, muito após ter completado dois anos de mato), recebi uma mensagem, perguntando-me qual o tipo de habitações que se deviam construir para os soldados africanos. Perante o absurdo, não hesitei, e acto continuo respondi:

Uma casa portuguesa, com certeza.
Não há mesa, mas no chão um alguidar com bianda e peixinho da bolanha... fica bem.
Um raminho de capim. E claro, à entrada, de Barcelos, um Jagudi….

Jorge Cabral (2006)


Molhi Daaba

Molhi Daaba no meu lençol
Fecha o seu corpo
Como Flor
Que teme o sol.
Com medo e dó
Não dá - Empresta
E desta noite
Nada me resta.

“Estou só”
Nov. 69, Fá Mandinga

Jorge Cabral


Sala de Operações

Néscio, burro, o Major aponta
No mapa a linha de Água
(Que é um largo rio). Faço de conta
E gozando, mascaro a minha mágoa.

Claro que sim, meu Major
Golpe de pé, Golpe de mão
De Badora ao Cuor
E penso (Que cabrão…)

O major planeia a promoção
Eu nada planeio. Adio a vida
Até poder dizer que não
Quando não for, a Esperança proibida.

Jorge Cabral
Finete, 19/2/71
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Notas de L.G.

(1) Vd posts de 5 de Janeiro de 2006 >

Guiné 63/74 - CDXXII: Rally turra ? (estórias cabralianas)

Guiné 63/74 - CDXXI: Cabral só havia um, o de Missirá e mais nenhum...

Vd. post de 7 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXIX: Estórias cabralianas (3): o básico apaixonado

(2) Algumas destes nossos comandantes já aqui foram evocados, por mim e pelo David Guimarães. Vd posts de:

29 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - IX: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (1)

26 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXVI: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (6)

(3) Em 28 de Maio de 1969. Vd. post de 14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal

(4) Vd post de 25 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970)

quarta-feira, 8 de junho de 2005

Guiné 63/74 - P52: Antologia (2): A fábula do jagudi e do falcão (Luís Graça)

1. É uma fábula guineense que merece ser objecto de leitura, de reflexão e de divulgação. É uma jóia da sabedoria humana, com uma mensagem universal, que cala fundo. Como todas as estórias de animais, encerra uma lição, neste caso uma grande lição (filosófica, política e ética) em relação ao exercício do poder, aos detentores do poder, aos que são arrogantes e aos que não têm pejo em oprimir, desprezar ou marginalizar os mais fracos, os mais pequenos, os socialmente menos qualificados...

O jagudi (abutre) não é ágil, elegante, superior, altivo, nobre, aristocrático e guerreiro como o falcão, mas nem por isso deixa de ter o seu lugar na criação e de desempenhar o seu papel na natureza. É certo que ele é pouco ou nada considerado tanto pelos humanos como pelos outros animais. É feio, é repelente, é necrófago...

Que o diga, aliás, o provérbio crioulo-guineense: (i) Kal dia ku sancu fala jugude manteña si ka pa rispitu di kacur; ou, noutra variante, (ii) Kal dia ku sancu fala Sakala manteña si i ka na disgustu di kacur (= o macaco só conhece ou cumprimenta o abutre no velório do cachorro).

Mas também há um outro provérbio que, de certo modo, vem em defesa do jagudi: (iii)Jugude ka bai fanadu, ma i kunsi uju (= o abutre não foi à circuncisão, não passou pelo ritual do fanado, mas consegue ver as coisas, ou seja, não é parvo de todo...).

Em suma, uma estória que vem a propósito da História (com H grande) dos nossos dois países, Portugal e a sua ex-colónia da Guiné que, hoje, trinta anos depois da independência, ainda está longe de ter encontrado os caminhos seguros da paz, da construção da unidade nacional, da liberdade, da democracia e do desenvolvimento sustentado. Que a elite dirigente da Guiné-Bissau saiba, com humildade, ouvir, aprender e aplicar a grande sabedoria do seu povo e do seu pai-fundador, Amílcar Cabral...E que os resultados das eleições presidenciais do próximo dia 19 de Junho sejam um sinal de esperança para todos, para o povo guinéu e para os seus amigos, como nós.


2. A fábula do Jagudi e do Falcão

À sombra duma árvore, um alto poilão secular, descansa tranquilo um jagudi (abutre). No mesmo ramo em que ele se empoleira, caiado de branco devido aos dejectos de tantos outros jagudis que por ali passaram, veio pousar um altivo falcão.

Depois de trocarem um breve e seco cumprimento, o falcão, sempre palrador, fanfarrão e irrequieto, começou a insultar o jagudi, chamando-o de desprezível, de cobarde, de preguiçoso, de oportunista e de muitos outros termos insultuosos e pejorativos que lhe vieram à cabeça, à sua cabeça, tonta e leviana. Acusou-o, repetidamente, de ser a mais miserável e feia das criaturas de Deus.

O jagudi ouviu tudo, sem nunca ter tido o mais pequenino gesto de impaciência, protesto ou de indignacão. Nisto, passa entre os dois, a grande velocidade, uma linda ave, de penas multicores.

Logo o falcão se lançou em perseguição da pobre vítima. Mas fê-lo de maneira tão desenfreada que por azar foi bater, em cheio, com o peito, de encontro a um tronco robusto de uma árvore da floresta que se lhe atravessara no caminho. Louco, cheio de dor, lançando pios lancinantes, caiu ao chão, mortalmente ferido, sobre o tapete de folhas secas que cobria o trilho da mata.

Nesse preciso momento, o abutre levanta voo, com o seu ar pesado e pachorrento, e toma o seu lugar, imperturbável, à cabeceira do moribundo. O falcão, no estertor da agonia, ainda teve tempo de descortinar, horrorizado, a silhueta tenebrosa e agoirenta do jagudi, o seu bico afiado como aço e o seu pescoço descarnado.. E, trémulo, perguntou-lhe:
— Que vens aqui fazer, jagudi?
Ao que o abutre respondeu, impávido e sereno:
— Aguardo o teu fim, meu amigo.

Fonte: Adapt. de Nóbrega, Álvaro (2003) - A luta pelo poder na Guiné-Bissau. Lisboa: Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCPS). Universidade Técnica de Lisboa (UTL). 2003.23.