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domingo, 9 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21238: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (73): Canábis - Parte I: Modo de usar




 .

1. Já tanto aquu falámos, nos últimos dias, da "cannabis" , e afinal de contas parece que vamos morrer virgens sem ter consumido a "dita cuja" (nem hoje nem ontem, no TO da Guiné), que é bom saber algo mais sobre esta "substância psicoativa"... 

A Guiné era uma terra atrasada onde chegavam tarde, e a más horas,  as "novidades" da civilização... Em Angola e Moçambique, ou pelo menos em Luanda e Lourenço Marques, parece que alguma rapaziada nossa (?)  terá tido contacto com a liamba ou a maconha (em Angola) ou a soruma (Moçambique)... Na Guiné mascava-se cola, mas a coisa mão pegou...entre o "Zé Tuga".

Não se vá dar o caso de alguém, inadvertidamente,   a querer experimentar,  para "não morrer estúpido", deixamos aqui uma informação sobre a canábis, considerada a mais popular de todas as "drogas ilegais": sim, porque há muitas drogas legais: álcool, tabaco, xantias (cacau, café, chá), psicofármacos... 

É importante saber que, para além da infração à lei (e eu conheço gente que está atrás das grades por cultivar no quintal e consumir canábis....), a "sustância" tem efeitos "psicoativos", a curto, médio e longo prazo.  Dizer que a "liamba" é(era) inofensiva pode ser perigoso, para quem nos lê,,, E o nosso blogue tem um forte sentido de responsabilidade social.

Lí há dias nos jornais, e é importante partilhar esta imformação com os nossos leitores: 

"Cannabis provocou mais de 3200 internamentos hospitalares em 16 anos... Os números de internamentos por episódios psicóticos associados ao abuso ou dependência de cannabis aumentam a cada ano, num período em que a toxicidade da substância quintuplicou. Se uso recreativo da cannabis for aprovado, alerta investigador, há que activar os mecanismos de detecção precoce dos problemas."  (Pùblico, 1 de julho de 2020).

Hoje fala-se muito dos "benefícios" desta planta, Cannabis Sativa,  para a saúde, e inclusive há um crescente interesse médico, farmacológico, social  e, seguramente,  económico por esta  "droga" (, de resto, todos os medicamentos são "drogas". com benefícios e malefícios para a saúde humana). A sua cultura, para efeitos medicinais, já foi inclusive autorizada no nosso país...

Os "cotas" e "virgens", como nós, ex-combatentes da Guiné, desconhecem em geral as formas do consumo (ou administração) da canábis. Basicamentem, há duas  formas de consumo: "erva" (flor e folha) e "haxixe" (resina e óleo). Coisa que, eu, confesso, desconhecia: para mim, era só "erva"...

È bom saber isto, e mais alguma coisa sobre esta "substância", bem como os seus efeitos, até para podermos saber  falar com os nossos netos,  e ajudá-los a evitar que, por ignorância, se deixem facilmente "enrolar" na escola, no círculo de amigos, no Erasmus...Mas há outras "merdas", aparentemente inocentes, que os nossos miúdos, fora de casa, em grupo, querem experimentar, como os "cogumelos mágicos": ora, há dezenas deles, com   efeitos alucinogénios ou psicadélicos.. E infelizmente há quem apanhe um surto psicótico e vá parar dois meses ao hospital psiquiátrico, no melhor dos cenários... Porque há também suicídos e tentativas de suicídio...

2. Ainda anteontem estive com um ex-camarada da FAP, o T..., hoje com 67 anos, que foi 1º cabo especialista mecânico em Angola, chegou lá em março de 1974 e voltou a casa na véspera da independência, em novembro de 1975

E já agora: esteve com o Savimbi, duas ou três vezes, em deslocações pelo território, fazia parte de um protocolo das NT o "transporte aéreo" dos líderes dos três movimentos nacionalistas, MPLA, UNITA e FNLA...Ainda chegou a ter um convite para lá ficar na Força Aérea angolana, mas apercebeu-se, felizmente a tempo,  da incerteza gerada pelo espetro da guerra civil...

E, a propósito do tema da liamba ou maconha, que eu introduzi, à mesa onde estávamos, eu, ele e mais outro camarada da Guiné, disse-me que participara, certo dia, numa sessão de chá de maconha no aeródromo de Santa Eulália... Foi convidado para beber, ao fim da tarde, um chazinho, com bolachas, com outros camaradas da FAP... Tudo na boa, não desgostou do efeito da susbtância mas percebeu que não devia repetir, com as resonsabilidades que tinha... Aos 20 anos, está-se aberto a "experiências novas", nomeadamente em contexto grupal e de guerra.

Neste caso não era "charro", mas "chá", com base nas folhas da canábis (em Angola, liamba ou maconha). Estamos a falar já depois do 25 de Abril. Era então já um certo "hábito social", mas ele não pôde garantir que o "chá de maconha" estivesse generalizado entre os militares da FAP (e muito menos do exército e da marinha, com quem pouco ou nada convivia).

3. Este folheto, acima reprozido,  é já antigo, foi elaborado pelo IDT - Instituto da Droga e da Toxicodependência, que mais tarde (em 2012) deu origem ao SICAD - Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependência

Mas o SICAD tem, na sua págian oficial, mais  informação, actializada e bastante didática, sobre as substâncias psicoativas (leia-se: "drogas), de que reproduzimos, com a devida vénia, e algums adaptações livres, os seguintes excertos

SICAD > Cidadão > Substâncias psicoativas > Derivados da Cannabis:

A história das drogas é a nossa história, enquanto seres humanos, do nascer ao morrer... Os especialistas tendem a classificá-las da seguinte maneira: (i) estimulantes; (ii) perturbadoras; e (ii) sedativas. Os derivados da canábis são sobretudo estimulantes. São o grupo de substâncias de maior popularidade e que têm suscitado maior debate social, havendo crescente pressão para a sua "legalização".

Falemos então dos "derivados da Cannbis", ou seja , a tal planta denominada Cannabis Sativa, que praticamente pode ser ser cultivada em quase todo o mundo, tanto em climas quentes como temperadas, e até secos, desde que haja um bocado bom de água.

A Europa, e em particular a Espanha, foram grandes produtoras na primeira metade do passado século. Hoje, os principais produtores mundiais são os Estados Unidos. Pela ação do homem, espalhou-se por todo o planeta mas sempre dentro de um determinado contexto cultural. Por exemplo, em África, espalhou.se ao longo de todo o séc. XIX, e e em especial , na época do colonialismo, em função da aceitação ou rejeição por parte dos diferentes povos ou grupos etnicos. Por exemplo, tem mais aceitção em Angola ("liamba", maconha"), do que na Guiné (onde não se cultivava no nosso tempo).

Ao que se sabe, foram as campanhas napoelónicas no Egito, nos finais do séc. XVIII,  que reintroduziram a canábis nos círculos intelectuais da Europa.

Passando por cima da Geografia e da História, diremos que há três formas de consumo da Cannabis Sativa:

(i) "Marijuana" ou "Erva” (preparada a partir das folhas secas, flores e pequenos troncos da planta);

(ii) "Haxixe"  (repara-se prensando a resina da planta fêmea e se transforma numa barra de cor castanha, com o nome coloquial de "Chamom". O seu conteúdo em THC (a  susbtância psicoativa) (até 20%) é superior ao da Marijuana (de 5% a 10%), pelo que a sua toxicidade é potencialmente maior.

(iii) "Óleo de Cannabis" ou "Óleo de Haxixe" (líquido concentrado que se obtém misturando a resina com um dissolvente, como a acetona, o álcool ou a gasolina; este evapora-se em grande medida e dá lugar a uma mistura viscosa, cujas quantidades em THC são muito elevadas, podendo ir até aos 85%).

O THC (Delta 9 tetrahidrocannabinol, o  alcaloide responsável por quase todos os efeitos característicos desta substância) não se dissolve na água, pelo que as únicas formas de consumo para os seres humanos são a ingestão e a inalação. Normalmente fuma-se misturada com tabaco em forma de cigarros feitos à mão. O fumo da Cannabis alcança altas temperaturas, pelo que os seus utilizadores colocam no cigarro grandes filtros. 

Outra forma de fumar a canábis é em cachimbos feitos especialmente para esse fim. Todavia, em certas culturas de África ou do Caribe, persiste a velha prática de beber tisanas feitas com esta planta e água. Embora de sabor amargo, é utilizada como ingrediente em doçaria e rebuçados.

(Continua)
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Nota do editor:

sexta-feira, 17 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21177: Agenda cultural (750): Novo livro de Catarina Gomes, "Coisas de loucos: o que eles deixaram no manicómio" (Lisboa, Tinta da China, 2020, 264 pp.)







Sinopse do livro, editado pela Tinta da China 

Prefácio: Djaimilia Pereira de Almeida
Fotografias de Paulo Porfírio
Julho de 2020 | 264 PP | 21x14
ISBN: 978‑989‑671‑553‑3
Preço de capa: 17,90€


1. Mensagem, com data de 14 do corrente, da nossa amiga, jornalista e escritora, Catarina Gomes [ tem cerca de 3 dezenas de referências no nosso blogue; não pertence formalmente à nossa Tabanca Grande, por razões de independência e deontologia profissional]: 

Olá a todos,

Há mais de oito anos encontrei no sótão do primeiro hospital psiquiátrico português, o Miguel Bombarda, em Lisboa, uma caixa de cartão empoeirada cheia de objectos de antigos doentes. Há anos que persigo as suas vidas passadas. Que agora são, finalmente, livro. Chama-se «Coisas de Loucos-O que eles deixaram no manicómio» e chega finalmente às livrarias esta sexta-feira [, 17 de julho].

Por causa da pandemia não há ainda data certa para o seu lançamento, que deverá acontecer em Setembro. Nessa altura, receberão um convite. Por agora fica a notícia
Abraços
Catarina

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sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18177: In Memoriam (310): Álvaro Andrade de Carvalho (Lourinhã, 14/8/1948 - Lisboa, 4/1/2018): médico, psiquiatra, gestor de saúde, meu conterrâneo, meu condiscípulo, meu amigo de infância, meu amigo para sempre... O funeral é no sábado, às 14h00, na sua terra natal (Luís Graça)


Álvaro Andrade de Carvalho (Lourinhã, 14/8/1948 - Lisboa, 4/1/2018). Diretor do Programa Nacional de Saúde Mental, desde 2011.



1. Soube esta noite, por esse novo mensageiro da morte que é o Facebook, do já esperado (mas sempre temido) desfecho da tua luta, desigual, contra a doença (oncológica)... 

Acabas de atravessar o rio Caronte, nessa viagem sem regresso para qualquer mortal. Todos já temíamos o pior, a tua família e os teus amigos do peito, quando em 14 de agosto de 2017 nos juntámos na tua casa da Lourinhã para celebrar a vida, o amor, a amizade  e... a esperança. Fazías então 69 anos. 

Foi uma luta desigual, mas digna e corajosa, a tua, contra a morte anunciada.  Não tenho cabeça, às cinco da manhã do dia seguinte, para te escrever a "oração fúnebre" que te é devida.  Outros farão muito melhor do que eu o elogio do homem público, do cidadão, do português e sobretudo do médico, do psiquiatra, do psicanalista, do professor, do chefe de serviço hospitalar, do gestor e reformador da saúde mental. Infelizmente, já não estarás cá, em 2019, quando se comemorar os 40 anos do serviço nacional de saúde, para cuja génese e desenvolvimento também deste a tua quota parte, decisiva.  Mas o teu exemplo, em termos de ação e pensamento, continuará a ser inspirador para todos nós,

Deixa-me reproduzir aqui, meu querido Alvarinho,  as palavras que eu te disse, no teu dia de anos.  É uma pequena, singela, homenagem de um dos teus amigos de infância que ficaram, discretamente,  amigos para sempre. Estas palavras,  ditas num círculo íntimo em 14/8/2017, passam a ser públicas, se não me levas a mal, do outro lado da margem do rio.  E espero que possam ser também um lenitivo para a perda devastadora que é a tua morte, extemporânea, aos 69 anos, para todos nós, a começar pelos teus filhos, Miguel, Joana e Sara, e os teus netos, demais família e amigos, sem esquecer a grande comunidade da saúde mental (e da saúde pública), o teu país, a tua terra. E as mulheres que te amaram. Sim, tu foste feliz entre os homens e as mulheres. Foste feliz no amor e na amizade,

2. Soneto de amizade, dedicado por Luís Graça ao Álvaro de Carvalho no seu 69º aniversário:

Meu caro Álvaro,
meu bom e velho amigo,
querido Alvarinho:

Raramente me esqueço de te dar os parabéns,
no teu dia de anos,
desde há mais de sessenta anos.
A data, de resto, coincide com um dia glorioso da nossa história,
o da batalha de Aljubarrota, em 14 de agosto de 1385.
Se o nosso exército não tem derrotado o dos nossos vizinhos,
hoje estaríamos aqui a “hablar en castellano de la amistad entre nosotros”…

Nasceste num sábado, em 14 de agosto de 1948,
que foi de alegria para os teus pais,
pessoas de quem tive o privilégio de serem minhas amigas.
O dia, em termos metereológicos, não terá sido muito diferente do de hoje, 
talvez um pouco melhor,
pelo que pude ler na 2ª edição do “Diário de Lisboa”
(, edição de 8 páginas, de que te mando um exemplar em formato digital).

Na costa norte e centro, o céu estava limpo, 
por vezes com algumas nuvens, 
vento norte bonançoso a fresco, 
visibilidade boa, 
ondulação norte noroeste moderada.

Foi um ano de estiagem, o de 1948… 
Tinha havido, ao menos, umas chuvadas fortes uns dias antes…

E pelo mundo, as notícias eram aparentemente as de rotina: 
acabavam os jogos olímpicos em Londres, 
chovia torrencialmente em Berlim, 
afetando a ponte aérea anglo-americana, 
estávamos em plena guerra fria 
e chegavam também ao fim, depois de 3 anos, os julgamentos de Nuremberg…

Em Portugal, na ponta mais ocidental e acidental da Europa, nada de novo… 
Ah!, éramos bicampeões europeu e mundiais de hóquei em patins… 
E claro comemorava-se o 14 de agosto, “dia da infantaria”…
Não quero ser maçador, e abusar do meu tempo de antena,
em dia que é teu, da tua família, dos teus filhos e netos,
e todos aqueles que te querem bem
e  que fazem votos para ver-te de novo em boa forma, 
ativo, produtivo e saudável…
Estamos aqui para darmos graças à vida 
e festejar o amor, a amizade…e a esperança!
Mas tenho que te dizer, com ternura, algumas palavras
na tua festinha das 69 primaveras…

Não sei se alguma vez houve um poeta ou uma poetisa
que te tenha escrito um soneto…
Aceita aquele que eu te acabo de escrever,
e que é uma singela declaração de amizade,
em meu nome, e em nome da minha família,
a Alice, a Joana e o João.

Foste importante para mim,
por muitas razões que tu e eu sabemos,
na minha infância, adolescência e juventude,
e já depois de ter vindo da Guiné, ter casado e voltado a estudar…
Mas também foste importante para eles.
Foste, mais do que visita da nossa casa,
também um médico, um conselheiro e um grande amigo.

A Alice e eu estamos-te muito gratos,
a ti e à Ana Jorge,
pelo João que também ajudaste a nascer,
e que hoje é teu colega, psiquiatra.
Músico, seguiu esta manhã para Espanha, para um concerto,
e manda-te um xi-coração de parabéns.

Separados por duas ruas,
vivemos a nossa infância, adolescência e parte da juventude
na mesma terra, Lourinhã.
Estudámos na mesma escolinha do Conde de Ferreira,
brincámos no mesmo largo do coreto,
uma e outro há muito vítimas do camartelo camarário.
Lemos, na tua casa,  os mesmos livrinhos aos quadradinhos,
dos cobóis às séries do “Cavaleiro Andante”…

Depois da 4ª classe e do exame de admissão (que fizemos juntos em Lisboa),
seguimos caminhos diferentes,
mas encontrávamo-nos nas férias grandes.
Desde cedo mostraste espírito de líder
(aquele que vai à frente mostrando o caminho),
criando o “Alvorada” juvenil,
e depois colaborando intensamente na redação do jornal.

Foi aqui, no jornal "Alvorada", que eu tive a minha primeira atividade remunerada. 
Foi aqui também nosso colega de escola, amigo e teu primo,
o saudoso Rui Tovar de Carvalho (Lourinhã, 1948-Lisboa, 2014), 
começou a dar os primeiros passos na sua carreira de jornalista desportivo.

À criação de uma secção, ou de uma página, 
a que chamámos "Alvorada Juvenil", 
seguiram-se outras: 
abrimos espaço ao correio dos soldados do ultramar,
 e demos voz aos nossos emigrantes. 
No "Alvorada Juvenil", abrimos um inquérito aos jovens lourinhanenses 
e alimentámos o "cantinho dos poetas"...

Tu e eu, assinámos em conjunto diversas reportagens, 
para além de artigos de opinião que subscrevemos individualmente. 
Havia alguma irreverência e inquietação, 
próprias da idade e da época que vivíamos.

Acabei por exercer as funções de redator chefe deste jornal, quinzenário regionalista,
que ainda hoje se publica. 
Foi fundado ao em 1960, como sabes, 
pelo padre António Pereira Escudeiro (Tomar, 1917-Lisboa, 1994), 
um homem a quem a Lourinhã muito deve 
e que fez uma aposta forte na formação das elites, ou seja, na educação. 
Foi igualmente fundador do jornal "Redes e Moinhos" (1954-1960). 
Antes de vir para a Lourinhã como pároco, em 1953, 
esteve em Alcanena onde fundou o jornal quinzenário "O Alviela", 
entretanto suspenso pela censura por ousar publicar um artigo 
sob o título "A fome em Alcanena"... 
Estava-se em plena campanha do general Norton de Matos. 
Retomou a publicação depois de ser autorizado a versar também "assuntos sociais"...

À frente do "Alvorado", como redator-coordenador, de 1964 a 1966, 
"fiz-me esquecido" 
e deixei de mandar o jornal à censura...
A entrada de jovens fora uma pedrada do charco da pasmaceira e do conformismo
em que se vivia nesta terra do oeste-estremenho. 
Estava-se em plena guerra colonial 
mas já na fase de fim de ciclo...
"Cadáver adiado", o regime do Estado Novo ainda estrebuchava 
e metia medo a muitos. 
Não admira que o diretor do jornal tenha recebido 
um intimidatório ofício da direção geral de censura 
a perguntar porque é que se permitia o luxo de ultrapassar a lei... 
Metade do ofício, que era apenas de duas linhas, 
correspondia a uma assinatura em letra garrafal, 
símbolo máximo da arrogância de quem se sentia dono e senhor deste país... 
Tudo "a bem da Nação", pois claro.

O pobre do padre vigário, já com ficha na PIDE (por causa do "Alviela"),
lá teve que arranjar uma desculpa esfarrapada aos senhores coronéis da censura 
e, a mim, puxou-me as orelhas... 
Doravante, tínhamos que mandar os artigos em duplicado para a tipografia 
que por sua vez submetia uma cópia à censura... 
E no entanto nunca nenhum de nós escreveu o que quer que fosse 
que pudesse pôr a causa a sacrossanta trilogia Deus, Pátria e Família...

Eu acho que os censores embirravam sobretudo com os nossos jovens poetas.
Não entendiam nada da poesia moderna 
e receavam à brava que os jovens lourinhanenses e outros, 
que colaboravam connosco, 
escrevessem também nas "entrelinhas"... 
Nunca se sabe o que se passa na cabeça irrequieta dos poetas 
nem muito menos na mente perversa dos censores...

Um dia vais gostar de rever este período das nossas vidas, 
em que fomos jornalistas amadores 
e ganhámos o gosto pela escrita, pela ação cívica e pela animação cultural…. 
Prometo fazer-te uma seleção dos teus e dos nossos escritos de adolescência…

Está na hora, por fim, de te ler o poema que te fiz esta noite. 
E que te dedico com todo o meu apreço, gratidão, amizade e fraternidade. 
É o meu pequeno contributo para a tua festa.


Soneto de amizade

por Luís Graça


Alvarinho, deixa-me te dizer,
Hoje, este soneto de amizade:
Amigo é um irmão, podes crer,
Para lá do sangue e da idade.

Nada tem de declaração senil:
Amigos para sempre, desde a infância,
A escola e o “Alvorada” juvenil,
Somos irmãos em última instância.

Amigo é partilhar dor e alegria,
Nos bons e maus momentos da vida,
É cumplicidade, é empatia.

E que mais, meu irmão e meu amigo ?
É saber dar-te a valia devida,
É ter tempo, afinal, para estar contigo!



Lourinhã, 14 de agosto de 2017.

PS – Parabéns, muita saúde e longa vida,
Porque tu mereces tudo!


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Nota do editor:

Último poste da série >  28 de dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18149: In Memoriam (309): Alf inf QP Augusto Manuel Casimiro Gamboa, CCAÇ 1586 (Piche, Nova Lamego, Canjadude, Madina do Boé, Béli, Bajocunda, 1966/68), nascido em São Tomé , morto em combate, em 14/12/1967, em Uelingará, entre Canjadude e Nova Lamego (José Martins / Virgílio Teixeira / António J. Pereira da Costa / José Corceiro)

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15682: Manuscrito(s) (Luís Graça) (75): sabedoria alentejana: viver até aos cem anos... p'ra quê ?

Ao Mário Fitas e à sabedoria alentejana... LG


Viver até ao cem anos... p'ra quê ?

por Luís Graça


Pergunta um velhote alentejano ao seu jovem médico de família, no primeiro exame de saúde que este lhe fez:

Ó sô doutouri, acha que eu inda terei a sorte de vivêri até aos cem anitos comó mê pai ?

– Bom, depende das asneiras que o mê amigo fez na vida ou tem feito... Ora, diga-me lá: vocessemê fuma ?

Ná, nunca me puxou prá aí.

– E beber, bebe o seu copo ?!...

–  Ná, na gosto d' álcool.

– Mas olha que o tinto até faz bem ao coração... E o comer ?

Só o que a terra dá, pão, azêti, migas, alho, coentros, cebola, batatas... 

– Quer dizer: carne e peixe, pouco, que a pensão do governo não dá p'ra tanto!... Então, e que mais? O senhor é casado ? Tem filhos e netos ? 

– Ná, nunca tive filhos que Deus me desse.

– Atão ?!... e não tem mais nenhum vício ? Quero eu dizer: jogo, mulheres... ?

 Ná, sô doutouri. Nada disso! Fui pastouri, ‘tou reformado, sou viúvo, vivo sozinho no monte mailo o canito...

O médico ficou uns largos segundos pensativo, e depois perguntou, em tom de brincadeira a roçar o humor negro:

– Diga-me cá uma coisa, ó senhor Joaquim, que eu não 'tou a compreender: o senhor quer viver até aos cem anos... mas para quê?!

O alentejano, muito sério, lívido, quase ofendido, deu uma resposta que fez corar o jovem clínico geral, acabado de chegar, vindo de Lisboa ainda há pouco meses,  ao centro de saúde de Odemira: 

–  Atão... porque a vida de um home é a única coisa que pertence a um home e que um home pode tirar a ele próprio...

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Nota do editor:

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P14035: In Memoriam (211): Manuel Jorge Martins Gomes, ex-alf mil at art, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74 (António J. Pereira da Costa)


Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Xime > Cais do Xime > 1972 > Reconstituição possível da legenda: "[Da esquerda para a direita,] Viegas, eu,  Carneiro, Gomes e Pereira"... Não sabemos de quem é a foto.  Foi nos enviada pelo nosso camarada Tó Zé [Pereira da Costa]...

Num belíssimo e tocante texto que ele escreveu há uns anos  [Poste P5456, de 13/12/2009, que merece ser relido] o nosso Pereira da Costa evoca estes seus  oficiais milicianos, com destaque para o infortunado Martins Gomes que fora seu colega de liceu, embora mais novo.

Além do cap mil art António José Pereira da Costa (que esteve no Xime entre Agosto e novembro de 1972, sucedendo-lhe o cap mil Luciano Carvalho da Costa), há aqui (na foto e no texto)  referências aos alf mil art Acácio Dias Correia,  Manuel Barbosa Carneiro e Maurício Viegas (do Pel Art que operava o obus 10.5)




1. Mensagem, de ontem à noite, do António J. Pereira da Costa [cor art ref, ex-alf art, CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-cap art, CART 3494/BART 3873, Xime, 1972, e CART 3567, Mansabá, 1972/74] [, foto atual à esquerda]


Camarada:

Para já uma notícia triste. Morreu o ex-alf at art  Manuel Jorge Martins Gomes, meu alferes da CART 3494.

Depois daquela "aventura",  regressou e fixou-se em Mem Martins. Estabeleceu consultório como dentista e era atencioso e eficaz.

Um dia fechou o consultório e perdi-o até o encontrar nos convívios da CART 3494,  levado pelo Acácio Correia [, ex-alf mil art,] que o ia buscar e entregar ao Telhal [, Casa de Saúde do Telhal, instituição psiquiátrica fundada em 1893, pelos Irmãos São João de Deus].

Era meu ex-colega de Liceu Passos Manuel, mais novo, onde era um puto reguila e hiperactivo.

Na Guiné, a vida não lhe correu nada bem e nunca se adaptou ao sítio e às tarefas. Cada um reage como pode ou o seu íntimo lhe dita. Tinha uma grande paixão pela esposa e filhota (nessa altura não havia ainda o rapaz) e ia para o mato com as fotografias delas num saquito de plástico. Descrevi-o em "As idas ao Fiofioli" [, poste P5456].

Se quiseres,  publica a notícia. Por mim  vou avisar a malta da CART 3494. com quem contacto.
Na foto acima, o Gomes é o segundo da direita, com uma "bejeca" na mão.

Um Abraço
António Costa

2. Excerto do poste de 13 de dezembro de 2009 >  Guiné 63/74 - P5456: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (1): Esta noite fomos ao Fiofioli

(...) Na messe havia também um bar, que não passava do aproveitamento do espaço entre duas rulotes, onde fora construído um balcão em madeira e verga. Atrás do balcão, funcionava um frigorífico a petróleo, cuja mecha se apagava sempre que a artilharia fazia fogo. Recordo-me que tinha prateleiras, cuja utilidade não descortinei, por estarem sempre vazias. Não serviam para nada, mas decoravam. Já se imaginou um bar sem prateleiras?

Era naquele espaço que ficávamos, depois do jantar, a conversar acerca de tudo o que fosse surgindo. Passaram vários por ali, mas, normalmente éramos quatro ou cinco. Recordo o Gomes, o Carneiro, o Pinho da Artilharia, rapidamente substituído pelo Viegas, o Sousa e o Pereira. Enquanto lá estive, passou por lá o Correia, muito activo e animado, mas que, ao fim de poucas semanas, foi transferido, não sei para onde, após uma visita do brigadeiro adjunto-operacional.

O ambiente era triste e lúgubre. As conversas banais ou profundas, sem que para isso houvesse intenção dos participantes. Tinha de ser assim, entre tão poucas pessoas forçadas a conviver num espaço tão reduzido. Muitas vezes falávamos da guerra e da política do país. Debatíamos a guerra quer na Guiné, quer no sector que nos tinha tocado. Neste último tema não havia grandes inovações e acabávamos sempre a comentar as “últimas notícias do Batalhão” [, BART 3873].. Eram normalmente histórias cómicas, que resultavam de mal-entendidos ou situações pouco claras. [...]

Descrito o ambiente e as rulotes, passemos aos seus habitantes.

O “Manel” Gomes tinha andado comigo no liceu Passos Manuel. Dois ou três anos mais novo, era um miúdo agressivo, sempre em actividade e que não podia deixar de chamar a atenção para os seus cabelos louros encaracolados e os olhos azulíssimos. Era aquilo a que podíamos chamar um malandreco reguilote.

Passados dez anos, ali estava ele, praticamente só, no comando de mais de meia-companhia. Quando cheguei, estava a braços com os restos da emboscada na Ponta Cóli, que tinha dado vários feridos e a morte ao furriel Bento. Havia tarefas burocráticas a cumprir e prazos a respeitar e o Gomes sofria por não saber o que fazer, parecendo não ter apoio de ninguém. Suava quase permanentemente e vivia numa tensão que não abrandava. Amava profundamente a mulher e a filha e, numa pequena embalagem de plástico, levava para as operações, num bolso do camuflado, uma frase escrita no reverso do retrato das duas:
- Abandonne-toi à ma providence et ne doutes jamais de mon amour. [Entrega-te à minha providência e nunca duvides do meu amor].

Era um jovem generoso a pedir que o guiassem. Quando retirámos da água o corpo sem vida do Sousa afogado no Geba, queria, recorrendo aos toscos conhecimentos dum primeiro ano de medicina incompletíssimamente estudado, retirar do corpo, a água que impedia que fosse metido no caixão. O Sousa acabou por ser sepultado em Bambadinca, dentro de um caixote de bacalhau, ao fim de vários dias de espera pelos ferros e luvas de autópsia que permitissem aproximar o corpo das suas dimensões normais. Vi, num programa da televisão portuguesa, o estado em que a sepultura está, passadas que foram quase quatro dezenas de anos. Com poucas defesas a nível psíquico, o Gomes sofria cada vez mais. Voltei a encontrá-lo, na terra onde ambos vivemos. Era dentista, bem afreguesado e foi o dentista da minha família até que o consultório fechou. O resto todos sabemos. [...]

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terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Guiiné 634/74 - P11091: (Ex)citações (212): Afinal, todos fomos expulsos do Paraíso e condenados à solidariedade (J. L. Pio de Abreu, psiquiatra, ex-alf mil med, CCS/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1971/73)


Capa e contracapa do livro de J. L. Pio de Abreu, Como tornar-se doente mental, 18ª ed, Lisboa, Dom Quixote, 2008. (Prémio Città delle Rose, 2006).


“Se não mentir a si próprio, descobrirá que é uma pessoa com limites e deixará de querer ir a todas, como fazem os fóbicos. Também não será dono da verdade nem tão importante como são os paranóicos. Não será o mais perfeito, o que fica para os obsessivos, nem tão brilhante ou poderoso como os histriónicos e psicopatas. Não será uma pessoa muito especial, como os esquizofrénicos, nem um génio, como os maníaco-depressivos. Será apenas uma pessoa comum que aceita os desafios e os paradoxos da vida, faz o possível para, em cada momento, dar o que pode e actuar em conjunto com os outros. No entanto, tem de assumir a responsabilidade completa pelas suas acções. Afinal, todos fomos expulsos do Paraíso e condenados à solidariedade. Fizemos das fraquezas forças e, uns com os outros, construímos coisas admiráveis. Convenhamos entretanto que tudo isto é muito complicado, pouco gratificante e difícil de fazer. Fácil, fácil, é mesmo tornar-se doente mental.” (pp. 155/156). (Negritos nossos).


[José Luís Pio de Abreu foi alf mil médico, CCS/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto,1971/73]
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Nota do editor:

Último poste da série > 9 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11081: (Ex)citações (211): Ainda o P11033 (Vasco Pires)

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Guiné 63/74 - P8896: Recortes de imprensa (51): Hoje como ontem, de África ao Afeganistão, a realidade (oculta) do stresse pós-traumático de guerra...

Reproduzido,  com a devida vénia,  do JN - Jornal de Notícias, de 8 do corrente:

Sociedade > Militares que serviram no Afeganistão têm sintomas de stress pós-traumático



Um estudo da Universidade do Minho aponta que mais de 10% dos militares portugueses em missão no Afeganistão entre 2005 e 2009 apresentam sintomas de perturbação de stress pós-traumático [PSPT], além de queixas físicas e outras doenças.

Em entrevista à Agência Lusa, o investigador da Universidade do Minho (UM) Carlos Osório, que é também militar, explicou que um dos objectivos desta investigação foi "perceber as consequências a nível de saúde" que a presença no Afeganistão teve para os militares portugueses "no imediato e a longo prazo". 

Assim, referiu, "foram feitos inquéritos a 113 militares do Exército português mobilizados no Afeganistão, integrados na International Security Assistance Force [ISAF], uma força que tem por objectivo restabelecer a paz entre forças beligerantes".   

Segundo Carlos Osório, estes inquéritos serviram para "avaliar a exposição a stressores específicos" a que os militares das forças especiais portuguesas estiveram expostos no Afeganistão e a "associação desta exposição com o desenvolvimento de problemas mentais e queixas físicas".  

Os resultados, revelou o investigador, mostram que destes 113 militares, "três por cento preencheram os critérios de PTSD [, acrónimo inglês de Post-Traumatic Stress Disorder] e 10 por cento os critérios de PTSD parcial", isto a nível de "sintomas de perturbação mental".

Quanto a problemas de saúde física, "os resultados mostraram a presença de queixas físicas como dores nas costas, fadiga, dores musculares, dificuldades em dormir, ou inclusivamente dores de cabeça", enumerou o investigador.

Já as doenças "mais comuns" identificadas foram "doença gastro-intestinal, nervosa, respiratória, alérgica e cardiovascular".

Sobre o "teatro" em que se movimentaram estes militares, o estudo mostra que:

(i)  "71% destes militares participaram em operações de combate onde poderiam ter perdido a vida",

enquanto  (ii) "81% observaram inimigos feridos, 

(iii) 23% observaram inimigos mortos,

(iv) 15% feriram inimigos em combate

e (v) 10% chegaram mesmo a matar inimigos".

Segundo Carlos Osório, "apesar de a presença de PTSD e PTSD parcial ser relativamente baixa", os sintomas destas perturbações mentais estão "associados a diversas queixas físicas e à presença de doenças". 

Com base neste estudo, o investigador concluiu ser "essencial a criação de programas que avaliem e monitorizem todos os militares portugueses regressados do Afeganistão" para lhes "providenciar sempre que necessário o acompanhamento psicológico e psiquiátrico".

Carlos Osório alertou ainda para a necessidade de "todos os militares que apresentem várias queixas físicas serem avaliados para PTSD" e que "aqueles diagnosticados com PTSD devem também ser avaliados para a presença de sintomas físicos".

[ Revisão / fixação de texto / links / título: L.G.]

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Nota do editor:

Último poste da série > 3 de Outubro de 2011 >Guiné 63/74 - P8852 Recortes de imprensa (50): Medalha de mérito militar chega 43 anos depois... A história do 2º Srgt Mil Libério Candeias Lopes, de Penamacor (CCAÇ 526, Bambadinca e Xime, 1963/65)

segunda-feira, 15 de março de 2010

Guiné 63/74 - P5997: Controvérsias (67): A Páscoa Sangrenta de Fajonquito, em 2 de Abril de 1972 (António Costa)

1. Mensagem, com data de ontem, do nosso camarada (e amigo) António José Pereira da Costa,  António Costa, tout court (Cor Art na reserva, na efectividade de serviço), que esteve na Guiné entre 1972 e 1974:

 Assunto: Páscoa Sangrenta

Camarada:

Sobre a situação de Fajonquito (*) gostava de alinhar umas considerações, que me parecem construtivas:

(i) Não era contra o RDM ficar na PU [ Província Ultramarina,] onde se estava, a trabalhar após a passagem à disponibilidade. O país era só um - é bom que se recorde - e após as "obrigações militares" até era possível ir para o estrangeiro sem ser "a salto".

As Ordens de Serviço estão cheias das chamadas autorizações de ausências definitiva para o estrangeiros, passadas pelas unidades onde os desmobilizados tinham ficado colocados para efeitos de recrutamento. Por isso, tenho dificuldade em entender o início do diferendo entre e o capitão e o soldado, por esta razão. Não haveria outras?

(ii) Depois, tenho dificuldade em imaginar que um homem sózinho tenha conseguido descavilhar duas granadas defensivas que transportava, obviamente, uma em cada mão.

Imagina como é que o farias. Será que teve o auxílio de alguém? Claro que não! Peço desculpa, mas tenho dúvidas de que tenha sido assim.

(iii) A causa determinante terá sido a distribuição das amêndoas. Penso que o soldado ter-se-á sentido ferido (muito) na sua auto-estima e, principalmente, desamparado e abandonado.

A sua atitude terá sido um expor da sua situação de solidão, uma espécie de pedido de ajuda, semelhante aos dos suicidas. Na verdade, ele provavelmente nem sequer entendia porque estava ali a fazer aquilo (a Guerra) que não aceitava, mas não tinha saída ou remédio senão fazê-lo (não podia desertar nem fugir). Por isso, pelo menos, tinha que estar. Será que ele sentia estar a defender a Pátria ou as populações que estavam junto das NT? Ouvi dizer que era Básico, o que quer dizer que era dos psicotecnicamente menos aptos no Exército.

(iv) Por mim, creio que algumas situações de insubordinação e desobediência têm origem numa espécie de descarregar de ira e revolta contra o sistema e a situção. Não é possível que aqueles contra quem foram cometidas - na sua maioria tão milicianos como os insubordinados - fossem uns tiranetes e injustos e que merecessem a insubordinação.

(v) Creio mesmo que algumas delas terão origem numa situação de revolta profunda que não tinha por onde se expandir. Estas situações terminavam normalmente mal para os insubordinados e não creio que os quadros ficassem satisfeitos com o sucedido, como muitas vezes se diz. Para mim, estas situações serão o indício técnico de que o enquadramento é insuficiente e a mentalização é má.

Embora nunca tivéssemos tido uma recusa ao embarque, não creio que a defesa da Pátria nos fornecesse elementos para aceitarmos a ida para lá Tive ocasião de verificar que as unidades que embarcavam iam cada vez menos "mentalizadas" para as tarefas a realizar.

Farás com este mail o que quiseres, mas sugiro que testes a coerência da história tão dramática, e procures uma interpretação sociológica e psicológica para o sucedido e para a actuação dos dois principais intervenientes.

Um Ab do António Costa

2. Comentário de L.G.:

António:

Aprecio a sagacidade do teu raciocínio, a oportunidade do teu comentário e a gentileza do teu gesto, honrando a memória dos nossos mortos.

Seguramente que faltam outras versões. As duas que temos (a do José Cortes e do José Bebiano, ambos furriéis em Fajonquito, em 1972), não são suficientes.  O José Bebiano é contemporâneo dos acontecimentos, privou por exemplo com o Fur Alcino, uma das vítimas mortais dos acontecimentos, mas no dia 2 de Abril de 1972 não estava em Fajonquito, estava antes na Metrópole, em gozo de licença de férias.

 Por sua vez, o José Cortes (da companhia que veio render a CART 2742, a CCAÇ 3549),  tinha partido para a Guiné erm 26 de Março de 1972 e,  antes de seguir para Fajonquito, ficou  a tirar a IAO, no Cumeré, possivelmente durante um mês e meio... A versão dele só pode ser em segunda mão...Ouviu contar "in loco", um a dois meses depois do ocorrido... E contou-ma agora, 38 anos depois, ao telefone, ele em Coimbra, eu em Lisboa. (Em rigor, é a versão dele, oral, telefónica, reconstituída por mim).

 Há pormenores, nas duas versões, que se contradizem: o José Cortes falou-me, ao telefone, em duas granadas, descavilhadas, uma em cada mão. O José Bebiano fala apenas numa... O Soldado Almeida seria um básico, segundo li na lista dos mortos da guerra do Ultramar... O José Bebiano dizer que ele era um ex-comando... Esperemos que ainda apareça alguém, da CART 2742, que nos dê uma versão mais detalhada, exacta e contextualizada desta tragédia ocorrida num domingo de Páscoa, numa festa que era suposto ser de despedida e de alegria... É a isto que se chama a triangulação das fontes.

Em suma, partilho, contigo, da mesma dúvida céptica: um soldado, não operacional, não tinha acesso fácil a granadas de mão defensivas (que estavam, em princípio,  à guarda do cabo quarteleiro, tal como as granadas de morteiro e de bazuca); depois, não tinha habilidade nem sangue frio para pegar logo em duas, arrancar-lhe as cavilhas (com os dentes ?) e segurá-las, uma em cada mão, atravessar a parada e dirigir-se (calmamente ?) à secretaria... Fosse ex-comando, talvez tivesse treino para isso... Será que, entretanto,  algum dos graduados o tentou desarmar ? Refiro-me ao Cap Figueiredo, ao Alf Félix e ao Fur Alcino...Aparentemente não há testemunhas desta cena fatal, passada na secretaria...

É bem possível que o Sold Almeida apenas tenha querido chamar a atenção para o seu caso, ou simplesmente protestar, julgando-se vítima duma clamorosa injustiça... A história das amêndoas bem pode ter sido a gota de água que fez transbordar o copo...

Também descarto a hipótese de suicídio (bem como de homicídio deliberado)... Na tomada de decisão de um suicída, há vários factores (antecedentes e mediatos) a ponderar... Nunca há uma causa única, há um feixe de causas ou determinantes... Ninguém toma uma decisão repentina destas, mesmo quando sob o efeito de álcool ou drogas (o que até podia ser o caso)... E a haver suicídio, ele foi também um triplo homicídio...

Aparentemente, o Sold Almeida não tinha nenhum conflito com os dois milicianos que morreram, juntamente com o Capitão... O mais provável é que tenha havido uma tentativa de neutralizar o infeliz Almeida que, de resto, tinha todas as razões para viver, não para morrer: o conflito com Capitão era porque ele querir ficar na Guiné, depois da peluda...

A alegada incompatibilidade dessa manifestação de vontade com o RDM é uma interpretação (indevida) minha... Eu pensei que a comissão militar só acabava com o regresso à Metrópole e a consequente passagem à disponibilidade...

Quanto ao pedido que me fazes, para arriscar "uma interpretação psicológica  e sociológica para o sucedido" (sic), agradeço-te mas sai fora da minha competência como editor deste blogue. Não sou psicólogo, sou sociólogo e, em princípio, só gosto de falar do que estudo, investigo ou leio... O suicídio enquanto fenómeno social interessa-me. O suicídio, as tentativas de suicídio, outras formas de auto-mutilação (tiros no pé, no dedo indicador direito, etc.), o homicídio e outras formas de violência nos quartéis (ou no mato) merecem ser descritas, divulgadas, analisadas, contextualizadas, interpretradas no nosso blogue... 

Mas nesse caso ainda não temos informação suficiente para tentar uma interpretação que não seja baseada em ideias de senso comum (o que é de todo contra-indicado a um sociólogo)... Façamos votos para que apareçam mais camaradas com informação (inédita e válida) sobre o caso da "Páscoa Sangrenta de Fajonquito"...

Deixo-te aqui apenas uma dica sobre o suicídio, e que fui buscar à página da Sociedade Portuguesa de Suicidologia (Vd. Questões frequentes):

(...) Normalmente o suicídio é equacionado como forma de acabar com uma dor emocional insuportável causada por variadíssimos problemas. É frequentemente considerado como um grito de pedido de ajuda. Alguém que tenta o suicídio está tão aflito que é incapaz de ver que tem outras opções: podemos ajudar prevenindo uma tragédia se tentarmos entender como essa pessoa se sente e ajudá-la na procura de outras opções e soluções. Os suicidas sentem-se com frequência terrivelmente isolados; devido à sua angústia, não conseguem pensar em alguém que os ajude a ultrapassar este isolamento.

Na maioria dos casos quem tenta o suicídio escolheria outra forma de solucionar os seus problemas se não se encontrasse numa tal angústia que o incapacita de avaliar as suas opções objectivamente. A maioria das pessoas que opta pelo suicídio dá sinais de esperança de serem salvas, porque a sua intenção é parar a sua dor e não por termo à sua vida. A este facto dá-se o nome de ambivalência. (...)

Os modelos, mais propriamente sociológicos, avançados para a compreensão e a explicação do suicídio, tendem a chamar a atenção para o facto de, em contexto de guerra, poder haver menos factores de risco de suicídio (a não ser em casos de derrota ou de aprisionamento, por questões de honra, etc.). O combatente, integrado num grupo de combate, terá menos hipótese de suicídio, de acordo com a teoria de Durkheim: O aumento, real ou percebido, da ameaça sobre o grupo, vinda de fora - neste caso, do inimigo - leva a uma maior integração do indivíduo no grupo, e o consequente decréscimo do risco de suicídio...

No caso do Almeida, a questão de se saber se ele realmente era um soldado básico (e, portanto, menos apto, do ponto de vista "psicoténico") não é de somenos importância... LG
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Nota de L.G.:

(*) Vd. postes de:

6 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5938: A tragédia de Fajonquito ou as amêndoas, vermelhas de sangue, do domingo de Páscoa de 2 de Abril de 1972 (José Cortes / Luís Graça)

[Versão de José Cortes, recolhida ao telefone por Luís Graça:]

(...) (i) Havia um, soldado da CART 2742 que, uma vez terminada a comissão, queria ficar na Guiné como civil;

(ii) Ao que parece o Cap Art Carlos Borges Figueiredo manifestou, desde logo, a sua oposição à ideia,  contrária a todo o bom senso e sobretudo ao RDM;

(iii) Ter-se-á aberto um contencioso entre o soldado e o seu comandante, e envolvendo também o primeiro sargento;

(iv) A mulher do capitão havia mandado, da Metrópole, "dez quilos de amêndoas" para distribuir pelo pessoal da companhia; a distribuição foi feita pelo próprio comandante, no refeitório, no domingo de Páscoa, 2 de Abril de 1972;

(v) Quando chegou a vez do soldado em questão, o capitão terá passado à frente, num acto que aquele interpretou como de intolerável discriminação;

(vi) O soldado levantou-se, sem pedir a licença a ninguém, e saiu do refeitório. Foi ao abrigo (ou à sua caserna) e veio para a parada com "duas granadas já descavilhadas", em cada mão. Dirigiu-se à secretaria. O primeiro sargento ter-se-á apercebido, a tempo, das intenções do soldado, e não se aproximou da secretaria (ou fugiu, não sei);~

(vii) Dentro da secretaria, estava o Capitão, um alferes e um furriel. Ninguém sabe o que se passou lá dentro. O soldado deixou cair as duas granadas. O tecto da secretaria foi pelos ares. Lá dentro ficaram 4 cadáveres

Mortos, em 2/4/1972, todos do Exército, por acidente (sic), constam os seguintes nomes, na lista dos Mortos do Ultramar da Liga dos Combatentes:

- Alcino Franco Jorge da Silva, Fur
- Carlos Borges de Figueiredo, Cap
- José Fernando Rodrigues Félix, Alf
- Pedro José Aleixo de Almeida, Sold (...)


7 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5946: Fajonquito do meu tempo (José Cortes, CCAÇ 3549, 1972/74) (2): Evocando o Sold Almeida e o Fur Alcino, da CART 2742, que morreram, mais o Cap Figueiredo e o Alf Félix, na tragédia do domingo de Páscoa de 1972


[Versão do José Bebiano:]

 (...) José Cortes: O tempo passa e a tua imagem passou? Pouco tempo estive convosco [ CCAÇ 3549]. Lembro-me bem do Cap Patrocínio.

A história do soldado Almeida, ex-comando, e que com uma granada na mão matou-se e matou 1 cap + 1 alferes + 1 furriel... Eu, na altura do acidente estava em Lisboa.

Qual a razão para tal atitude? Pelo que me disseram, queria permanecer na Guiné e com uma granada na mão foi pedir para que não o enviassem para a Metrópole (?!)... Passou-se completamente.

Vou enviar uma foto com o falecido Alcino e com o Bebiano. A foto foi tirada em 26 Out 1971. Ainda por lá fiquei mais um ano.

Cumprimentos

P.S. - Estou reformado/aposentado desde 30 de Novembro. Ex-professor de Educação Física em Moura. (...)

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5713: Blogoterapia (139): Vencer os Traumas de Guerra (Joaquim Mexia Alves) / Recordar é viver (António Rosinha)



1. Mensagem de hoje, remetida pelo Joaquim Mexia Alves:

Caros camarigos editores

Mando link sobre notícia do jornal i, que nos diz respeito, antigos combatentes.


Estou tentado a dizer que a gente faz este tratamento virtual bem mais barato, completo e real na nossa Tabanca Grande, e digo-o por experiência própria!

Abraço camarigo para todos
Joaquim Mexia Alves



2. Comentário do António Rosinha ao poste de  26 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5712: Os nossos médicos (14): José Madeira da Silva, hoje otorrino, professor universitário, ex-Alf Mil Med, BART 6521, Pelundo, 1973/74)

Não tenho dúvidas que este blog da Guiné serve de terapia para quem já é reformado ou para lá caminha.


Com a idade, (eu, 71 anos),  exceptuando os almoços anuais da incorporação militar, ou da área profissional, já poucos amigos se encontram.

Recordar é viver.

Sem dúvida que pode ser um processo de evitar traumas de guerra e outros, acompanhar blogues como este do Luis Graça.

Antº Rosinha
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Nota de L.G.:

(*) Excerto (com a devida vénia):

(...) Depois do Ultramar, José Esteves Cabaço [, Angola, 1969/71,] nunca teve o mesmo emprego durante mais de três anos. Tem 62 anos, as paredes de casa com quadros que pintou nos últimos 10 anos - um deles uma tela comprida, com castanhos acobreados e cor de vinho, estilhaços de explosões e crânios. Não tem título, "é uma batalha". São memórias, "mas não é o que eu sinto". A frase resume: viveu quase 40 anos com stress pós-traumático de guerra, sem tratamento até que, há dois anos e meio, procurou ajuda.

O psiquiatra aconselhou-o a experimentar um programa de realidade virtual, parte de um projecto ainda experimental que está a ser desenvolvido pelo laboratório de psicologia computacional da Universidade Lusófona, em Lisboa. Aceitou, e dos 25 mil veteranos de guerra com stress de pós-traumático que se imagina haver em Portugal, está entre os poucos que sabem o que é melhorar da doença.

Os resultados científicos do projecto liderado pelo investigador Pedro Gamito começam agora a sair. Num artigo publicado no final do ano na revista "CyberPsychology & Behavior" demonstram que, num pequeno estudo-piloto - em que participou José Esteves Cabaço - a realidade virtual reduz os sintomas de ansiedade e depressão associados ao stress pós-traumático.

Regressar à guerra . A psicoterapia é considerada o tratamento mais eficaz das perturbações ansiosas e pressupõe que os doentes possam reviver as situações de trauma. Dentro dela, a realidade virtual permite uma exposição artificial às raízes do medo. (...)

Esta experiência conta com a olaboração  da APOIAR - Associação de Apoio aos Ex-Combatentes Vítimas do Stress de Guerra.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4222: Agenda Cultural (7): Os Traumas da Guerra Colonial, Museu de Arte Sacra e Etnologia, Fátima, 24/4/09 (J. Mexia Alves)

1. Mensagem do nosso camarada J. Mexia Alves, com data de 20 de Abril de 2009, reencaminhando uma mensagem do Museu de Arte Sacra e Etnologia de Fátima:

Meus caros camarigos

Para conhecimento da Tabanca, se assim acharem de bem.

Abraço camarigo do
Joaquim Mexia Alves





2. De: Museu de Arte Sacra e Etnologia
Data: 20/04/2009

Exmos(as). Senhores(as),

“Os Traumas da Guerra Colonial” é o tema da próxima tertúlia no Museu a realizar-se no próximo dia 24 de Abril, sexta-feira, pelas 21h00, no MASE -Museu de Arte Sacra e Etnologia, em Fátima.

Foram convidados especiais para esta tertúlia o médico psiquiatra Afonso de Albuquerque e o Armindo Roque da Associação APOIAR.

Esta tertúlia irá ter também a participação de quatro alunos do Centro de Estudos de Fátima que elaboraram o projecto ”Heróis esquecidos”.

“Tertúlias no Museu” resulta de uma parceria entre o Museu de Arte Sacra e Etnologia dos Missionários da Consolata e a Junta de Freguesia de Fátima, visando desenvolver mecanismos culturais para a comunidade local. A entrada é livre.

Sexta-feira dia 24 de Abril – 21h00

Museu de Arte Sacra e Etnologia
Instituto Missionário da Consolata
Rua Francisco Marto, 52 Apt. 5
2496-908 – FÁTIMA
Tel 249 539 470
Fax 249 539 479

E-mail: museuartesacra@consolata.pt
Blog: Museu de Arte Sacra e Etnologia
Sítio Instituto Missionário da Consolaado IMC: /
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Nota de CV:

Vd. último poste de 15 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4191: Agenda Cultural (7): 2º Ciclo de Conferências 'Memórias Literárias da Guerra Colonial', Espaço Grandella, Lisboa (José Martins)