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quinta-feira, 25 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25445: Os 50 anos do 25 de Abril (13): Testemunhos - Numa Das Malas Velhas Da Minha "Fundação" (António Inácio Correia Nogueira, ex-Alf Mil da CCAÇ 16 - CTIG, 1971 e ex-Cap Mil, CMDT da CCAV 3487/BCAV 3871 - RMA, 1972/74)

1. Em mensagem do dia 24 de Abril de 2024, o nosso camarada António Inácio Correia Nogueira, Doutor em Ciências Sociais, especialidade em Sociologia, ex-Alf Mil da CCAÇ 16 (CTIG, 1971) e ex-Cap Mil, CMDT da CCAV 3487 / BCAV 3871 (RMA, 1972/74), enviou-nos este artigo da sua autoria, publicado ontem no Jornal "O Despertar", de Coimbra:


TESTEMUNHOS

Numa Das Malas Velhas Da Minha "Fundação"

Regressei da guerra colonial há 50 anos, por isso é tão significativa, para mim, esta celebração do 25 de Abril. É muito tempo para quem continua vivo, é pouco tempo para quem quer esquecer os fragores dessa guerra injusta.

Na que era a casa do meu pai, aos Olivais, tenho um compartimento, que as minhas filhas apelidam, pomposamente, “Fundação”, onde guardo tudo o que constitui resquícios das memórias e das estórias da minha vida. Muitas vezes, inopinadamente, descubro relíquias que pensava já não existirem. Esta condicionante deve-se ao facto de ser muito desorganizado mas, ao invés, muito zelador como guardador de grandes e pequenos nadas.

Recentemente tive um convite da Escola do 1.º Ciclo de Fala onde estuda, no 4.º ano de escolaridade, a minha neta Lúcia, para comunicar algo às crianças sobre o 25 de Abril, principalmente, da minha experiência sobre esse dia memorável.

Para a sua preparação, dei-me ao trabalho de revisitar esse espaço mágico, na tentativa de encontrar material que pudesse entusiasmar a pequenada e incutir-lhe um pouco da importância do 25 de Abril, na construção da deles e da minha democracia e liberdade.

Encontrei uma mala velha, muito velha, que pressenti pesada. Tive receio de a abrir e de tirar tudo cá para fora. Ela podia conter, por ventura, esconder, os meus mitos, os ritos, os medos, os entusiasmos, as raivas, os desassossegos de então, enquanto jovem.

Obriguei-me a tal. Tirei quase tudo a monte cá para fora, espalhei pelo chão e verifiquei como o seu recheio estava envelhecido, amarelado pelo tempo, mas de valor incalculável. Os papéis, as imagens e as coisas agora velhas, que fui agasalhando à medida que lhes tocava, reportavam-me, com um misto de entusiasmo e melancolia, inenarráveis, à época e idade, tão jovem, de há tantos anos!

Fui encontrar o meu camuflado da guerra colonial, coçado pelas andanças de muitos quilómetros nas terríveis matas do Belenguerez na Guiné e do Maiombe em Angola. Primeiro, olhei-o indiferente, qual trapo que na altura detestava usar. Hoje, contemplei-o com benevolência e algum bem-querer.

Achei jornais e revistas diversos: o Diário de Lisboa, a Flama, a Vida Mundial, A Capital, A República, apresentando em grandes parangonas as primeiras notícias da Revolução de Abril; nas primeiras página, sempre o mesmo protagonista, Salgueiro Maia, o meu herói.

Os discos primeiros de José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Padre Fanhais e muitos outros cantores de protesto estavam por lá espalhados riscados de tanto terem tocado no meu velho gira-discos. Lá estava a Grândola do Zeca e O Depois do Adeus de Paulo de Carvalho. Estas duas canções foram as senhas para a saída das tropas revolucionárias.

As canções do Ary dos Santos e do Sérgio Godinho marcavam também a sua presença… estou a viver tudo como se tudo fosse hoje. Oiçam, oiçam, como eu, a voz e a música que saem da mala, ecoam cá fora:… só há liberdade a sério quando houver, a paz, o pão, saúde, educação, só há liberdade a sério quando houver liberdade de mudar e decidir… / Grândola, vila morena, terra da fraternidade, o povo é quem mais ordena dentro de ti, ó cidade… / e depois do adeus e depois do amor, e depois de nós, o adeus, o ficarmos só.

A medo e sem olhar, meti mais uma vez a mão, até apalpar o fundo da mala. Agora em silêncio, arvorei o punhado, veio prestes, um livro já velhinho, mil vezes sublinhado, A Praça da Canção, edição de 1969, de Manuel Alegre e um disco datado de 26 de Abril de 1974, Caxias, Portugal Ressuscitado, com a participação de Ary dos Santos, Pedro Osório, e vozes de Grupo In-Clave, Fernando Tordo e Tonicha.

Das duas preciosidades cantei exuberante, qual menino da revolução:
(…)
Mesmo na noite mais triste,
Em tempo de servidão,
Há sempre alguém que resiste
Há sempre alguém que diz não.

(…)
[Manuel Alegre]

Depois da fome e da guerra
Da prisão e da tortura
Vi abrir-se a minha terra
Como um cravo de ternura.

(…)
[J.C. Ary dos Santos]

Não quis tirar mais nada. Os meus 81 anos estavam exaustos de memórias tão vivas, tão presentes. Não vi o que restou por lá, mas abriguei lá dentro tudo o que trouxera para fora. Voltei a fechar a mala. Fui repousá-la no lugar que lhe pertencia, até que outro a abra. O que fará com aquelas memórias? Deita-as fora? Porventura, mas elas perdurarão na vida e para além da vida, sempre, sempre, em mim.

Fui cheio de ânimo, mas preocupado, ao encontro dos meus meninos.
As crianças à volta da sala de aula levantaram os cravos vermelhos, vestiram a farda, olharam os jornais, e prometeram que serão guardiães da liberdade e da democracia para sempre
Cantei com eles, levantei a bengala e senti-me, quase miúdo como eles o são.
Obrigado meninos. Vocês são o alento do meu fim de vida.

Com beijinhos para todos e também para a vossa professora Lúcia, de que muito gostei.
Até sempre!
Viva o 25 de Abril

António Inácio Correia Nogueira.
Jornal O Despertar

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Nota do editor:

Último poste da série de 24 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25439: Os 50 anos do 25 de Abril (12): Hoje, na RTP1, às 21:29, o primeiro de nove episódios: "A Conspiração", série documental realizada por António-Pedro Vasconcelos (1939-2024)

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25425: CCAÇ 675 - Guiné 1964 / 66 - Retalhos do nosso pós-guerra - II (Parte I) (Belmiro Tavares)


CCAÇ 675
Guiné 1964 / 66
Retalhos do nosso pós-guerra - II (Parte I)

Belmiro Tavares

2023/24

No início de 2023, divulgámos os “Retalhos I”[1] à maioria dos nossos companheiros. Em 2024, faremos nova comunicação aos nossos rapazes. Ninguém pode esquecer que “a Gloriosa” continua viva e de boa saúde.

A nossa CCaç 675 é aquela máquina! Sempre afinada… mas os seus filhos (somos nós) têm a obrigação de a alimentar. Sabemos que ela não é exigente: contenta-se com pouco! Basta um chisco de amor, de carinho, alguma dedicação e… ela rejuvenesce e está sempre de braços abertos para acalentar os seus filhos. Como bem sabeis, ela tinha, inicialmente, mais de 160 filhos; hoje somos apenas um pouco menos de cem – corrupção do tempo. Estes números até amedrontariam muita gente mas… a CCaç 675 nunca tremeu, ainda não treme nem há de tremer, nunca! Resta-nos uma consolação: os seus netos (filhos e outros familiares dos antigos combatentes) vão seguindo as peugadas dos seus antepassados. É verdade! Será – temos a certeza – um caso único! Um caso digno de estudo!

Já repararam na quantidade de pessoas (os descendentes e outros familiares dos antigos combatentes) que têm vindo a acompanhar-nos? Uns, com o devido respeito, ocupam o lugar dos pais ou avós que, obedecendo às rigorosas leis da vida, foram partindo. Filhos, irmãos, sobrinhos e netos têm vindo a tomar parte nas nossas confraternizações. É sintomático! Aquele bichinho, criado no meio de tantos sacrifícios, entre inúmeros perigos, “temperado” com água lodosa e salgada das bolanhas e com montes de pó das estradas de terra batida e das “picadas” – dizíamos – aquele animalejo não morre cedo! Por isso, nós afirmamos: a nossa CCaç 675, a menina dos nossos olhos, viverá enquanto nós quisermos. Fiquem com esta certeza: - chegada a nossa hora… nós partimos mas… ela fica!

Agora – escrevemos no princípio de 2023 surgiu mais um caso bicudo: não conseguíamos contatar a viúva do soldado n.º 2166, Eurico Leite Magalhães ou outro familiar para lhes entregar a lápide, pois ninguém, nem de noite nem de dia, atendia os telefones de que dispúnhamos. Pensou-se que ela teria ido viver com um dos seus filhos. Onde? Manuseando os nossos alfarrábios, encontrámos o telefone duma “loja de óculos” que pertencera ao nosso Magalhães e fizemos a ligação. A senhora que nos atendeu já tinha vendido a loja mas ficou com o telefone. Solicitámos-lhe, encarecidamente, que tentasse descobrir o contacto de alguém da família do nosso companheiro. Volvidos poucos dias, a senhora informou que o filho, Miguel Magalhães, era membro da direção do Maia Futsal e transmitiu-nos o telefone do clube.

Mais um caso resolvido… a contento!

Proclamamos, mais uma vez, que o povo português é extraordinário; também é único! Basta um pedido, apelando ao sentimento e todos se esforçam para ser prestáveis… sem pedir nada em troca.

Nós sabemos – muitos de vós sabem também – que o alf. Tavares correu “mundos e fundos”, procurando companheiros cujos paradeiros eram desconhecidos; sempre encontrou pessoas amáveis e prestantes que não olhavam a esforços para ajudar no que ele precisava. A única aberração foi a CRC de Guimarães que pretendia cobrar 30$00 (trinta escudos) por cada informação e um envelope selado e endereçado para enviar a resposta. Foram mandados “tocar tangos na sua rua”. Era o mínimo que se podia fazer.

Contactado o filho do nosso Magalhães, ele prometeu comparecer com a esposa e a mãe, na nossa confraternização, em Santo Tirso. Será mais um filho da CCaç 675 a tomar parte em futuras reuniões, em representação do pai. Por azar, não pôde comparecer mas veio a irmã com o marido, na companhia da mãe, a viúva.

Meus caros! Vencemos mais uma batalha mas, desta vez, os despojos são chorudos. Viva a gloriosa, CCaç 675!

Vamos citar os companheiros e os descendentes dos falecidos que compareceram na confraternização do norte, no dia 24 de setembro de 2023.

Em representação do sold. n.º 2326, Jerónimo Justo, compareceram:
- Uma filha, Natália Cardoso;
- Um filho, José Luis Justo;
- A nora, Maria de Lurdes;
- O neto, Ruben e a sua namorada, é filho da Natália;
- O neto, Tiago é filho do José Luis.

Em representação do sold. n.º 2166, Eurico Leite Magalhães, compareceram:
- A esposa, Virgínia;
- A filha, Ângela e o marido.

A doutora Teresa Mesquita e seu filho, dr. Francisco Mesquita, foram visitas frequentes durante cerca de 30 anos, sem qualquer falta, em representação de seu irmão e tio, o nosso companheiro fur. mil. Álvaro Mesquita, morto em combate. Como se lembrarão (ninguém o esquece) ele foi vítima fatal da explosão duma mina anticarro, na estrada de Bigene, entre Sansancutoto e Genicó Mandinga, no dia 28 de dezembro de 1964. Foi a primeira mina que nos fustigou… e de que maneira! Foi, entre várias, a de mais graves consequências. Este ano, por motivos aceitáveis não puderam comparecer.

A viúva e o filho do alf. Mendonça prometeram comparecer mas, à última hora, a cooperativa de Felgueiras marcou a vindima das uvas da sua quinta para aquela data. Foi pena! Mas aquele vinho é fabuloso! Há que preservá-lo!

O fur. mil Mouta e o sold. cond. n.º 2552, Baltazar (residentes em Albergaria-a-Velha e em Águeda, respetivamente) foram juntos até Santo Tirso.

O sod. 28, Martins (do morteiro) compareceu com a esposa e outro familiar.

O sold. 30, Monteiro Pinto, também do morteiro, trouxe consigo a esposa, o filho e a nora. Há alguns anos, por relevantes serviços prestados na organização duma confraternização do pessoal do norte, o Pinto foi “louvado, verbalmente” pelo alf. Tavares e, em consequência, foi promovido a “31”. Tratou-se de uma razoável progressão na carreira. A promoção, por tardia, não teve efeitos no “pré”. Provavelmente, teve-se em devida conta o facto de ele ter tentado (e conseguiu durante algum tempo) “ludibriar” a lavadeira e… mais não contamos.

O 1.º cabo corneteiro, n.º 2440, Gabriel A. Rosa trouxe consigo a esposa, um filho e dois netos. Partiram da Estrada da Beira, distrito de Coimbra e juntaram-se a nós em Santo Tirso.

O sold. n.º 412, Manuel Cardoso, não compareceu por causa do Covid; passou um mau bocado!

O alf. Tavares, na companhia da filha e do genro, partiu de Lisboa e fez “escala técnica”, em Sever do Vouga, a sua terra natal.

Por último, mas muito mais importante, o nosso sublime general, Alípio Tomé Pinto, deslocou-se, no dia 23, à região de Viseu para confraternizar com os antigos combatentes da sua companhia de Angola. No regresso de Viseu, o alf. Tavares preparou-lhe uma imprevista emboscada (se não fosse imprevista não era emboscada) mas proveitosa, na A25; foi feito prisioneiro e foi “obrigado” a jantar e a pernoitar em Sever do Vouga. Cremos que terá sido um bom castigo!

Já viram algo parecido? Um mísero alferes (na verdade ele vale por dois mas apenas em volume e peso) aprisionar um senhor general e obrigá-lo a comer e pernoitar naquele interior profundo da Beira Litoral, lá, onde o Judas talvez tenha perdido as botas?! Cremos que terá sido uma penalização de respeito! Ou terá sido um grande abuso! Na CCaç 675, até disto acontece!
Será que o abusador escapa duma valente e merecida “porrada”?!
Perdoai-lhe, Senhor, porque, por vezes, ele não sabe o faz! Será, talvez, fruto da idade!

No dia seguinte, domingo, 24 de setembro, seguiram para Santo Tirso; pelas onze horas, encontravam-se; no local de encontro.

Aproveitámos a oportunidade para entregar a lápide à família (viúva, filha e genro) do Eurico Magalhães, que faleceu, há alguns anos. A viúva brindou-nos com uma ligeira preleção cheia de carinho e agradecimento. Mais tarde, ela informou que aquela lápide não podia ser colocada na sepultura do marido; ele encontra-se num “gavetão” e ocupa o lugar cimeiro. Que iria colocá-la no jardim da sua casa.

No fim de contas, a família CCaç 675 vai rejuvenescendo a olhos vistos: uns vão partindo – por vontade de Deus! – mas outros vão entrando por amor aos familiares e por adoração à nossa CCaç 675, à qual os seus antepassados, honrosamente, pertenceram. Eles vão partindo! Mas fica a amizade férrea, pura, simples, desinteressada… eterna. Desta vez (mais uma vez) não houve missa pelos nossos falecidos, porque, em Santo Tirso, não há igrejas abertas depois das 11H00. Por outro lado, com a “chamada dos mortos” e a entrega da lápide, esquecemo-nos de rezar um Pai Nosso e uma Avé Maria; que Deus e os nossos mortos nos perdoem!

O almoço foi de boa qualidade e bem servido – até parecia que estávamos a comer em Binta! Tivemos direito a uma sala só para nós, onde passámos uma boa parte da tarde, em amena cavaqueira. Cerca das 18H00, os de mais longe (o nosso general e o alf. Tavares) foram os primeiros a partir.

Unidos pelo espírito da CCaç 675, mais uma vez, cumprimos a nossa nobre missão. Todos recolheram aos seus aposentos… sãos e salvos… e sem mais emboscadas. Na verdade, a emboscada é um vício que nos ficou dos tempos de Binta mas, agora, elas são mais meigas.

Nas emboscadas que os nossos adversários nos prepararam houve apenas um morto: o saudoso fur. mil Álvaro Mesquita. Na primeira emboscada, quando vínhamos de Lenquetó, tivemos dois feridos (o 2.º sarg. Marques e o 1.º cabo Marques); em boa verdade, este não era um dia bom para os Marques. Isto ocorreu no dia 4 de julho de 1964. Não recordamos outros feridos nas emboscadas, que os nossos adversários nos prepararam. Eles, graças a Deus, não poderão dizer o mesmo.

Recordemos a significativa emboscada da serração, na estrada de Farim. Esta terá sido a emboscada mais minuciosamente preparada pelo nosso ilustre capitão e foi superiormente executada pelo alf. Santos e seus “muchachos”. Os sete combatentes que compunham o grupo tombaram: cinco morreram na estrada; um apareceu morto entre o capim a 50 metros do local e o último (era chefe) morreu ao entrar no Senegal, com um tiro no rosto e outro nas costas. É caso para dizer que era muito grave voltar as costas à célebre CCaç 675, a Gloriosa.

Não temos palavras para narrar o espírito de união existente entre nós; essa amizade, como todos vós bem sabeis, foi gerada no meio dos maiores perigos, nas bolanhas de Binta e arredores, com alguns graves acidentes pelo meio, mas… pelo que estamos a reviver e a construir… podemos afirmar que valeu a pena. A CCaç 675 continua a ser única.

Passado o verão de 2023 voltaremos a colocar lápides nas sepulturas dos nossos mortos. A máquina não pode parar! Creiam que até já é um razoável “sacrifício” mas o dever a isso nos obriga!, principalmente, tendo em devida conta a nossa idade já provecta. Mas é uma satisfação enorme conviver com os descendentes dos nossos companheiros que já partiram. Todos deliram com a nossa atitude e a nossa presença benfazeja, porque se trata de um caso único, um grande amor. A nossa CCaç 675 foi e continua a ser um caso digno de estudo. Pela positiva, ela foi diferente de qualquer outra e assim continua. Acima de tudo, comove-nos o respeito, a gratidão e quase adoração dos “doridos” o que provoca em nós uma enorme satisfação do dever cumprido, uma alegria desmedida.

A verdade nua e crua é que na guerra aprendemos a matar mas o nosso mui ilustre capitão ensinou-nos algo mais e de suma importância: ensinou-nos a respeitar as vidas dos nossos adversários, principalmente, as dos que, sem armas, os acompanhavam ou a isso seriam obrigados. Para nós, matar seria uma inevitabilidade! Mas os homens da CCaç 675, ao contrário de muitos outros, não matavam desnecessariamente. Eliminávamos o adversário apenas quando não havia alternativa e, acima de tudo, se a nossa vida estava em jogo, correndo sérios riscos. Assim, a escolha não seria tão complicada quanto possa parecer. Nós não podíamos premir o gatilho por “dá cá aquela palha”. O nosso capitão, logo de início, determinou:
- Ninguém dispara sobre mulheres e crianças!
- Ninguém atira sobre homens desarmados!

Creiam que, em Binta, as regras, mesmo as internas, tinham de ser, escrupulosamente, cumpridas. Era mesmo isso que fazíamos. Todos sabíamos obedecer às ordens no nosso mui ilustre capitão.

O senhor general, Arnaldo Schulz, que foi, no nosso tempo, governador da Guiné, dizia que o nosso capitão já não era um “Pinto”; era já um galo… muito importante e… acima de tudo, duro de roer!

Pouco depois de ter sido determinado que não podíamos disparar sobre mulheres, crianças e homens desarmados, um soldado comentou com o seu alferes, seu comandante de pelotão, como segue:
- Oh meu alferes! Se nós matarmos as mulheres, as crianças, os homens desarmados e também alguns armados, em breve, a guerra acaba por falta de combatentes do outro lado – missão cumprida! Vamos para a santa terrinha!

Responde-lhe o alferes:
- Brinca com coisas sérias e verás o que te acontece! Sujeitas-te a um grande trambolhão!
- Não, meu alferes, isto é só brincadeira, entre nós!
- Creio que queres mesmo divertir-te e não pensas em transgredir. É bom que seja assim!

A conversa acabou ali.

Naqueles tempos, o mais importante era ir acordando, todos os dias, com o dedo grande do pé a mexer! Onde é que já ouvimos este dito tão interessante?! Para justificar o que atrás narrámos, acerca de poupar a vida de certas pessoas (infelizmente, ainda não foi inventada uma guerra sem mortos) vamos recordar a nossa ida (visita de cortesia) a Genicó Mancanho, na estrada de Guidage; naquele tempo – princípios de julho de 1964 – era ainda uma “picada”… de triste memória pelas terríveis dificuldades com que fomos, ali, mimoseados… até que, depois de muitos e duros sacrifícios, passou a ser estrada de… terra batida.

Esta operação ocorreu, no dia 10 de julho de 1964, poucos dias após o nosso badalado “batismo de fogo”. O cerco à aldeia foi parcial (cerca de ¾ de perímetro) para que, quem assim pretendesse, pudesse fugir em segurança… mais ou menos relativa. A parte não cercada ficou, propositadamente, voltada para o Senegal, que ficava ali perto. Fomos recebidos a tiro mas não houve mortos nem feridos em nenhuma das partes beligerantes. Os habitantes daquela pequena tabanca (aldeia) refugiaram-se no Senegal e lá viveram, miseravelmente, durante largos meses.

Anos mais tarde, já depois da independência da Guiné, aquela aldeia foi reativada; um dos casais para lá enviados (temos indicação que foram quatro) foi a nossa conhecida Dandan e o marido. Ela foi aprisionada em Mansacunda e não quis voltar ao “mato”. Chorou, copiosamente, durante o dia todo, pensando (temendo), certamente, que viria a ser comida pelos “caras pálidas”.

Há mais de trinta anos, uma africana da Guiné hospedou-se no hotel Dom Carlos, onde o alf. Tavares trabalha. Pela manhã, ela perguntou ao porteiro de serviço onde ficava a “rua não sei quê de farmácias”. Perguntaram-lhe se não seria a Rua da Sociedade Farmacêutica; eufórica, ela respondeu que sim. Explicaram-lhe onde ficava a tal rua e ela foi tomar o pequeno-almoço.

Logo, o Tavares entrou na sala e um rapaz que, estava ali, de serviço, e tinha cumprido tropa na Guiné, informou:
- Esta moça é da Guiné e sabe muito acerca da guerra.

O Tavares perguntou-lhe se podia comer, na mesma mesa. Para início de conversa, perguntou-lhe de onde era natural:
- Sou de Bissau!
- Nasceste mesmo, lá?
- Nasci no norte, perto de Farim!
- Em que tabanca?
- Genicó Mancanho, perto de Binta.
- A tua aldeia estava cercada de bananeiras, anormalmente, altas!
- Como “sabi”?
- Eu ajudei a destruí-la, porque fomos recebidos com fogo!

Ela comentou:
- É verdade! A tropa não nos matou a todos porque não quis; se a tropa fosse tão má como nos contavam, ninguém sobreviveria para contar como tudo aconteceu!

Todos fugiram, em segurança, para o Senegal. Pouco mais atarde, ela partiu com a família para Bissau. Cresceu um pouco e andou, durante anos, a carregar armamento e géneros alimentícios da Guiné Conacry para o Oio. Após a guerra, foi enviada para a Checoslováquia para tirar um curso de farmácia. Agora, veio a Lisboa para fazer um curso de atualização.

Durante a sua permanência no hotel, tomou sempre o café da manhã com o amigo, Tavares; afinal… nunca foram inimigos.

Recordemos outros casos:
- Dos trinta e nove prisioneiros que trouxemos de Lenquetó, apenas um foi abatido, porque nos conduziu, intencionalmente, à tremenda emboscada que o seu bi grupo nos preparou perto Caurbá; quando fugiu para se juntar aos seus subordinados, teria de ser baleado. Inevitável!

- O prisioneiro de Cufeu estava apavorado, temendo ser comido pelos soldados brancos, mas nada de mal lhe aconteceu.

- O padre de Gebacunda, uma povoação no norte do Oio, mesmo frente a Binta. Viveu connosco uma vida airada; pediu para ir ao Senegal para trazer as suas duas mulheres; foi e… não mais voltou! Pela aparência, ele seria mais abade que padre!

- Uma prisioneira da região Buborim viveu em liberdade total, no aquartelamento de Binta. Volvidos cerca de quinze dias, o nosso capitão perguntou-lhe se pretendia continuar em Binta ou voltar ao mato. Ela, dando uma no cravo outra na ferradura, alegou que todos a trataram bem, mas… os familiares estavam no mato e gostaria de voltar para junto deles… se o capitão de Binta autorizasse.

O nosso ilustre comandante de companhia ofereceu-lhe um saco de arroz e uns “panos”, informando:
- Os “panos” são para ti! O arroz é para a família! Diz ao pessoal que retire as abatis da via, porque o caminho é de todos! Se não obedecerem, destruiremos os vossos acampamentos e… não há mais arroz nem “panos” para ninguém!

Na verdade, eles retiraram as abatis pequenas e queimaram algumas das outras. Entenderam que a tropa de Binta deveria retirar as grandes. Se a estrada era de todos, o trabalho não deveria ser só deles.

Fizemos vários “prisioneiros” mas nenhum entrou na prisão – em Binta não havia disso – porque não era necessário. Também não eram obrigados a apresentações temporária à PSP, nem usavam pulseira eletrónica! Modernices!

(continua)

_____________

Nota do editor

[1] - Vd. post de 7 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24631: CCAÇ 675 - Guiné, 1964/66 - Retalhos do nosso pós-guerra - I (Belmiro Tavares, ex-Alf Mil Inf)

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Guné 61/74 - P25406: Em busca de... (324): António Gameiro, ex-alf graduado capelão, BCAÇ 2884 (Pelundo, 1969/71) (Manuel Resende, ex-alf mil, CCAÇ 2585, Jolmete, Pelundo e Teixeira Pinto, 1969/71)



T/T Niassa >Maio de 1969  A caminho da Guiné > Região do Cacheu >
BCaç 2884 >  O capelão António Gameiro celebrando missa a bordo.


Guiné > Região do Cacheu > Jolmete > CCaç 2585/BCaç 2884 > O capelão António Gameiro, celebrando a missa.

Fotos (e legendas): © Manuel Resende (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1,  Mensagem de Manuel Resende (ex-alf mil, CCaç 2585/BCaç 2884  Jolmete, Pelundo e Teixeira Pinto,  1969/71); régulo da Tabanca da Linha;

 
Data . segunda, 15/04/2024 , 22:44 
 
Assunto -  Identificação de pessoas

Caro amigão Luis:

Publicaste hoje na tua grandiosa página do Blogue Luis Graça & Camaradas da Guiné um assunto que li e reli. Falas do Capelão do BCAÇ 2885, o Sr. Padre José Torres Neves.(*)

Acontece que eu ando procurando há já muito tempo o meu capelão, o Padre António Gameiro.

Viajámos todos, o BCAÇ 2884 (o meu) e o BCAÇ 2885 no mesmo dia e no mesmo Barco.

Hoje estive a ler os ocupantes do Uíge no nosso regresso em fins de fevereiro de 1971 e consta dois Capelães: o Neves e o Gameiro.

Tenho procurado incessantemente pelo P. Gameiro. Já fui ao Seminário da Consolata em Fátima e não ha rastos dele.

Será que este camarada dele, o José Torres Nves, pois foram e vieram juntos,  saberá algo dele?
Num convívio disseram-me que tinha deixado de ser padre, não sei se é verdade. Mas gostava de saber dele.(**)

Será que o Padre Neves pode dizer algo? Não tenho contactos. Tenho algumas fotos dele, se for necessário.
Abraço
Manuel Resende


2. Resposta do nosso editor LG:

quarta, 17/04/2024, 09:06
 

Obrigado, Manel, não há dúvida que o António Gameiro esteve na Guiné como capelão. É nº 56 da lista de todos os capelães que passaram pelo CTIG. E o José Torres Neves é o nº 57. UM e outro foram e vieram na mesma dta  (vd.  poste P16636 (***)
 



O dr. Ernestino Caniço, nosso camarada e grande amigo do Zé Torres Neves (que está em África, já com , pode dar-nos uma ajuda. Vou reencaminhar para ele a tua mensagem. Mas, para já sugiro que façamos um poste com o teu pedido e uma foto dele, António Gameiro.

Fica bem. E até a um próximo reencontro na Tabanca da Linha. Luís


3. Rsposta do Ernestino Caniço (ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2208, Mansabá e Mansoa; Rep ACAP - Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológica, Bissau, fev 1970/fez 1971, hoje médico, a residir em Tomar) ), esta manhã, às 8:36:


Caros amigos, votos de ótima saúde.

Já enviei uma msg ao Padre Zé Neves (que está numa missão em África) solicitando alguma informação sobre o assunto.

Não tenho grande fé na resposta pois o Padre Neves não me tem respondido, não sei se pelo isolamento ou pela idade.

Se tiver alguma informação voltarei ao contacto.
Um abraço, Ernestino

4. Resposta do Manuel Resende, na volta do correio, às 16:12

Junto duas fotos que tenho do Sr. Padre (Capelão) António Gameiro.

Uma é no T/T Niassa que nos levou para a Guiné em 7 de Maio de 1969.

Outra tirada em Jolmete, numa das visitas que ele nos fez ainda em 1969. Ele estava no Pelundo com o Batalhão, tal como o médico Dr. Calado, e visitavam as Companhias.

Estou a tentar obter mais fotos dele, já comecei, mas ontem foi-me confirmado que ele abandonou o sacerdócio. Já tinha ouvido essa versão. Aguardemos por algo mais concreto.

Abraço aos amigos Luis e Caniço.
Manuel Resende

sábado, 13 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25382: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Bettencourt Rodrigues, Governador e Com-Chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte XVI: o golpe militar de Bissau


Lisboa > Base Naval do Alfeite > 30 de abril de 1974 > Da esquerda para a direita: Coronel António Vaz Antunes, Brigadeiro Leitão Marques, General Bettencourt (ou Bethencourt) Rodrigues e Coronel Hugo Rodrigues, todos oficiais afastados no Golpe Militar de 26 de Abril em Bissau. 

Fotografia obtida já no Alfeite, em Lisboa no dia 30 de Abril de 1974. Fonte: arquivo do filho do cor inf António Vaz Antunes, o engº Fernando Vaz Antunes (que vive em Mafra), e a quem agradecemos a gentileza .

Foto (e legenda): © Fernando Vaz Antunes (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Antiga página de rosto do  Arquivo de História Social > Instituto de Ciências Socias da Universidade de Lisboa (o link original foi descontinuado: ver aqui em Arquivo.pt)


"O Arquivo de História Social  (#) publica nesta página uma série de entrevistas sobre a descolonização portuguesa de 1974/1975, fruto de um projecto do Instituto de Ciências Sociais apoiado pela Fundação Oriente. Maria de Fátima Patriarca, Carlos Gaspar, Luís Salgado de Matos e Manuel de Lucena que coordenou, entrevistaram grandes protagonistas desse processo: por um lado, governantes, chefes militares, dirigentes do MFA e outros que então actuaram na Guiné-Bissau, em Cabo Verde, Angola e Moçambique; por outro lado, responsáveis metropolitanos ou íntimos colaboradores seus.

"Não procurando promover qualquer interpretação, chegar a juízos gerais ou encerrar os eventos abordados numa dada problemática, o grupo entrevistador foi seguindo os relatos e aceitando as visões dos seus interlocutores, embora não deixasse de lhes solicitar esclarecimentos por vezes incómodos." 


1. Voltamos aos depoimentos produzidos no âmbito dos Estudos Gerais da Arrábida  [A descolonização portuguesa > Painel dedicado à Guiné > 29 de Agosto de 1995 > Depoimentos de General Mateus da SilvaCoronel Matos Gomes,   José Manuel Barroso e Coronel Florindo Morais]

Iremos reproduzir alguns excertos das enrevistas para ficarmos com uma ideia mais viva, precisa e detalhada do que foi a 23ª hora do último com-chefe do CTIG, gen Bethencourt  (ou Bettencourt) Rodrigues, e  concomitantemente o que se passou nos dias 25 e 26 de abrl de 1974 em Bissau. 

Os antigos combatentes da Guiné, qualquer que seja o ano em que moram mobilizados para o território, de 1961 a 1974, têm o direito de saber como é que acabou a guerra.  E é bom lembrar que parte destes homens que arriscaram vidas e carreiras, na "conspiração" do MFA na Guiné-Bisau, já morreram, como é o caso do ten-gen Mateus Silva.

Sobre o "golpe militar de Bissau", iremos trancreer parte das entrevistas a:

  • Eduardo Mateus da Silva [1933-2021] : Engenheiro militar da Arma de Transmissões; chega à Guiné em Junho de 1972, como tenente-coronel; membro do MFA desde os primórdios; encarregado do governo da Guiné depois do 25 de Abril;
  • Carlos Matos Gomes (n. 1946): Oficial dos Comandos, comandante de Tropas Nativas Especiais; em Moçambique, participou na operação “Nó Górdio”; fez a sua missão na Guiné de Julho de 1972 a fins de Junho de 1974; pertenceu à primeira Comissão Coordenadora do Movimento dos Capitães na Guiné; foi membro da Assembleia do MFA;
  • José Manuel Barroso [n. 1943]  : jornalista, capitão miliciano na Guiné de Julho de 1972 a Maio de 1974; colaborador directo do general Spínola, na Guiné; membro do MFA da Guiné;
  •  Florindo Morais  [n. 1939] : só vai para a Guiné, como major, nos primeiros dias de Junho de 1974, sendo o último comandante do batalhão de Comandos Africanos na Guiné e regressa na véspera da independência. (Notas biográifcas dos organizadores dos Estudos Gerais da Arrábida

2.  O Golpe Militar de Bissau (##)

Entrevistadores: Manuel Lucena (1938-2105), Luís Salgado Matos (1946-2021)

Entrevistados, Mateus da Slva (1933-2021), Matos Gomes (n. 1946), José Manuel Barroso (n. 1943)

 [...] General Mateus da Silva: 

Há um aspecto que também é único no MFA da Guiné: é que o MFA em Lisboa, tinha principalmente capitães, muito poucos majores e não tinha os comandos das unidades. 

Na Guiné, porque o ambiente era totalmente favorável ao MFA, podíamos ter envolvido,  na conspiração, todos os capitães que quiséssemos, mas como não nos interessava isso, porque ia alargar muito, escolhemos os comandantes das unidades: envolvemos o comandante do Batalhão de Comandos, o comandante e o 2º comandante do Batalhão de Paraquedistas, o comandante da Polícia Militar, o comandante das Transmissões (as comunicações eram essenciais), o comandante da Engenharia, o comandante da Artilharia, e, quando quiséssemos carregar no botão e tomar o poder, era só querermos.

Luís Salgado Matos: 


Qual era o papel do general Bettencourt Rodrigues? Percebia o que se estava a passar? Sabia do que se estava a passar? Tinha alguém em quem tivesse confiança?  


Coronel Matos Gomes: 


Ele sabia muito pouco. Há uma história que demonstra a forma diferente do general Bettencourt Rodrigues exercer a sua função de comando, como comandante-chefe. O general Spínola falava com muita facilidade à hierarquia, até cá abaixo. Qualquer capitão podia muito facilmente obter acesso ao general Comandante-chefe. Portanto, estes circuitos funcionavam quase em ligação directa. 


Ao passo que o Bettencourt Rodrigues, até por questões de feitio pessoal e de formação militar e profissional, como oficial de Estado-Maior, a primeira acção que lhe corresponde como comandante-chefe é cortar essa ligação, e coloca um fusível na ligação, que era o seu Chefe de Estado-Maior, o coronel Hugo Rodrigues da Silva, passando a ser impossível um comandante de uma unidade falar com o comandante-chefe ou com outro operacional. Tudo passava pelo coronel Chefe de Estado-Maior. 


Para os comandantes das unidades, habituados a negociar concretamente com Deus Nosso Senhor, as coisas passaram a ser muito complicadas e a reacção é deste género: «Bom se ele não quer saber, não sabe e pronto!» E passa a saber muito menos coisas. Além de não saber aquilo que era o estado de espírito, passa a não saber também coisas [concretas] essenciais. 


José Manuel Barroso: 


 [...] Eu penso que o general Bettencourt Rodrigues (eu continuei a lidar com ele, não do modo como lidava com o Spínola, mas quase diariamente) tentou aguentar o que estava, não quis fazer grandes alterações, criar grandes problemas, grandes conflitos. Tentou aguentar o que estava em função das instruções que levava. 


Simplesmente, o que sucede, quando o general Bettencourt Rodrigues lá chega - e até pelo facto do general Spínola regressar à metrópole -, é que havia já um desencanto total em relação à evolução. 


Quer dizer, a própria retirada do general Spínola do terreno de operações (e do poder político na Guiné) significou, para a grande maioria dos oficiais, não só [para] os que conspiravam lá abertamente, quer fossem spinolístas ou não, mas também [para] os próprios milicianos, uma forma de dizer: «Isto não tem safa, tem que haver uma outra evolução qualquer». Ou: «O próprio Spínola já não tem qualquer hipótese e vai-se embora.» 


Pelo general Bettencourt Rodrigues, havia respeito, não era da «brigada do reumático». Mas ele era um corpo estranho.


General Mateus da Silva: 


[…] Bom, nós reunimo-nos na véspera [do 25 de Abril], estivemos até cerca da 1:00 hora, não conseguimos informação nenhuma de Lisboa, sobre se realmente tinha acontecido ou não alguma coisa. Nós tínhamos um centro de escuta no Agrupamento de Transmissões, que era óptimo. Escutávamos em permanência a Reuter e a France-Press, e tínhamos um tele-impressor ligado e apareciam as notícias em catadupa. 


Escutávamos todas as emissões de rádio dirigidas contra nós, desde a Rádio-Moscovo ao PAIGC, tudo. E todos os dias, era editado um documento, acho que era o Boletim Periódico de Rádio. São documentos que não sei se existem, se foram arquivados. E nós gravávamos, e transcrevíamos todas as emissões em português que eram dirigidas contra nós. Tínhamos as agências noticiosas e, antes de regressarmos a casa, nessa noite, avisei o oficial de dia, que era o alferes Rodrigues, para estar com muita atenção no centro de escutas, que podia acontecer qualquer coisa. 


Às 5 ou 6 da manhã, quando os tele-impressores da Reuter e da France-Press começaram a debitar as primeiras notícias, ele percebeu que realmente tinha acontecido qualquer coisa em Portugal. Telefonou-me logo para casa e eu avisei todos os outros pelo telefone e imediatamente soubemos o que se passava. Lembro-me de que o alferes Rodrigues até chorava a contar o que tinha acontecido. 


Isto foi a noite antes do 25 de Abril, e depois ia falar no dia 25 de Abril.


Quando nós tivemos as primeiras notícias do dia 25 de Abril, avisei o major Freire, que era o comandante da polícia e que também estava connosco (todos os comandantes das coisas importantes estavam envolvidos). 


E o major Freire diz-me assim: «Oh pá! Eu tenho de ir agora às 8 horas com o director da PIDE para a Ilha das Galinhas visitar os presos políticos. O que é que eu faço?» Eu respondi: «Oh pá! Só tens um remédio, vais!» 


Então, às 8 horas da manhã, ele foi para a ilha das Galinhas, com o director da PIDE. Passaram lá uma manhã estupenda, almoçaram, regressaram a Bissau e o director da PIDE não sabia rigorosamente de nada do que se estava a passar em Lisboa. 


Depois, reunimo-nos várias vezes para decidir o que é que fazíamos, o que é que não íamos fazer. E tentámos contactar com Lisboa, mas ninguém nos ligava nenhuma em Lisboa, estavam noutra. 


Ao fim da tarde, apareceu um telegrama do almirante Ferreira de Almeida, chefe do estado-maior da Armada, que,  apesar de ser um homem muito ligado ao regime, disse logo que, tendo o poder político mudado, a Marinha estava com o novo poder político. Tomou logo essa decisão, mesmo antes de ser substituído. 


O comandante naval em Bissau, comodoro Almeida Brandão, perante aquela mensagem, vai ao general Bettencourt Rodrigues, mostra-lhe a mensagem e diz-lhe: 


«Olhe, sr. comandante-chefe, passa-se isto… O chefe do Estado Maior da Armada já está com o 25 de Abril, o que é que o senhor quer fazer?» 


O Almeida Brandão também era um militar, digamos, democrata e aberto, e mandou uma mensagem para Lisboa a dizer que a Marinha na Guiné estava com o MFA. 


O general Bettencourt Rodrigues não tomava posição, estava à espera de receber instruções, e passou toda a noite assim. 


No dia 26 de Abril, logo de manhã, nós, este grupo que estava mais ligado, reunimo-nos no Batalhão de Paraquedistas, em Bissau, às 8.30h, a discutir o que havíamos de fazer. 


E foi nessa reunião que decidimos intervir e, digamos, fazer aquilo a que eu chamo um golpe militar em Bissau, que na altura não teria esta percepção, mas, a posteriori, considero que de facto foi um golpe militar. 


Discutiu-se quem ia ficar como encarregado do Governo, eu propus que fosse o secretário-geral, o dr. Libânio Pires, todos os outros acharam que devia ser eu, como militar mais graduado. Escolhemos o comodoro Almeida Brandão para futuro comandante-chefe, porque era o mais antigo e, além disso, tinha já tomado a decisão de mandar um telegrama para Lisboa, a dizer que aderia ao MFA. 

  [...] Às 9h (era feriado municipal em Bissau), fomos ao gabinete do comandante-naval, comodoro Almeida Brandão, convidá-lo a ser o nosso futuro comandante-chefe. Também tem piada porque, antes de destituirmos o governador, já estávamos a convidar o futuro comandante-chefe. 


O comodoro hesitou um bocado e disse que não podia aceitar. Nós até queríamos que ele também fosse logo connosco ao gabinete do Bettencourt Rodrigues. Recusou-se mas acabou por dizer que aceitava ser comandante-chefe. 


Em seguida, ainda passámos pelo Palácio do Governador mas ele não estava, estava no comando-chefe na Amura. Fomos então à Amura. Na altura, houve uma companhia da polícia militar que cercou o comando-chefe, e também havia tropas paraquedistas nossas que estavam ali à volta. 


Entrámos de rompante no gabinete do general Bettencourt Rodrigues, o ajudante meteu-se à frente e levou um pinhão que voou por ali adentro… A porta abriu-se de escantilhão e nós entrámos. 


Agora imaginem, do ponto de vista do general comandante-chefe, que vê um grupo aí de doze oficiais (###), entrarem-lhe assim pelo gabinete… 


Ele ficou logo desequilibrado psicologicamente. Quando falámos com o coronel Hugo Rodrigues da Silva, que era o intermediário de tudo com o governador, ele recriminou-nos por termos feito aquilo sem o informar primeiro. 


O brigadeiro Leitão Marques teve uma reacção perfeitamente despropositada, disse assim: 


«Meus senhores, hoje acabou a minha carreira militar, os senhores prendam-me, matem-me, fuzilem-me, façam-me o que quiserem.» 


Uma coisa perfeitamente dramática e despropositada. 


O general Bettencourt Rodrigues perguntou se estava preso, e este também é um aspecto que acho muito interessante. É evidente que ele estava pelo menos bastante coagido, mas eu disse:


 «Não, o meu general não está preso, simplesmente vai ao palácio, faz as suas malas e embarca hoje no avião para Lisboa.» 


E foi o que ele fez, mas muito civilizadamente. Eu tenho aqui fotocópias, está aqui um texto escrito mais tarde num jornal pelo general Bettencourt Rodrigues: 


«A perguntas minhas, aqueles oficiais acrescentaram que devia seguir para Lisboa nessa manhã, em avião que vinha de Luanda e sairia da Guiné em liberdade».


 Isto é dito por ele próprio e acaba com a polémica.  


O general Spínola já deu uma entrevista a dizer que o Bettencourt Rodrigues foi preso na Guiné, quando a verdade é que quem mandou prender o Bettencourt Rodrigues foi ele, Spínola. Porque quando Bettencourt chegou a Cabo Verde, teve de esperar por ligação para Lisboa, e teve de ficar um dia, ou coisa assim, e os elementos de Cabo Verde agitaram-se, falaram para Lisboa. E então veio um telegrama de Lisboa, da JSN [JUnta de Salvação Nacional ] , a dizer que o general Bettencourt Rodrigues devia regressar a Lisboa, sob prisão.

Do meu ponto de vista, foi o general Spínola, directamente ou alguém por ele, que prendeu o Bettencourt Rodrigues, o que tem a sua lógica, porque o general Spínola não podia com o Bettencourt Rodrigues, pois achava que tinha destruído a sua política da «Guiné melhor». [...]…

Luís Salgado Matos: 


Quando diz ao Bettencourt Rodrigues que não está preso, tem é de fazer as malas para voltar para Lisboa, o que é que ele responde?


General Mateus da Silva: 


Ele não respondeu, ele aceitou. Fez uma cena mais ou menos dramática, quase com as lágrimas nos olhos, a dizer: 


«Meus senhores, estão aqui os oficiais que mais considero na Guiné, os comandantes das principais unidades, fulano esteve ontem aqui sentado ao meu lado, a falar comigo, outro não sei que mais, eu não podia esperar jamais que me fizessem uma coisa destas, estou profundamente magoado.» 


Foi mais ou menos esta a reacção dele. […]


Coronel Matos Gomes: 


Só houve três oficiais que se solidarizaram com ele, o Leitão Marques, o coronel Rodrigues da Silva e, posteriormente, na sala de operações, o coronel Vaz Antunes. 


General Mateus da Silva: 


Eu acho que foi um mal-entendido, porque o Leitão Marques era um homem democrata e nós até gostaríamos que fosse ele a substituir o Bettencourt Rodrigues. Nós saímos do gabinete do general Bettencourt Rodrigues e dirigimo-nos à sala de operações. Como era feriado, o briefing era às 10h e, quando avança aquele grupo comigo à frente, na sala de operações, falando como as coisas são e se passaram, eu senti imediatamente que os coronéis e outros oficiais mais graduados do que eu me abriram alas e me cumprimentaram logo com toda a deferência. 


Entrei na sala de operações e sentei-me na primeira fila, no lugar do general Bettencourt Rodrigues. Antes de me sentar expliquei o que é que se passava e foi nessa altura que o coronel Vaz Antunes disse que não podia aceitar uma situação destas, que estava solidário com o general Bettencourt Rodrigues. E o Almeida Brandão virou-se para ele e disse:


 «Se está solidário, saia!» 


Já o Almeida Brandão a assumir-se como comandante-chefe. E depois teve lugar o briefing com toda a naturalidade. 


Às 3h da tarde, depois de uma grande informação pela rádio, tomei posse como encarregado do Governo. Antes de tomar posse, chegou ao nosso conhecimento a directiva da JSN, dispondo que nas províncias de governo simples o governador devia ser substituído pelo secretário-geral. Então pôs-se a dúvida se eu tomaria posse, ou daria posse ao dr. Libânio Pires e até à última hora estivemos em contacto com Lisboa, que acabou por aceitar: «Está bem, pronto então toma posse.» 


Isso foi de tal maneira que eu pedi ao José Manuel Barroso para me escrever o discurso que eu diria no caso de não tomar posse. Nunca o pronunciei, mas está aí escrito com a letra dele e pelo punho dele. Tomei posse, mas isso foi o próprio MFA da Guiné que decidiu, contrariamente à JSN. 


Manuel de Lucena: 

Da JSN, quem deu o aval à sua posse? 


General Mateus da Silva: 


Não foi ninguém, foi um intermediário, foi um dos oficiais que gravitava ali à volta, não me lembro exactamente quem foi. Aliás ouvia-se muito mal, as comunicações telefónicas eram muito más, confesso que não me lembro.  [...] (#)


(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, parênteses retos, notas, para efeitos de publicação deste poste: LG)

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(#) Atual endereço do sítio do AHS - Arquivo Histórico Social, ICS/UL

(##) Vd. também aqui o depoimento de J. Sales Golias [n. 1941] , ten cor > A descolonização da Guiné: Intervenção na Mesa Redonda levada a efeito pelo Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra / Fórum dos Estudantes da CPLP, Coimbra, 30 de Abril de 2005 

(###) O Jorge Sales Golias  fala em onze:

Lista dos Oficiais revoltosos (##);

TCor Mateus da Silva, Engº Tm | TCor Maia e Costa, Engº | Maj Folques, Cmd | Maj Mensurado, Pára | Cap Simões da Silva, Art | Cap Sales Golias, Eng Tm | Cap Matos Gomes, Cmd | Cap Batista da Silva, Cmd | Cap Saiegh Cmd (Africano) | Cap Ten Pessoa Brandão, Armada | Cap mil José Manuel Barroso
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Nota do editor:

Último poste da série > 12 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25374: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Bettencourt Rodrigues, Governador e Com-Chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte XV: as ondas hertzianas também chegavam a Nhala, Gadamael, Pirada, Canquelifá...

sexta-feira, 12 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25378: Consultório Militar do José Martins (76): Dia 16 de Março de 1974 - Parte I - Antes do dia


O nosso camarada José Martins (ex-Fur Mil TRMS, CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), em mensagem do dia 10 de Abril de 2024, enviou-nos um desenvolvido trabalho de sua autoria dedicado à primeira tentativa de derrube do regime vigente, ocorrida no dia 16 de Março de 1974, conhecida por Levantamento ou Golpe das Caldas, por ser protagonizada por militares do antigo RI 5.


Dia 16 de Março de 1974 - Parte I

Porta de Armas do extinto RI5
Foto com a devida vénia a heportugal

Antes do dia

Procurando atenuar, as carências em termos de quadros militares intermédios, fundamentais para a continuação da Guerra do Ultramar, o governo de Marcello Caetano permite, através do Decreto-lei n.º 353/73 de 13 de Julho, a passagem dos oficiais milicianos ao quadro permanente das armas de Infantaria, Artilharia e Cavalaria, mediante a frequência de um curso intensivo de dois semestres, consecutivos, na Academia Militar.

Quatro dias depois da aprovação do Decreto-lei supra citado, começam a surgir as primeiras contestações ao mesmo, primeiro quase em surdina, mas que rapidamente subiu de tom, com o aparecimento, no dia 20, de modelos para exposições, individuais, para exposições de contestação ao decreto-lei. 

Mesmo em África, apesar da guerra que se travava, em 29 de Agosto, reuniu-se em Bissau um grupo de oficiais, que seria o embrião do movimento, na Guiné. No dia seguinte, dia 30, surgem em diversos quartéis as primeiras reacções públicas de descontentamento dos oficiais do quadro permanente, provenientes da Academia Militar, face às disposições “permissivas” previstas pelo Decreto n.º 353/73 de 13 de Julho.

Perante a contestação, a 14 de Agosto de 1973, em Mafra, na comemoração do Dia da Infantaria, há o anúncio de que o Ministro do Exército, Sá Viana Rebelo (General, na reserva), encara o recuo do Decreto-lei, objecto da contestação.

A 17 de Agosto de 1973 é entregue, ao Director do Serviço de Pessoal, uma exposição manifestando o desagrado dos oficiais oriundos da Academia Militar.

A publicação do decreto-lei 409/73 de 20 de Agosto, corrige alguns aspectos do DL 353/73, referente às carreiras dos oficiais do Exército. Os oficiais superiores ficam de fora do regime geral, mas mantém-se para capitães e subalternos.

O ambiente vivido nas Forças Armadas, na sequência do Decreto-lei n.º 353/73 de 13 de Julho, leva a que, em 21 de Agosto, se reúnam clandestinamente em Bissau, cinquenta e um oficiais descontentes com as situações concretas de âmbito profissional, quer com a forma com que o governo insistia em perspectivar o problema ultramarino. Aprovam o teor da exposição a enviar às mais altas entidades das Forças Armadas, nomeadamente do Exército e ao Ministro da Educação. Esta reunião é considerada como sendo a reunião fundadora do “Movimento dos Capitães”.

A reunião dos oficiais, em Bissau no dia 25 de Agosto, decidem assinar colectivamente a exposição anteriormente aprovada, elegem uma comissão do “Movimento dos Capitães”, constituída pelos Capitães Almeida Coimbra, Matos Gomes, Duran Clemente e António Caetano, substituído, depois, por Sousa Pinto.
Dirigida ao Presidente da Republica, Presidente do Conselho, Ministros da Defesa, do Exército e da Educação Nacional, assim como ao Subsecretário de Estado do Exército, 51 oficiais do Quadro Permanente, sendo 45 capitães e 6 subalternos, assinam, em 28 de Agosto de 1973, o documento entretanto elaborado. O mesmo é assinado, entre outros por Manuel Monge. Jorge Golias, Salgueiro Maia, Matos Gomes, Duran Clemente e Otelo Saraiva de Carvalho.

Para preparar a reunião agendada, para o dia 9 de Setembro, houve um encontro em casa de Diniz de Almeida, onde estiveram presentes Ponces de Carvalho, Sousa e Castro, Bicho Beatriz, Vasco Lourenço, Rosário Simões, Marques Júnior e o anfitrião, onde ultimaram os preparativos para o encontro alargado.

Nessa reunião, com vários oficiais de todas as armas e serviços, realizada no dia 9, em Monte Sobral, perto de Évora, a maioria dos cento e trinta e seis militares presentes decide assinar um documento dirigido ao Presidente do Conselho, com conhecimento ao Presidente da Rehpublica. O documento seria posteriormente posto a circular para recolha de assinaturas, dando continuidade ao processo de contestação iniciado na Guiné em 21 de Agosto, reagindo aos Decretos-Lei n.º 353/73 e 409/73.

Em 10 e 12 de Setembro e à semelhança do que se passou na Guine em 28 de Agosto, foi a vez de se pronunciarem os oficiais do Quadro Permanente, nas então províncias de Angola e Moçambique. A 10, em Angola, 94 oficiais, assinam uma exposição que enviam ao Presidente do Conselho, em que realçam que a entrada em vigor dos Decretos-Lei 353/73 e 409/73, provocará «uma onda de descontentamento generalizada pelo menos na classe de oficiais do quadro permanente directamente afectados». No dia 12, em Moçambique, foi a vez de 107 oficiais em serviço, assinarem uma exposição de teor idêntico.

Reunião do Movimento de Capitães em Luanda, no dia 21 de Setembro, onde se decide a apresentação de um pedido individual de demissão de oficial do exército, caso se verifique a entrada em vigor dos documentos contestados. É constituído o Movimento dos Capitães em Angola, com uma comissão constituída pelos Capitães Vilas Boas, Sousa Guedes, Américo Moreno, Soares e Rui Tomás.

Em reunião de 26 de Setembro, o Conselho Superior do Exército reúne-se, tendo na agenda a discussão do “problema" dos capitães. Só o General Costa Gomes, Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, argumenta a favor da revisão dos decretos. Nesse mesmo dia, em São Bento, é entregue ao Presidente do Conselho, pelo Major Hugo dos Santos e pelo Capitão Vasco Lourenço, o documento assinado por 107 oficiais em serviço em Moçambique.

O Exército e a Marinha iniciam, em 1 de Outubro, os primeiros contactos. A partir desta data há contactos com os Capitão-Tenente (equivalente a Major) Costa Correia e Almada Contreiras, por parte da Armada, e pelo Exército os Majores Hugo dos Santos e Vítor Alves. Para elementos de ligação, pela parte da Marinha, o 1.º Tenente Vidal Pinho e o 2.º Tenente Pedro Lauret, a quem, mais tarde, se juntará o Capitão-Tenente Vítor Crespo. O posto de 1.º e 2.º Tenente corresponde a Capitão e Tenente.

Reunião, no dia 3 de Outubro, o Movimento dos Capitães com a presença de um representante de Angola, reúne-se em Lisboa, em que é sugerida a comissão representativa deverá rodar os seus elementos.

A 6 de Outubro, na reunião alargada do Movimento dos Capitães, em Lisboa e realizada em quatro locais simultaneamente, nas casas dos Capitães Rui Rodrigues, Mendoza Frazão, Antero Ribeiro da Silva e Diniz de Almeida. Além dos delegados da quase totalidade das unidades e estabelecimentos militares, assim como um delegado de Angola. Na troca de impressões, que duram até de madrugada, ficam três hipóteses:
i) Apresentação, individual e/ou colectivamente, a demissão de oficial;
ii) Ausência do serviço, mantendo-se fora do quartel ou estabelecimento;
iii) Manter-se no quartel ou estabelecimento, sem desempenhar as funções.

Vence a primeira hipótese e são elaborados dois documentos, para demissão individual ou colectiva, que a Comissão Coordenadora fará circular para serem assinadas, que devolvidas, ficariam à guarda da Comissão. Estes documentos nunca serão utilizados, pois os decretos serão revogados.

O Movimento de Capitães, a 7 de Outubro, consolida as ligações, a solidariedade e os canais de divulgação de informações, dentro dos quartéis, na metrópole e no ultramar. É eleita uma Comissão Coordenadora, que passa a liderar o processo de contestação.
Perante o desagrado e contestação dos Decretos-Lei, que têm vindo a ser referidos, em 12 de Outubro de 1974, a 1ª Repartição do Estado-Maior do Exército (Operações e Informações), remete, a todas as unidades do Exército, uma circular que anuncia que está a estudar, caso a caso, a situação de todos os oficiais abrangidos, pelo que, na prática, é suspenso. Nesse mesmo dia, a Comissão Coordenadora do Movimento dos Capitães, alerta para a necessidade de não haver desmobilização, pela suspensão dos decretos.

Porém, em 15 desse mês de Outubro de 1973, o Movimento dos Capitães de Moçambique, reúne-se em Nampula, decidindo prosseguir os objectivos do movimento, apesar da suspensão dos decretos-lei.
O Movimento dos Capitães, das então províncias de Guiné e Angola, reunidos nas cidades capitais das províncias, manifestam seguir os objectivos do movimento.

Para que não houvesse desmobilização, com o anúncio da possível revogação dos Decretos-Lei 353/73 e 409/73, a Comissão Coordenadora emite, em 19 e 23 de Outubro, dando nota das acções levadas a efeito pelo movimento e a necessidade de continuar; e a 29 envia, aos oficiais do movimento nos Açores, uma carta de esclarecimento sobre esta necessidade.

Por circular do Movimento dos Capitães, os oficiais do movimento são alertados que, por ter sido assinado um documento colectivo, os oficiais em serviço na Guiné poderão vir a sofrer consequências disciplinares. Estava-se a 1 de Novembro de 1973 e era Governador e Comandante-Chefe o General Bettencourt Rodrigues.

Em 4 de Novembro de 1973, os oficiais do quadro oriundos de milicianos, reúnem-se em Porto de Mós, elegendo uma comissão do respectivo movimento
Na reunião realizada, em 6 de Novembro de 1973, em casa de Mariz Fernandes, manifestam-se os primeiros atritos no âmbito da Comissão Coordenadora, e é discutida uma agenda de trabalhos, bastante longa. Foi então aprovado um regulamento da mesa, para utilização nas reuniões seguintes.

Nova reunião da Coordenadora, a 10 do mesmo mês, em que se acentua o conflito já existente.

Dois dias depois, na reunião do dia 12 em Aveiras de Cima, o conflito mantém-se: por um lado, Mariz Fernandes e Sanches Osório defendem que apenas se deve visar a solução dos problemas profissionais, enquanto, Vasco Lourenço e Dinis de Almeida defendem o avanço do movimento não excluindo qualquer hipótese. A Comissão Coordenadora demite-se, ficando em gestão até nova eleição.

A 22 de Novembro, num comunicado do Movimento, é defendida a necessidade de manter a mobilização em torno dos objectivos traçados. Nesse dia, em documento elaborado por Lavoura Lopes, Calvino e Guerreiro, reivindicando para os deficientes das Forças Armadas, o mesmo que o Movimento dos Capitães. Reunião do Movimento dos Capitães, realizada na Parede em 24 de Novembro, o Tenente-Coronel Luís Banazol diz que: « [ … ] Não tenhamos ilusões: o governo só sai a tiro e os únicos capazes de o fazer somos nós, mais ninguém!».

Reunião em Óbidos, em 1 de Dezembro de 1973, do Movimento dos Capitães, em que é eleita uma comissão coordenadora alargada e votados os nomes dos oficiais generais a contactar pelo movimento: Generais António de Spínola e Costa Gomes.
No Dia da Artilharia e da sua Padroeira Santa Barbara, dia 4 de Dezembro, o ministro Alberto de Andrade e Silva, discursando nas cerimónias anuncia que vão haver benefícios salariais para os oficiais das Forças Armadas.

A 5 de Dezembro de 1973, na Costa da Caparica, reúnem-se os membros da Comissão Coordenadora e os oficiais Eurico Corvacho, Tomás Ferreira, Ataíde Banazol e Vasco Gonçalves, para discutir as hipóteses saídas da reunião de Óbidos, sendo aprovada, por maioria, a terceira: «continuar a apresentar ao governo reivindicações de carácter exclusivamente militar, e com a maior realidade, mas de natureza tal que o executivo não tenha possibilidades de as satisfazer, originando-se assim uma forma de pressão que, na melhor das hipóteses, leve à demissão do próprio governo, e, na pior, ao devido encaminhamento para a primeira hipótese». É eleita a direcção da Comissão Coordenadora, que irá manter-se até 25 de Abril. Constituem-na Vasco Lourenço (organização interna e ligações), Vítor Alves (orientação política) e Otelo Saraiva de Carvalho (secretariado). A eles ficam ainda associados Hugo dos Santos e Pinto Soares.

No decorrer de uma aula, em 17 de Dezembro, no Instituto de Altos estudos Militares, o major Carlos Fabião denuncia publicamente o facto de os sectores ultra conservadores do regime e das Forças Armadas estarem a preparar um golpe de Estado.

No dia 20 de Dezembro, foi dada ordem de embarque imediato, para a Guiné, de alguns oficiais do Batalhão de Caçadores n.º 4616/73 comandado pelo Tenente-Coronel Luís Ataíde Banazol. A unidade e as suas companhias orgânicas, só embarcariam no dia 30 desse mês, via marítima.

São mandados apresentar, no Quartel-General, em Lisboa, no dia 21 de Dezembro de 1973, os Capitães Vasco Lourenço e Dinis de Almeida, que são detidos e enviados, o primeiro para o Regimento de Cavalaria n.º 7 e o segundo para o Batalhão de Caçadores n.º 5.

No Diário do Governo n.º 296 da I série, do dia 21 de Dezembro, são publicados quatro Decretos-Lei, de carácter militar:
● O Decreto-Lei n.º 683/73, do Ministério da Defesa Nacional – Gabinete do Ministro, que cria o cargo de Vice-Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, expressamente para o General António de Spínola.

● O Decreto-Lei n.º 684/73, do Ministério do Exército, que aumenta o quadro de oficiais com o posto de Coronel, das Armas de Infantaria, Artilharia e Cavalaria, no conjunto, em mais 10 oficiais.

● Os Decretos-Lei n.ºs 685/73 e 686/73, do Ministério do Exército, alteram as regras dos Decretos-Lei n.ºs 353/73 e 408/73, no entanto sem mencionar a sua revogação, criando novas condições de acesso ao Quadro de Oficias, de Sargentos do Quadro Permanente e de Oficiais e Sargentos do Quadro de Complemento. Cria o Quadro Especial de Oficiais.

Dez dias depois da detenção de oficiais oriundos da Academias Militar, toca a vez aos oriundos de Milicianos. No dia 1 de Janeiro de 1974, o Capitão Alberto Ferreira, que estava colocado na Academia Militar, é transferido para Estremoz.

Na reunião da Direcção da Comissão Coordenadora, realizada no dia 7 de Janeiro de 1974 em casa de Vítor Alves, é tomada a decisão de devolver aos signatários, os pedidos de demissão, que tinha sido aprovado na reunião de 6 de Outubro transacto.

A reunião da Comissão Coordenadora, no dia 12 de Janeiro, foi em casa do Major Fernandes da Mota. Consideram ser prematura a ligação com o General Costa Gomes, além de utópica. Nota-se a necessidade de existir um documento para discussão em todos os Ramos que, o Secretariado deverá apresentar no prazo máximo de duas semanas, para ser difundido pelos oficiais.

Na sequência da morte da esposa de um fazendeiro português em resultado de uma acção da Frelimo, no dia 14 de Janeiro, ocorrem em Moçambique incidentes entre colonos brancos e as Forças Armadas, sendo atingida a sua maior gravidade, na noite de 17 para 18 de Janeiro. Os primeiros acusam os segundos de não se empenharem suficientemente na destruição do terrorismo, no restabelecimento e na defesa dos interesses portugueses em África.

No dia 14 ou 15 de Janeiro, dependendo das fontes, é dada posse ao General António de Spínola, como Vice-Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, de acordo com o Decreto-Lei n.º 683/73 de 21 de Dezembro. Apesar de ter proferido a frase “As Forças Armadas não são a guarda pretoriana do poder”, o seu discurso de posse não foi tão contundente como fizera crer aos capitães, mas a televisão abstém-se de cobrir o acto. Quando é recebido por Marcelo Caetano, informa-o de que está para breve a apresentação de um livro sobre a situação ultramarina. O Presidente do Conselho de Ministros, Marcelo Caetano, volta a recusar a ideia de um encontro com Senghor para discutir a questão da Guiné.

Aquando do funeral, em Manica das vítimas do ataque de 14 desse mês, realizado no dia 16, milhares de colonos brancos, manifestam-se junto do encarregado do Governo. Nos dias seguintes, 17 e 18, nova manifestação, contra as Forças Armadas, da população branca da zona centro de Moçambique, há confrontos físicos entre os manifestantes e os militares, de que resultam alguns feridos.

No dia 17 de Janeiro de 1974, partida do general Costa Gomes para a Beira, Moçambique, para se inteirar dos acontecimentos ocorridos no território, em que estiveram envolvidos civis brancos e militares. O Estado-Maior General fica entregue ao General António de Spínola.

Chega, no dia 18, ao Movimento dos Capitães uma carta dos oficiais do movimento e em serviço em Moçambique, uma carta em que, no ponto “9” da mesma, são relatados os acontecimentos que envolveram a tropa e a população branca.

António de Spínola, no dia 20 de Janeiro, recebe Alberto Ferreira, Andrade Moura, Pais de Faria e Armando Ramos, que constituem uma delegação dos oficias oriundos de milicianos. António Ramos, ex-miliciano e ajudante-de-campo do General, assiste à reunião, onde os presentes lhe solicitam que advogue a sua causa junto do Governo, entregando-lhe um documento assinado por cerca de 200 oficiais. O General aconselha os oficiais a tentarem um entendimento com os oficiais oriundos de cadetes.

Em 21 de Janeiro, envio para Lisboa de telegrama, da comissão do Movimento dos Capitães em Moçambique, sobre os acontecimentos da Beira. Exortam o movimento a manifestar-se e declinando responsabilidades pela situação, que ameaça prolongar-se, em desprestigio das Forças Armadas.

No dia 22, Otelo Saraiva de Carvalho e Vasco Lourenço, encontram-se com o General Spínola, que o informam dos acontecimentos em Moçambique e da indignação manifestada por muitos oficiais, informando, o General, da intenção de difundir uma circular sobre o caso. António de Spínola adverte-os, mas não se opõe.

No dia seguinte, dia 23 de Janeiro, o Movimento dos Capitães divulga informações sobre a situação criada em Moçambique. Exige que os militares deixem de ser enxovalhados. Denuncia a possibilidade de as Forças Armadas virem a ser apresentadas como responsáveis pelo fracasso da política ultramarina do regime. Aventa, finalmente, a hipótese de aqueles acontecimentos terem por objectivo criar condições para a estruturação em Moçambique e Angola de regimes de apartheid semelhantes aos já existentes na África do Sul, na Namíbia e na Rodésia.

Na reunião da Comissão Coordenadora do Movimento dos Capitães realizada em 26 de Janeiro de 1974, em casa de Vasco Lourenço, onde é constatada a necessidade de elaborar um documento que defina as seus objectivos políticos, aprovando um texto elaborado por José Maria Azevedo, que servirá de introdução a um documento programático, a ser aprovado.

A 27 de Janeiro, é posto a circular um abaixo-assinado elaborado pela comissão regional do Movimento dos Capitães, na Beira, Moçambique, sobre os últimos acontecimentos.

Envio, para Lisboa e para as comissões regionais, em 29 de Janeiro, pela comissão do Movimento dos Capitães, em Nampula, de um relato circunstanciado dos acontecimentos da Beira. A Comissão Coordenadora, reunida em casa de Hugo dos Santos, analisa a documentação de que dispões acerca dos acontecimentos havidos em Moçambique, decidindo manifestar total solidariedade com os seus camaradas e com qualquer atitude que os mesmos possam vir a tomar.

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 9 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24302: Consultório Militar do José Martins (75): D. Pedro, Duque de Coimbra (José Martins)