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quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16592: Notas de leitura (889): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte X: O caso do médico militar, especialista em cirurgia cardiovascular, Virgílio Camacho Duverger´[I]: viajando até Conacri com nomes falsos... (Jorge Araújo)


Cuba > Havana > Janeiro de 1966 > Amílcar Cabral com Fidel Castro, em Cuba por ocasião da Conferência Tricontinental. Fonte:  Fundação Mário Soares > Portal Casa Comum > Arquivo Amílcar Cabral. (Com a devida vénia...)

Citação: (1966), "Amílcar Cabral com Fidel Castro", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43973 (2016-10-11)



 
Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974); doutorado pela Universidade de León (Espanha) (2009), em Ciências da Actividade Física e do Desporto; professor universitário, no ISMAT (Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes),
Portimão, Grupo Lusófona.


1. INTRODUÇÃO

Depois de dois pequenos desvios ao tema em título, mas complementares, tendo por protagonistas os comandantes Mamadu Indjai (o enigma dos seus ferimentos em combate) e Bobo Keita (os fundamentos que estiveram na base da sua saída da Mata do Fiofioli em maio de 1970) [P16506 + P16562], regressamos ao “trilho” anterior (passe a imagem metafórica) para retomar a divulgação de algumas das memórias transmitidas por três médicos cubanos que estiveram na Guiné Portuguesa [hoje Guiné-Bissau] em missão de “ajuda humanitária” ao PAIGC, na sua luta pela independência, nos anos de 1966 a 1969.

Esta narrativa, que é a décima, inicia a entrevista ao médico
militar Virgílio Camacho Duverger (1934-2003), a terceira no alinhamento do livro escrito em castelhano pelo jornalista e investigador Hedelberto López Blanch, uma coletânea de memórias e experiências divulgadas pelos seus diferentes entrevistados, a que deu o título de «Histórias Secretas de Médicos Cubanos» [La Habana: Centro Cultural Pablo de la Torriente Brau, 2005, 248 pp.] ou “on line” em formato pdf, em versão de pré-publicação. [Consulta em 30 de maio de 2016]. Disponível em: 
http://www.centropablo.cult.cu/libros_descargar/historiamedicos_cubanos.pdf ]

Recordo que,  por ser uma tradução e adaptação do castelhano, onde procurei respeitar as ideias expressas nas respostas dadas a cada questão, entendi não fazer juízos de valor sobre o seu conteúdo, colocando entre parênteses rectos, quando possível, algumas notas avulsas de reforço histórico ao que foi transmitido, com recurso ao vasto espólio disponível no nosso blogue e a outras referências retiradas da Net.

Esta decisão não quer dizer que não se possa acrescentar algo mais em cada situação ou facto concreto, antes pelo contrário, pois o objectivo supremo é ficarmos cada vez mais perto da verdade, ainda que neste conflito bélico se tenham enfrentado poderes com interesses antagónicos e avaliações diferenciadas, e daí o título com que baptizei este trabalho de investigação: “d(o) outro lado do combate – memórias de médicos cubanos”.


2. O CASO DO MÉDICO VIRGÍLIO CAMACHO DUVERGER [I]

Virgílio Camacho Duverger nasceu em novembro de 1934, em Guantánamo, cidade a oitenta quilómetros de Santiago de Cuba, esta fundada pelo conquistador espanhol Diego Velázquez de Cuéllar (1465-1524), em 28 de junho de 1514.

A sua cidade, Guantánamo, tornou-se célebre após a implantação, a quinze quilómetros de distância, da Base Naval do mesmo nome pertencente aos Estados Unidos da América, onde no seu interior se encontra a também célebre «Prisão de Guantánamo». Esta Base Naval, situada na Baía, igualmente como o mesmo nome, foi arrendada de forma perpétua pelos Estados Unidos, em 23 de fevereiro de 1903.

O seu percurso académico foi realizado entre Guantánamo e Santiago de Cuba, aonde concluiu o seu bacharelato em 1952.

Iniciou a carreira de medicina em Havana, nesse mesmo ano, concluindo-a em dezembro de 1960, depois de um interregno de dois anos por motivo de terem encerrado a Universidade na sequência do ataque ao Palácio Presidencial em 1957, e reaberta depois do triunfo da Revolução. Em julho de 1959 ingressa no Exército Rebelde como técnico de saúde.

Incorporou-se como médico militar e,  no dia seguinte a obter o seu diploma, foi mobilizado para Mariel, seguindo-se, depois, a transferência para La Limpia del Escambray como médico militar. Poucos meses depois é designado para fazer a pós-graduação no Serviço Médico Rural. Seguiu-se Minas de Frio, uma localidade existente na Serra Maestra, que era aonde funcionava a escola de recrutas [cadetes] que Ernesto 'Che' Guevara [1928-1967] havia fundado em 1958.

[Foto à esquerda: Ernesto 'Che' Guevara.  1960, mundialmente famosa foto de Alberto Korda (1928-2001)]

Como era militar, enviaram-no para o acampamento Pino del Água, na província de Oriente, que pertencia à Associação de Jovens Rebeldes, aonde só havia um estomatologista.

Nesse contexto, recebe um telefonema donde lhe pedem para se apresentar em Santiago de Cuba, onde o chefe dos Serviços Médicos em Oriente lhe coloca a necessidade de ir como médico para o Batalhão fronteiriço, em Guantánamo, que acabara de fundar-se. Foi o primeiro médico desse Batalhão aonde termina a pós-graduação, passando, em maio de 1962, para o Instituto Nacional de Cirurgia e Anestesiologia [INCA]. Conclui a cirurgia geral em 1964 (como militar) e transita para o Hospital Militar Dr. Carlos J. Finlay como especialista.

Em janeiro de 1966, durante a 1.ª Conferência Tricontinental, é contactado pelo doutor José Ramón Balaguer Cabrera, naquele tempo chefe dos Serviços Médicos das Forças Armadas, a quem lhe é colocada a possibilidade de ir cumprir uma missão ao estrangeiro mas sem lhe dizerem o seu destino, o que aceita.

Concluído um período de treino de cerca de dois meses, seguiu em finais de maio de 1966 até Conacri, a bordo do barco «Lídia Doce», na companhia de mais vinte e seis “internacionalistas cubanos”, grupo constituído por artilheiros, médicos e motoristas. Este contingente acabaria por ser considerado o primeiro a chegar em missão de ajuda ao PAIGC.

Seguem-se os primeiros desenvolvimentos revelados durante a entrevista dada pelo dr. Virgílio Camacho Duverger.

Entrevista com 22 questões [Parte1 > da 1.ª à 7.ª]

“Testemunhos antes da morte” [Cap. XII, pp. 154-165]

[As notas introdutórias sobre o entrevistado são da responsabilidade do jornalista Hedelberto López Blanch, justificando-se, pelo desenlace à posteriori, o título dado à entrevista: «testemunhos antes da morte»... Vão a itálico. A perguntas vão numerados, em romano. Optámos também pelo itálico na transcrição da respostas do entrevistadlo. Os parêntes retos são nossos.]

Virgílio Camacho Duverger, destacado
Cuba, Havana, Hospital Hermanos Ameijeiras.
À esquerda. monumento a Antonio Maceo.
 Fonte: Wikipedia
profissional de saúde, pessoa amável e respeitada que nasceua 29 de novembro de 1934 em Guantánamo, antiga província do Oriente, entrevistei-o numa tarde de janeiro de 2003,  num pequeno gabinete do Hospital [Clínico-Cirúrgico] Hermanos Ameijeiras, [hospital líder de Cuba, situado no centro de Havana, entre o centro histórico  e o bairro de Vedado], aonde mantinha uma consulta voluntária todas as terças-feiras.

[De referir, como curiosidade, que no terreno onde se ergueu este hospital, inaugurado em 3 de dezembro de 1982, aí funcionou durante um século aproximadamente (1852-1950), a Casa de Beneficência e Maternidade de Havana e, depois, até ao triunfo da Revolução Cubana, em 1959, o Banco Nacional de Cuba e mais algumas dependências, nomeadamente a bolsa. Estes primeiros serviços estavam instalados em edifícios que ocupavam somente metade da área e que o novo estado cubano decidiu ampliar a sua construção, transformando-os em hospital, considerado dos melhores centros, da sua classe, no mundo. Quanto ao nome do hospital, este recorda os três irmãos Ameijeiras, mártires da luta revolucionária, que cresceram ao redor deste edifício].

Estava eu muito longe de pensar que somente dez meses após ter conversado com ele, em novembro de 2003, Camacho Duverger falecerá, vítima de enfarte do miocárdio. Incrivelmente,  fora atraiçoado na sua própria especialidade de cirurgião cardiovascular, depois de ter operado e salvado centenas de pacientes.

Como meritória homenagem a este destacado académico e médico internacionalista, que cumpriu a sua missão na Guiné-Bissau, eis as suas últimas declarações para este livro que colige histórias inéditas de alguns dos homens que, como Duverger, cumpriram o dever patriótico e humano de salvar vidas em outras terras do mundo.



(i) Fale-me dos seus estudos 

e da sua carreira médica.



Fiz os primeiros graus no Colégio La Salle de Guantánamo, e parte do ensino secundário nessa mesma cidade e erminei-o em Santiago de Cuba, em 1952 [, aos 17 anos]. Dou início à carreira de medicina nesse mesmo ano, em Havana, e quando estou no quarto ano, fecham a Universidade, depois do ataque ao Palácio Presidencial em 13 de março de 1957. 

Retomo o curso depois do triunfo da Revolução, e em julho de 1959 ingresso, com outros companheiros, no Exército Rebelde como técnico de saúde. Era aluno de medicina e faltava pessoal para os serviços médicos. Colocaram-me no Centro de Cria Cavalar, em El Cotorro [um município situado a sudoeste da Província e cidade de Havana]. Concluo o curso  de medicina em 6 de dezembro de 1960.

(ii) Que fez depois?

Imediatamente incorporei-me como médico militar, pois até a esse momento era aluno de saúde, e no dia seguinte a obter o título, mobilizam-me para Mariel [um município da província de Artemisa, a quarenta quilómetros de Havana], porque era a mudança [20 de janeiro de 1961] de governo de Dwight D. Eisenhower [1890-1969] para John F. Kennedy [1917-1963]. 

[Eisenhower foi um general de cinco estrelas dos Estados Unidos, tendo participado na Segunda Guerra Mundial como Cmdt Supremo das Forças Aliadas na Europa, assumindo a responsabilidade de comandar e supervisionar a invasão do Norte de África durante a “Op. Tocha”, entre 1942 e 1943. 

[Assumiu, ainda, a planificação da invasão da França e da Alemanha, entre 1944 e 1945. Em 1951 tornou-se o primeiro Cmdt Supremo da OTAN (NATO). 

[Dois anos depois foi eleito o 34.º Presidente dos Estados Unidos da América, mandato que decorreu entre 1953 e 1961].

Mais tarde transfiro-me para La Limpia del Escambray como médico militar. Três ou quatro meses depois sou designado para fazer a pós-graduação no Serviço Médico Rural, cujo chefe administrativo no Ministério da Saúde era o doutor José Miyar Barruecos (Chomi), [n. 1932; sendo-lhe atribuídas responsabilidades relacionadas com o desenvolvimento da biotecnologia, a criação e o funcionamento da Escola Latino-americana de Ciências Médicas (ELAM) e da Internacional de Educação Física e Desporto. É professor de Mérito da Faculdade de Medicina Victória de Girón].

Colocaram-me, então, em Minas de Frio [localidade existente na Serra Maestra, pertencente ao município de Bartolomé Masó, na província de Granma], Era aí que funcionava a Escola de Recrutas [Ciro Redondo (cadetes)] que Ernesto 'Che' Guevara [1928-1967] havia fundado [em 1958]. 

O chefe da Escola era Aldo Santamaria Cuadrado [1933-2003]. Durante a minha presença, passam a direcção administrativa de Minas de Frio para o Ministério da Educação. Como eu era militar, enviaram-me para o acampamento Pino del Agua, na província de Oriente, que pertencia à Associação de Jovens Rebeldes. Quando lá cheguei, só havia um estomatólogo.

Muitos jovens que passaram por essa Escola hoje são generais. Por essa altura, recebo um telefonema donde me pedem para me apresentar em Santiago de Cuba. Ali o doutor Monreal, chefe dos Serviços Médicos em Oriente, coloca-me a necessidade de eu ir como médico para o Batalhão fronteiriço, em Guantánamo, que acabara de fundar-se. Fui o primeiro médico desse Batalhão. Termino a pós-graduação e passo, em maio de 1962, para o Instituto Nacional de Cirurgia e Anestesiologia [INCA], que era dirigido pelo doutor René Cirilo Vallejo Ortiz [1920-1969] (médico de Fidel de Castro).

Esse instituto surge porque Fidel [de Castro], depois da invasão da Praia Girón [conhecida em Cuba como a “Batalha de Girón”, na Baía dos Porcos, que fora uma tentativa frustrada de invadir o sul de Cuba empreendida em abril de 1961 por um grupo paramilitar de exilados cubanos anticastristas, a chamada Brigada de Assalto 2506], deu-se conta da falta de cirurgiões, anestesistas e de outras diferentes especialidades cirúrgicas. 

Ali surge também o INCA [Instituto Nacional de Cirurgia e Anestesiologia] e a especialidade de maxilofacial, que não existia. Concluo a cirurgia geral em 1964 (como militar) e transito para o Hospital Militar Dr. Carlos J. Finlay como especialista.

(iii) Quando e quem lhe propôs 
a missão internacionalista?

Em janeiro de 1966, durante a [1.ª] Conferência Tricontinental [realizada em Havana, Cuba, entre 3 e 15 desse mês, e onde esteve presente Amílcar Cabral (1924-1973), foi aprovada, em 12 de janeiro, a criação da Organização de Solidariedade dos Povos de África, Ásia e América Latina], contacta comigo do Hospital Dr. Carlos J. Finlay, o doutor José Ramón Balaguer Cabrera [n. 1932], naquele tempo chefe dos Serviços Médicos das Forças Armadas.



[Havana (Cuba), janeiro de 1966. Intervenção de Fidel de Castro durante a Primeira Conferência Tricontinental, onde marcaram presença 512 delegados, provenientes de 82 países, bem como de 64 observadores e 24 convidados. 

De entre as centenas de delegados, destacam-se: Amílcar Cabral [1924-1973], da Guiné-Bissau; Salvador Allende [1908-1973], do Chile; Luís Augusto Turcios Lima [1941-1966], da Guatemala; Cheddy Bharat Jagan [1918-1997], da Guiana [Inglesa]; Pedro Medina Silva [1924-2012], da Venezuela; Nguyen Van Tien [1923-2001], do Vietnam do Sul; e Rodney Arismendi [1913-1989], do Uruguai].

[Fonte: http://epoca2.lajiribilla.cu/2011/n514_03/514_03.html - com a devida vénia]

[vídeo da conferência em: https://www.youtube.com/watch?v=CVZoxudN_Rk]


[O doutor José Cabrera, chefe militar da Força Armadas de Cuba] coloca-me a possibilidade de ir cumprir uma missão ao estrangeiro sem me dizer em que sítio. Incorporo-me num grupo para treino. Eram três grupos: um de artilheiros, outro de mecânicos-auto e outro de médicos. Cada grupo tinha nove elementos

Depois nos reagrupámos numa casa dividida por classes e na supervisão dos grupos encontrava-se um companheiro que era da “segurança”, conhecido por Artemio [tenente Aurélio Riscar Hernández Artemio] (com ele existiram alguns pequenos problemas porque quis aplicar algumas teorias e passado algum tempo na Guiné-Bissau o substituíram pelo Cmdt Victor Dreke) [facto ocorrido em fevereiro de 1967]. 

Dos três grupos de nove cada um, saíram em avião até Conacri, três artilheiros e dois médicos que o PAIGC necessitava com urgência. [Estes cinco elementos chegaram à capital da Guiné-Conacri em 29 de abril de 1966, numa viagem entre Havana-Moscovo-Praga-Marrocos-Conacri, chefiados por Aurélio Artemio].

Estivemos nessa casa aproximadamente dois meses. Deram-nos algumas aulas militares e de português. Aí começámos a suspeitar de que iríamos para alguma das colónias portuguesas. Por coincidência irónica, a casa aonde nos colocaram estava perto da embaixada de Portugal e às vezes, quando saíamos, passávamos em frente dessa vivenda diplomática. 

[Portugal mantem relações diplomáticas formais com Cuba pelo menos desde 1929, altura em que o Chefe de Missão em Washington passa a poder também ser acreditado em Cuba.]

Ao concluir o intenso e curto período de treino, saímos um dia numas viaturas fechadas e imaginei que íamos a caminho de Mariel, e porque não nos dizem o destino.

(iv) Os seus familiares 
sabiam alguma coisa?

Para os nossos familiares, desde que abandonámos a casa, estávamos na União Soviética a fazer um curso. Recordo-me que vivia no município de Playa, em 41 e 30, e às vezes passava perto de minha casa, quando tinha alguma coisa de trabalho para fazer, e não podia nem falar ao telefone.


(v) Quando e por que meio 
viajou?

Saímos em finais de maio de 1966 [21], porque passámos o Dia das Mães em Cuba. Numa lancha grande fomos até ao alto mar e aí subimos para o barco «Lídia Doce», um navio mercante cubano. Fizemos a travessia [atlântica] com dificuldades, pois em duas ou três ocasiões estivemos à deriva por avarias. 

[De notar que o dr. Virgílio Camacho Duverger, médico especialista,  fez parte do grupo no qual estava incluído o dr. Domingo Diaz Delgado, o primeiro entrevistado deste projecto, e que conta a história da viagem com mais detalhes – P16224. A missão do dr. Duverger vai-se prolongar até finais de 1967, tendo regressado a Cuba em princípios de 1968. Esteve boa parte do tempo na base de Boké, mas também passou pela  frente leste e pela  frente sul. Estava no Boé quando o cmdt do PAIGC Domingos Ramos foi morto por um estilhaço de morteiro das NT, aquerteladas em Madina do Boé.]


(vi) Iam vestidos 
à civil?

Chegámos a Conacri vestidos à civil e sem armamento. Todos os que faziam parte do meu grupo eram militares, sem excepção. Levávamos passaportes falsos.

(vii) Qual era 
o seu nome?

Víctor Córdoba Duque, porque como nos informou o nosso instrutor de “segurança” as iniciais dos nomes dos passaportes coincidiam com as reais (os nomes eram escolhidos por nós) [Virgílio Camacho Duverger], para que se alguma vez surgissem referências em algum documento com as nossas iniciais poderiam levantar suspeita e desse modo descobrir a nossa identidade.

(Continua) (**)

 ____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 2 de setembro de  2016 > Guiné 63/74 - P16441: Notas de leitura (874): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte IX: o caso do clínico geral Amado Alfonso Delgado (V): Finalmente o regresso a casa, depois do pesadelo do Fiofioli, na margem direita do Rio Corubal... Este homem, hoje professor universitário (?), tem histórias para contar aos netos... (Jorge Araújo)

(**) Último poste da série > 10 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16584: Notas de leitura (888): Guiné-Bissau entre 1960 e 1990: um olhar de um oficial português (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16380: Notas de leitura (868): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte VI: o caso do clínico geral Amado Alfonso Delgado (II): Na margem direita do rio Corubal, na mata do Fiofioli: «¿Tú piensas aguantar la mecha esta?, olvídate, que no duras ni tres meses" / "Tu pensas aguentar esta ratoeira? Esquece, pois não duras nem três meses”...


Guiné > Região controlada pelo PAIGC, possivelmente no sul > Visita de uma delegação escandinava às "regiões libertadas" > Novembro de 1970 > Foto nº 25 > Progressão, na savana arbustiva, por meio do capim alto, de um grupo de guerrilheiros. Presume-se que as colunas logísticas do PAIGC tivessem segurança por parte da milícia ou do exército populares...

Fonte: Nordic Africa Institute (NAI) / Fotos: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a competente autorização do NAI. As fotografias tem numeração, mas não trazem legenda. Edição e legendagem; Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné).


Sexta parte, enviada a 7 do corrente, das "notas de leitura"  (*) coligidas pelo nosso camarada e grã-tabanqueiro, Jorge Alves Araújo. Trata-se de um extenso documento, que está a ser publicado em diversas partes (*), tendo em conta o formato e as limitações do blogue,


1. INTRODUÇÃO

Caros tertulianos: no P16357 (**) iniciámos a publicação da segunda de três entrevistas realizadas pelo jornalista e investigador Hedelberto López Blanch a médicos cubanos que estiveram na Guiné Portuguesa [hoje Guiné-Bissau] em missão de “ajuda humanitária” ao PAIGC, na sua luta pela independência.

Seguimos agora com a segunda de quatro partes em que o entrevistado continua a ser o dr. Amado Alfonso Delgado, médico de clínica geral mas com experiência em cirurgia. O seu depoimento global pode ser consultado no livro, escrito em castelhano, com o título «Histórias Secretas de Médicos Cubanos» [La Habana: Centro Cultural Pablo de la Torriente Brau, 2005, 248 pp. Disponível "on line"em formato pdf, numa versão de pré-publicação].

Nesta obra encontramos uma panóplia de outros relatos e experiências vividas exclusivamente por médicos cubanos em diferentes missões africanas como foram os casos passados na Argélia, no Congo Leopoldville, no Congo Brazzaville ou em Angola.

Porque se trata de uma tradução (com adaptação livre e fixação do texto em português, da minha responsabilidade), não farei juízos de valor sobre o conteúdo desta e das outras entrevistas: apenas coloquei entre parênteses rectos algumas notas avulsas de enquadramento sócio-histórico ao que foi transmitido, com recurso a imagens desse contexto retiradas da Net e dos arquivos do nosso blogue.


Foto acima: O nosso grã-tabanqueiro Jorge Araújo: (i) nasceu em 1950, em Lisboa; (ii) foi fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974); (iii) fez o doutoramento pela Universidade de León (Espanha), em 2009, em Ciências da Actividade Física e do Desporto, com a tese: «A prática Desportiva em Idade Escolar em Portugal – análise das influências nos itinerários entre a Escola e a Comunidade em Jovens até aos 11 anos»; (iv) é professor universitário, no ISMAT (Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes), Portimão, Grupo Lusófona; (v) para além de lecionar diversas Unidades Curriculares, coordena o ramo de Educação Física e Desporto, da Licenciatura em Educação Física e Desporto].


2.  O CASO DO MÉDICO AMADO ALFONSO DELGADO [II]

Sumariando as primeiras cinco questões abordadas pelo médico Amado Alfonso Delgado no poste anterior, é de relevar que foi por ter iniciado o Serviço Médico Rural em Realengo 18, em Guantánamo, e pela prática clínica desenvolvida no Hospital de Gran Tierra de Baracoa, para onde fora transferido em janeiro de 1967, que surge a oportunidade de cumprir uma "missão internacionalista", que ele desejava que fosse no Vietname mas que acabou por ter outro destino: a Guiné Portuguesa (hoje Guiné-Bissau).

Com vinte e sete anos de idade inicia a sua missão africana na véspera de Natal de 1967, na companhia de outro médico, voando de Havana até Conacri, com escala em Gander [Canadá], Praga, Paris e Senegal (, quase meia volta ao mundo!). Durante o primeiro trimestre de 1968 presta serviço médico no Hospital de Boké, na Guiné-Conacri (e uma das bases do PAIGC) na companhia de mais quatro clínicos cubanos: o cirurgião militar Almenares, um ortopedista, um analista de laboratório e um técnico de raio X.

Em abril de 1968 segue para a frente Leste, substituindo o seu companheiro Daniel Salgado, na base de Kandiafra, por este se encontrar doente com uma forte crise palúdica. Nesta base encontravam-se vinte combatentes cubanos. Entre maio de 1968 e setembro de 1969 [dezassete meses], movimentou-se nas matas do Unal Ina região de Tombali) e Fiofioli [Sector L1 - Bambadinca], com destaque para esta última frente, onde pensou não sobreviver, tantas foram as dificuldades por que passou.

Eis o relato de outros apontamentos revelados pelo doutor Amado Alfonso Delgado tendo por base o guião da sua entrevista.

A entrevista tem com 25 questões. Hoje apresentamos a resposta (em itálico) às  questões de 6 a 11 com a devida vénia ao autor, conhecido jornalista cubano Hedelberto López Blanch (n. 1947).


“Cirurgias com a ténue luz de fachos de palha ardendo” 
(Cap XI, pp. 136 e ss)


Entrevista com 25 questões [Parte 2 > da 6.ª à 11.ª]

(vi) Quando chegou 
à zona da guerrilha?

Em Conacri estive cerca de uma semana [em janeiro de 1968]. Levaram-me a uns armazéns do PAIGC e aí distribuíram-me roupas, dois pares de botas, arma, granadas e outras coisas. Os companheiros que iam deixar aquela terra africana perguntaram-me para onde ia com aquele carregamento, explicando-me que deveria levar ténis uma vez que era o mais adequado, pois que no interior da Guiné-Bissau iria ter de caminhar muito e quanto mais pesado pior. De qualquer modo, levei uma mochila bem carregada.

Num dia de semana fui transportado num camião que me levou, não sei durante quanto tempo, passando por várias aldeias até chegar a uma povoação de nome Boké, onde havia um hospital de rectaguarda do PAIGC, perto da fronteira com a Guiné-Bissau [, a sul]. Ali permaneci três meses [até meados de abril de 1968], na companhia de vários cubanos.

Aí conheci o [comandante] Victor Dreke (chefe da missão militar cubana) e o [tenente] Erasmo Vidiaux [Robles],  outro importante combatente cubano, quando ambos circulavam naquela zona. [Estes dois oficiais participaram, anteriormente, na missão cubana no Congo-Leopoldville (Belga), em 1965, comandada por Ernesto “Che” Guevara (1928-1967)].

Com permanência fixa em Boké, estavam [quatro técnicos de saúde]: o dr. Almenares (cirurgião militar de Santiago de Cuba que morreu alguns anos depois em Cuba com cancro da próstata), um ortopedista, um analista de laboratório e um técnico de raio X. Eu ia como médico de clínica geral, mas como tinha experiência de cirurgia ajudei o Almenares em várias operações, particularmente feridos de guerra.

(vii) Porquê e quando lhe destinaram 
a zona de guerra?

Um dia disseram-me que teria de ir para a frente Leste, pois havia que substituir o médico [Daniel] Salgado (morreu em 2000 de um cancro no fígado),  que tinha contraído paludismo e não se sentia bem. Saí em abril de 1968 num camião e depois de várias horas chegámos à fronteira entre as duas Guinés. Cruzámos um rio e chegámos a um acampamento denominado Kandiafara. Aí estavam vinte cubanos e onde passei vários dias até que chegou a ordem para avançar.

Designaram vários guerrilheiros guineenses para me levarem a um determinado lugar. recordo que andámos durante sete ou oito dias, em etapas de muitas horas. Foi muito duro, nunca tinha caminhado tanto mas sentia-me bem. Iam também algumas raparigas guerrilheiras que de vezes em quando ajudavam no transporte dos meus bens, colocando a minha mochila às suas cabeças.

Num desses dias entrámos numa lagoa [ou bolanha?] e nela caminhámos durante horas. Não sei como o podiam fazer mas conheciam perfeitamente o itinerário e o terreno, e em várias situações a água chegava-nos ao peito. A lagoa estava cheia de sanguessugas,  aconselhando-me a amarrar bem as calças e a levantar os braços bem alto para que não entrassem. Numa porção de terra, cercada de água, parámos para descansar e onde passámos a noite. Tinha um capote grosso e através deste os mosquitos picavam-me. Tive de me tapar completamente com uma manta. Pela manhã voltámos à caminhada.


Mapa da região de Cumbijã, no sul,  com a posição relativa de Unal. Infogravura de António Murta


(viii) De que se alimentavam?

Durante este trajecto comemos pequenas quantidades de arroz e em duas ou três ocasiões parámos em aldeias [tabancas] onde nos deram um pouco de farinha e carne. Comíamos pouco e, por isso, nos fomos habituando. Depois não me preocupava em alimentar-me, o mesmo não aconteceu no princípio, quando passava fome.

Volvidos quatro dias entrámos num lugar que me disseram ser a Mata de Unal, muito perigosa e onde o tiroteio era abundante. A menos de um quilómetro as tropas portuguesas batiam a zona com a sua artilharia. 

Continuámos a marcha até chegar a um rio grande que tinha cerca de dois quilómetros de largura. Era a junção dos rios Corubal e Geba [Xime] que iam desaguar no Atlântico. Nesse braço de mar existiam tubarões [?], hipopótamos e crocodilos, onde me disseram para ter muito cuidado porque um homem que havia caído aí recentemente nunca mais apareceu.

Fizemo-lo em canoas de troncos de árvores e informaram-me de que deveria tirar tudo do corpo caso a embarcação se virasse. Às vezes as canoas [pirogas] levavam umas trinta pessoas. Tentei chegar à embarcação mas não pude, porque era de estatura baixa. Os nativos eram altos, experimentados e podiam/sabiam andar no lodo, mas eu ao quarto ou quinto dia me enterrei até aos joelhos e não podia continuar. Naquele momento tiveram que me puxar com o meu equipamento: a arma e mais três carregadores, e me levaram até à canoa. A travessia foi feita durante a noite, uma vez que aí não existiam lanchas de patrulhamento nem aviação para nos atacar.

Disseram-me, ainda, que ali havia um problema grave, mais perigoso que a tropa [portuguesa], que era o “macaréu”. No princípio não entendi e deduzi que fosse um animal, até que um dia vi o dito macaréu, que era uma maré que entrava e subia, não sei quantas vezes no dia. Uma onda de vários metros procedente do mar e se apanhasse algo pela frente era certo que o virava e o fazia desaparecer. Eles sabiam quando podiam passar.


Guiné > Zona leste > Setor L1 > Xime > 1972 >  Imagem do “macaréu” no Rio Geba por onde circulou o dr. Alfonso Delgado no ano de 1969. Três anos depois, em 10 de agosto de 1972, a CART 3494 perdeu neste mesmo local, estupidamente, três elementos do seu contingente (faz quarenta e quatro anos): Abraão Moreira Rosa, da Póvoa de Varzim; Manuel Salgado Antunes, de Quimbres, Coimbra; e José Maria da Silva e Sousa, de São Tiago de Bougado, Santo Tirso (história deste naufrágio nos P10246, P13482 e P13493).


(ix) Como comunicava 
com eles?

Uma vez que os cubanos haviam chegado já há algum tempo, os guineenses tinham facilidade de aprender vários idiomas. Alguns deles falavam português, que era parecido com o espanhol, e ao fim de um mês eu já falava com eles. Durante a viagem de canoa, onde iam vinte guerrilheiros, seguia ainda outro cubano, que era um técnico de raio X, de apelido Pupo, e apesar de ser muito mais forte do que eu, era com dificuldade que resistia aquela caminhada.


(x) Nessa região encontrou-se 

com o médico que iria substituir?

Quando chegámos à outra margem [, direita, do Rio Corubal], encontrei um homem branco em calções, com gorro na cabeça e uma camisa. Olhou-me com alguma indiferença, perguntando-me: "Tu pensas aguentar esta ratoeira? Esquece, pois não duras nem três meses”. Perguntei-lhe porquê? Ao que me respondeu: “Tu verás como isto é”[No original: "¿Tú piensas aguantar la mecha esta?, olvídate, que no duras ni tres meses».]

Este homem era de facto Daniel Salgado, médico militar que também esteve na segunda Frente e a quem eu ia substituir. O que aconteceu depois foi que ele passou a ser o meu melhor amigo que tive e cuja amizade se prolongou em Cuba durante muitos anos até que faleceu. Como já sabia que eu vinha, preparou um macaco para o almoço. Ali esteve mais cinco dias até que partiu de regresso. Nesse lugar soube da existência de um hospitalito [enfermaria de colmo] na frente Leste, na região de Bafatá [Sector L1], que me disseram ser na Mata de Fiofioli [mapas abaixo].


Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Localização da mata do Fiofioli, zona de floresta galeria, situada na margem direita do Rio Corubal, entre Mangai e Concodea Beafada [P9080].


O "hospital de campanha" ["hospitalito"] onde esteve o dr. Delgado foi destruído pelas NT no decurso da grande Op Lança Afiada, que envolveu mais de 1300 homens entre militares e carregdores civis: vd. poste de 3 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11665: Op Lança Afiada (Setor L1, Bambadinca, 8 a 19 de Março de 1969): III Parte: Dias D+4, D+5, D+6, D+7: Pânico entre os carregadores devido aos ataques de abelhas, muitas helievacuações por desidratação e esgotamento, muitas toneladas de arroz destruído, muitas centenas de animais apanhados e consumidos, várias grandes tabancas (como Mangai, Ponta Luís Dias e Fiofioli), escolas, dois hospitais de campanha e outras instalações queimadas...

Essa zona do hospitalito [enfermaria] tinha quatro palhotas: uma para os feridos, com dois pequenos bancos de madeira, duas camas construídas com estacas e palha por cima; a cozinha; o depósito de géneros e a do médico, que se encontrava um pouco mais distante. Estava situado na confluência de dois rios [Corubal + Buruntoni?] surgindo depois um grande espaço de terra que ia ter ao mar [?].

Era nessa ponta onde nos encontrávamos, num plano mais alto, bastante fechado e com muitos animais [seria entre a Ponta Luís Dias e a Ponta do Inglês? De referir que o destacamento da Ponta do Inglês foi desativado em 7/8 de outubro de 1968, com a evacuação do pelotão aí instalado da CART 1746, regressando este à sua Unidade aquartelada no Xime, comandada pelo nosso saudoso amigo e camarada ex-Cap Mil António Vaz (1936-2015). A decisão da sua evacuação é atribuída a António de Spínola (1910-1996), então Brigadeiro, contemplada no plano de redistribuição das NT no terreno, iniciado após a sua chegada, em maio de 1968, ao CTIG - P10009].

O responsável pelo hospitalito [enfermaria] era um cabo-verdiano, enfermeiro, ao qual lhe pedi autorização para caçar. Primeiro, disse-me que não se podia gastar munições, mas depois indicou-me que só o poderia fazer um pouco mais distante por forma a não sinalizar a sua posição.

Levantava-me às cinco da madrugada, cozinhava o arroz, que era o pequeno-almoço, e depois fazia a visita, pois quase sempre tinha algum ferido. Operava quando havia combates, uma vez que dava a ideia de ser uma guerra planificada. Aconteciam emboscadas pré-estabelecidas, onde estavam os guerrilheiros com mulheres e filhos. Eles tinham muitas vezes critérios rigorosos na guerra. Em certas ocasiões ficavam num acampamento, apesar do opositor [o inimigo] saber da sua localização, e quando este bombardeava morriam alguns.


(xi) Como tratava os guerrilheiros 
no mato?

As estações do ano na Guiné-Bissau são duas: a época seca [, de novembro a abril] e a da chuvas [,de maio a outubro]. Durante a época seca passavam meses [seis] e não caía uma gota de água, na outra, em determinadas ocasiões, a chuva caía durante dias. 

Os guerrilheiros faziam a sua vida normal, debaixo de água [à chuva], e pela noite reuniam-se à volta de uma fogueira para se aquecerem. Nesta época a vegetação crescia e tapava todo o hospitalito [enfermaria]. Era uma época má para a caça e a única que se conseguia apanhar era algum macaco, embora se considerasse ser uma época boa para a guerra, pois os aviões não nos detectavam.

As avionetas de reconhecimento [DO 27] passavam com frequência e quando o faziam várias vezes seguidas, mudávamos o acampamento, porque a seguir acontecia, quase sempre, um ataque. 

Por outro lado, a época seca era boa porque tínhamos abundante comida, muita carne, mas o opositor te atacava muito mais, bombardeando a partir dos helicópteros [Alouette III – Heli Canhão, de fabrico francês, utilizados pelas NT nos três TO (imagem abaixo]. 


DO 27

Heli canhão

Os helis desarmados  realizavam essencialmente operações de transporte geral, reconhecimento, heli-assaltos e evacuações sanitárias. Os armados, chamados de “helicanhões”, tinham o nome de código “Lobos Maus”, estavam equipados com canhão lateral Mauser MG-151/20 (20 mm). O artilheiro estava sentado de lado e disparava o canhão pela abertura do portão esquerdo. (http://neloolen-modelismo.no.comunidades.net/alouette-iii-52-anos-na-fap, com a devida vénia)].

Continua…
___________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 8 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16370: Notas de leitura (865): O ensino da literatura da Guiné nas escolas portuguesas (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16304: Notas de leitura (858): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos: o caso do cirurgião Domingo Diaz Delgado, 1966-68, segundo o livro de H. L. Blanch (2005) - Parte IV: depois de 3 meses em tratamento do paludismo, em Conacri, o médico vai para a frente leste, em junho de 1967, regressando a casa em janeiro de 1968


Guiné > 1970 > s/l > Algures, numa enfermaria do mato, um "médico guerrilheiro" do PAIGC, seguramente cubano, faz um parto.  Uma das célebres fotos de Bara István o fotojornalista húngaro, nascido em Budapeste. 1942, que esteve 'embebed' com forças do PAIGC, no mato, em 1969/70. Ocorre-nos perguntar se médico. parturiente e criança (do sexo masculino) ainda estarão vivos. Oxalá /inshalla / enxalé!

Título da imagem em húngaro: "0084_Bara Istvan_Szules a dzsungelben 5, Guinea Bissau_1970.jpg [Em português, um nascimento no mato],

Fonte / Source: Foto Bara > Fotogaleria > Guiné-Bissau (com a devida vénia / with our best wishes...)

Estamos gratos a este conhecido fotojornalista magiar pelas imagens sobre a guerra colonial / guerra de libertação na Guiné-Bissau que disponibilizou na sua página. Isttvàn Bara continua manter, na sua página na Net, na sua galeria, esta e outras fotos que documentam bem a dura realidade da vida dos guerrilheiros do PAIGC e da população sob o seu controlo.  artimos do princípio que estas imagens são do domínio público.

Tentámos em tempos contactá-lo por e-mail, mas nunca recebemos resposta, para obtermos autorização para divulgação de mais fotos da sua fotogaleria. A Hungria, como se sabe,  é hoje um membro da União Europeia, e da NATO,  mas 1989 tinha um regime de partido único, e estava integrada no Pacto de Varsóvia. Penso que o fotojornalista de ontem se adaptou, com sucesso,  aos novos tempos e à economia de mercado. Na qualidade de diretor do MIT, e de fotojornalista com prestígio internacional, integrou em 1985 o júri do famoso prémio World Press Photo (mas ambém em 1986). Recorde-se que ainda estávamos em plena guerra fria.

Há apenas duas fotos, tiradas por ele, no Arquivo Amílcar Cabral / Casa Comum.


Quarta parte, enviada a 13 de julho último,  das "notas de leitura" coligidas pelo nosso camarada e grã-tabanqueiro, Jorge Alves Araújo. Trata-se de um extenso documento, que está a ser publicado em diversas partes (*), tendo em conta o formato e as limitações do blogue.  



Foto à esquerda:

O nosso grã-tabanqueiro Jorge Araújo: (i) nasceu em 1950, em Lisboa; (ii) foi fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974); (iii) fez o doutoramento pela Universidade de León (Espanha), em 2009, em Ciências da Actividade Física e do Desporto, com a tese: «A prática Desportiva em Idade Escolar em Portugal – análise das influências nos itinerários entre a Escola e a Comunidade em Jovens até aos 11 anos»; (iv) é professor universitário, no ISMAT (Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes), Portimão, Grupo Lusófona; (v) para além de lecionar diversas Unidades Curriculares, coordena o ramo de Educação Física e Desporto, da Licenciatura em Educação Física e Desporto].


1. INTRODUÇÃO

Caros tertulianos; eis a última de quatro partes em que foi dividida a publicação, no nosso blogue, da entrevista realizada pelo jornalista e investigador cubano Hedelberto López Blanch ao cirurgião Domingo Diaz Delgado, médico do primeiro grupo de clínicos cubanos chegados em junho de 1966 à Guiné Portuguesa [hoje Guiné-Bissau] para apoiarem o PAIGC na sua luta pela Independência.

Trata-se da primeira de três entrevistas organizadas pelo autor e que constam no seu livro, escrito em castelhano, com o título «Historias Secretas de Médicos Cubanos» [La Habana: Centro Cultural Pablo de la Torriente Brau, 2005, 248 pp.]. [Disponível "on line"em formato pdf, ].

Seguir-se-ão os depoimentos de Amado Alfonso Delgado (médico de clínica-geral, com experiência em cirurgia) e Virgílio Camacho Duverger (médico militar, especialista em cirurgia geral), onde cada um deles relata algumas das suas histórias de vida  passadas naquele contexto durante as suas missões,  de acordo o guião de entrevista utilizado pelo investigador. "(D)o outro lado do combate" é o título escolhido  por mim para explicitar o propósito da publicação deste meu trabalho neste espaço de partilha.

O livro merece uma leitura integral: o autor conseguiu localizar e entrevistar 15 médicos cubanos que estiveram, como "voluntários" em missões no estrangeiro, de "ajuda humanitária" e "solidariedade internacionalista", de 1963 a 1976, em diversos contextos africanos: Argélia, Guiné-Bissau, Congo Leopoldville, Congo Brazzaville  e Angola.

A primera brigada sanitária cubana chegou à  Argélia en maio de 1963: tinha 55 membros. incluindo 29 médicos- Por  tszões de "segurança de Estado", estas "histórias" tiveram que se manter "secretas".

Só a partir de 2001 é que o jornalista, investigador e escritor  H. L. Blanch [, foto à esquerda,] pode começar a trabalhar este tema. Doze dos entrevistados são apresentados como "médicos guerrilheiros"; os outros 3 (incluindo uma mulher) integraram a missão da Argélia, que não  era militar (nem, portanto, secreta).  Recorde-se que a Argélia tornou-se independente em 1962, depois de uma longa e sangrenta guerra contra a França.

Porque se trata de uma tradução (com adaptação livre e fixação do texto em português, da minha responsabilidade),  não farei juízos de valor sobre os diferentes depoimentos:  apenas coloquei  entre parênteses rectos algumas notas avulsas de enquadramento socio-histórico ao que foi transmitido,  com recurso a imagens desse contexto retiradas da Net e dos arquivos deste blogue.

2. O CASO DO CIRURGIÃO DOMINGO DIAZ DELGADO [IV]

Para melhor compreensão da contextualização deste último fragmento sobre o médico em título, sugere-se a leitura dos P16224, P16234 e P16285, primeira, segunda e terceira parte destas "notas de leitura" (*).

O primeiro poste está relacionado com a preparação para a missão africana, a viagem (secretíma) de barco até à Guiné-Conacri e os primeiros contactos com a estrtutura do PAIGC noterreno. O segundo tem a ver com a  explicação/caracterização do leque de actividades clínicas presentes no quotidiano de um médico naquela guerra de guerrilha, das duríssimas condições logísticas vividas em bases improvisadas, provisórias e de parcos recursos, ora socorrendo os guerrilheiros feridos nos combates, ora cuidando das maleitas apresentadas pela população sob o seu controlo. Por fim,  no terceiro poste,  o entrevistado fala das actividades operacionais em contexto de bigrupo durante os primeiros três meses de 1967 na região [frente] Norte [Sambuiá] até ao momento em que começou a ter vários problemas de saúde que o obrigaram a fazer uma viagem, já em março de 1967.  até Conacri para recuperação/restabelecimento. e onde ficou 3 meses.

Utilizando o mesmo instrumento já apresentado no P16234 [Suprintrep n.º 31, de 13 de fevereiro de 1971 - P2787] dá-se conta na linha azul (mapa abaixo) da geografia dos itinerários percorridos pelo médico Domingo Diaz, também designados por “corredores”, ligando as diferentes bases do PAIGC, durante os primeiros oito meses da sua missão [julho de 1966 a março de 1967].

A estrela verde corresponde aos itinerários utilizados durante o segundo período na região [frente] Leste, entre junho e dezembro de 1967, com destaque para as actividades desenvolvidas em Madina do Boé e Beli.


Mapa das regiões [frentes e bases do PAIGC]. A linha azul corresponde ao primeiro período da missão de Diaz Delgado  (de julho de 1966 a março de 1967), na Frente São Domingos / Sambuiá. A estrela verde corresponde ao segundo período (de junho a dezembro de 1967), na Frente Bafatá  / Gabu (Sul). Infogravura adapt. de Supintrep nº 31, fevereiro de 1971.

Se em junho de 1967 Diaz Delgado  vem de Conacri, onde esteve a ser tratado de uma crise de paludismo, para a região do Boé, não faz sentido a nossa referência, no poste anterior [P16285],  à Op Cacau, realizada em  4/6/1967, e em que morreu o cap inf José Jerónimo da Silva Cravidão, cmdt da CCAÇ 1585, na região de Bricama (Farim), justamente no dia em que fazia 25 anos... 

O médico cubano refere uma data anterior,  março de 1967, para o ataque das NT a Sambuiá,  na véspera de ser  evacuado para Conacri com paludismo, regressando ao fim de 3 meses... No período em que o Diaz Delgado esteve na Guiné, na frente norte, entre agosto de 1966 e março de 1967 e depois na frente leste, entre junho de 1967 e janeiro de 1968, não temos informação de mais nenhum comandante de companhia das NT morto em combate numa operação. O Diaz Delgado pode estar a querer referir-se a um alferes, substituto do comandante de companhia. Quem poderá ter morrido em março de 1967 no ataque à base de Sambuiá ?









Indice da obra. A versão em pdf não está paginada,  Hedelberto López Blanch: «Historias Secretas de Médicos Cubanos» [La Habana: Centro Cultural Pablo de la Torriente Brau, 2005, 248 pp. [Consulta em 30 de maio de 2016]. Disponível em: http://www.centropablo.cult.cu/libros_descargar/historiamedicos_cubanos.pdf. [A versão disponível em pdf,. embora integral, não está paginada; em papel a obra tem 248 pp, em versão digiral 147 pp.]


Capítulo 10 - Onde o tempo não se mede pelo relógio” (continuação). Transcrição da entrevista de Diaz Delgado, com as seis últimas questões [da 23ª à 28ª, identificadas por nós em numeração romana] (**)


(xxiii) Depois da recuperação em Conacri, 
aonde o colocaram?


Após um forte tratamento médico e com uma recuperação quase total, enviaram-me para a zona [frente] Leste. Esta região era um pouco mais tranquila do ponto de vista militar, embora se realizassem várias operações. Por exemplo Víctor Dreke [, o chefe da missão cubana, em Conacri] dirigiu um dos ataques a um quartel. Anteriormente [novembro de 1966] tinha-se verificado ali um combate importante onde mataram um dirigente do PAIGC, o comandante Domingos Ramos.

[Domingos Ramos foi morto em Madina do Boé, em 10 de novembro de 1966 (curiosamente o dia do meu 16.º aniversário), sendo considerado, por esse facto, um herói da Guiné-Bissau, uma vez que fez parte do grupo de pioneiros da luta de libertação, sob a liderança de Amílcar Cabral (1924-1973). Morreu ao lado do cubano Ulisses Estrada.Tem o seu nome ligado à toponímia e a instituições de ensino do país. O seu rosto figura em notas do Banco Central da Guiné-Bissau – exemplo da nota de cem pesos de 1983 e 1990. Tinha também um irmão na guerrilha, o Pedro Ramos – P16123].


[Imagem à esquerda: Efígie de Domingos Ramos, em nota de 100 pesos do Banco Central da Guiné-Bissau, emitida em 1990].


Para Domingo Diaz, a frente Leste era uma região onde se combatia, mas não com as mesmas características das do Norte. No Leste era uma zona mais isolada, com uma fronteira amiga, ou seja, a Guiné-Conacri.

Na zona de Madina do Boé morreu um companheiro cubano por uma úlcera perfurada ao comer umas folhas muito ácidas daquele lugar, que se chamam "foli" [também se diz "fole", com o fruto faz-se sumo]. Os nativos comem-nas para ter mais força e reanimarem-se, pois é muito ácida. 

A este companheiro se lhe perfurou o estômago e quando chega às minhas mãos está em agonia. Fiz tudo o que estava ao meu alcance para lhe conter a hemorragia, e,  como carecíamos de instrumentos cirúrgicos, tentámos transferi-lo para o pequeno hospital de Boké, na Guiné-Conacri, mas faleceu durante a viagem. Este companheiro foi sepultado ao lado da base aonde nos encontrávamos [no Boé].

[A morte deste cubano – o tenente Radamés Sánchez Bejerano – ocorreu em 19 de julho de 1967, cinco dias depois de um ataque de artilharia efectuado pelos guerrilheiros do PAIGC ao quartel de Madina do Boé, conforme depoimento do médico Domingo Diaz publicado no livro «La Historia Cubana en África – 1963-1991», de Ramón Pérez Cabrera, 2011, p. 152. (Imagem da capa, à direita),

[ Aí se refere que após concluído o ataque, e na sequência da retirada, o tenente Radamés Sánchez perdeu-se na mata durante dois dias e por efeito de ter fome comeu umas folhas muito ácidas que lhe provocaram lesões no estômago. Tinha vinte e nove anos. (…) Esta foi a segunda baixa no contingente cubano em missão na Guiné-Bissau, sendo a primeira a de Félix Barriento Laporté, ocorrida duas semanas antes, em 3 de julho de 1967, durante o ataque ao quartel de Mejo. Na retirada, o artilheiro cubano morreu ao ser atingido por uma granada de obus. Tinha vinte e cinco anos. (op.cit. p.152)].


(xxiv) Que características tinham 
os guineenses?

Recordo muitos nomes valiosos, de chefes e soldados muito valentes que estavam dispostos a morrer antes de um cubano cair nas mãos do inimigo. Às vezes ouve-se falar de pessoas que são mais ou menos combativas. Creio que a guerrilha mais combativa, decidida e valente que havia em África naquela época, era a integrada pelos homens dirigidos por Amílcar Cabral [1924-1973].


(xxv) Nas caminhas pelas matas 
teve experiências com serpentes?


Claro que sim. Atendi vários com mordidelas de serpentes e também vi morrer à minha volta seis nativos por esse motivo. Eram principalmente da população civil. 

Recordo um caso na Zona Leste, um homem que chegou em muitas más condições e lhe tinham feito um garrote na perna, a qual estava em muito mau estado, com muitas borbulhas e praticamente preta. Comecei a tratá-lo e eu tinha uma ferida no pé. Usava  uns chinelos de plástico [hoje, havaianas] que os naturais utilizavam muito e a que me acostumei,  a esse tipo de calçado. Não me lembrei que tinha essa ferida no pé e já havia visto morrer gente à minha volta por picadelas de serpente.

Para esse tratamento fazíamos um corte em cruz no lugar da picada, levantávamos a pele nessa zona e começávamos a drenar para que saísse o sangue. Todo esse líquido me ia caindo na ferida que eu tinha no pé. Não sabia se isso me podia fazer mal ou não. Tomei a decisão de colocar um garrote na perna e fazer-me uma ferida. Não tinha bisturi, senão um canivete, que não estava esterilizado, mas era tanta a adrenalina que não senti o corte, e comecei a drenar. Um companheiro cubano controlava o garrote. Não tínhamos soro antiveneno para aplicar nessa zona. Em cada quarenta e cinco minutos aliviava dez minutos o garrote para que o sangue fluisse.

Passaram as horas e não senti nenhum sintoma. Provavelmente tomei esta decisão muito apressada, mas como tinha visto morrer cinco pessoas não quis arriscar a ser mais a sexta. Os companheiros que estavam comigo eram gente competente, um grupo de tropas especiais de dez guerrilheiros, embora não estivessem acostumados às lides  médicas. Dois deles desmaiaram, mas depois outro ficou a ajudar-me até ao fim.




Um curioso mapa da Guiné, sem data nem origem... Veja-se como os cubanos viam o território. Os únicos rios sinalizados são o Farim e o Corubal, Madina (do Boé) tem a mesma importância que as outras povoações donde faltam topónimos importanets como Nova Lamego (Gabu), Teixeira Pinto (Canchungo), Mansoa, Xime, Bambadinca, Catio, Cacine... Ziguinchor (no mapa, grafado como Zinguinchor), no Senegal, e Boké e Conacri na repúblcia da Guiné são as três únicas referências, nos países vizinhos,  que convinha ficar... Fonte: H. L. Blanch (2005).



(xxvi) Quando e como regressou 
da Guiné-Bissau?


Regresso em janeiro de 1968, ou seja, estive nesta missão durante vinte meses e em zonas de combate cerca de dezasseis. Regressei em más condições. Quando parti tinha 80 quilos e saí da Guiné-Bissau só com cinquenta. Com o objectivo de me recuperar, levaram-me a Conacri onde embarquei no navio cubano Pinar del Rio, que ia com destino ao Congo Brazzaville. Esses sete dias de viagem, mais uma semana no Congo, carregando troncos de árvores, e outra semana para regressar à Guiné-Conacri para recolher os restantes companheiros, serviram para me restabelecer um pouco.

O meu grupo regressa com o que pensámos ser aquele que nos iria substituir, uma vez que quando tínhamos oito meses de actividade em território da Guiné-Bissau, chega o segundo grupo cujo objectivo era reforçar a missão. No final regressamos todos juntos.

Desse segundo grupo quero fazer menção ao doutor Raúl Currás Regalado, que esteve todo o tempo na Zona Sul da Guiné-Bissau. Posteriormente foi cumprir uma missão internacionalista em Angola, aonde participou na companhia do clínico cubano Martin Chang Puga em várias acções de guerra. Durante uma deslocação, o veículo aonde seguiam voltou-se e perderam a vida. Currás tinha características excepcionais e deixou dois filhos e a esposa. E Chang, que não esteve na Guiné-Bissau, era epidemiologista, e também deixou filhos e esposa. [Os dois são considerados "mártires" pelo reime cubano].


(xxvii) Como foi a chegada do grupo 
a Cuba?


Em Cuba fomos recebidos pelo então capitão Guillermo Rodriguez del Pozo, chefe dos Serviços Médicos das FAR [, Forças Armadas Revolucionárias], e seu adjunto, Ángel Fernández Vila. Chegámos a Mariel e fomos para um acampamento aonde durante dois dias nos fizeram exames médicos. Ali nos foram visitar o comandante Pedro Miret, designado por ministro das FAR  Raúl Castro [n. 1931, atual presidente de Cuba]. 

Sentimo-nos muito orgulhosos e reconhecidos pelas palavras que nos dirigiram, e a todos os companheiros que participaram nesta missão nos entregou uma pistola «Makarov», a qual guardo ainda. [Pistola semiautomática, de 9 mm, que entrou em 1951 ao serviço das forças armadas e políciais da antiga União Soviética, substituindo a obsoleta Tokarev].


(xxviii) Que fez ao regressar 
a Cuba?

Conclui a especialidade de neurocirurgia. Já tinha experiência desde quando era estudante de medicina ao prestar apoio nos Centros. Nesse tempo existiam somente três mil médicos em Cuba e os cirurgiões eram muito poucos. Antes de partir para a Guiné-Bissau fiz o internato com o sistema do Instituto Nacional de Cirurgia e Anestesiologia (INCA), criado pelo comandante René Vallejo para formar no imediato cirurgiões e anestesistas. Nesse ano de internato realizei operações de cirurgia superior e quando regressei da missão queria fazer neurocirurgia. 

Estive três anos e meio no Instituto de Neurologia e Neurocirurgia e graduei-me como especialista de primeiro grau nessa área. Depois estive oito meses no Hospital Joaquin Castillo Duany, no Oriente, como chefe dos Serviços de Neurocirurgia, e mais tarde transferi-me para o Hospital Naval como chefe da mesma especialidade, até 1979. Daí passei para o Ministério do Interior com a perspectiva da fundação do CIMEC [Centro de Investigaciones Médico-Quirúrgicas] em 1982, aonde trabalho desde o seu início como vice-director para a docência e a investigação.




Guiné > c. 1966//67 > s/l > Provavelmente base de Sambuia, em 1967... Da direita para a esquerda, os médicos Pedro Labarrere (falecido),  Domingo Díaz Delgado e Teudy Ojeda... O primeiro da direita era o chefe do grupo cubano da Frente Norte, o tenente Alfonso Pérez Morales (Pina). Fo anexa ao livro de H.L. Blanch (205). Reproduzida com a devida vénia...



Domingo Diaz Delgado - Nota biográfica (adapt por JA):

(i)  nasceu em 1936, numa povoação chamada Florencia, na província de Camaguey, mas foi registado em Arroyo.  Arenas, na província da cidade de Havana;

(ii) terminou o bacharelato no Instituto de Marianao,  em 1957;

(iii) começou a estudar medicina em 1959, devido a estar fechada a Universidade desde 1956, quando se agudizou a luta contra o ditador Fulgêncio Batista Zaldivar (1901-1973);

(iv)  em meados de 1958 foi detido pela ditadura e levado à Décima Estação de Polícia situada no El Cerro, em Havana; ali foi torturado durante vários dias, mas, por alguns esforços que foram desenvolvidos, foi libertado e saiu para o México;

(v) regressou ao país em janeiro de 1959, depois do triunfo da revolução castrista;  decidiu retomar os seus estudos, matriculando-se na Escola de Medicina.

(vi) em 1961, quando se funda a Associação de Jovens Rebeldes, passou a ocupar o cargo de secretário organizador na Escola de Medicina;

(vii) mais tarde, em 1962, aderiu à União de Jovens Comunistas;

(viii) desde os primeiros anos, trabalhou como interno  de cirurgia no Hospital Militar Carlos J. Finlay;

(ix) terminou o internato de cirurgia em 1965;

(x)  pertenceu ao grupo de médicos que subiu, em 14 de novembro de 1965,  ao Pico Cuba Turquino, a cuja graduação presidiu o Comandante-chefe Fidel de Castro (n. 1926) [tratou-se da primeira geração de médicos formados pelo regime: 400 médicos e 26 estomatologistas]

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Notas do editor:

(*) Postes a nteriores:

22 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16224: Notas de leitura (850): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos: o caso do cirurgião Domingo Diaz Delgado, 1966-68, segundo o livro de H. L. Blanch (2005) - Parte I: a partida de La Habana e os primeiros contactos com o PAIGC (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494, Xime-Mansambo, 1972/1974)

24 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16234: Notas de leitura (851): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos: o caso do cirurgião Domingo Diaz Delgado, 1966-68, segundo o livro de H. L. Blanch (2005) - Parte II: a vida dura nas base de Sara, na região do Oio (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494, Xime-Mansambo, 1972/1974)

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16285: Notas de leitura (856): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos: o caso do cirurgião Domingo Diaz Delgado, 1966-68, segundo o livro de H. L. Blanch (2005) - Parte III: onde se faz referência à possível operação das NT, no corredor de Sambuiá, onde terá morrido o cap inf QP José Jerónimo da Slva Cravidão, da CCAÇ 1585, em 4/6/1967 (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494, Xime-Mansambo, 1972/1974)


Guiné > 1970 > s/l > Algures, numa enfermaria do mato, um guerrilheiro do PAIGC ferido, em tratamento. Uma das célebres fotos de Bara István, o fotógrafo húngaro, nascido em 1942, que esteve 'embebed' com forças do PAIGC, no mato, em 1969/70. É hoje um vulgaríssimo fotógrafo comercial, mas contnua  manter,   na sua página na Net, na sua galeria, esta e outras fotos que documentam bem a dura realidade da vida dos guerrilheiros do PAIGC e da população sob o seu controlo,

Título da imagem em húngaro: "0076_Bara Istvan_Sebesult PAIGC harcos, Guinea Bissau_1970.jpg",,,

Estamos gratos a este conhecido fotógrafo magiar pelas imagens sobre a guerra colonial / guerra de libertação na Guiné-Bissau que disponibilizou na sua página. Partimos do princípio que estas imagens são do domínio público. Tentámos em tempos contactá-lo por e-mail, mas nunca recebemos resposta, para obtermos autorização para divulgação de mais fotos da sua fotogaleria.

Fonte / Source: Foto Bara > Fotogaleria > Guiné-Bissau (com a devida vénia / with our best wishes...)


1. Terceira parte das "notas de leitura" coligidas pelo nosso camarada e grã-tabanqueiro, Jorge Alves Araújo, e enviadas a 28 de junho último. Trata-se de um extenso documento, que está a ser publicado em diversas partes (*), tendo em conta o formato e as limitações do blogue.  Reproduzimos aqui a sua mensagem que serve de introdução:

Caros tertulianos:  apresento-vos o terceiro de quatro fragmentos em que foi dividida a publicação, no nosso blogue, da entrevista ao cirurgião Domingo Diaz Delgado, médico do primeiro grupo de nove clínicos cubanos chegados em junho de 1966 à Guiné Portuguesa [hoje Guiné-Bissau], para apoiarem o PAIGC na sua luta pela independência [, o outro lado do combate]. 

Trata-se de um trabalho realizado pelo jornalista e investigador cubano Hedelberto López Blanch e que consta no seu livro, escrito em castelhano, com o título «Historias Secretas de Médicos Cubanos» [La Habana: Centro Cultural Pablo de la Torriente Brau, 2005, 248 pp. Disponível na Net em versão preliminar, em formato pdf .

No que concerne aos clínicos que cumpriram a sua missão na Guiné são três as entrevistas publicadas nesse livro, cada uma delas relatando algumas das suas experiências, vividas na primeira pessoa por cada um deles, a saber: (i) Domingo Diaz Delgado (médico-cirurgião); (ii)  Amado Alfonso Delgado (médico de clínica-geral, com experiência em cirurgia); e (iii) Virgílio Camacho Duverger (médico militar, especialista em cirurgia geral). 

O conteúdo de cada fragmento respeita aquela ordem, assim como a estrutura dos guiões utilizados pelo autor nas três entrevistas.

Porque se trata de uma tradução e adaptação para português, não farei juízos de valor sobre os diferentes depoimentos, apenas colocando entre parênteses rectos algumas notas avulsas de enquadramento socio-histórico ao que foi transmitido com recurso a imagens desse contexto retiradas da Net e dos arquivos deste blogue (e, nalguns casos, da própria publicação, ou da versão disponúivel em formato pdf).


[Foto à esquerda:

 O nosso grã-tabanqueiro Jorge Araújo:  (i) nasceu em 1950, em Lisboa; (ii) foi fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974); (iii) fez o doutoramento pela Universidade de León (Espanha), em 2009, em Ciências da Actividade Física e do Desporto, com a tese: «A prática Desportiva em Idade Escolar em Portugal – análise das influências nos itinerários entre a Escola e a Comunidade em Jovens até aos 11 anos»; (iv) é professor universitário, no ISMAT (Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes), Portimão, Grupo Lusófona; (v) para além de lecionar diversas Unidades Curriculares, coordena o ramo de Educação Física e Desporto, da Licenciatura em Educação Física e Desporto].


2. O CASO DO CIRURGIÃO DOMINGO DIAZ DELGADO - Parte III

Para melhor compreensão da contextualização deste 3.º fragmento, referente ao cirurgião Domingo Diaz Delgado, sugere-se a leitura dos P16224  e P16234 (*): o primeiro relacionado com a preparação para a missão africana, viagem e inclusão na estrutura do PAIGC; o segundo de explicação/caracterização da paleta de actividades clínicas presentes no quotidiano de um médico naquela guerra de guerrilha, das condições logísticas vividas em bases improvisadas, provisórias e de parcos recursos, ora socorrendo os guerrilheiros feridos nos combates, ora cuidando das maleitas apresentadas pela população sob o seu controlo.

Em função dos itinerários percorridos a pé por Domingo Diaz, no interior do território da Guiné durante os primeiros seis meses da sua missão [2.º semestre de 1966], este teve a oportunidade de conhecer quase todas as bases do Norte, como sejam os casos de Liador, Sambuia, Naga, Maqué, Morés e Sará.

Considerando este facto, um militar das NT, cuja identidade se desconhece e utilizando uma cópia do mapa da Guiné existente à época, assinalou em 1968 a localização de bases dos guerrilheiros, de zonas de infiltração destes a partir dos países circunvizinhos, de áreas onde a acção da guerrilha era mais intensa e dos aquartelamentos das unidades militares portuguesas.

Dando conta desse levantamento, reproduzimos abaixo uma dupla imagem: o original retirado do P14391 e a cópia extraída do livro de Renato Monteiro & Luís Farinha, (1990),  Guerra Colonial - Fotobiografia. Lisboa. Publicações Dom Quixote, Circulo de Leitores e Autores. pp. 130/131, com a devida vénia. [ O Renato Monteiro é membro da nossa Tabanca Grande e passou pelo Xime e Enxalé,  ao tempo da CART 2520,  em 1970, sítios por onde também passarei dois anos depois...]



Mapa da Guiné (original e cópia). A cópia refere-se à localização de bases dos guerrilheiros, de zonas de infiltração destes a partir dos países circunvizinhos, de áreas onde a acção da guerrilha era mais intensa e dos aquartelamentos das unidades militares portuguesas, elaborado por militar das NT em 1968, e encontrado um ano depois num dos aquartelamentos no interior do território.

Fonte: Renato Monteiro & Luís Farinha, (1990),  Guerra Colonial - Fotobiografia. Lisboa. Publicações Dom Quixote, Circulo de Leitores e Autores. pp. 130/131. (Com a devida vénia...)

Continuação da entrevista com Diaz Delgado (no docuemto em pdf, a que tivemos acesso, as páginas não estão numeradas. mas o total da entrevuista corresponde, no pdf, ao cap X (pp. 65/78). O Diaz Delgado regressou a Cuba em janeiro de 1968.

Para ligar o presente texto com o anterior,  a questão n.º 17 (xvii, na nossa rnumeração romana) foi repetida. Tradução, fixação de texto, negritos,  itálicos e realces a cor são da nossa responsabilidade bem como todas as notas em parênteses retos.

Este documento merece ser conhecido e parcialmemte partilhado com os nossos leitores, e em especial os camaradas e amigos da Guiné.

Cuba terá mandado cerca de 60 "voluntários internacionalistas" para apoiar a luta do PAIGC, entre 1966 e 1974 (entre os quais 9 ou 10 médicos).  A mortalidade foi elevada (cerca de 15%), apesar das grandes preocupações de Amílcar Cabral com a sua segurança. Conhecemos pelo menos os nomes de 9 combatentes "internacionalistas cubanos" mortos ao lado dos guerrilheiros do PAIGC:  tenente Raúl Pérez Abad, Raúl Mestres Infante, Miguel A. Zerquera Palacio, Pedro Casimiro Llopins, Radamé Sánchez Begerano, Eduardo Solís Renté, Felix Barriento Laporte, Radamés Despaigne Robert e Edilberto González...

O primeiro a tombar em combate foi Félix Barriento Laporte, em 2 deJulho de 1967, no ataque ao quartel de Beli, a nordeste de Madina do Boé. 


(xvii) Tem outras memórias da estadia 
em Sará?

Um dia, pela madrugada, chegou à nossa tabanca (assim se chamam as aldeias ali, nas quais existem várias construções que podem ser 7, 8 ou 10) um miúdo que se chamava Kumba [imagem ao lado, a ser assistido pelo cirurgião Domingo Diaz], com aproximadamente quatro anos. Estava em boas condições gerais, mas com uma grande ferida na perna direita onde se tinha lesionado, vendo-se o osso e as artérias, pois foi na face anterior. Impressionou-me o estado anímico em que chegou, com naturalidade, sem uma lágrima, nem um sinal de dor.

(…) Foi tratado pelo ortopedista Teudi Ojeda e por mim. (…) Durante o tratamento sem anestesia, Kumba manteve-se igual, sem uma lágrima e sem manifestar dor. A esta situação já nos tínhamos habituado particularmente na população adulta.




(xviii) A que se deve essa resistência?

Creio que é um problema de cultura, de formação, das condições duras que se vive naquele país. Por uma razão de formação e de valentia, os habitantes desta parte de África controlam e resistem à dor. Fizemos operações de abdómem sem anestesia a pacientes conscientes, que não se queixaram. Isto também acontece nos países asiáticos como o Vietname. Doentes com uma perna partida são tratados e não expressam a dor. Resistem. Guardo uma foto de Kumba, quando o tratámos no acampamento,




(xix) Quantas cirurgias realizou 
nesse tempo?

A frio realizei umas quantas, em patologias que necessitavam como hérnias, inguinais, umbilicais, enguino-escrotais. Operei umas vinte hérnias com anestesia elementar que me proporcionava o doutor Pedro Labarrere, o clínico que às vezes fugia da anestesia, porque o sistema chamado éter rainha ou éter gota-a-gota, que se realiza primeiro com uma indução de cloro de etilo para que o paciente perca a consciência rapidamente e depois se aplicava o éter gota-a-gota. Este tipo de anestesia, que inclusivamente, nessa época, era muito frequente nos hospitais de Havana, provocava muita secreção, e depois teríamos de lhes dar atropina por administração parental, para a diminuir.

Não tivemos nenhuma complicação, mesmo sem a administração de antibióticos. Nesta região, por estarem virgens os organismos dos seus habitantes, com uma dose mínima de antibiótico se pode controlar facilmente qualquer infecção. Também vimos doentes com hérnias sujas que não se infectavam e que no início não o entendíamos.

A isto se adiciona o clima desfavorável com um calor insuportável no verão [, estação das chuvas], embora no inverno [, estação seca,] fizesse bastante frio. Apesar do grande calor, as feridas não se infectam. Esta situação era-nos favorável, porque a quantidade de antibióticos que dispúnhamos era mínima e vinham do exterior, com as consequentes dificuldades de transporte, uma vez que em Sará estávamos a cinco dias de caminho até à fronteira com o Senegal, cujo governo não ajudava a guerrilha do PAIGC, tornando muito complicada a obtenção de medicamentos através desta via.

Inclusivamente transportar guerrilheiros feridos para o Senegal era um problema e muitas vezes havia que fazer um grande percurso por terra, contornando toda a fronteira até chegar a Koundara, no Norte da República da Guiné, para depois os levarmos a Conacri, onde recebiam o apoio médico. No total, entre o ortopedista e eu, realizámos umas cento e cinquenta operações a civis e militares, incluindo hérnias, feridas de balas, fracturas e outras urgências.



(xx) Quando deixou o bigrupo? 

Com o bigrupo continuei a acompanhá-lo permanentemente pela Zona Norte, mas mais tarde comecei a ter vários problemas importantes de saúde como paludismo crónico, viroses, e uma lesão infiltrativa tuberculosa. Por essa razão o chefe da missão, que naquela altura era já o comandante Víctor Dreke (Moja), decidiu retirar-me até ao meu restabelecimento total.

Mas antes da saída e ainda na base de Sambuiá  [,  Zambulla, no original], quase todos os dias as tropas portuguesas nos atacavam com morteiros e canhões que caíam muito perto de nós. Essa base portuguesa ficava somente a quinze minutos a pé. Mas uma noite notámos que as canhoadas caíam mais longe, passando-nos por cima e sentindo o som, caindo muito mais longe. Eu estava com o chefe do grupo da Frente Norte, o tenente Alfonso Pérez Morales (Pina), surgindo-nos a dúvida de que estas canhoadas tão longe queriam dizer que as tropas estavam avançando por terra para nos surpreender. Esta nossa percepção estava certa, uma vez que pelas quatro da manhã uma companhia constituída por portugueses e naturais começaram o ataque.

Por sorte, os primeiros tiros foram do nosso lado, na sequência de uma ronda que estava a ser feita por dois guerrilheiros que, ao detectarem a presença do inimigo,  reagiram e acabaram por matar o comandante da companhia. [Possível referência à Op Cacau, em 4/6/1967, em que morreu o cap inf José Jerónimo da Silva Cravidão, cmdt da CCAÇ 1585, na região de Bricama (Farim), no dia em que fazia 25 anos, se bem que o médico cubano refira outra data, março de 1967, quando foi a seguir evacuado para Conacri com paludismo,, regressando ao fimd e 3 meses: no período em que o Diaz Delgado esteve na Guiné,  na frente norte, entre agosto de 1966 e janeiro de 1968, não temos informação de mais nenhum comandante de companhia morto em combate numa operação] (**).

Por outro lado, as tropas portuguesas reagiram ao fogo e praticamente devastaram todas as palhotas da base, onde conviviam os guerrilheiros com a respectiva população. Só tive tempo, pois ouvia a fala dos atacantes, de dar uma volta à minha cama (recordo que estava com uma crise de paludismo) e rastejar até desaparecer no meio das explosões das granadas de morteiro e dos disparos. Aquilo transformara-se num inferno.

Mas, como quase sempre sucedia, quando havia tiros de resposta, não avançavam, pois não estavam dispostos a combater. Esta base era dirigida por Campané, um homem muito valente e que se bateu com afinco detendo o ataque. Certo é que, se [as tropas portuguesas] têm avançado,  não teria ficado nada.

Na rectaguarda do acampamento passava um rio no qual entrei com água pela cintura cerca de três horas, embora as balas me passassem por cima. De qualquer maneira mantinha a pistola, pois o meu desejo era de nunca ficar prisioneiro.

Posteriormente começaram a sobrevoar a zona alguns helicópteros, baixando para recolher os mortos e os feridos. Passava do meio-dia, regressei à base que estava completamente destruída e não pude recuperar nenhum dos meus bens, nem tampouco os ténis. Este tipo de calçado era mais aconselhável para aquele contexto, pois como tínhamos de atravessar muitos rios e riachos, secavam mais rápido que as botas e eram mais leves.




Guiné > Região do Cacheu e região do Oio > Os nossos aquartelamentos junto à fronteira com o Senegal e a Frente (do PAIGC) São Domingos / sambuiá. Fonte: SUPINTREP nº 31, fevereiro de 1971.


(xxi) Quando saiu para a República da Guiné?

No dia seguinte ao do ataque a Sambuiá,  inicio a viagem pelo mesmo caminho por onde tinha entrado havia oito meses [a povoação de Yiriban, rumo a Ziguinchor]. Isto aconteceu em março de 1967. Volto a Conacri onde permaneci cerca de três meses em recuperação. O comandante Víctor Dreke, que era o chefe da missão militar cubana, deu-me um apoio muito bom.



(xxii) Recorda outros factos interessantes da sua primeira etapa no norte da Guiné-Bissau?

Tenho muitos para contar. Por exemplo, nas primeiras caminhadas que fiz perdi todas as unhas dos dedos dos pés. Ficaram pretas e caíram porque não estava preparado para esse desempenho, uma vez que os pés se mantinham quase todo o tempo húmidos e as travessias eram intermináveis. Depois de ter perdido peso, e com o treino diário, consegui ter mais resistência. Fiquei tão fraco que parecia uma “corda de violino”. Mas fiquei com o hábito de andar e em Cuba percorro cinco quilómetros todos os dias.

Noutra ocasião, quando me encontrava na base de Liador, também no Norte, recebi uma mensagem num pequeno papel escrito por Francisco Mendes,  um dos chefes militares da zona a quem chamavam de Chico Mendes ou Chico Té. Ele, atraído pelo triunfo da Revolução, foi o primeiro presidente da Assembleia do Poder Popular desse país e morreu depois num acidente. Nesse papel solicitava-me que fosse ver uma mulher que estava com sinal de parto e em dificuldade de parir.

Essa noite saí com outro companheiro e um guia até uma aldeia um pouco distante e nos perdemos. No trajecto cruzamos dois corredores com muito cuidado e com a arma na mão, pois por ali passavam regularmente viaturas com portugueses. Quando chegámos, encontramos uma mulher aparentando uns vinte e quatro anos (e com aquela idade era quase uma velha pois a esperança de vida, naquela época, era de quarenta anos). Estava no chão, rodeada de galinhas e uns porquitos e já havia parido um dos bebés, pois tinha gémeos.

Eu tinha bastante experiência em partos, porque durante a minha carreira fiz as práticas no Hospital da Maternidade Obrera [Operária], aonde realizei mais de uma centena. Como este bebé se encontrava emperrado, sabia que devia introduzir a mão para o retirar. Ao ver que o bebé estava em boa posição,  lá o conseguir extrair sem problemas.

A mãe tinha feito um quadro psiquiátrico e que me pareceu ter contraído tétano. Começou por dizer que o primeiro filho não era seu, mas só o segundo, e queria matar o primeiro, no que foi impedida pelos seus familiares. 

No entanto, administrei-lhe dez milhões de penicilina nos dias seguintes e o trismo, que é a contracção da mandíbula que se vê nos tétanos, cedeu. Ela sobreviveu, embora mantendo o quadro psiquiátrico.

Continua.
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Notas do editor:

(*) Vd. postes anteriors:

22 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16224: Notas de leitura (850): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos: o caso do cirurgião Domingo Diaz Delgado, 1966-68, segundo o livro de H. L. Blanch (2005) - Parte I: a partida de La Habana e os primeiros contactos com o PAIGC (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494, Xime-Mansambo, 1972/1974)

24 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16234: Notas de leitura (851): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos: o caso do cirurgião Domingo Diaz Delgado, 1966-68, segundo o livro de H. L. Blanch (2005) - Parte II: a vida dura nas base de Sara, na região do Oio (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494, Xime-Mansambo, 1972/1974)

(**) Vd. postes de:

24 de junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6638: Lista alfabética dos 24 capitães que morreram em campanha no CTIG, dos quais 10 em combate, todos comandantes de companhias operacionais (9 Cap QP, 1 Cap Mil) (Carlos Cordeiro)