A octogésima estória cabraliana (*) merece ser saudada, de maneira "discreta", como o alfero gosta, mas também com regozijo da parte dos inúmeros fãs da série, onde se inclui este seu "discreto" leitor (. O senhor alfero sabe quanto discretamente o admiro e anseio o lançamento do seu livro para poder ser um dos 10 primeiros, pelo menos, a ter o privilégio de uma dedicatória autografada).
Levanta o meu alfero (que eu tive a honra de conhecer em Bambadinca, nos idos tempos de 1969/71), duas questões interessantes para a história do nosso tempo, em geral, e da guerra colonial (ou do ultramar, como preferir), em particular:
(i) era possível motivar alguns militares da tropa, como o 1º sargento Candeias ou até alguns cadetes de Mafra, com o simples slogan propagandístico "há mulatas em Luanda";
(ii) naquele tempo, de impoluto patriotismo (, coisa que os jovens de hoje não sabem muito bem o que é), também funcionava a "valente cunha de última hora", a avaliar pelo inesperado desfecho da situação do cadete Cabral: em vez do almejado tacho no SAM - Secretariado de Administração Militar, com direito a ar condicionado ou, no mínimo, de ventoínho de muitas rotações e garrafeira de uísque velho, puseram-no como apontador de artilharia em pleno coração da Guiné; em vez da ilha de Luanda e das mulatas angolanas, enfim mandaram-no para Fá e para as mandingas da Guiné...
Este último tema (o do "factor C") interessa-me particularmente, já que não tem sido devidamente abordado no nosso blogue, como deveria e eu desejaria.. Afinal, a lei era igual para todos ou havia, como hoje, uns mais iguais do que outros ?... Em Alcácer Quibir parece que morreu (ou ficou prisioneira dos moiros) a fina flor na Nação... Mas na Guiné a sociodemografia da guerra e da morte foi muito mais nivelada por baixo... Houve muito boa gente que se safou de ir parar ao chamado Vietname português...
Ainda ontem um amigo e conterrâneo meu, mais novo, me contava como um primo seu, mais velho, da minha geração, ficou livre da tropa (e portanto de ir parar à Guiné ou a outros sítios indesejáveis do vasto império onde havia guerra) mediante "cunha valente de última hora"...
A avó (de ambos) pagou 200 contos (, o que na época dava para comprar um apartamento) para livrar o querido netinho da servidão militar... O patriota impoluto que conseguiu livrar o mancebo era nem mais nem menos do que uma das figuras gradas do regime de então, médico, militar, de muitos galões, poderoso e influente... que esteve à frente de respeitáveis instituições como o Hospital Militar Principal... A senhora era vizinha da tal figura grada da Nação, morava ali para os lados da Estrela, e adorava aquele netinho (filho único da sua querida filha, viúva) e tinha bagalhoça. (Pessoa de resto que eu bem conheci e a quem fiquei a dever favores, diga-se de passagem).
O menino pôde fazer a sua carreira, académica e depois profissional, tranquilamente, tendo-se em licenciado em economia e arranjado um bom emprego numa instituição bancária, enquanto os jovens da sua geração andaram a matar e a morrer em Angola, Guiné, Moçambique...
Claro que, também aqui, nesta história nem todos os netos são ou eram iguais...Um deles, meu amigo, e irmão do meu informante, foi parar com os costados à Guiné, tal como eu... Enfim, já naquele tempo havia netos ricos e netos pobres... E, claro, médicos militares, figuras da mais fina flor da Nação, com diferentes leituras do valor do "patriotismo impoluto"...
Ouvindo histórias aqui e acolá, vamos juntando as pontas e reconstituíndo o "puzzle": (i) o sistema estava longe de tratar todos por igual (na escola, na tropa, na vida civil...); (ii) a classe social também contava (e se contava!); (iii) o "capital de relações sociais" também contava muito (o pessoal do "downstairs" que servia o pessoal do "upstairs", também tiravam partido dessa condião e, muitas das v vezes, eram as pessoas certas a quem o pobre necessitado devia meter um cunha); (iv) os resultados dos testes psicotécnicos, por mais válidos e fiáveis que fossem (segundo as garantias dos psicólogos militares) podiam ser, nalguns casos, desvirtuados na secretaria...
Por outro lado, a sociedade portuguesa é marcada por séculos de relações clientelares... E o poder manifestava-se, também, através do favor (e da sua simbologia): "com favor não te conhecerás, sem ele não te conhecerão"... Por outro lado, essas relações de poder eram assimétricas: como se diz na nossa terra, "dou um presunto a quem me der um porco"... E, em boa verdade, quem é que não estaria disposto, no nosso tempo, a dar 200 notas de conto, se as tivesse, só para se safar do alegado inferno da Guiné ? (**)
Por outro lado, a sociedade portuguesa é marcada por séculos de relações clientelares... E o poder manifestava-se, também, através do favor (e da sua simbologia): "com favor não te conhecerás, sem ele não te conhecerão"... Por outro lado, essas relações de poder eram assimétricas: como se diz na nossa terra, "dou um presunto a quem me der um porco"... E, em boa verdade, quem é que não estaria disposto, no nosso tempo, a dar 200 notas de conto, se as tivesse, só para se safar do alegado inferno da Guiné ? (**)
________________
Notas do editor:
(*) Vd. poste de 13 de setembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12035: Estórias cabralianas (80): As mulatas de Luanda (Jorge Cabral)
(**) Último poste da série > 19 de agosto de 2013 > Guiné 63/74 - P11955: Manuscrito(s) (Luís Graça) (9): Em honra da Lourinhã e da(s) sua(s) banda(s) filarmónica(s)