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sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12232: A CART 3494 e as emboscadas na Ponta Coli (Xime, Bambadinca), 1972: A verdade dos números... (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp, CART 3494 / BART 3873, Xime e Mansambo, 1972/74)

1. Mensagem,  de 26 de outubro, do Jorge Araújo (ex-fur mil op esp,  CART 3494 / BART 3873, Xime e Mansambo, 1972/74):

Assunto - A CART 3494 e as Emboscadas na Ponta Coli

Caríssimo Camarada Luís Graça, os meus melhores cumprimentos.

A consulta do espólio do Arquivo Amílcar Cabral, pertença do Arquivo & Biblioteca da Fundação Mário Soares, que em boa hora,  fizeste o favor de nos dar conta neste espaço plural da "Tabanca Grande", onde, diariamente, os ex-combatentes da/na Guiné partilham diferentes vivências/experiências ocorridas em locais diferentes e em tempos diferentes, vem-nos permitir abrir um novo caminho de reflexão e debate.

No nosso caso, e independentemente de a ela [consulta] todos terem acesso, não deixou de nos influenciar para a elaboração do presente texto, na justa medida em que, como testemunha ocular de muitos dos episódios que marcaram a historiografia da minha companhia [CART 3494], defendo, em tese, de que nos deveremos aproximar da verdade, ainda que não seja no imediato, pois esta Guerra já acabou.

Com efeito, os comunicados mensais consultados referentes aos principais eventos que conduziram ao confronto nos palcos da guerra de guerrilha entre os elementos da CART 3494 e os do PAIGC, particularmente as emboscadas à Ponta Coli, e que já tive a oportunidade de vos dar conta em duas narrativas [Abril/2012], demonstram e confirmam a importância do valor quantitativo [os números] como factor propagandístico.

Assim, para corrigir as discrepâncias  entre os documentos ditos oficiais,  a que a estes episódios
dizem respeito, segue uma nova narrativa  melhorada e aumentada.

Obrigado pela atenção. Um forte abraço, Jorge Araújo.
2. A CART 3494 e as emboscadas na Ponta Coli (Xime, Bambadinca), 1972: A verdade dos números

por Jorge Araújo

Há pouco mais de ano e meio [Abril/2012] tomei a iniciativa de narrar aqui no blogue da nossa «Tabanca Grande» [postes: 9698 e 9802] (*), bem como no da minha companhia «CART 3494 & camaradas da Guiné» [postes: 148 e 152], na primeira pessoa, o que ainda estava bem presente na minha memória referente às ocorrências observadas nas duas emboscadas sofridas pelo 4.º GComb da CART 3494, na fatídica e sempre arriscada segurança à Ponta Coli.

Relembro que esta segurança era organizada num «ponto X», dito estratégico, entre a bolanha de Taliuará e a tabanca de Amedalai, na Estrada Xime-Bambadinca [ver mapa], estrada que tinha o seu início vs fim no Cais do Xime e que era a única via que dava acesso ao extremo leste do território, nomeadamente às localidades de: Bafatá, Nova Lamego, Piche, Canquelifá, Galomaro, Mansambo, Xitole, Saltinho, entre outras.


Pelo elevado grau de dificuldade, à qual se adicionou o historial de confrontos com os guerrilheiros do PAIGC anteriores à nossa companhia, como são os sucessivos exemplos da CCAÇ 1550 (1966/68), CART 1746 (1967/69), CART 2520 (1969/70) e CART 2715 (1970/72), a segurança diária à Ponta Coli era sempre uma acção/ missão única, dando lugar continuamente a novos desafios, por estar carregada de interrogações onde emergia o conceito «surpresa», principal característica na guerra de guerrilha.

Por esse motivo, e em função das inúmeras experiências que aí vivi (vivemos), decidi chamar-lhe: «palco de jogos de sobrevivência», já que a única regra desse “jogo” era a eliminação física do opositor ou dos opositores por antecipação e perícia, independentemente dos argumentos e motivações que a cada qual pudessem assistir, à época.

Para identificação desse «palco» e caracterização do seu contexto, eis algumas imagens:


Foto 1 – Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca> Xime > Ponta Coli > Maio de 1972 > Espaço onde se concentravam e distribuíam os nossos militares em serviço de segurança à estrada Xime-Bambadinca.


Foi exactamente no local representado na imagem que um bigrupo do PAIGC, comandado muito provavelmente por Mário Mendes, constituído por mais de cinco dezenas de guerrilheiros, se instalou no dia 22Abr1972, sábado, e donde emboscou o nosso GComb.

O baptismo de fogo da CART 3494 [ao vivo e a cores] aconteceu, assim, ao trigésimo nono dia depois de ter assumido na plenitude o controlo do seu território de intervenção – o XIME –, na sequência de ter finalizado o tempo de sobreposição com a CART 2715, do BART 2917 (1970/72), que decorreu entre 28Jan e 14Mar1972.

De referir, a propósito do nome de Mário Mendes, que este CMDT do PAIGC viria a morrer no dia 25 de Maio de 1972, 5.ª feira [um mês depois da emboscada], na acção «GASPAR 5», realizada por 6 GComb [3 da CART 3494 e 3 da CCAÇ 12]. O “encontro” com Mário Mendes aconteceu na Ponta Varela, tendo-lhe sido capturada a sua Kalashnico, bem como 3 carregadores da mesma e documentos que davam conta das “acções” a desenvolver na zona de que era responsável.

Sabendo-se que era um líder temido e um guerrilheiro experiente, conhecedor dos terrenos que pisava e consciente dos riscos que corria, estas dimensões conjugadas não foram suficientes para garantirem estar a salvo e sobreviver, mais uma vez, aos muitos sustos que certamente apanhou ao longo dos anos que viveu no mato.

Depois de alguns elementos (5/6) do seu grupo terem sido detectados pelas NT na acção sobredita, e que não se sabia, naturalmente, de quem se tratava, um daqueles elementos [Mário Mendes] liderou uma estratégia de fuga que não lhe foi, desta vez, favorável, por via de lhe(s) ter sido movida perseguição, obrigando-nos a serpentear várias vezes os mesmos trilhos, entre itinerários de vegetação e clareiras.

Por isso, estou crente que Mário Mendes, a partir do momento em que ficou sem rumo certo e sem portas de saída, movimentando-se em várias direcções, sem sucesso, tomou consciência de que aquele seria o último dia da sua vida. E foi … por intervenção de elementos da CCAÇ 12, no mesmo dia em que se comemorou o 9.º aniversário da fundação da Organização de Unidade Africana (OUA), criada em Adis Abela, na Etiópia, em 1963. Que coincidência …



Foto 2 – Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca> Xime > Ponta Coli > Maio de 1972 >  O  mesmo espaço anterior, onde se observa um trilho à esquerda. Este trilho ligava o itinerário entre várias árvores, em que cada uma delas era utilizada como posto de observação e protecção.




Foto 3 – Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca> Xime > Ponta Coli > Maio de 1972 >  O  mesmo espaço anterior, vendo-se a base de um tronco da árvore "bissilão" (ou "poilão" ?), de grande porte, situada mais ou menos a meio da linha de segurança, numa frente de aproximadamente cem metros, e onde se fixava o comandante do GComb.




Foto 4 – Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca> Xime > Ponta Coli > Maio de 1972 >   O mesmo contexto e o mesmo tronco da árvore da imagem anterior, agora num plano mais elevado.




Foto 5 –Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca> Xime > Ponta Coli > Maio de 1972 >  O mesmo espaço anterior com a observação de um «bagabaga», que funcionava como posto de vigia.


Fotos (e legendas): © Jorge Araújo  (2013). Todos os direitos reservados.


Considerando o historial dos dois confrontos contabilizados pela CART 3494, [22Abr e 01Dez1972], de que resultaram baixas de ambos os lados, importa dar-vos conta da «verdade dos números», agora por contraditório com os divulgados pelo opositor da contenda – o PAIGC.

Sei [ou sabemos] que esses números, agora que estão decorridos mais de quatro dezenas de anos, pouca relevância têm entre nós, ou seja, não interessam nada. Mas, porque a eles continuaremos ligados emocionalmente, importa, do ponto de vista histórico [que é a ciência dos factos reais], corrigi-los, em nome da verdade por oposição à ficção.

Para o efeito, foi consultada a História da Unidade do BART 3873, em particular a da companhia CART 3494, bem como o arquivo Amílcar Cabral disponível na Net com o endereço http://casacomum.org/cc, pertença do Arquivo & Biblioteca da Fundação Mário Soares, em contraponto com o que foi a nossa observação naquele contexto.

1. – EMBOSCADA DE 22 DE ABRIL DE 1972 – Os números

a) – O que aconteceu …

Naquele dia, o grupo escalado para cumprir a missão de efectuar a segurança à Ponta Coli era o 4.º GComb, constituído por vinte operacionais, entre sargentos e praças, uma vez que não havia nenhum oficial adstrito, e mais dois condutores e um Guia, no caso o Malan, o que totalizava vinte e três elementos.

Estes elementos seguiram em duas viaturas [12+11] Unimog.

Na sequência do confronto, o balanço da primeira emboscada sofrida pela CART 3494 foi de um morto, o camarada furriel Manuel Rocha Bento [a única baixa em combate ao longo dos mais de vinte e sete meses de comissão], dezassete feridos entre graves e menos graves, e, por exclusão de partes, cinco dos militares saíram ilesos, sendo eu um deles. As viaturas não sofreram qualquer dano significativo.

b) – O que consta na História da Unidade – BART 3873

- Em 220600ABR72 grupo IN emboscou a segurança da PTA COLI (01 GRCOMB da CART 3494). As NT e a Artilharia do XIME pôs [puseram] o IN em fuga. Sofremos 01 morto (Furriel), 07 feridos graves e 12 feridos ligeiros [p.59].

c) – O que consta no Comunicado do PAIGC sobre as acções militares do mês de Abril (1972)


Transcrição do comunicado do PAIGC em língua francesa, sobre as acções militares do mês de Abril (1972) e assinado por Amílcar Cabral.

Tradução do parágrafo em que é referida a emboscada à Ponta Coli.

(…) “As emboscadas mais mortíferas para o inimigo foram as que ocorreram nos itinerários do Saltinho/Kirafo [CCAÇ 3490/BCAÇ 3872 - 72/74 #] (a 17 de Abril, 2 viaturas destruídas, 20 mortos e vários feridos) e a do Xime/ Bambadinca (a 22 de Abril, 4 viaturas destruídas e 12 mortos).” (…)

Data: 8 Junho 1972
Amílcar Cabral
Secretário Geral

Fonte: Casa Comum
Instituição: Fundação Mário Soares
Pasta: 07/197.160.014
Título: Comunicado do PAIGC sobre as acções militares do mês de Abril
Assunto: Comunicado do PAIGC sobre as acções militares do mês de Abril (66 operações), com destaque para o ataque a Mansoa e Bolama. Denuncia a destruição de escolas, hospitais e vilas, a utilização de napalm e os bombardeamentos aéreos efectuados pelo exército português. Comunicado assinado por Amílcar Cabral.
Data: Quinta, 8 de Junho de 1972
Observações: Doc. Incluído no dossier intitulado Documentos.
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral
Tipo Documental: Documentos

(#) Blogue: Luís Graça & Camaradas da Guiné: Vd. 22 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4068: Recordando a tragédia do Quirafo, ocorrida no dia 17 de Abril de 1972 (Luís Dias).

– A VERDADE DOS NÚMEROS

Perante os elementos acima referenciados, em particular os números oficiais das NT e do PAIGC, deixo-os à V. consideração.

Um forte abraço para todos, com muita saúde e energia.

Jorge Araújo.

Outubro/2013.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Guiné 63/74 - P9802: O caso da Ponta Coli (Xime-Bambadinca) II. Nova emboscada (Jorge Araújo)



1. O nosso camarada Jorge Araújo (ex-Fur Mil Op Esp/Ranger da CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, 1972/74), enviou-nos a seguinte mensagem. 


Caríssimo Camarada CMDT Luís Graça, e restantes elementos do G.O.E. (Grupo Operacional de Editores). 

Os meus melhores cumprimentos. 

No dia do oitavo aniversário do nascimento do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, tomei a iniciativa de vos enviar, por este meio, uma pequena lembrança. 

Trata-se de mais um mosaico para colocar no puzzle de uma das paredes da nossa Tabanca Grande que, por ser grande, creio que não vai ser fácil concluir a obra. 

Parabéns para o aniversariante e, igualmente, para os seus progenitores. 

Obrigado pelos bons momentos de confraternização passados no pretérito sábado em Monte Real, durante o nosso VII Encontro Nacional.

ERA UMA VEZ UMA ESTRADA, PALCO DE JOGOS DE SOBREVIVÊNCIA 

O CASO DA PONTA COLI (XIME-BAMBADINCA) – II

I – O CASO DA PONTA COLI - XIME: - NOVA EMBOSCADA

Entre a chegada a Bissau no dia 28.Dez.1971, a bordo do Paquete Niassa, e o regresso a Lisboa em 03.Abr.1974, efectuado nos Transportes Aéreos Militares (TAM - boeing 707), a CART 3494 escreveu algumas páginas da sua história colectiva com acontecimentos indeléveis que continuam, ainda hoje, a influenciar os itinerários, os comportamentos e as atitudes – isto é: a vida – de alguns elementos do seu contingente, agora ex-combatentes, e que mais à frente aprofundaremos. 

Durante vinte e sete meses e uma semana, ou seja, cento e dezoito semanas, que perfazem oitocentos e vinte e oito dias, equivalente a dezanove mil e oitocentas e setenta horas, totalizando um milhão, cento e noventa e dois mil e trezentos e vinte minutos - é muito tempo; e muito jogo …, os principais episódios foram classificados numa escala de graves e muito graves, em função dos efeitos produzidos nas NT. 

O caso da Ponta Coli, que acabaria por contabilizar dois episódios muito graves durante a permanência da Unidade no Xime, antes da rotação para Mansambo ocorrida em Março de 1973, era o contexto que suscitava maior incógnita quanto à efectiva possibilidade de aí acontecerem encontros/desencontros com os guerrilheiros, sempre de consequências imprevisíveis, na justa medida em que eles sabiam tudo sobre os nossos movimentos, horas de saída e chegada ao aquartelamento, transporte, efectivos, armamento utilizado, local da segurança, postos de vigia, entre outros detalhes. 

Esse conhecimento dava-lhes, desde logo, uma efectiva vantagem, podendo agir de surpresa, controlando o tempo e o espaço, “como se fosse uma qualquer caçada ao coelho bravo, à gazela ou ao javali”, colocando cada presa no centro da sua mira. Mas, em função destes dois exemplos, veio a provar-se que não agiram, felizmente, com muita disciplina táctica e técnica e que, numa relação custo/benefício, o custo foi francamente superior. 

Estou convencido que os guerrilheiros estiveram emboscados na Ponta Coli, em outras ocasiões em que não houve contacto directo, desconhecendo-se qual ou quais os motivos que os levaram a não tomarem a iniciativa do ataque. Esta convicção/intuição resulta do facto de terem sido identificados (e confirmados!) sinais da presença humana, que não do nosso lado, e que implicaram a pernoita em espaços muito próximos daqueles que habitualmente eram por nós ocupados. 

Esta convicção é reforçada com o facto concreto relatado no documento referente ao programa de actividades para aquela zona retirado do bolso do camuflado do comandante Mário Mendes, aniquilado no decorrer de uma acção à Ponta Varela, efectuada em conjunto pela CART 3494 e pela CCAÇ 12, em Maio de 1972, que previa a concretização de novas emboscadas na estrada Xime-Bambadinca, tema que abordarei em outra oportunidade. 

Assim, durante os treze meses em que a CART 3494 esteve aquartelada no Xime, a quem tinha sido atribuída a responsabilidade diária de garantir a segurança possível em parte do troço que ligava este lugar a Bambadinca (sede do BART 3873), essa tarefa/acção/missão, considerada “Rainha” no conjunto de todas as outras, foi realizada por trezentas e oitenta vezes, aproximadamente, o que perfaz, feita a divisão pelos três GComb, cerca de cento e vinte e cinco presenças para cada um, naquele a que tomei a iniciativa de (re)baptizar como o «palco de jogos de sobrevivência». 

Como referido anteriormente, apenas ocorreram dois contactos durante esse período, com mortos e feridos confirmados de ambos os contendedores. O primeiro, no dia 22.Abr.1972, foi já narrado neste blogue (vidé poste 9698, de 03.Abr.2012). O segundo, de que trata este texto, ocorreu no dia 01.Dez.1972, 6.ª feira, tendo por intervenientes os elementos do mesmo GComb, ou seja, o 4.º pelotão. 

Creio que a escolha do dia 01.Dez.1972, para a concretização desta segunda emboscada às NT, não teve qualquer relação histórica com o dia 01.Dez.1640, também conhecido por «Restauração da Independência», designação atribuída à revolta dos portugueses iniciada naquela data com a invasão do Palácio Real, sito no Terreiro do Paço, em Lisboa, onde prenderam a Duquesa de Mântua, obrigando-a a dar ordens às suas tropas para se renderem, matando Miguel de Vasconcelos e Brito (1590-1640), Secretário de Estado da Duquesa, que era Vice-Rainha de Portugal, em nome do Rei Filipe IV de Espanha (1605-1665), Filipe III de Portugal. 

Também no dia 01.Dez., mas de 1922, ou seja cinquenta anos antes, era legalmente constituída a direcção do primeiro Núcleo da Liga dos Combatentes, em Pinhel, presidida por Manuel Augusto Ferreira Lima da Veiga, Coronel de Infantaria e delegado, à época, da denominada Liga dos ex-combatentes da Grande Guerra. A sua sede ficou instalada no edifício do Regimento de Infantaria n.º 14, de onde partiu o Batalhão Expedicionário de Infantaria n.º 12 da Guarda, com destino à Flandres, onde combateu, ao serviço dos aliados, durante os anos de 1917 e 1918, na 1.ª Grande Guerra. 

Cronologicamente, a seguir à primeira história vem a segunda, e depois a terceira, e assim sucessivamente, e porque a acção, o sentido e as formas dessa acção nunca se repetem, mesmo que os seus intérpretes sejam os mesmos, eis outra oportunidade para tornar público o que ainda guardo na memória relativo ao segundo acontecimento na Ponta Coli, cuja ordem de apresentação foi estruturada em três pontos: o antes, o durante e o depois dos factos. 

De referir, ainda, que este texto não caracteriza tão só e apenas o período de tempo em que decorreu esta emboscada, mas adiciona-lhe outras pequenas histórias que lhe dão uma certa coerência, aliás como nos ensina a filosofia, ou seja, o todo é mais que a soma das partes, como se pode constatar de imediato. 


II – O ANTES DE 01 DE DEZEMBRO DE 1972 

A aprendizagem retirada da primeira experiência vivida na Ponta Coli, em 22.Abr.72, que conduziu à alteração das rotinas anteriores, passando cada GComb a ser auto transportado somente até ao limite da bolanha do Xime e o restante trajecto até ao local da segurança a ser efectuado a pé, com esquemas diferenciados de progressão e distribuição espacial de todos os seus elementos, dava a sensação de ter sido uma boa opção, pelo menos ficava a ideia de se reduzir substancialmente a exposição ao risco. 

A segurança fazia-se diariamente, excepto quando a Companhia tinha de efectuar outras missões que justificassem a presença de todos os seus efectivos, sendo substituídos nessa função por elementos de Grupos de Milícias que estavam sob jurisdição do Batalhão. 

A atenção e a concentração continuavam a ser as palavras de ordem, ou palavras-chave, quando se saía do aquartelamento para cumprir esta missão, justificada ainda com maior veemência depois do expresso na correspondência retirada ao comandante Mário Mendes, conforme referido anteriormente. E o tempo foi passando, felizmente sem ocorrências de maior na Ponta Coli. 

Em finais de Setembro/72, depois de uma intensa actividade militar, pensei que era chegado o momento de agendar o primeiro período de férias de trinta e cinco dias, de acordo com as normas então em vigor, tendo decidido passá-las na Metrópole, como se dizia à época, fazendo coincidir esse período com o meu aniversário. E assim foi. Escolhemos o período de 24.Out. a 27.Nov.1972. 

Chegado ao aeroporto de Lisboa, fui recebido pelos nossos familiares directos (os pais), seguindo depois para a sua (nossa) residência, em Moscavide. Os primeiros dias foram de completa readaptação aos espaços, particularmente no que concerne ao trânsito intenso da cidade, aos semáforos e às passadeiras, aos cheiros, aos ruídos; em suma, a quase tudo.
O ambiente de felicidade iluminava cada dia que ia passando, com os meus familiares a não perderem a oportunidade de colocarem questões sobre a realidade por mim vivida na Guiné, transmitindo-me os seus medos, expectativas e ansiedades, mas também procurando saber mais como era a sua gente, o seu ambiente, o seu clima, a sua organização social, os seus consumos, o que era perfeitamente natural e normal naquele tempo. Os amigos, alguns mais velhos, que tinham já vivido experiências semelhantes nos diferentes cenários ultramarinos, davam-me conselhos, sugestões e outras dicas visando ajudar-nos a ultrapassar eventuais dificuldades. 

Mas, do que mais se falou durante esse mês foram os episódios vividos até então, em que a nossa existência física esteve francamente em causa, e que após efectuada a sua avaliação, em consciência, considerei ter sido de elevado risco, muito maior daquele por que passa um funâmbulo no circo, no exercício de equilíbrio no arame, mesmo que não possua rede de segurança a meio caminho do solo, como foram os casos da emboscada na Ponta Coli (22.Abr.1972) e o naufrágio no Rio Geba (10.Ago.1972). 

Por outro lado, e uma vez que o ex-Alf. Mil. Maurício Viegas, também ele natural de Lisboa e CMDT do Pelotão de Artilharia (obuses 10.5) do Xime, me sugeriu que visitássemos os seus pais, residentes na Boa-Hora, em Lisboa, facultando-me a sua morada. Daí ter agendado um encontro com eles, em nome do convite/pedido formulado aquando da minha saída do Xime, levando-lhes as naturais saudades e palavras de conforto e de ânimo para resistirem ao tempo que ainda faltava para a conclusão da sua Comissão de Serviço. 

Na sequência do primeiro contacto presencial, aceitei a proposta de com eles almoçar, ficando também combinada uma sessão de slides (meus) visando uma aproximação à realidade por parte daqueles que, estando longe dos seus familiares (militares), gostavam de ver as suas paisagens, as suas gentes, as lavadeiras, as beijudas e outros ícones da cultura guineense, e que para mim era o contexto para onde teríamos de voltar alguns dias depois. 

Como um dos tios do ex-Alf. Viegas era pasteleiro (mestre de renome em doçaria), e o sobrinho comemorava o seu aniversário no dia 01.Dez. (já não me recordo quantos, mas seriam certamente mais de vinte), logo nos pediu para sermos portadores de um bolo especial para esse dia de anos, confeccionado com uma substância (XPTO) preparada para aguentar os dias suficientes até à nossa chegada ao mato. No dia 26.Nov.1972, véspera da partida, lá fomos buscar o bolo ao Bairro da Boa-Hora, fazendo votos para que ele chegasse inteiro ao seu destino. 

Embarquei no dia aprazado, prometendo voltar, logo que fosse possível, para um segundo período de férias. 

Chegado a Bissau no dia 27.Nov.1972, 2.ª feira, desci à terra, e tomei consciência de que as férias tinham acabado, e que o principal assunto que teria em mãos, a partir de então, era outro, mais sério e problemático do que nunca. 

Procurei resolver, com celeridade, a deslocação para a Companhia, no Xime, tendo apanhado uma boleia de Bissau a bordo de uma embarcação civil «CP10», cujo comandante era um militar da marinha – o Cabo Silva, e que habitualmente nos visitava no Xime, quando aí tinha de fazer carregamentos de madeiras para a capital, ou de outros materiais mais pesados vs volumosos. 

Cheguei ao aquartelamento na 4.ª feira, dia 29.Nov.1972, por volta das 17.00 horas. Mas, como tinha feito a viagem ao sol, pois a embarcação navegava a céu aberto, logo sem sombras, essa noite foi passada num estado febril em crescendo. Antes, porém, tive a oportunidade de entregar ao ex-Alf. Maurício Viegas, o bolo de aniversário que nos tinham pedido para lhe trazer. O dia seguinte, 5.ª feira, foi passado na cama, aguardando que as drogas de marca «LM» – Laboratório Militar, distribuídas/receitadas pelo camarada mezinho, ex-Fur. Mil. Enf.º Carvalhido da Ponte desempenhassem a competente acção farmacológica no organismo. 

O dia seguinte, 6.ª feira, dia 01.DEZ.1972, voltou a ser um dia diferente, como muitas emoções versus tensões, em função dos relatos que desenvolveremos no ponto seguinte. 

III – O DIA 01.DEZ.1972 – a segunda emboscada na Ponta Coli 

Se o dia 22 de Abril de 1972, data da primeira batalha travada na Guiné (Xime) pelos militares da CART 3494, através do seu 4.º GComb, continuava bem presente na memória de todos, particularmente naqueles que a viveram em directo, esse dia 01 de Dezembro do mesmo ano, fez aumentar não só os factos negativos contabilizados até então, como ampliou os registos gravados na nossa memória de longo prazo. Entre o primeiro e o segundo caso decorreram duzentos e vinte e dois dias. 

E o que tenho em memória desse já longínquo 1.º de Dezembro de 1972, acontecimento que está prestes a completar quatro dezenas de anos, inicia-se com o acto de acordar, consequência do ruído dos motores das duas viaturas unimog alinhadas na parada, como era habitual, destinadas a transportar o GComb que nesse dia iria estar de serviço na Ponta Coli, ou seja, o 4.º pelotão, o mesmo da 1.ª emboscada. 

Este GComb, entretanto refeito depois de ultrapassadas as enfermidades físicas sofridas pelos seus efectivos mais atingidos anteriormente, viu reforçado os seus quadros de comando com a chegada, em Maio, do ex-Fur. Mil. Mário M. Neves para substituir o ex-Fur. Mil. Manuel Rocha Bento, falecido na emboscada anterior, e dois meses e meio antes deste episódio (Set.) do oficial de que nunca dispôs, sendo nomeado para comandar este grupo o ex-Alf. Mil. A. J. Serradas Pereira. 

Passados poucos minutos da saída dos militares do meu ex-GComb, levantei-me sentindo algumas melhoras em relação aos dois dias anteriores, pois já não tinha febre, e avancei para os sanitários do abrigo da messe de Sargentos, situados em frente ao nosso Tzero, este partilhado com os camaradas ex-Furriéis Godinho, Ferreira e Neves. 

Concluída a higiene pessoal, e quando passava à porta da Secretaria da Companhia, que ficava exactamente em frente à nossa, do outro lado do caminho térreo (a que se chamava rua), eis que ouvi e senti os primeiros rebentamentos vindos do lado da Ponta Coli. Tratava-se, naturalmente, de uma nova emboscada montada pelos guerrilheiros, já prometida há algum tempo atrás, mas sem data marcada. 

Não pestanejei.  

Num impulso produzido a partir dos sistemas internos homeostáticos, explicados na biologia da consciência como sendo a memória especial de valor registada por via de experiência anterior – imagens, sons e desempenhos –, complementada com a mensagem do mundo exterior que acabara de ser descodificada, rapidamente me preparei para ir em seu auxílio. 

Vestido com estava naquele momento, em fato de treino azul militar, coloquei à cintura os quatro carregadores de munições encaixados no cinturão, peguei na minha companheira inseparável nestas ocasiões, a G3, e parti só, na direcção da Ponta Coli, não fazendo a mínima ideia do que me poderia acontecer até lá. 

Atravessei as moranças da Tabanca, segui no sentido da bolanha do Xime (Taliuará) e quando me encontrava mais ou menos a meio do carreiro que ligava, na largura, os dois lados da bolanha, avistei um grupo de guerrilheiros movimentando-se para sul, na fronteira da bolanha com a vegetação aí existente. Avistei os guerrilheiros e eles também a mim, na medida em que um deles disparou uma rajada na nossa direcção, mas sem consequências, pois não devia ser grande especialista no tiro de precisão. 

Ao ouvir o silvo das balas (uma meia dúzia!?) que passaram por cima e ao meu lado, coincidente com o mergulho que tive justamente de efectuar, por instinto de sobrevivência, e sem saber o que viria a seguir, aí esperei um pouco, camuflado tanto quanto me era possível, observando os movimentos do IN, e sem saber muito bem o que fazer a partir de então: voltar para trás ou seguir em frente. 

Quando me apercebi que aquele grupo de guerrilheiros estava de regresso às suas origens, decidi avançar, mas com a máxima atenção, pois a situação assim o exigia. Porém, vindos da Ponta Coli, continuava a ouvir tiros e rebentamentos, sinal de que a situação ainda não estava totalmente controlada. 

Passados alguns minutos, talvez dez/quinze, cheguei junto dos camaradas flagelados, grupo que, gradualmente, tinha sido reforçado com a chegada de mais elementos de outros GComb, deslocados em viaturas até ao local. 

Aí chegado, constatámos que neste caso, do ponto de vista da estratégica militar, os guerrilheiros foram obrigados a alterar a sua, em função também das mudanças por nós introduzidas a partir da avaliação feita à primeira emboscada. 

Desta vez os elementos IN, estimados em mais de sessenta unidades, que segundo informações posteriores eram constituídos pelo grupo especial de Bazzokas, do CMDT Coluna da Costa, e do bigrupo dos CMDT’s Mamadu Turé e Pana Djata, ficaram emboscados a cinquenta metros da linha da nossa segurança, protegidos por bagabagas, árvores e outros arbustos mais rasteiros. 

Aguardaram que as NT ocupassem os postos habituais, e quando nada fazia prever, pois esse era o método utilizado na guerra de guerrilha, abriram as hostilidades, fazendo accionar, à distância, duas minas de sopro colocadas junto a duas árvores de maior porte, seguida das tradicionais rajadas de Kalashnikov e do lançamento de granadas de RPG7, tendo os elementos do nosso GComb reagido em conformidade com a provocação e de acordo com a experiência adquirida na anterior situação. 

As ocorrências mais graves foram provocadas pelo efeito das minas de sopro, tendo atingido dois elementos das NT que, passado pouco tempo, foram evacuados para o Hospital Militar, em Bissau. 

Entretanto, com a situação totalmente controlada, depois da debandada dos guerrilheiros, que não conseguiram desta vez obter grandes resultados práticos felizmente, iniciámos o reconhecimento na zona outrora ocupada por estes. 

Durante o desempenho dessa tarefa, operacionalizada em equipa com o ex-Fur. Mil. António Carda, do 3.º GComb, foi com alguma surpresa que encontrámos dois corpos de guerrilheiros, já cadáveres, ocupando ambos, um ao lado do outro, um espaço entre arbustos de aproximadamente dois metros, junto dos quais se encontravam as suas respectivas armas. Um tinha uma Kalashnikov, o outro possuía uma pistola Tokarev. Noutro local foi também encontrado um lança granadas e duas granadas desse equipamento. 


No final, a contabilidade feita à segunda emboscada, e que seria a última, sofrida pela CART 3494 na Ponta Coli, ambas vividas pelos elementos do 4.º pelotão, foi de dois feridos graves das NT, dois mortos capturados ao IN, mais uma espingarda automática Kalashnikov, uma pistola Tokarev e um lança granadas RPG7. 

A partir desta nova experiência, cada segurança diária à Ponta Coli passou a ser considerada como uma Operação Especial, só ao alcance de quem tivesse um coração forte, capaz de resistir às emoções/tensões vividas naquele contexto. 

IV – CAUSAS/EFEITOS DESTA NOVA EMBOSCADA 

Se nada de anormal tivesse acontecido naquele dia 01.Dez.1972, a noite teria tido um significado e um programa especiais, na medida em que o ex-Alf. Mil. Maurício Viegas fazia anos, e até existia um bolo de aniversário confeccionado de propósito, no distante Bairro da Boa-Hora, em Lisboa. 

Mas, porque não foi isso que aconteceu, lamentavelmente, este segundo episódio na Ponta Coli, acabaria por marcar os tempos seguintes, influenciando os comportamentos, o estado de espírito individual e colectivo, com reflexos no humor e na disponibilidade para grandes farras. No entanto, não deixámos de cantar os parabéns ao aniversariante, na messe de oficiais, e de comer uma fatia do seu bolo, um pouco rijo, mas ainda próprio para consumo. Do que me lembro desse momento, posso afiançar de que não sobrou nem uma migalha. 

A bebida consumida nessa noite, um pouco mais longa do que em noites anteriores, pois foi decidido desligar o gerador produtor de energia, uma vez que se equacionou a possibilidade de acontecerem represálias pela ocorrência da manhã, resultou da fusão do líquido de várias garrafas existentes no bar, vulgo cocktail, servido em baixela (prateada) de aço inox, mas que não me caiu nada bem. Andei uma semana a beber água Perrier, passe a publicidade. 

Assim, eis algumas causas/efeitos deste acontecimento. 

Uma primeira causa/efeito de mais um episódio negativo registado no seio da CART 3494 foi a tomada de consciência colectiva de que não se podia facilitar, fosse qual fosse a circunstância ou o contexto, tendo como exemplos as duas emboscadas na estrada Xime-Bambadinca e o naufrágio no Rio Geba, todos eles provocando baixas humanas, factos ocorridos, curiosamente, com intervalos de cento e dez dias entre si. 

Uma segunda causa/efeito deste acontecimento terá contribuído para que um ano depois desta segunda emboscada, certamente para vingar o aí ocorrido doze meses antes, onde os guerrilheiros registaram um forte revés, estes tenham decidido voltar a atacar o aquartelamento do Xime, agora tendo por residentes os militares da CCAÇ 12, uma unidade africana. 

Este ataque do IN, o mais severo e violento de todos os efectuados até então, iniciado pela calada da noite, eram 22:15 e que durou cerca de meia hora, e que eu próprio testemunhei não só através da sua audição à distância, como observei os clarões provocados pelas detonações das diferentes armas pesadas utilizadas, uma vez que me encontrava instalado nos espaços circundantes da nova Ponte sobre o Rio Udunduma, situada entre a população de Amedalai e Bambadinca, na estrada do Xime, em missão de segurança permanente. Nesse local acabaria por contabilizar uma estadia de cerca de cento e sessenta dias, ou seja, cinco meses e meio. 

Constou-se que para esse ataque com armas pesadas foram mobilizados todos os recursos existentes na zona por parte do PAIGC, nos quais se incluíam foguetões 122 mm. Estes acabaram por provocar alguns estragos, sobretudo na zona das moranças dos civis do Xime, tendo dois deles atingindo uma delas, que ficou totalmente destruída, com os seus sete ocupantes mortos. 

Uma terceira causa/efeito (dupla) desta emboscada, particularmente para os dois ex-militares feridos em combate, este seria um acontecimento que haveria de produzir sequelas incuráveis ao longo de suas vidas, em todas as dimensões humanas: físicas, psicológicas, sociais e económicas. Por via desse episódio, estes ex-combatentes foram premiados ad eternum com o estatuto de «abandonados», o que é francamente injusto, ingrato, pouco ético, nada moral, em suma, um crime execrável. 

No primeiro caso, o ex-soldado Carlos Alberto Cunha, depois de ter sido assistido no Hospital Militar de Bissau e de ter transitado para o Hospital Militar de Lisboa, onde, decorrido algum tempo, obteve alta, passando à disponibilidade. Porém, nunca mais pode exercer a sua actividade profissional, em função do seu grau de incapacidade física. Por falta de acordo quanto à atribuição do estatuto de invalidez, o seu processo transitou para julgamento no Tribunal Judicial de Coimbra, desconhecendo (eu) qual o seu veredicto. Até há bem pouco tempo a situação era de impasse. 

No segundo caso, o ex-soldado Mário Rodrigues Nascimento foi encontrado, no início deste ano, a vaguear pelas ruas da Figueira da Foz. Interpelado por uma Assistente Social, funcionária da Autarquia Local, sobre o seu passado, apenas se lembrava de ter sido ferido em combate no Xime e de ter pertencido à CART 3494. Esta técnica lembrou-se, com efeito, de contactar com a Delegação de Coimbra da Liga dos Combatentes, pedindo ajuda. Esta Instituição de apoio aos ex-militares, por sua vez, entrou em rede com vários elementos da Companhia referenciados no nosso blogue, o que conduziu à abertura de um processo visando a sua integração em Instituição de Solidariedade Social naquela localidade, de modo a alterar a sua condição de vida - um “sem abrigo” -, situação absolutamente degradante para qualquer ser humano, e em particular para este nosso camarada, ex-combatente, que fora gravemente ferido em combate no cumprimento de um dever nacional. 

Curiosamente, a sua residência conhecida, extraída dos registos dos Serviços Públicos, refere que era na Rua do Viso, por sinal a mesma rua onde os meus avós tinham uma casa, e onde eu, nos distantes tempos de criança, lá passava uma parte significativa das férias grandes de verão, bastando atravessar a avenida do Grande Hotel da Figueira (Av. 25 de Abril), para estar na praia. 

Finalmente, neste dia 01.Dez.1972, tomei conhecimento que o nosso segundo CMDT da Companhia, o Cap. Art. António José Pereira da Costa (agora Coronel na Reserva) tinha sido transferido para a CART 3567, estacionada em Mansabá, facto ocorrido durante as nossas férias, sendo substituído, então, pelo Cap. Mil. Luciano de Carvalho Costa, o terceiro e último CMDT da Companhia, cargo que ocupou até ao final da nossa Comissão de Serviço. 

Segundo julgo saber, a ordem/nota da transferência foi-lhe comunicada no dia 10.Nov.1972, exactamente no dia em que, na Metrópole, em Moscavide, comemorava o meu vigésimo segundo aniversário. O desenlace com a CART 3494 aconteceu no dia seguinte – 11.Nov. (Dia de S. Martinho), um marco mais na história da sua vida … militar. 

Chegado ao fim deste segundo episódio relacionado com os factos reais ocorridos na estrada Xime/Bambadinca, vividos por alguns ex-combatentes da CART 3494, no local designado por Ponta Coli, damos por encerrado este tema, esperando que o modo e os conteúdos da sua narração, feitos na primeira pessoa, partindo de experiências concretas, tenham permitido, por um lado, esclarecer dúvidas em aberto e, por outro, aglutinar algumas das ideias que andavam dispersas. 

Contudo, estou convicto que outros relatos, seguindo a mesma metodologia, seriam não só bem-vindos como ajudariam no aprofundamento da sua historiografia. 

Está, desde já, feito o convite a todos os membros da CART 3494, também conhecidos por Fantasmas do Xime. 

Um grande abraço para todos, e até à próxima história. 

Saudações Tertulianas.
Jorge Araújo.
Fur Mil Op Esp/RANGER da CART 3494
____________  
Nota de M.R.:

Vd. poste anterior desta série em: 

3 DE ABRIL DE 2012 > Guiné 63/74 - P9698: O caso da ponta Coli, Xime-Bambadinca (Jorge Araújo)



sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Guiné 63/734 - P13715: Fotos à procura de... uma legenda (37): D. Idalina Carvalho Pereira Martins, esposa do cmdt do BART 3873, ten cor Tiago Martins, no almoço de Natal de 1972, no Xime, o quartel do setor L1 mais atacado e flagelado (Jorge Araújo, ex-fur mil, op esp, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74)



Foto: © Jorge Araújo (2014). Todos os direitos reservados

1. Afinal, houve mais mulheres que foram à guerra...

Uma foto rara e insólita (*)... a precisar de uma boa legenda (**).

Jorge Araújo [ ex-fur mil op esp, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74) comentou o seguinte, no poste P13645 (***):

 (...) Pretendo, com o presente, dar conta de que o mês de Dezembro de 1972 [01Dec] iniciou-se com uma nova emboscada na Ponta Coli [estrada Xime-Bambandica] - a segunda da CART 3494 - conforme narrativa divulgada nos P9802 e P12232.

Aliás, no 9.º Fascículo da História do Batalhão - Dezembro/72 - refere-se a este facto no Ponto 61; alínea d), pp 37/38.

Quanto à quadra natalícia desse ano, realizou-se no Xime um almoço de Natal, com rancho melhorado, no qual esteve presente o CMDT do BART 3873, Ten Cor. António Tiago Martins (já falecido) [, mais a esposa, também já falecida].

Por correio interno seguem algumas fotos do evento. (...)

________________

(**) 4 de outubro de  2014 > Guiné 63/74 - P13688: Fotos à procura de uma legenda (36): Uma vacada... no Cachil (Victor Neto / José Colaço, CCAÇ 557, 1963/65)

(ªªª) Vd. poste de 24 de setembro de 2014 >  Guiné 63/74 - P13645: História do BART 3873 (Bambadinca, 1972/74) (António Duarte): Parte XI: dezembro de 1972: (i) talvez a primeira quadra festiva do Natal e Ano Novo passada, no setor L1, sem ataques nem flagelações do IN; (ii) por outro lado, o comandante 'Nino' Vieira vem pessoalmente à frente Bafatá-Xitole para censurar e punir maus tratos infligidos às populações locais pelos seus guerrilheiros

domingo, 10 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13482: Efemérides (171): Relembrando o naufrágio no Rio Geba, no dia 10 de Agosto de 1972, em que perderam a vida três camarada da CART 3494 (Jorge Araújo)

1. Mensagem do nosso camarada Jorge Araújo (ex-Fur Mil Op Esp / Ranger, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/1974), com data de 8 de Agosto de 2014:

Caríssimo Camarada Carlos Vinhal
Os meus melhores cumprimentos.

O Naufrágio no Rio Geba ocorrido no dia 10AGO1972, independentemente de estar a uma distância de quarenta e dois anos – faz hoje – foi, é e continuará a ser um tema sensível no contexto dos ex-combatentes da CART 3494, do BART 3873, por ter provocado, de forma perfeitamente estúpida, o desaparecimento de três dos seus membros por afogamento.
Porque estivemos envolvidos nessa experiência de forma intensa, em que durante alguns minutos vivemos entre a água e o céu, entre a terra e o inferno, entre a vida e a morte, como referimos na introdução, continuamos a considerar tarefa difícil fazer-se o seu luto, tão fortes foram as emoções e as tensões que ocasionaram.
Dito isto, não podia deixar de prestar, nesta data, mais uma singela homenagem aos camaradas naufragados, relembrando/recordando alguns detalhes desse evento, adicionando-lhe outros factos associados que merecem a nossa relevância social e histórica.
Eis, em anexo, mais um contributo historiográfico, para memória futura, sobre as nossas vivências no CTIG.

Obrigado.
Um forte abraço.
Jorge Araújo.
Ago2014.


RELEMBRANDO O RIO GEBA E O MACARÉU

O NAUFRÁGIO NO RIO GEBA – 10AGO1972 E FACTOS ASSOCIADOS

I – O NAUFRÁGIO

Introdução

Em 2012, faz hoje precisamente dois anos [Vd. P10246(1)], tomei a iniciativa de divulgar, na primeira pessoa, as ocorrências relacionadas com um acontecimento que marcou a vida colectiva dos ex-combatentes da CART 3494, em particular daqueles que directamente nele estiveram envolvidos – uma secção reforçada do 1.º GComb – e que ficou conhecido, na história da Companhia e do BART 3873, como o «Naufrágio no Rio Geba».

Como referi nesse testemunho histórico, durante alguns minutos vivemos entre a água e o céu, entre a terra e o inferno, entre a vida e a morte, sendo que este último conceito viria a aplicar-se, lamentavelmente, a três dos catorze militares que naquela 5.ª feira, 10AGO1972, faz hoje quarenta e dois anos, tinham por missão fazer a travessia entre as margens esquerda e direita do Rio Geba, por esta ordem, com o objectivo operacional de sinalizar eventuais vestígios deixados no terreno pelo IN, vulgo reconhecimento à zona circunvolvente ao Destacamento de Mato Cão.

Relembramos, neste contexto, que a travessia do Rio Geba, a iniciar-se no Cais do Xime, sito a 250/300 metros do Aquartelamento da Companhia, seria feita com recurso a um bote de fibra de vidro conhecido por Sintex, com motor fora de bordo de 50 cavalos, sendo sugerido no protocolo de utilização, como elemento de segurança, que a sua lotação não deveria ultrapassar a dezena de indivíduos, incluindo o barqueiro. Contudo o universo de efectivos militares destacados para esta missão era constituído por nove praças devidamente equipados, por mim próprio, e ainda pelo CMDT da Companhia, o ex-Cap. Pereira da Costa, pelo ex-Alf. Sousa, em situação de Estágio Operacional e pelo ex-Major de Operações Henrique Jales Moreira [o mais graduado], bem como pelo barqueiro do Sintex.
 


O naufrágio [relembrando alguns detalhes]


Com a navegação a cargo do barqueiro, como seria natural e normal, com o motor a desempenhar a sua função e com as águas muito agitadas por efeito do macaréu, cada um de nós não deixou de se interrogar quanto ao sucesso da «aventura» em que tínhamos embarcado e que, pouco tempo depois, deixou de ter hipóteses de retrocesso.

O pânico subia à medida que a embarcação se aproximava da cabeça do macaréu, cada vez com mais agitação e remoinhos à mistura. Naquele momento, um novo conceito surgiu no léxico dos militares, particularmente nas praças, que traduzia o sentimento que estavam a viver… “eu não sei nadar”, no princípio entredentes e depois mais audíveis e expressivos. O cenário começava, então, a ficar cinzento, deslizando para uma cor cada vez mais escura, independentemente de estar um dia óptimo, cheio de sol e com a temperatura ambiente a aumentar.

A pergunta filosófica que, certamente, cada um formulou para si, era a de saber como poderíamos sair daquele imbróglio, sãos e salvos? Entretanto, uma nova ordem foi dada, visando criar algumas réstias de esperança quanto à possibilidade e/ou às probabilidades de sobrevivência colectiva, apontando para uma “navegação o mais perto possível da margem esquerda”, ou seja, a mesma donde partíramos.

Quando nos encontrávamos a cerca de quatro/cinco metros do tarrafo – zona de lodo ainda não submersa, e onde habitualmente a comunidade de crocodilos [alfaiates; conceito militar] se organizava em frisa apanhando os seus banhos de sol [imagem acima] e, eventualmente, observava as suas presas – eis que se escuta uma nova ordem: “haja um que salte para o tarrafo levando consigo as correntes do bote com o objectivo de o poder suster”.

Olhando à minha volta, e perante a ausência de candidatos e/ou voluntários disponíveis para o cumprimento deste desiderato, eis que tomámos em mãos esse desafio. Porque a embarcação continuava instável face à movimentação das águas [imagem abaixo], o salto só poderia acontecer quando a distância entre o bote e a lodo fosse de molde a facilitar a operação proposta. Não sendo possível identificar o melhor momento para o salto, eis que no tempo «X» saltámos levando nas mãos a dita corrente já referida anteriormente. Durante o salto, feito de frente para o tarrafo, ouvimos, vindo da nossa rectaguarda, um ruído provocado pelo embate da proa do bote na parte mais alta do lodo, tendo como consequência a inclinação do mesmo projectando para a água todos os seus ocupantes.
Primeiro os que se encontravam no lado esquerdo da embarcação e depois os do lado direito, por efeito do desequilíbrio provocado pela transferência de peso que então ocorrera [lei da física].


De seguida, na água a luta era extremamente desigual entre o poder do Homem versus o poder da maré. Cada um dos militares, equipado e vestido com o seu camuflado que lhe dificultava a mobilidade no meio daquele líquido espesso e lodoso [imagem acima], procurava chegar a terra firme o mais rapidamente possível, pondo-se a salvo. E isso aconteceu a oito de um total de catorze elementos.

Dos seis em falta, três conseguiram entrar no bote: o barqueiro, o Miranda [1.º cabo de dilagramas] que, remando com a sacola das suas granadas, ajudou a recolher o ex-Major Jales Moreira em situação problemática. E os três seguiram ao sabor da corrente na direcção de Bambadinca, local onde estava sediado o Batalhão.


Os outros três elementos em falta eram: José Maria da Silva Sousa [de S. Tiago de Bougado, Trofa Velha (Santo Tirso)], Manuel Salgado Antunes [de Quimbres, São Silvestre (Coimbra)] e Abraão Moreira Rosa [da Póvoa de Varzim], que acabariam por desaparecer nas águas escuras e lodosas do Rio Geba, sem que existisse qualquer hipótese de salvamento [Vd. P10246(1)].


A recuperação dos náufragos

A angústia e a ansiedade dominaram o resto deste dia e dos subsequentes, desenvolvendo-se a crença e/ou a expectativa dos corpos dos desaparecidos poderem ser recuperados. Porém, essa crença e/ou expectativa apenas se concretizou uma vez, lamentavelmente. Decorridas mais de trinta horas após o acidente foi localizado um corpo/cadáver junto ao Cais do Xime [imagem abaixo]; era o do José Maria da Silva Sousa [o Bazuqueiro]. O seu corpo estava desnudo e em processo de transformação, como é natural neste tipo de ocorrência. O seu comprimento aumentara substancialmente, ultrapassando largamente os dois metros, assim como o seu peso, agora com valores a rondar os cento e cinquenta quilos.

Durante mais alguns dias, todos os olhares estiveram direccionados para o Rio Geba, esperando que ele nos devolvesse os outros dois corpos, mas em vão.


Em 13AGO1972, domingo, procedemos à realização do funeral do camarada José Maria da Silva Sousa, numa tarde de autêntico dilúvio [estávamos na época das Chuvas] e com direito a Honras Militares, função desempenhada pelo 3.º GComb, ficando o seu corpo sepultado no Cemitério de Bambadinca, sede do BART 3873.


Factos associados

Mesmo estando decorridos quarenta e dois anos da data desta lamentável ocorrência, continuam a persistir dúvidas a nível de alguns Quadros de Comando do BART 3873, nomeadamente quanto aos dois náufragos não recuperados. Em nome da verdade dos factos, confirmo que só um dos três corpos foi recuperado pelo contingente da CART 3494, pelo que só uma das três campas existentes no Cemitério de Bambadinca se refere ao militar metropolitano: o José M. S. Sousa.

Quanto às outras duas (?!) campas que o ex-Major Jales Moreira me informou aí existirem, em contacto recente, é de admitir, como probabilidade credível, que se refiram a dois combatentes do PAIGC, mortos no dia 01DEZ1972 na 2.ª emboscada na Ponta Coli [Vd. P9802], ou seja, três meses e meio depois do naufrágio.

Ainda hoje se não entendem as motivações que influenciaram a decisão de omitir, na HISTÓRIA DO BART 3873, este acontecimento marcante para todos nós, dele fazendo-se “tábua rasa”, nomeadamente no seu 5.º fascículo referente às actividades/acções do mês de «Agosto-1972» [pp. 77/79; pontos 35/40].
O único apontamento que conhecemos está expresso no Capítulo III – Baixas, Punições, Louvores e Condecorações [pp. 145/165]. Na pg. 149; Agosto-72; 1.Baixas; pode-se ler na alínea d) “Por Outras Causas” [nome dos três camaradas naufragados] “… todos da CART 3494, mortos por afogamento, no acidente do rio Geba, em 10AGO72”.
É inacreditável…, pois nunca houve justificação para tal.




II – HISTÓRIA DIVULGADA POR FAMILIAR DE UM NÁUFRAGO

O caso do Manuel Salgado Antunes

No dia 25 de Maio de 2013 Miguel Ribeiro Antunes, sobrinho de Manuel Salgado Antunes, na sequência de ter lido no blogue da CART 3494 a narrativa sobre o Naufrágio no Rio Geba de 10AGO1972, onde se fazia referência, justamente, aos nomes dos três náufragos [sendo um deles o de seu tio], tomou a iniciativa de nos escrever dando conta do que sabia sobre este tema.

A residir na Suíça, onde é arquitecto, Miguel Antunes refere que nunca conheceu o seu tio, que era irmão de seu pai. Sobre este caso, afirma que a sua família nunca soube muito bem o que se passou. A sua avó morreu há dois anos [2011] e no último dia de vida perguntou-lhe o que é que eu “Manuel” [confundindo-o com o seu filho/tio] estava ali a fazer quando estivera tanto tempo sem aparecer. Para Miguel foi o seu maior desgosto por ver aquela mulher, que ele adorava, morrer sem nunca ter tido uma certeza nem um corpo para fazer um funeral. Mais estranho é o facto de no dia em que sua avó morreu, esteve um senhor na sua casa afirmando saber onde estavam os restos mortais do seu tio na Guiné, e caso estivessem interessados em tratar deste assunto, ele era um ex-combatente.

Naquele contexto de muito pesar, a sua mãe não fixou o nome do senhor ex-combatente, tendo apenas a ideia de tratar-se de alguém duma localidade perto de Quimbres, de nome Carapinheira.

Pelo exposto, acredita que é o primeiro familiar de Manuel Salgado Antunes a saber, verdadeiramente, a história de seu tio, solicitando, se possível, mais informações sobre este caso, pois mantem presente essa curiosidade, agora que estão passados tantos anos.

Ainda nesse mesmo dia, na sequência de ter recebido notícias do camarada Sousa de Castro, que agradeceu, acrescentou que este assunto sempre se falou em sua casa sem problemas, mas nunca se aprofundou muito. A incerteza quanto ao incidente era alguma, até porque outras pessoas da aldeia e arredores, ex-combatentes, contavam várias histórias diferentes e ao longo dos anos talvez a versão original se tenha dissipado.

Porque se encontra na Suíça, por ser mais um que teve de deixar o País, não pode enviar fotos do seu tio. Mas, quando vier de férias a Portugal, promete enviar algumas que tem e que estiveram escondidas durante anos, decisão tomada pelo seu pai para que a sua avó não vivesse agarrada a esse passado – histórias da vida.

Perante estes dois contactos carregados de angústia e emoção, e como resposta ao interesse demonstrado em saber algo mais, escrevi-lhe o seguinte:

Caro Miguel,
Antes de mais receba os meus melhores cumprimentos e um bem-haja pela iniciativa que tomou. Com efeito, foi uma boa notícia saber que um familiar do Manuel Antunes, a mais de dois mil quilómetros da sua terra natal, tomou conhecimento, mais de quarenta anos depois, dos factos reais relacionados com a morte de seu tio, assunto que durante todo este tempo esteve envolto em mistério, suscitando naturais dúvidas e incredulidade no seio da sua família.

Considero este seu contacto, por isso, uma recompensa à iniciativa de tornar pública essa ocorrência estúpida, como são todas aquelas que poderiam ser evitadas, e que fez com que o seu tio naufragasse naquele dia 10Ago1972, nas águas revoltas do Rio Geba, na Guiné, e de mais dois camaradas seus.
Reafirmo o que ficou expresso na minha narrativa: - os corpos dos n/ camaradas Manuel Antunes, seu tio, e o do Abraão Rosa, nunca apareceram pelo que não existem restos mortais recuperados. Daí ninguém poder afirmar que conhece as suas localizações, o que lamento e lamentam todos os ex-militares constituintes da CART 3494. Lamento, ainda, a falta de ética e moral como trataram este assunto junto dos seus familiares directos, ocultando a verdade dos factos, entretanto tornados públicos. Por via da existência deste nosso blogue, que é a expressão colectiva de todos quantos partilharam o mesmo contexto, pretendemos continuar a prestar um verdadeiro “serviço público”.

Uma vez que gostaria de voltar a este assunto, e porque certamente o Miguel já fez circular estas notícias por outros membros da sua família, muito grato ficaria se pudesse acrescentar algo mais ao que já referiu nos seus comentários, em particular a opinião de seu pai [a resposta ainda não chegou…].
J.A.

Porque este foi, é e continuará a ser um tema sensível no contexto da CART 3494, do BART 3873, os acontecimentos no Rio Geba [Xime-Bambadinca], no dia 10AGO1972, continuarão a ser relembrados/recordados… sempre, na medida em que é difícil fazer-se o seu luto.

Um grande abraço, muita saúde e boas férias.
Jorge Araújo.
10Ago2014.
____________

Nota do editor

(1) - Vd. poste de 10 DE AGOSTO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10246: Efemérides (107): Dia 10 de Agosto de 1972 - Naufrágio no Rio Geba de um sintex com pessoal da CART 3494 (Jorge Araújo)

Último poste da série de 7 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13472: Efemérides (170): João Augusto Ferreira de Almeida - o único português fuzilado na I Grande Guerra (Benjamim Durães)

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16865: (D)o outro lado do combate (Jorge Araújo) (3): Mário Mendes (1943-1972): o último cmdt do PAIGC a morrer no Xime... Elementos para a sociodemografia do seu bigrupo em 1972: tinha 27.9 anos de idade e 8.9 anos de experiência de conflito...

 
[O nosso colaborador assíduo do blogue, Jorge Araújo (ex-Fur Mil Op Especiais da CART 3494. Xime e Mansambo, 1971/74): tem já mais de 105 referência no nosso blogue; ainda está no ativo, é professor universitário.]

MÁRIO MENDES (1943-1972): 
O ÚLTIMO CMDT DO PAIGC A MORRER NO XIME 

I. INTRODUÇÃO

Durante os últimos anos, particularmente nos momentos que antecedem os actos de passar a escrito as memórias historiográficas do CTIG (1972/74), surgem-nos no pensamento, ao vivo e a cores, algumas das principais imagens daquele palco onde a 22 de abril de 1972, sábado, iniciámos o «jogo da sobrevivência e da superação permanentes», com a sensação de ainda cheirar a pó e a terra vermelha.

Na guerra, a esse episódio chamam-lhe “baptismo de fogo”, e no nosso caso ele teve lugar na Ponta Coli [imagens abaixo], local escolhido superiormente para concentrar os efectivos das NT. Nesse dia a missão estava atribuída ao 4.º Gr Comb, constituído por 20 operacionais, mais 2 condutores e o picador Malan Quité. Após a “conquista diária” desse espaço, cada grupo era dividido em dois subgrupos, um instalado de manhã e o outro de tarde, situação modelo que vinha já da “velhice”, cuja missão era garantir a segurança a pessoas e bens que circulavam na estrada Xime-Bambadinca.

Pelo histórico das Unidades de quadrícula que nos antecederam, e que estiveram aquarteladas no Xime em diferentes períodos, nomeadamente a CART 1746 (1968/69), CART 2520 (1969/70) e CART 2715 (1970/72), sempre considerámos que num futuro mais ou menos próximo teríamos de passar por essa primeira experiência… não estivéssemos nós num contexto de guerra.

E aconteceu mesmo, ainda não tínhamos concluído o terceiro mês.

Em relação a este episódio, a História do Batalhão 3873, a que pertencia a CART 3494, refere na sua p. 59: “em 220600ABR72 grupo IN emboscou a segurança da PTA COLI (01 GRCOMB da CART 3494). As NT e Artilharia do XIME pôs o IN em fuga. Sofremos 01 morto (Furriel), 07 feridos graves e 12 feridos ligeiros”.



Xime (Ponta Coli, maio de 1972) – local do combate com o bigrupo do PAIGC, comandado por Mário Mendes (1943-1972).



A linha vermelha, ligando o Xime (aquartelamento) e a Ponta Coli (local da segurança), na estrada Xime-Bambadinca, era o itinerário diário utilizado pelas NT.

Os desenvolvimentos dos combates travados pela CART 3494 [curiosamente pelo mesmo Gr Comb – o 4.º] e respectivos resultados, quer na primeira emboscada, a 22 de abril de 1972, quer na segunda, a 01 de dezembro do mesmo ano, podem ser consultados nas narrativas: P9698, P9802, P12232 e P14495.

No presente texto, o que nos propomos abordar emerge desse contexto a partir de uma interrogação que há muito formulámos [e certamente o mesmo aconteceu com muitos de vós, ex-combatentes, em relação a experiências semelhantes], e que só agora encontrámos a competente resposta, ainda que parcelar.

E a questão era esta: em cada uma das emboscadas supra [e em todas as outras milhares que aconteceram em diferentes locais do CTIG ao longo dos treze anos do conflito], existia uma nuvem entre quem era atacado e quem atacava, ou seja, estávamos perante uma situação desigual, o que se entende/compreende, pois estas eram as regras do “jogo”, a camuflagem e a surpresa e a consequente aniquilação do opositor no menor espaço de tempo.

Não se sabia quem e quantos estavam do outro lado; os seus rostos, as suas alturas, as suas vestimentas, os seus equipamentos/armamentos, os seus nomes, as suas idades, as suas origens, em suma, nada se sabia no início de cada acção, e só com o desenrolar desta, eventualmente, poderíamos ter alguma resposta a esta curiosidade.

Partindo dessa premissa, seguimos em frente com mais uma investigação tendo por fonte privilegiada a Casa Comum – Fundação Mário Soares, a quem agradecemos.

Ainda que a informação recolhida seja reduzida, considerámo-la suficiente para produzir algum conhecimento que, como é hábito, decidimos partilhá-la(o) convosco.

E a pergunta de partida era: «quem foi Mário Mendes, Cmdt do bigrupo do PAIGC que nos emboscou a 22 de abril de 1972, na Ponta Coli?», da qual resultou a única baixa em combate da CART 3494 durante os cerca de vinte e oito meses da comissão ultramarina, para além de mais dezassete feridos, entre graves e menos graves, em que apenas cinco elementos saíram ilesos, um dos quais fomos nós. Estes são os números fidedignos que tive a oportunidade de os escrutinar naquela ocasião.


II. MÁRIO MENDES – CMDT DO BIGRUPO EM ACÇÃO NO XIME

Soube que Mário Mendes era Cmdt de bigrupo do PAIGC e que actuava no então Sector 2, da Frente Xitole-Bafatá, em particular no triângulo Xitole-Bambadinca-Xime.

A acção mais antiga que se conhece foi comunicada a Amílcar Cabral (1924-1973) pelo Cmdt da Frente Leste, Mamadu Indjai, a 29 de abril de 1969, referindo a esse propósito o seguinte [de acordo com a nota manuscrita apresentada]:
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Comando Sul

MSG – No dia 20/4/69 os combatentes do Partido realizaram na estrada Bambadinca/Xime [Ponta Coli] onde os inimigos sofreram muitas baixas humanas de feridos e mortos. Por nosso lado não houve nada mal. Foi dirigido por Mário Mendes e Sampui Na Sa – Sector dois – Mamadu Indjai – 29/4/69.


Citação:
(1969), "Mensagem - Comando Sul", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40645 (2016-12-8)




No entanto, a História do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70) refere que esta emboscada aconteceu em 18[4]0700 [P15154], não indicando quais as consequências da mesma.



Soube, também, que Mário Mendes nasceu em 1943, na Vila de Bissorã, na Região do Oio. Era casado. Em 1962 aderiu ao PAIGC, com 18/19 anos [desconhece-se o mês de nascimento], a exemplo do Arafam Mané [1945-2004] [P16823], desde quando deu início à sua actividade na guerrilha. Era Cmdt de bigrupo, pelo menos desde 1966, ano que foram elaborados pelo organismo de Inspecção e Coordenação do Conselho de Guerra, as listas [mapas] das FARP referentes à constituição dos bigrupos existentes em cada Frente, conforme demonstra o exemplo abaixo, onde consta o nome de Mário Mendes e de mais trinta e sete elementos.





Citação:
(1966), "FARP - Frente Xitole-Bafatá", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40466 (2016-12-8)

Instituição: Fundação Mário Soares

Pasta: 07068.099.051

Título: FARP - Frente Xitole-Bafatá

Assunto: Listas das FARP emitidas pelo organismo de Inspecção e Coordenação do Conselho de Guerra do PAIGC – Frente de Xitole-Bafatá.

Data: c. 1966

Observações: Doc. Incluído no dossier intitulado Militar

Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral

Tipo Documental: Documentos


A partir dos dados contidos nessa lista [mapa], que consideramos como os casos da investigação ou a “amostra de conveniência”, procura-se compreender melhor quem estava do outro lado do combate, particularmente na primeira emboscada na Ponta Coli [Xime], a 22 de abril de 1972, dando indicadores de tendência para outros casos e outras épocas. Com este propósito, procedemos à organização de alguns desses dados referentes a cada um dos sujeitos constituintes do “bigrupo de Mário Mendes”, sobre os quais pretendemos retirar conclusões.

Para o efeito, esses dados foram agrupados quantitativamente e apresentados em quadros estatísticos de frequências (caracterização da amostra por idade: a de nascimento e a de adesão ao Partido) e de quadros de variáveis categóricas em relação aos restantes elementos (ano de adesão ao PAIGC e idade e anos de experiência cumulativas ao longo do conflito).

Quadro 1 – distribuição de frequências em relação ao ano de nascimento dos elementos do bigrupo de Mário Mendes (n-38)



Da análise ao quadro 1, verifica-se que o ano de nascimento com maior percentagem (maioria relativa) é 1945 (21.1%) com 8 casos (moda), seguido de 1947 (15.8%), com 6 casos, e 1942 e 1943 (13.2%), em terceiro, com 5 casos cada.

Quando analisado por períodos, verifica-se que o maior número de casos (n-16) estão entre os nascidos em 1943 e 1945 (42.2%) (grupo central), enquanto entre 1937 e 1942 e entre 1946 e 1950, os valores são iguais (n-11 = 28.9%).

Quadro 2 – distribuição de frequências em relação à idade de adesão ao PAIGC dos elementos do bigrupo de Mário Mendes (n-38)´



Da análise ao quadro 2, verifica-se que existem três idades com maior percentagem de adesão ao Partido, respectivamente 18, 20 e 21 anos, com 7 casos cada (18.4%), seguida dos 16 anos, com 4 casos (10.6%). As restantes idades não têm significado estatístico.

Quando analisada a adesão ao Partido por períodos, verifica-se que o maior número de casos (n-16) estão entre as idades de 18 e 20 anos (42.2%), seguido pelo grupo de idade superior, entre 21 e 26 anos, com 12 casos (31.5%), e o grupo de menor idade, entre 13 e 17 anos, com 10 casos (26.3%).

Analisada a adesão ao Partido entre os 18 e 21 anos, idades semelhantes ao período normativo da incorporação militar na legislação portuguesa, à época, os valores apontam para uma maioria absoluta com 23 casos (60.5%), seguida por 10 casos nas idades inferiores (26.3%) e, somente, cinco casos nas idades superiores (13.2%).


Quadro 3 – distribuição de frequências em relação ao ano de adesão ao PAIGC dos elementos do bigrupo de Mário Mendes (n-38)



Da análise ao quadro 3, verifica-se que o ano onde se registou maior adesão ao PAIGC, com maioria absoluta, foi 1963, com 21 casos (55.3%), seguido de 1962, com 10 casos (um dos quais Mário Mendes) (26.3%). Os anos de 1964 e 1965 registaram 7 casos cada (7.9%).

Quando analisada a partir da soma dos dois primeiros anos (1962 + 1963), anos de preparação e início do conflito, a percentagem sobe para 81.6% (n-31).

Quadro 4 – distribuição de frequências em relação à idade verificada ao longo do conflito, contados após a adesão individual ao PAIGC, no caso dos elementos do bigrupo de Mário Mendes (n-38)


Da análise ao quadro 4, e partindo da hipótese meramente académica de que o bigrupo se tinha mantido constante ao longo do conflito, pelo menos até 22 de abril de 1972, data da emboscada sofrida pela CART 3494 (algo que não se pode garantir ou confirmar), Mário Mendes teria, então, vinte e nove anos [sombreado castanho]. Os restantes elementos teriam a idade referida na linha [sombreado verde] do ano de 1972.


Quadro 5 – distribuição de frequências em relação ao número de anos de experiência na guerrilha ao longo do conflito, contados após a adesão ao PAIGC, no caso dos elementos do bigrupo de Mário Mendes (n-38)


Da análise ao quadro 5, e partindo da hipótese meramente académica apresentada no quadro anterior, Mário Mendes teria, então, dez anos de experiência na guerrilha [sombreado castanho], bem como de outros nove combatentes. Os restantes elementos teriam os anos de experiência referidos na linha [sombreado verde] do ano de 1972.


III. MÁRIO MENDES – 25 de maio de 1972, o dia da sua morte

Quatro semanas depois de ter organizado e comandado a emboscada à CART 3494 [4º Gr Comb] na Ponta Coli, viria a morrer na acção «GASPAR 5», realizada no dia 25 de maio de 1972, 5.ª feira, por seis Gr Comb [três da CART 3494 e três da CCAÇ 12].

Recupero o que escrevi no P12232, por nela ter participado.

O “encontro” com Mário Mendes aconteceu na Ponta Varela [Xime – mapa acima], tendo-lhe sido capturada a sua Kalashnicov, bem como três carregadores da mesma e documentos que davam conta do calendário das “acções” a desenvolver naquela zona pelo seu bigrupo.

Depois de alguns elementos (5/6) do seu grupo terem sido detectados pelas NT na referida acção, e que não se sabia, naturalmente, de quem se tratava, um daqueles elementos [Mário Mendes] liderou uma estratégia de fuga que não lhe foi, desta vez, favorável, por via de lhe(s) ter sido movida perseguição, obrigando-nos a serpentear várias vezes os mesmos trilhos, entre itinerários de vegetação e clareiras.

Por isso, estou crente que Mário Mendes, a partir do momento em que ficou sem rumo certo e sem portas de saída, movimentando-se em várias direcções, sem sucesso, tomou consciência de que aquele dia seria o último da sua vida. E foi … por intervenção de elementos da CCAÇ 12.


IV.  CONCLUSÕES

Chegado a este ponto, e partindo da análise aos resultados apurados e apresentados nos quadros acima, é possível concluir que durante o combate travado entre os elementos do bigrupo de Mário Mendes e do 4.º Gr Comb da CART 3494, na Ponta Coli, existiram diferenças significativas nas seguintes três variáveis.

1. – Idade: [bigrupo – 27.9] ≠ [4.º Gr Comb – 21.6]

2. – Quantidade de elementos: [bigrupo – ⅔ ] ≠ [4.º Gr Comb – ⅓]

3. – Anos de experiência no conflito: [bigrupo – 8.9] ≠ [4.º Gr Comb – 0.25].

Porque se sabia pouco sobre o Cmdt Mário Mendes, e dos elementos que liderava, este é o meu pequeno contributo para o seu aprofundamento.


O que se pode dizer mais…? Deixo este estudo à vossa consideração.

Obrigado pela atenção.

Um forte abraço de amizade com votos de muita saúde.
Jorge Araújo.
12DEC2016.
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