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quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Guiné 63/74 - P14126: (Ex)citações (258): A prosperidade de Bafatá não se deveu tanto ao "patacão da guerra" como ao negócio da mancarra (Cherno Baldé)

1. Comentário do Cherno Baldé ao poste P14120 (*)

Caros amigos,

Provavelmente o factor Guerra e a presenca de 3 ou mais batalhões da tropa metropolitana e local na zona leste terá impulsionado a actividade comercial, mas na verdade Bafatá já era uma cidade com forte dinâmica de crescimento antes desta.

Como disse o Luís Graça, a economia acaba por ser o factor determinante do movimento e/ou assentamento humano. Acho que no caso de Bafatá a indústria do amendoim (mancarra) - produção, descasque e transporte via fluvial - constituíam a força motriz da sua expansão. Não é por acaso que ainda existe a marca de óleo "Fula".

Não tenho estatísticas em mão, mas acho que a contribuição monetária da tropa seria menos importante do que se pode pensar, se atendermos a que a maior parte do dinheiro recebido pela tropa era enviado de volta para casa. (**)

Um abraço amigo,

Cherno Baldé
5 de janeiro de 2015 às 17:52


2. Nota do editor LG:

"Fula" é uma marca de óleo, registada, do Grupo Sovena. "É a marca líder no mercado português de óleos vegetais", e está "presente nos lares portugueses há cinquenta anos,"

(Logo da marca "Fula", à direita,
reproduzido aqui com a devida vénia...).

A marca tem inclusive um sítio próprio na Net: www.fula.pt (, além de uma página no Facebook).

Recorde-se aqui duas figuras que, como empresários, vão ter um grande peso na história  da economia do território guineense na primeira metade do séc. XX: refiro-me, por um lado, ao António Silva Gouveia, representante da colónia da Guiné na Cãmara dos  Deputados (1ª legislatura, 1911-15),  fundador da Casa Gouveia [ou Casa Gouvêa],  que nos primeiros  anos do século passado dominava o comércio local e o mercado das oleaginosas (amendoim e coconote), através de um rede de lojas e agentes que já cobriam o território, a seguir à campanha de pacificação de Teixeira Pinto (1913/15) e implementação, em 1914, de uma administração republicana descentralizada ...

Outra figura, figura à história da economia colonial da Guiné,  é a do industrial Alfredo da Silva, fundador do grupo CUF (, cuja origem remonta a 1865). Em 1919, é criada uma empresa de transportes que vai ser decisiva não só para o futuro da CUF como o da própria economia da Guiné: trata-se da Sociedade Geral de Indústria Comércio e Transportes Lda, conhecida pela sigla SG, e em cujos navios muitos de nós viajámos para a Guiné (o Alfredo da Silva,  o Ana Mafalda, por exemplo;  em 1972 a SG fundiu-se com a Companhia Nacional de Navegação (que já detinha navios como o Índia e o Timor, que também foram navios T/T).

Ainda antes de entrar no ramo dos transportes marítimos, em 1922, a Sociedade Geral (SG) começa a adquirir (ou a fazer parte de) o capital de outras empresas que estão na mira do Alfredo da Silva, importantes para a sua estratégia de expansão do grupo, e nomeadamente no ramo das industrias oleaginosas. Uma dessas empresas é a Casa Gouveia na Guiné;  a António Silva Gouveia, Lda. passa a ser é uma sociedade que tem como sócios o António Silva Gouveia e a Sociedade Geral de Comércio, Indústria e Transportes, Lda.

As oleaginosas da Guiné (amendoim,  coconote, gergelim) passam a ser transformadas em óleos comestíveis nas fábricas da CUF, no  Barreiro, depois de  transportadas para a metrópole através dos barcos da SG. É nessa altura, em finais dos anos 20/princípios dos anos 30,  que nasceu o famoso óleo "Fula",  de há muito presente nas cozinhas portuguesas.

Recorde-se que em 1929 a CUF obtém o reconhecimento alimentar do óleo de amendoim (ou mendubim, como então se dizia). E esta decisão vai ter grande impacto não só na olivicultura nacional  (pressionando o preço do azeite)  como na economia da Guiné, que passa a ser o principal fornecedor de matéria-prima, o amendoim. A CUF detém o monopólio da exportação do amendoim (com casca ou sem casca) da Guiné, até à independência da Guiné-Bissau.

Eis mais alguns números sobre a  "mancarra" ((Knapic, 1964. pp.24/25):

(i) Entre 1930 e 1960 há um aumento gradual da produção e exportação: a. média de 1931-35 foi de 22853 t e 15203 contos; a de 1955-60 de 34196 t e 113438 contos" ;

 (ii) nos anos 60, é o principal produto de exportação da Guiné: representa 76% do total das exportações  (em 1964), percentagem que decresce para 61% em 1965;

(iii) em data que não sabemos precisar, mas no início da década de 1960,  construiu-se a primeira fábrica de extração de óleo para abastecimento local, sendo o resto exportado;

(iv) em 1965, a Guiné já exporta óleo de amendoim: 41 t (631 contos)...

(v) em meados da década de 1960, a área cultivada pelos produtores de mancarra atingia os 100 mil hectares, ou seja, um 1/4 do total da área cultivada da província!,,,.

(vi) a produção rondava as 65 mil toneladas; a produtividade era baixa: 600 kg / ha (2 mil kg /ha em casos excecionais);

(vii) em 1965, uma tonelada de amendoim exportado valia 4,2 contos (cerca de 21 euros na moeda atual) (Vd. Quadro 1).

A cultura da mancarra era feita: (i) em regime de rotação; (ii)  sem seleção de sementes; (iii) sem recurso a adubos ou estrume; (iv) proporcionando fracos rendimentos aos produtores; e (v) exigindo grande esforço nas várias fases do ciclo de produção (sementeira, monda, colheita, protecção contra os babuínos...).

As principais regiões de produção eram as do leste da Guiné (Farim, Bafatá, Gabu) onde os solos são mais leves e a precipitação menor.

No entanto, esta cultura era já considerada na época como muito lesiva do ambiente, pelo uso intensivo dos solos, a redução do pousio, as queimadas... Tradicionalmente os camponeses da região praticavam um sistema de rotação mancarra - cereal - pousio, considerado pouco eficaz. Acrescente-se ainda o sistema de comercialização, penalizando fortemente os produtores. Mas o mesmo se pode dizer hoje da cultura do caju que é uma séria ameaça para a segurança alimentar do povo guineense. (Hoje uma tonelada de caju podem valer ao produtor guineense 400 euros; o que mal dá para comprar 10/12 sacos de 50 kg de arroz, base da alimentação da população).


Ano
Mil toneladas
Mil
contos
Contos por tonelada
1960
24,0
78,8
3,27
1961
40,0
126,3
3,17
1962
38,7
133,3
3,44
1963
36,6
124,7
3,41
1964
34,0
119,2
3,50
1965
15,2
64,3
4,23

Quadro 1 - Exportação do amendoim (1960-1965)
(Knapic, 1966 / adapt por LG)


E já que falamos de segurança alimentar, temos que falar do arroz... Desde 1930 que a Guiné exportava arroz, Embora a quantidade (em toneladas), baixasse com o tempo,  aumentava todavia  o seu   valor (em contos). A média de 1931-35 foi de 3285 t e 1500 contos (0,456 contos por tonelada ) contra 1398 t e 4283 contos no período de 1956-60 (3 contos por tonelada).

Praticamente todo o arroz exportado destinava-se a Cabo Verde, na década de 1960. Com o início da guerra, a Guiné passou a ter de importar arroz (Quadro 2), tal como ainda hoje, infelizmente.

Ano
Contos
Aumento  em relação
a 1962 (%)
1962
8963
-
1963
11786
31,5
1964
29868
332, 4


Quadro 2  - Importação de arroz em contos (1962-1964) 
(Knapic, 1966 / adapt por LG)


Fonte: Adapt. de Dragomir Knapic - Geografia económica de Portugal: Guiné. Lisboa: Instituto Comercial de Lisboa, 1996, 44 pp., policopiado.

Observ - O autor desta brochura, Dragomir Knapic, de origem eslovena, era professor, no Instituto Comercial de Lisboa,  muito estimado pelos seus alunos... Era cunhado do nosso camarada Mário Beja Santos (Foi ele quem ofereceu esta brochura à biblioteca da Tabanca Grande). O livrinho tem informações preciosas sobre a Guiné dos anos 60: (i) condições naturais; (ii) população; (iii) agricultura; (iv) pesca e indústria; e (v) comércio e circulação.

________________

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22448: In Memoriam (403): João Dinis (1941-2021), ex-sold cond auto, CART 496 (Cacine e Cameconde, 1963/65), e empresário em Bafatá, há mais de meio século... Morreu ontem de Covid-19, em Bissau (Patrício Ribeiro).


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá > Outubro de 2015 > A nossa amiga e grã-tabanqueira Adelaide Barata Carrêlo com o João Dinis, empresário, antigo militar português, da CART 496 (Cacine e Cameconde, 1963/65), integrada no BCAÇ 513 (com sede em Buba). Vivia na Guiné desde 1963. Natural de Alvorninha, Caldas da Rainha (conterrâneo do cardeal José Policarpo, 1936-2014), casou em janeiro de 1972, aos 31 anos, com a Célia, de 18 anos de idade. O casal teve 3 filhos (um rapaz, falecido aos 25 anos, e duas raparigas mais velhas a viver em Portugal).


Foto (e legenda): © Adelaide Carrêlo (2016). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá > 15 de dezembro de 2009 > 15h13 > O João Graça, médico e músico, fotografado com a Célia Dinis e o filho, Bruno, no seu estabelecimento, o restaurante "Ponto de Encontro".  O filho, que vivia com o casal, viria a morrer, prematuramente, aos 25 anos, por volta de 2013,
  vítima de acidente. Morreu no avião que o transportava para Portugal para receber tratamento. Ironicamente, o João  Dinis more em Bissau por falta de recursos hospitalares para tratar a Covid-19.

Foto (e legenda): © João Graça (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá >   Agosto de 2016 >  O casal Célia e João Dinis, portugueses das Caldas da Rainha e proprietários do restaurante “Ponte de Encontro”,num almoço em que participou o Patrício Ribeiro, cliente frequente da casa. Aliás,  os principais clientes eram portugueses e outros estrangeiros ligados à ONG ou  empresas com proprojectos  na 
Gurine Bissau. Era uma figura muito popular. Tinha umais sacola de condução automóvel em Bafatá desde 1968.

Foto (e legenda): © Patrício Ribeiro (2016). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá >  4 de abril de 2017 > Os camaradas Monteiro e Cancela, com o casal Célia e João Dinis, portugueses das Caldas da Rainha e proprietários do restaurante “Ponte de Encontro”, onde almoçámos.

Foto (e legenda): © A. Acílio Azevedo (2017). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá > Fevereiro de 2017 > O casal João & Célia Dinis. Fotogramas do vídeo "O que é feito da Guiné-Bissau ?", que passou na  TVI, mo Jornal das 8, em 25 e 26 de fevereiro de 2017.( Reproduzido com a devida vénia. )



1. Mensagem do Patrício Ribeiro (português, natural de Águeda (1947), criado e casado em Nova Lisboa (hoje Huambo), Angola,  ex-fuzileiro em Angola durante a guerra colonial, a viver na Guiné-Bissau desde meados dos anos 80 do séc. XX, fundador, sócio-gerente e director técnico da firma Impar, Lda; membro da nossa Tabanca Grande, com mais de uma centena de referências no blogue):


Date: terça, 10/08/2021 à(s) 19:05
Subject: Dinis, morador em Bafatá, já foi.
 
Luís,

O Dinis de Bafatá, (residente em Bafatá há muitas décadas) faleceu hoje no hospital Simão Mendes em Bissau (Hospital Central), com Covid-19. (*)

Vai ser transladado para o Cemitério de Bafatá.

Existem diversas referências a ele, no blogue. (**)

Natural de perto das Caldas da Rainha, foi para a Guiné como militar e por lá ficou até hoje. Estava na casa dos 80 anos. Estive há pouco mais de 2 semanas com ele em Bafatá. Almoçamos e jantamos juntos durante 3 dias.

Tinha fugido da pandemia em Portugal para a Guiné, há poucos meses, onde tinha estado algum tempo em exames médicos. Como em Portugal não tinha recursos financeiros, dizia que nunca recebeu um cêntimo do Estado Português. Diziam-lhe, na Segurança Social que,  como era residente na Guiné, não tinha direito, nem ele nem sua mulher.

Voltou para a sua escola de condução e o seu pequeno restaurante em Bafatá, gerido pela sua mulher, Célia.

Estava cheio de projetos: pertencia à direção da Associação dos Antigos Combatentes Portugueses da Guiné, que continuam a lutar por aquilo que acham que têm direito. Recebeu um abraço do Marcelo em Maio último, quando da sua visita a Bissau.

Como militar, esteve muito tempo na zona de Cacine, pois era condutor e andava com o seu Unimog e com o guincho, rebocando as árvores da estrada, que os outros cortavam durante a noite, na estrada de Cacine para Guiledje.

Falei com eles, assim como com outros, por todo o lado, que havia Covid que deviam usar máscara e distanciamento, mas parecia que eu andava a pregar para as matas de cajueiros que não nos ouvem.

P.S. Neste ano de pandemia, é o quinto português antigo e amigos, dos residentes na Guiné que lá ficam.

Um abraço á família

Patrício Ribeiro

impar_bissau@hotmail.com



2. Comentário do editor LG:

Ficamos sempre sem palavras quando morre alguém nosso conhecido, amigo e/ou camarada. Foi, de resto,o que escrevi no poste P16428, de 28 de agosto de 2016, quando apresentou o João e a Célia Dinis à Tabanca Grande:

(...) Ficamos sem palavras... A milhares de quilómetros de Portugal, essa é seguramente uma "casa portuguesa"... E de repente salta-nos à mente a letra e a música da Amália, tão "maltratadas" antes do 25 de abril... No fundo, podia parecer que esse famoso fado, da Amália, era o elogio, miserabilista, da pobreza honrada associada ideologicamente ao Estado Novo...

Camarada e amigo Patrício Ribeiro, diz ao nosso camarada João Dinis e à sua companheira Célia que eles já ganharam o direito de figurar, a partir de hoje, e com todo o mérito, no quadro de honra da Tabanca Grande, passando a ser os grã-tabanqueiros nºs 724 e 725. 

Diz-lhes que é a nossa singela homenagem, a do blogue do Luís Graça & Camaradas da Guiné, não só ao seu portuguesismo como também à sua grande capacidade de trilhar as duras picadas da vida, e de sobreviver as todas as minas e armadilhas. O seu exemplo comove-nos e honra-nos... 

Um abraço fraterno para todos os demais "tugas" de Bafatá. Um xicoração para ti, que és o "pai dos tugas" da Guiné-Bissau" (...)

Para a Célia, filhas e demais família do nosso camarada João Dinis vai um grande abraço solidário nesta hora difícil. O João e a Célia eram um caso extraordinário de resiliência e de amor à Guiné-Bissau, terra que fizeram sua.

3. Os "últimos tugas" de Bafatá > João e Célia Dinis: “Portugal era um atraso de vida em comparação com a Guiné” (Excerto do "Público", de 13/4/2013)

(...) Na casa de João e de Célia nunca faltava fruta enlatada, vinho Casal Garcia e pelo menos dez garrafas de whisky “do bom” para receber as visitas. Durante anos, puderam ter na Guiné-Bissau uma série de luxos que na chamada "metrópole" eram ainda uma miragem. Esses foram outros tempos. Hoje todos os gastos são controlados. Bebem vinho do mais barato e só comem bacalhau ou queijo quando algum amigo os visita. A vida obrigou-os a uma cambalhota do 80 para o oito, mas nem por isso deixam de falar com alegria, com um brilho nos olhos e esperança no futuro. A bola é para chutar para a frente e apesar de Célia ter 58 anos e João 71, não duvidam que ainda vão conseguir marcar golo.

João e Célia Dinis são dos portugueses que há mais tempo vivem na Guiné, chegaram numa altura em que “tudo era bonito, não havia falta de trabalho e tinham uma vida mais que boa”. João foi o primeiro. Chegou em 1963 como militar. Gostou tanto que ficou e já como funcionário da administração do porto de Bissau acenou aos colegas da Companhia [de Artilharia] 496 [Cacine e Cameconde, 1963/65] , Batalhão  [de Caçadores] 513, que viu partir num navio . “Não troque os números, são muito importantes para se algum amigo dessa altura me quiser telefonar”, pede ao PÚBLICO.

Só voltaria a Portugal em Setembro de 1971. “Estava há nove anos sozinho e ia com o objectivo de casar, mas não podia ficar muito tempo. Tinha de resolver o problema rapidamente e graças a Deus consegui”. Conheceu Célia num baile e meteu logo conversa. “Ó menina, não se importa que a gente vá bailar um bocadinho? Mas olhe que eu vivo em África há muitos anos, já não sei bem dançar as músicas de cá...”, perguntou-lhe. A resposta foi afirmativa. Casaram no dia 9 de Janeiro 
[de 1972] e dia 20 vieram juntos para a Guiné. Célia tinha 18 anos e Dinis 31.

Nessa altura, tudo lhes corria bem. Dinis era dono de duas escolas de condução e, alguns anos mais tarde, Célia decidiu abrir o restaurante Ponto de Encontro, que mantém até hoje em Bafatá (no centro-norte do país). “Era uma cidade espectacular, estava tudo pintadinho, arranjadinho. Se vissem esta avenida e aquela ali em baixo. Lindas, lindas. As pessoas juntavam-se para fazer piqueniques, remo, ir ao cinema. E as lojas? Tinhas de entrar só para ver, mesmo que não comprasses. Era uma coisa que atraía. Portugal era um atraso de vida em comparação com a Guiné”, descreve Célia.

O Ponto de Encontro servia mais de 70 almoços por dia e Célia chegou a ter de pedir aos tropas para tomarem conta da filha enquanto despachava o mais depressa possível os almoços. Não tinha mãos a medir. Agora há dias em que não faz cinco mil francos CFA (7,50 euros). De 17 empregados passou para dois e mesmo assim queixa-se que a receita não cobre as despesas. Podiam-se ter ido embora depois do 25 de Abril de 1974. Chegaram a vender tudo, mas os guineenses não os deixaram partir: "Não, não se vão embora porque ninguém vos vai fazer mal. Vocês também não fizeram mal a ninguém.”

“Se eu tenho ido depois da independência, era um senhor em Portugal. O meu cunhado ainda me disse para montarmos uma escola de condução, se eu o tenho ouvido... Teria muito mais dinheiro, mas não tinha esta terra”, projecta Dinis. É um apaixonado pela Guiné. Quando ia a Portugal de férias, não queria ficar mais de 15 dias, “chegava para ver a família”. “Só desejava voltar àquelas pessoas que me conheciam e, do mais pequeno ao maior, me chamavam pelo nome. Nem sequer consigo dizer o que menos gosto neste país porque gosto de tudo. Até das faltas, fomo-nos habituando a elas”.

Foi depois de 1974 que tudo piorou. Durante dez anos ainda viveram bem mas, pouco a pouco, as coisas começaram a escassear. Primeiro faltaram o queijo, as batatas e os chocolates. Até que acabou tudo. “Foi um processo: apetecia-me beber uma garrafa de vinho Casal Garcia e não havia, mas ainda se podia comprar Dão. Quando o Dão acabou, tínhamos o Pias...”, recorda Dinis.

Às vezes perguntam-lhe como consegue viver assim. Ri-se e responde: “Tu também cá estarias se tivesses vivido o que eu vivi. Tínhamos uma vida mesmo bonita. Luz 24 horas por dia, boas estradas, tudo limpo. Onde é que os portugueses comiam pêra enlatada? A nossa bebida era whisky com água das pedras, a cerveja era só para acompanhar as ostras e os camarões”.

A Guerra Civil, em 1998, foi o golpe fatal para a Guiné: “Foi desde aí que deixámos de viver como portugueses na Guiné e passámos a ter condições de vida semelhantes à de um guineense: a ter de carregar água, andar a pé...”, conta Célia.

Apesar do Ponto de Encontro estar quase sempre vazio e dos poucos alunos da escola de condução demorarem mais de dois anos a pagar (a carta custa menos de 150 euros), apesar de dizer que agora já estava na altura de voltar a Portugal, não é isso que Dinis sente. Quando fala das suas dezenas de projectos, quando diz que as coisas vão melhorar – e di-lo muitas vezes como se a sua vida pudesse durar o dobro da do comum dos mortais –, a Guiné é sempre o palco principal da sua felicidade.

As saudades das duas filhas são mesmo o que mais pesa a Célia e Dinis. Há oito anos que não as vêem e há netos que ainda nem conhecem. Mas já lá vai o tempo em que uma viagem a Portugal custava cinco mil francos CFA e a família se juntava toda para passar as férias grandes.

Custas-lhes terem trabalhado a vida toda e não terem nada. “Nem cá nem lá”. Entregaram-se à Guiné e é a ela que pertencem. Por isso, sempre que pensam regressar perguntam “para fazer o quê". “Tenho direito à reforma porque fui militar e funcionário público de Bissau, mas na altura que a porta estava aberta não pude ir a Lisboa e agora está fechada a cadeado. Lá as pessoas vivem lado a lado, mas não se conhecem. Aqui sou o professor, dou cartas de condução desde 1968, ensinei pessoas que já morreram”, gaba-se Dinis.

Célia também tem medo do regresso mas confessa já estar cansada de levar a casa e o restaurante às costas. “Dizem que Portugal está mau mas para nós é um mundo de rosas. Não há dinheiro, é verdade, mas aqui também não há. Lá não se compra mais, compra-se menos, mas não sentes saudades de comer. Abres a torneira e tomas banho de chuveiro. E aquelas auto-estradas todas direitinhas? É uma alegria”, diz num português que já mistura com sotaque crioulo.

Por agora, só têm uma solução: aguentar. “Ando há muitos anos com a palavra esperança na ponta da língua mas ainda não a encontrei. Penso vir a ter uma vida boa na Guiné. Hoje não temos, não saímos de Bafatá há anos. Mas se calhar ainda vamos conseguir ter um carrinho melhor para ir a Bissau dar o nosso passeio. Dançamos, ao toque da música. Se a música saltar, também saltamos. E bem alto”, deseja Dinis. (...)


Fonte: Sofia da Palma Rodrigues > Guiné: entre o paraíso e as saudades de Portugal > Público, 13/04/2013 - 08:02 (Excerto reproduzido com a devida vénia)

__________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 3 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22429: In Memoriam (402): 1.º Cabo Miliciano Fernando Pacheco dos Santos, da CART 2673, caído em combate, em Empada, no dia 7 de Julho de 1970 (Juvenal Danado, ex-Fur Mil Sapador Inf)

(**) Vd. postes sobre o João & Célia Dinis (Bafatá):

5 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14120: Manuscrito(s) (Luís Graça) (43): Notas à margem do documentário de Silas Tiny, "Bafatá Filme Clube", com direção de fotografia da Marta Pessoa (Portugal e Guiné-Bissau, 2012, 78')

30 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16431: Álbum fotográfico de Adelaide Barata Carrêlo, a filha do ten SGE Barata (CCS/BCAÇ 2893, Nova Lamego, 1969/71): um regresso emocionado - Parte VIII: Bafatá, o restaurante "Ponto de Encontro", da Célia e do João Dinis, os nossos mais recentes grã-tabanqueiros

27 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16423: Recortes de imprensa (80): Os "últimos tugas" de Bafatá: João e Célia Dinis, entrevistados pelo "Público", em 13/4/2013... O nosso camarada João Dinis, hoje empresário, vive na Guiné desde 1963. Pertenceu à CART 496 (Cacine e Cameconde, 1963/65)

29 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16428: Convívios (766): Os "tugas" de Bafatá... Agosto de 2016, restaurante "Ponto de Encontro", do casal Célia e João Dinis a quem prestamos uma emocionada homenagem (Patrício Ribeiro, Impar Lda)