domingo, 6 de novembro de 2005

Guiné 63/74 - P256: Projecto Guileje (4): planta do quartel (Pepito)

Guiné-Bissau > Guileje (2005) >

Antigo aquartelamento das NT: restos de uma das várias viaturas abandonadas pelo BCAV 8350 (1972/73), quando as NT são obrigadas a retirar para Gadamael, depois de um terrível cerco de 5 dias (de 18 a 22 de Maio de 1973), efectuado pelas forças do PAIGC.

Fonte: © AD - Acção para o Desenvolvimento > Projecto Guileje (2005)


O ataque a Guileje tinha sido começado a ser preparado pelo próprio Amílcar Cabral, que incumbiu dessa missão o comandante Osvaldo Lopes da Silva, em meados de 1972. Era sua convicção de que "se este quartel cai, tudo à volta também cai".

Depois do cobarde assassinato, em Janeiro de 1973, do líder do PAIGC, são retomados os planos para atacar e tomar Guileje. Trinta anos depois, é o antigo comandante do PAIGC, o caboverdiano Osvaldo Lopes da Silva, quem diz estas palavras que calam fundo no coração de qualquer combatente: "estabelecidas as pontes emocionais entre aqueles que, em lados opostos da barricada, viveram com todo o seu ser momentos de sangue, de sofrimento e de destruição, e que hoje se dão as mãos, na construção de um mundo feito de compeensão, amizade e respeito mútuo, a história comum pode ser escrita, com objectividade, como legado às gerações vindouros" (in AD - Acção para o Desenvolvimeno > Projecto Guileje)

1. Mensagem do Carlos Schwarz:

Caro Luis Graça

Mais uma vez muito obrigado pelo envio do draft da planta do quartel, uma autêntica preciosidade, que nos vem ajudar a localizar as diferentes instalações então existentes.

Como lhe disse, agora que a época das chuvas está a chegar ao fim, vamos começar a trabalhar no duro no início do projecto [Guileje]. O ano 2006 será decisivo. Se tudo correr bem, no final do próximo ano, poderemos começar a receber todos os que queiram visitar Guileje e lá pernoitar, mesmo se ainda em condições que não serão as melhores.

Irei sempre dando-vos conhecimento do evoluir do projecto.

abraços
Carlos Schwarz

2. Resposta ao Carlos:
Caro Carlos:

Vamos ver se arranjamos alguém da engenharia militar para dar uma ajuda... Também é possível sondar a nossa Direcção Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais, onde há muitos arquitectos que, em princípio, sabem destas coisas...

Para já vou lançar amanhã uma página sobre Guileje, recorrendo a algumas das vossas fotos, de modo a publicitar também o vosso projecto... Com a devida vénia, claro... A AD-Acção para o Desenvolvimento é sempre citada como fonte. Aliás, gostaria de ter depois o teu feedback em relação às legendas (que são da minha responsabilidade).

Ainda não temos ninguém, na nossa tertúlia, que tenha estado em Maio de 1973, em Guileje, aquando do seu cerco e abandono. O João Tunes conheceu Guileje, mas foi em 1970/71.

Carlos, fico à espera de notícias tuas. Contacta entretanto os nossos amigos, em Bissau: Jorge Neto (jornalista, autor do blog Africanidades) e Paulo Salgado (administrador hospitalar, cooperante, e meu antigo aluno).

Um grande abraço.
Luís Graça

Guiné 63/74 - P255: Em bom português (1): Guileje e não Guiledje (Luís Graça)

Consulta ao Ciberdúvidas da Língua Portuguesa:

1. Pergunta:

Povoação no Sul da Guiné-Bissau, na região de Tombali, junto à fronteira com a Guiné-Conacri, Guileje foi um importante aquartelamento das tropas portuguesas durante a guerra colonial.

Construído em 1964, foi sitiado e tomado pelo PAIGC em 22 de Maio de 1973. No tempo do colonialismo, escrevia-se Guileje (vd. a carta da Guiné, dos Serviços Cartográficos do Exército, 1961).

Os guineenses e os cooperantes portugueses na Guiné-Bissau têm hoje tendência para escrever Guiledje ou até Guiledge. Vd. por exemplo, a página pessoal de Fernando Casimiro (Didinho) ou a página de uma organização não-governamental como a AD - Acção para o Desenvolvimento, que tem em curso justamente o Projecto Guiledje .

Pergunto ao Ciberdúvidas: qual é a grafia correcta?

Luís Graça, Portugal

2. Resposta:

Como diz - e atestam os registos mais credíveis que cita (1) - , sempre se escreveu Guileje. Portanto, a grafia Guileje, sem o d, é a única corre(c)ta, dado que em português normal não existe grupo consonântico dj, nem tch, o modo correspondente.

Por isso, é incorre(c)to igualmente escrever "Tchecoslováquia", em vez de Checoslováquia, apesar de em checo a palavra começou por tal som, grafado C (um c com acento circunflexo invertido). Mas o som tch foi o do ch em português até ao princípio do século XIX, e ainda hoje se ouve no Norte do Portugal.

Resumindo, é mesmo assim que se deve continuar a grafar o nome desse aquartelamento das tropas portuguesas durante a guerra colonial, na Guiné-Bissau: Guileje. A corruptela do "dje" (e a do "g") pressupõe um mau domínio da ortografia da nossa língua, com outros conhecidos infelizes exemplos - como é essoutra (má) tendência (no caso, em Angola) de se ter passado a escrever com as letras Ku nomes e topónimos que em português sempre se escreveram, e escrevem, com Qu.
________

(1) Também era assim que se grafava no título do excelente documentário "De Guileje a Gadamael - o corredor da morte", da autoria do jornalista José Manuel Saraiva e do realizador Manuel Tomás, exibido no canal de televisão português SIC, em 1998.

Ciberdúvidas
11/10/2005

Guiné 63/74 - P254: Projecto Guileje (3): planta do aquartelamento (1966) (Luís Graça)



Planta do quartel de Guileje em 1966. Reconstituição de Nuno Rubim, coronel na reserva (e na época comandante da CCmds, de que o nosso camarada Briote era alferes miliciano).

© Nuno Rubim (2005)

1. Texto de L.G.:

Já hoje dei boas notícias, à nossa tertúlia, sobre o projecto Guileje, da ONG guineense AD-Acção para o Desenvolvimento, fundada e dirigida pelo Carlos Schwarz.

Como sabem, ele fez-nos um pedido de apoio com vista à reconstrução do quartel de Guileje, inserido num projecto mais vasto de ecoturismo (abrangendo a mata do Cantanhez) (vd post de 3 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLVII: Projecto Guileje (2): arquitecto paisagista, precisa-se! ).

Até agora os nossos tertulianos, à excepção do João Tunes, ainda não se pronunciaram sobre a ideia. Provavelmente estão à espera de mais detalhes sobre o projecto. De qualquer modo, o Carlos Shwarz passou também a ser membro da nossa tertúlia e a receber a nossa correspondência.

O nosso camarada Briote, um das "aquisições" mais recentes da nossa tertúlia (e, em contrapartida, um dos nossos camaradas de Guiné, mais velhos), e que é um tipo bem relacionado, tratou logo de pedir ajuda ao seu antigo capitão dos comandos, Nuno Rubim, hoje coronel na reserva, o qual por sua vez teve a gentileza de lhe/nos mandar um draft da planta do quartel, desenhado por ele em 1998.

Pessoas como o Briote, o Rubim e o Tunes, conheceram Guileje, em diferentes épocas (o Briote e o Rubim, em 1966; o Tunes, em 1970/71). Eles poderão dar ideias e pistas ao Carlos Schwarz... O pedido de um arquitecto, de preferência paisagista, continua de pé. Se calhar, a porta certa estará na Engenharia Militar, como sugere o Rubim (que fica ao cuidado do Briote, uma vez que ainda não é da nossa tertúlia). Um abraço para todos. Luís Graça


2. Texto do Virgínio Virgínio Briote:

Caro Luís,

Entrei em contacto com o meu antigo Comandante da CCmds, actualmente Coronel na Reserva Nuno Rubim, por causa do assunto acima referido [projecto Guileje]. Tens aqui a resposta que me enviou.

Um abraço,
vb

"Caro Briote:

"Interessante esse projecto. Há alguma razão específica para a sua implementação, para além de se referir à zona onde morreram mais homens por metro quadrado do que em qualquer outro sítio,em qualquer das três colónias, no período de 1961-1974 ?

"Junto lhe envio um desenho baseado num antigo esboço que tive. Representa Guileje em 1966, quando lá estive, mas sei que posteriormente sofreu transformações. Se algum projecto ou desenho existiu, teria de forçosamente ter sido elaborado no BEng [Batalhão de Engenharia], que ficava perto da "nossa casa" [Brá], lembra-se ?

Fotografias aéreas. Onde param elas ...? Permanece grande interrogação, até hoje, sobre onde pára grande parte da documentação referente às operações durante a guerra colonial... No AHM [Arquivo Histórico-Militar], onde tenho trabalhado, não está !

Um abraço
Nuno Rubim"

sábado, 5 de novembro de 2005

Guiné 63/74 - P253: Andanças do Humberto Reis na região de Farim (1996) (Humberto Reis)

Material inédito que o meu camarada e amigo Humberto Reis (ex- Furriel Miliciano da CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71) me mandou, em tempos, e que relata a sua ida à Guiné-Bissau, em Março de 1996, e mais concretamente as suas peripécias na região do Cacheu.

Insere-se agora esse material no blogue, em homenagem também ao nosso amigo Anízio Lona Indami, jovem guineense, de 22 anos, natural de Farim, a estudar em S.Paulo, Brasil (*)

(Notas e fotos: © Humberto Reis, 2005; notas também de LG).


1. O capot aberto do carro que nos destinaram tem um significado. Quando passámos o célebre K3, na estrada Mansoa- Farim e chegámos à beira do rio Cacheu, já lá estavam 2 carros à espera da lancha para atravessar.

Acontece que a lancha, como habitualmente, estava do lado de Farim e não trabalhava pois o motor de arranque não funcionava e aquilo não é como nos carros que pegam de empurrão.

Ao fim de uns 10 ou 15 minutos de espera infrutífera tive uma ideia daquelas do "estás na Guiné, desenrasca-te". Estava uma canoa a fazer a cambança só de pessoas, como é lógico, e então eu disse-lhe para dar o seguinte recado ao marinheiro da lancha:

- Nós emprestamos a bateria do carro para colocar o motor a trabalhar com a condição de, a nós, não nos cobrar a travessia nem para lá nem no regresso logo à tarde.

No regresso da canoa lá vinha o recado do marinheiro a aceitar a nossa brilhante ideia, pois assim já podia começar a facturar aos outros carros e também às pessoas que transportasse.

Foi assim que desmontámos a bateria do carro entregámos ao homem da canoa que a levou para Farim e passados 5 minutos ouvimos, com bastante alegria, o roncar do motor da lancha do lado de lá do rio Cacheu. Até parece anedota, mas não: foi a maneira de conseguirmos ir até Binta onde o meu amigo Pedro Neves, apesar de já ter voltado à Guiné 3 vezes, nunca mais lá tinha ido.


2. O meu amigo Pedro Neves, que foi comigo à Guiné-Bissau, observa o que resta do seu ex-aquartelamento de Binta, a sudeste de Farim, na margem norte do Rio Cacheu, onde tinha estado como furriel miliciano em 1972/73 .

A Guiné-Bissau está hoje subdivida em 8 regiões e um sector autónomo (Bissau). Uma dessas regiões é o Oio, cuja capital é Farim. Esta região, que confina, a oeste com a região do Cacheu (capital: Cacheu), a norte com o Senegal, a leste com o Gabu (capital: Gabu, antiga Nova Lamego) e a sul com a região de Bafatá (capital: Bafatá). tem cerca de 200 mil habitantes e uma superfície de 5400 quilómetros quadrados (LG).


3. Cais de Binta, na margem norte do Rio Cacheu

O estuário do Rio Cacheu é uma das áreas sensíveis para a protecção e conservação de aves na Guiné-Bissau (Parque Natural dos Tarrafes do Cacheu).

O Rio Cacheu foi palco de duros combates durante a guerra colonial: por exemplo, no dia 16 de Dezembro de 1967 foi atacada e afundada no rio Cacheu a famosa LDM (Lancha de Desembarque Média) 302. Nesse ataque do PAIGC, morreu o Patrão da Lancha e um Grumete Artilheiro (Foram ambos condecorados a título póstumo na cerimónia do 10 de Junho de 1968, com a medalha de Cruz de Guerra de 3ª classe). A LDM 302 era uma das das cinquenta lanchas de desembraque (pequenas, médias e grandes) que existiam na Guiné e que foram fundamentais no apoio logístico às NT.

Trazida à superfície, a LDM 302 foi reparada em Bissau, e posta de novo a navegar. No seu primeiro cruzeiro, seis meses depois do ataque de Dezembro de 1967, e precisamente no mesmo local (Porto Coco, no rio Cacheu), foi de novo atingida com violência e com baixas (morte de um Grumete Artilheiro e ferimentos noutra praça). Ao todo, a LDM 302 foi atacada oito vezes, acabando por ser abatida ao efectivo em 1972 (LG).


4. Do lado sul do rio Cacheu à espera da lancha para atravessar para Farim que se vê do lado de lá. 24 de Março de 1996.

Farim viu nascer Vasco Cabral, em 23 de Agosto de 1926. Foi um dos fundadores e dirigentes do futuro PAIGC.

Vasco Cabral , que não tinha qualquer laçod e parentesco com Amílcar Cabral, morreu recentemente em Bissau, em 24 de Agosto de 2005. Era uma fgura de grande nível intelectual, resistente anti-fascista e firgura de proa da luta de libertação.

Vasco Cabral era doutorado em Ciências Económicas e Financeiras pela Universidade Técnica de Lisboa . Menos conhecida, entre nós, é a sua faceta de poeta. Os seus poemas de prisão, escritos a partir de 1953, fazem de Vasco Cabral o primeiro poeta em língua portuguesa de Guiné-Bissau ( A luta é a minha primavera, 1981). Originalmente publicados em edições clandestinas e depois pela guerrilha. (LG).



5. A casa comercial J. Miranda, em Farim, onde parámos para beber uma cervejinha qu2 até estava bem geladinha
















(*) Vd. post de 5 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXX: Anízio, 22 anos, estudante, procura notícias do antigamente sobre a sua terra, Farim

Guiné 63/74 - P252: Notícías de Farim, para o nosso amigo Anízio, em S. Paulo (Virgínio Briote)

Brasão da vila de Farim.

© Jorge Santos (2005)

Fonte: International Civic Heraldry > Coats of arms of Guinea-Bissau > Farim

Texto do Virgínio Briote, que foi Alferes Miliciano da CCAV 489 (Cuntima, Janeiro a Maio de 1965), pertencente ao BCAV 490 (sediado em Farim, em 1965):

Caro Anízio,

Que é que lhe posso dizer de Farim?

Passei por lá há muitos anos, há mais de quarenta. Pus lá os pés pela primeira vez em finais de Janeiro de 1965. Estávamos no início da luta pela libertação da Guiné. O meu Batalhão, designado por Batalhão de Cavalaria 490, instalou a sede em Farim e dispersou as companhias militares por Jumbembem e Cuntima. Fui um dos destacados para Cuntima, na fronteira com o Senegal, a cerca de 30 e tal km de Farim e por lá me mantive cerca de 5 meses.

Visitava Farim, quando estava em trânsito, quando ia lá buscar abastecimentos para Cuntima. Era uma pequena povoação, uma cidade para os padrões locais daqueles tempos. Uma cidadezinha agradável, o rio Cacheu tranquilo a banhar-lhe as margens, população afável numa tabanca já com alguma dimensão.

A guerra tinha começado há pouco mais de 2 anos, circunscrevia-se ao Sul e tinha pequenos focos ainda um pouco incipientes no Oio (Morés) e em outras zonas dispersas pelo território. Muito perto de Farim, passavam corredores de infiltração (Sitató, por ex.), por onde entravam guerrilheiros e abastecimentos para o triângulo do Óio (Mansoa, Bissorã e Mansabá). Na altura, pelos arredores de Farim, os trilhos assinalavam quase todos os dias passagens recentes de guerrilheiros e de pequenas secções de reabastecimento.

Em meados de 1965, pode dizer-se que a tropa ocupava as povoações mais importantes e o PAIGC era dono e senhor dos trilhos e das matas. Na altura em que abandonei Cuntima, a tendência acentuava-se, com o PAIGC a firmar-se com denodo nas matas à volta de Farim.

Camjambari, uma povoação a sul de Farim, era um importante ponto de infiltração. Então, foi decidido ocupar Camjambari. Mas não foi nada fácil, a luta durou dias e dias, até que finalmente uma companhia militar do tal Batalhão conseguiu ocupar Canjambari. A posição ocupada nunca teve descanso, os guerrilheiros, da mata, visavam diariamente o aquartelamento com morteiros.
E um dia, a guerrilha decidiu dar um passo em frente, atacar dentro da povoação de Farim. Um batuque, muita gente em festa, alguns militares também, um guerrilheiro infiltrado na população meteu lá dentro uma "bomba". Num saco, misturaram granadas de todos os tipos, projécteis de balas, até uma bomba de avião que não tinha rebentado. E foi tudo pelos ares, população incluída que foi a mais atingida, aliás. Um pandemónio que teve as consequências que imagina em termos de repressão (1).

E pronto, dali para a frente a vida nunca mais foi a mesma, com a tendência sempre crescente da implantação do PAIGC e que só parou na independência.

Por aquela gente sinto carinho e respeito. Carinho porque, a minha vida estava no princípio, tinha acabado de fazer 21 anos, fui tratado sempre com humanidade e porque ajudaram ao meu crescimento. Respeito porque ganharam uma luta que era deles, de serem eles próprios, bem ou mal não temos nada com isso, a conduzirem os seus próprios destinos.

E pronto, caro Anízio, aqui lhe deixo o meu testemunho. Se na altura pressentisse que o Anízio, quarenta anos depois, me iria questionar sobre o Farim daqueles tempos, certamente teria sido mais previdente e guardaria informação mais precisa.
__________

Nota de L.G.:

(1) Vd. post de V.B., de 3 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXVI: Barro, Bigene, porquê?

Guiné 63/74 - P251: Crónicas de Bissau ou o 'bombolom' do Paulo Salgado (4)

"Meada? Meada é esta de se morrer desfeito em diarreias coléricas num alpendre qualquer sob o olhar de jovens médecins sans frontières ou de médicos do mundo ou de simples cooperantes que por ali andam tentando minimizar essas mortes sofridas até ao desfazer das entranhas"... Ou que Alá nos proteja neste dia final do Ramadã!

© Paulo Salgado (2005)

Camaradas e Amigos:

... Luís, sempre tu a (re)fazeres as coisas!... (Gostaria de começar outro capítulo, mas nem sei como fazer…)

1. Uma espécie de alquimia transbordante de poções mágicas que inebriam os tomadores de drogas.

Um mar de imaginações transformadas em caracteres bíticos que transmudam a forma ancestral da escrita como instrumento de manibus escribendi que os nossos pais e avós cuidadosa e aplicadamente tratavam nas belas cartas ou nas doces quadras ou sextetos esotéricos.

Uma torrente prenhe de conquistas espaciais e temporais, longínquas ou próximas, cinzentas ou coloridas, apaixonadas ou neutras: de rios vertendo-se nos mares, de montanhas erguendo-se aos céus, de planuras infindáveis, de árvores tradicionais (ou simplesmente árvores), de flores de mil cores, de animais, de aldeias, de monumentos, de homens pretos e brancos e amarelos num só amplexo, de crianças correndo!

Um sistema dotado de mil perplexidades e de contrastes e de sentimentos contraditórios, de amor e ódio, de riqueza e de penúria, de prazer e de sorrisos, e de doença e de morte!

Uma montra de figuras variadas, multímodas, díspares, históricas e a-históricas.

Eis um computador.

Feito de botões, de milhares de bytes (é isto?) em esquemas e sistemas, de ferramentas, de aplicativos, de software; mas construído: lá onde moram poemas simples, estórias simples, mensagens simples, fotos simples, amigos simples que quiseram ler essas coisas simples – lá onde tudo se registou, meus Caros; talvez tenha sido, essa pequena máquina, reformatada em vilipêndio violento, por mãos que anseiam uns míseros francos desta parte da África. Como em todo o lado, de resto.

É assim, meus caros – paga-se caro um ligeiro descuido!

És tu, meu caro Luís, tu, um fazedor crítico bondoso de poéticos blogues, tu, um receptor e retransmissor de ansiosas e ansiadas notícias, és tu que farás o favor de me enviar as partes de um capítulo inacabado (porque uma parte desse capítulo não chegou – a maldita Internet nesses malfadados dias também não funcionava…) para que seja retomado o fio de uma meada.

2. Meada? Meada é esta coisa que não se compreende nos homens que brincam com os outros homens.

Meada? Meada é esta de haver guerras em tantas partes do mundo, onde as crianças lançam sorrisos contra os canos das espingardas e onde as mulheres gritam por um pouco de pão para darem leite aos filhos e onde os velhos se escondem, quem sabe, por detrás da última cachimbada.

Meada? Meada é esta má sorte, este desnorte de seres que só querem uns míseros patacos para o arroz e peixe.

Meada? Meada é esta de se morrer desfeito em diarreias coléricas num alpendre qualquer sob o olhar de jovens médecins sans frontières ou de médicos do mundo ou de simples cooperantes que por ali andam tentando minimizar essas mortes sofridas até ao desfazer das entranhas.

3. Mas. Das entranhas mais profundas nasce a beleza de alma de jovens e velhos, de brancos e pretos, que, diariamente, sofrem o cheiro que vem das latrinas misturado com a creolina e a lixívia, e que, horas a fio, apoiam, lavam, desinfectam, buscam soluções em frascos de soros – num cansaço visível provocado por semanas desconsoladas.

Que os Deuses nos ajudem. Que Alá nos proteja neste dia final do Ramadã!

Mantenhas pa tudus

Paulo Salgado. aos 4 dias de Novembro de 2005.

Guiné 63/74 - P250: Anízio, 22 anos, estudante, procura notícias do antigamente sobre a sua terra, Farim (Marques Lopes)

1. Finalmente, o nosso camarada A. Marques Lopes, ex-alf mil da CCAÇ 1690 (Geba) e da CCAÇ 3 (Barro), hoje coronel, DFA, na reserva, calça as suas tamanquinhas e desce até à nossa tertúlia!... Bons olhos o vejam e bons ouvidos o oiçam. A razão da visita é nobre. Aqui fica a mensagem e o apelo.

Caros camaradas:

Como o Anizio Indami só enviou este apelo para alguns, mas pedindo para chegar a outros, aqui vai ele. Vamos ajudar este guineense a saber as coisas da sua terra durante o período em que a conhecemos.
Abraços

A. Marques Lopes


2. Mensagem do Anizio Lona Indami:

Olá Pessoal!!

Eu sou Anizio Lona Indami,natural de Farim, Guiné-Bissau. Tenho 22 anos,no momento estou estudando no Brasil na Universidade de Sao Paulo(USP)- Faculdade de Economia Administração e Contabilidade(FEA).

Através de uma busca no google consegui acessar a sua/vossa página.E fiquei muito feliz por saber mais coisas da guerra colonial na Guiné-Bissau. Mas por outro lado fiquei um pouco triste por não achar artigos(dados) relacionado a minha cidade Natal(Farim).

Por isso,eu vim por esse meio solicitar a Vossa Excia. no sentido de me ajudar a encontrar todos os documentos históricos da Guerra relacionado a cidade de Farim(fotos,história,depoimento dos ex-combatentes,etc.). Pois,estou muitíssimo interresado a conhecer a história da minha cidade.

E agradeço desde já a sua compreensao, e podes encaminhar esse email para os demais combatentes que possivelmente trabalhavam na referida região(Óio).

Obrigado!!
Atenciosamente
Anizio

quinta-feira, 3 de novembro de 2005

Guiné 63/74 - P249: Unidades com sítios da Net (1) (Jorge Santos)

Três sugestões do Jorge Santos para quem gostar de surfar na Net (isto já tem mais de três meses, as nossas desculpas ao nosso tertuliano Jorge, ex-fuzileiro em Moçambique, autor da página A Guerra Colonial, e que desde o verão passado tem andado em viagem pela Eurolândia):


(i) COMPANHIA DE CAÇADORES 1496 (BCAÇ 1876)

Guiné > Pirada (1966/1967)



Página de Diamantino Pereira Monteiro (Alferes Miliciano), que pode ser consultada em:

http://guinecolonial.home.sapo.pt/

Destaque para as bem humoradas "pequenas histórias com homens... à margem da guerra colonial" (um conjunto de crónicas ou croniquetas sobre o dia dia das NT), incluindo um delicioso glossário. Fico a saber que em 1966 ao aerograma se chamava bate-estradas. No nosso tempo (1969/71), e na nossa região (Bambadinca), era conhecido como o corta-capim. Também há uma xecelente documentação fotográfica sobre a guerra e o pós-guerra... Parabéns ao Diamantino! L.G.


(ii) COMPANHIA DE CAVALARIA 3378

Guiné > Olossato (1971/1973)

Página de José Fernando Tomé (Furriel Miliciano),
que pode ser consultada em:

http://kimbas.no.sapo.pt/

E-mail:

oskimbas@netcabo.pt




(iii) 2ª COMPANHIA DO BATALHÃO DE CAÇADORES 4610

Guiné > Cafine/Cobumba/Dufal (1972/1974)


Página de Fernando Teixeira (Furriel Miliciano), que pode ser consultada em:

http://osterriveis.no.sapo.pt/

E-mail: osterriveis@sapo.pt

Guiné 63/74 - P248: Não é um pequeno delinquente qualquer que silencia o 'bombolom' do Paulo Salgado

Amigos e camaradas:

Más notícias nos chegam de Bissau: (i) As que têm a ver com os jogos de poder, nada com que a gente, infelizmente, não contasse já; e (ii) as que têm a ver com os nossos amigos. Neste caso, e mais concretamente, o Paulo Salgado.

A verdade é que quiseram silenciar o 'bombolom' do Paulo. Eu, de facto, já a estava a estranhar o silêncio dele. E já tinha saudades do seu 'bombolom' de Bissau. Afinal de contas, ele esteve sem internet nestes últimos dias (o que parece ser tão trivial em Bissau como a cólera que escandalosamente continua os guineenses). E depois, para cúmulo do azar, roubaram-lhe o PC. Eu imagino a frustação e a raiva do Paulo. Hoje o PC já faz parte do nosso corpo. Somos biónicos. O PC é uma extensão dos nossos membros, superiores, das nossas mãos, dos nossos dedos, dos nossos sentidos (a visão, o ouvido) e, por fim, do nosso próprio cérebro.

Espero, ao mesmo, que o Paulo tenha cópias de segurança dos seus dados... Como homem experiente na cooperação, ele sabe que os assaltos a residências ou a viaturas e o roubo de equipamentos é uma coisa trivial em África, para falar apenas da chamada pequena criminalidade... Mas é sempre uma experiência stressante, mesmo quando temos os bens segurados... Não é tanto o valor material do PC (mesmo assim considerável) como sobretudo a perda (muitas vezes, irreparável) de ficheiros de dados, que representam muitos meses ou até anos de trabalho...

Não sei, Paulo, como manifestar-te a minha solidariedade... Mas o melhor que consigo neste momento é confiar na tua capacidade de 'dar a volta' a estas contrariedades: tu, mais a Conceição e o resto da equipagem... Estamos contigo, não desanimes, tens outros embates muito maiores pela frente... Por favor, não deixes que te calem o 'bombolom'! Aquele abraço, camarada!

Luís Graça

Guiné 63/74 - P247: Projecto Guileje (2): arquitecto paisagista, precisa-se! (Pepito)

"Foto de um marco existente em Jemberem, sede da nossa ONG em Cantanhez, que foi reparado e que, em homenagem à ONG portuguesa Instituto Marquês Valle Flôr-IMVF (que intervém na zona e com quem vamos trabalhar no projecto Guiledje), se chama Praça IMVF". Este pequeno monumento evoca a passagem, por aquelas paragens, de umc companhia, presumivelmente de caçadores ou de artilharia, a 6521... No mural lê-se; "OS NÒMADAS, PIONEIROS DE JEMBEREM, Pelundo > 27 Out 72, Cadique > 21 Jan 73, Jemberem > 20 Abr 73.

© CSchwarz

1. Mensagem de Carlos Schwarz, fundador e director executivo da ONG AD - Acção para o Desenvolvimento (Bissau). com data de 30 de Outubro último:

Caro Luís Graça

Só agora lhe respondo, uma vez que tivemos sérios problemas de acesso à internet no país.

Será com muito prazer que integrarei a vossa (já agora nossa) tertúlia.

O José Carlos Schwartz [músico, poeta e militante do PAIGG, morto precocemente, a seguir à independência] não é meu familiar. Ele nasceu exactamente uma semana depois de mim e fomos contemporâneos nos estudos: ele na escola técnica e eu no liceu.
Depois da independência fomos vizinhos e bons amigos. Tenho uma admiração enorme por ele.

Voltando à vaca fria, isto é Guiledje. O projecto vai mesmo para a frente, com os percalços e descontinuidades próprios da Guiné-Bissau, um dos quais o golpe palaciano ocorrido ontem (nada que não estivéssemos à espera).

Vim de lá ontem e logo que acabem as chuvas vamos começar os trabalhos de limpeza e desminagem.

Gostaria de aceitar a vossa sugestão de envolvimento no projecto e propor-vos, para já, que ela se materializasse na reconstituição do que era o quartel de Guiledje na época.

Procurei por várias formas aceder ao mapa do quartel aí em Portugal, tendo chegado à conclusão que provavelmente ele nunca terá existido. Nada que não possa ser ultrapassado, uma vez que com as duas fotografias tiradas de avião, um bom arquitecto não possa refazer o mapa e até uma maqueta.

É que nós gostaríamos de reconstruir o quartel à imagem daquilo que ele era, desde que isso não implicasse a destruição de belas árvores que entretanto se desenvolveram no interior.

Para isso, iremos fazer durante a época seca um levantamento topográfico com a sua localização, para que se possa casar com o mapa do antigo quartel.

Pensamos que os pavilhões da messe, etc possam ser adaptados para a formação de jovens no futuro CENAR (Centro de Aprendizagem Rural) e que a zona onde habitava a população possa ser aproveitada para: instalar habitações para novos habitantes da região e reservar uma zona para casas de passagem de visitantes interessados em fazer ecoturismo.

Ora é neste ponto que gostaríamos de ter o vosso apoio. Será que vocês poderão identificar um arquitecto, de preferência paisagista, que aceite fazer de forma solidária, a partir das fotografias aéreas, um mapa com todas as instalações, incluindo uma escala que nos possibilite saber as distâncias entre os edifícios, ruelas, etc?

Proponho igualmente que, quando for aí a Portugal no próximo ano, possamos fazer um encontro com as pessoas interessadas no projecto para incorporarmos as suas ideias.

Um abraço
CSchwarz

Guiné 63/74 - P246: Barro, Bigene, porquê? (Virgínio Briote)

Texto do Virgínio Briote:

Pouco passava da meia-noite, o Comandante irrompeu pelo quarto, sentou-se numa das camas, e, sem aviso prévio, disparou:

"Há bocado, em Farim, num batuque com muita gente, a tabanca em peso e alguns militares nossos também, um gajo qualquer lançou para o meio deles um saco com granadas de mão, defensivas e ofensivas, rockets, à mistura com pregos, bocados de metal, garrafas, eu sei lá que mais. Acabou o batuque, foi tudo pelos ares!

O Dakota aterrou lá de noite, com os faróis das viaturas a iluminar o campo. O hospital está a abarrotar, vai por lá um pandemónio.

Tem o dia de amanhã para preparar o seu grupo. Vai até lá, uns dias."

E foi assim, Luís, que começou a estadia em Barro e Bigene (1). Claro que eu vi coisas que ninguém mais viu. O ambiente também era propício à imaginação.
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Nota de L.G.:

(1) vd. post anteriores, do Virgínio Briote, de 1 de Novembro de 2005: as "memórias de um comando em Barro" (Partes I, II e III)

quarta-feira, 2 de novembro de 2005

Guiné 63/74 - P245: Tabanca Grande: Amílcar Mendes, ex-1.º Cabo Comando Mendes (38ª CCmds, 1972/74)

Caro Luis Graça, camarada comando Briote:

Vou-vos falar um pouco de mim. Assentei praça no longínquo ano de 1971 no antigo RAL 1, em Outubro. Ofereci-me para os Comandos onde cheguei em Dezembro de 1971 (CIOE/ Lamego). Completei o curso em Junho de 1972, mês a que cheguei à Guine, a 26. Iniciei a 2ª parte do curso em Mansoa, na mata do Morés, onde tive o primeiro contacto com o IN. Recebi o crachá de Comando em Agosto, com o posto de 1º cabo.

Em Fevereiro de 1974 terminei a comissão mas só regressei a Portugal em Julho de 1974. As histórias pelo meio ficam para outra altura, e tambem as fotos, neste momento tenho o scanner fora de serviço.

Se quiserem saber mais alguma coisa é só perguntarem.

Um grande abraço para todos os ex-combatentes, em especial os Comandos.

Só mais um pormenor, a minha companhia foi a 38ª Companhia de Comandos, os Leopardos.

A. Mendes

terça-feira, 1 de novembro de 2005

Guiné 63/74 - P244: Memórias de um comando em Barro (Parte III) (Virgínio Briote)

Um equipa de "velhos comandos", em 1965/66. O Alf Mil Briote é o segundo a contar da esquerda.

O primeiro é o Djamanta, futuro alferes graduado da 1ª Companhia de Comandos Africanos.


© Virgínio Briote (2005)



Terceira e última parte do texto de Virgínio Briote:

BARRO, BIGENE, BARRO, BIGENE

Em Bigene, bebia-se até cair para o lado, capitão à cabeça. Ou comando ou não comando, o Rasas à rasca com as palavras. Não fico nem mais uma noite neste quarto! Ou acordava com os arrotos ou com as idas do capitão ao quarto de banho, titubeante, amarrado às paredes, vómitos, água do autoclismo. Daqui a bocado, é só umas horas, dizia o Gil para si, ponho-me na alheta!

Estremunhado, parecem estrondos! O barulho da locomotiva na cama ao lado entrara em velocidade de cruzeiro. Rebentamentos? Ai são, são…calças enfiadas, botas sem meias, G3 na mão, prá rua já!

Clarões ao longe, para os lados de Barro. Tal e qual, lembrou-se, como vira uma vez, quando regressava das festas da Agonia em Viana! Galgou as escadas para a sala do rádio, o telegrafista de serviço na cama, a sono solto, não se passa nada aqui, o rádio aflito, a chamar…, não se calava nem o militar acordava. A pé porra, baixinho, só para os ouvidos do militar de serviço ao rádio! Um pulo, o coração dele também pelos vistos, ligação estabelecida, finalmente! Barro à morteirada, há meia hora pelo menos, temos feridos nossos e na população civil também!

Correu para as instalações do grupo, o pessoal cá fora, todos voltados para Barro, Viu o Gigante numa roda de militares, falaram à parte, regressou ao quarto, a locomotiva a andar bem. Pepsodent, cuecas e meias no saco, água na cara, porta fora.

Para Barro, margens da picada, em coluna, bem espaçados, a 1ª equipa bem à frente, destacada uns 50 metros, mais ainda que os cuidados habituais. À medida que iam andando, os rebentamentos iam espaçando, até que deixaram de se ouvir.

Chegados às portas de Barro, meteram-se para dentro da mata, e deixaram-se estar ali um bom bocado até o dia clarear. Quando voltaram à estrada, um dos homens da frente chamou a atenção para o que lhe parecia ser um grande envelope, pregado numa árvore. Duas folhas dactilografadas, tudo em maiúsculas:

“Chamais bandidos (*) aos que lutam pela sua terra e pela liberdade do seu povo. Vós bem sabeis contudo, que verdadeiros bandidos, são vosso patrão Salazar e a camarilha de ladrões que roubam o bom povo português, mandando os jovens da vossa pátria morrer ingloriamente por uma causa injusta e por isso de antemão perdida.

"Sabeis que vossas mães, noivas, irmãos e amigos choram de dor pelos vossos camaradas que morrem neste país que não é o vosso, longe da vossa pátria e da vossa família. Os nossos chefes não estão no chão francês, estão dentro do nosso país.


Cartaz de propaganda das NT... Ou quando o feitiço se virava contra o feiticeiro: o PAIGC também sabia como desmoralizar os nossos soldados...

© A. Marques Lopes (2005)


"Vós sois escravos de um tirano, de um velho caótico de 75 anos, peru vaidoso, que demonstrando claro desprezo pelas gerações modernas do vosso país, em conferência concedida ao chefe do Bureau da Reuter, nas Nações Unidas, declarou que gostaria de se demitir das funções que ocupa mas que não o poderia fazer pela necessidade de dirigir a política portuguesa em África.

"O vosso patrão considera-se o único homem em Portugal com valor para dirigir o vosso país!

"Nós não passamos fome!

"Nós não passamos frio!

"Porque estamos na nossa terra e a lutar pela nossa pátria.

"Na vossa pátria milhares de vossos compatriotas passam fome e toda a miséria possível, vendo-se obrigados a imigrar clandestinamente para o estrangeiro para não morrerem de fome. Só para a França fugiram nestes dois últimos anos mais de cinquenta mil operários, conforme declarações oficiais francesas.

"O nível de vida do vosso povo é o mais baixo da Europa e um dos mais baixos do Mundo! A tropa não vai embora? Sim, infelizmente para vós, muitos ficam! Não voltarão mais aos seus lares, não voltarão mais ao convívio dos seus, jamais voltarão a receber os carinhos dos pais, das esposas, dos amigos.

"Ainda estais a tempo de ir pelo vosso próprio pé! (...)”.

Foram entrando na povoação fantasma. Não se via nem um tropa, só alguns nativos e as gargalhadas deles a ouvirem-se ao longe. Quando viram a tropa a chegar-se, fecharam a cara e viraram os olhos para outros lados.

Uma loja de uma família libanesa, daquelas que vendem arroz, agulhas de coser, frigoríficos, panos, mancarra, o que havia. O Nelas ao lado, cara de infeliz, chávena de café na mão.

Calmaria em Barro era uma vez... por acaso até estava acordado, foi um estrondo a abrir, só queria que ouvisses, não, trovoada não, pá, vai gozar com o caraças, um estrondo mesmo em cima de nós, merdas a partirem-se. Não tive dúvidas, só gritei, cada vez mais alto, malta p’rós abrigos!

Sei lá que horas eram, nem me lembrei de olhar para o relógio. Do lado do rio não, fogo foi só daquele lado, do lado do Senegal. Respondemos pois, ai não, à morteirada para não ficarmos atrás, umas bazucadas de brinde. Para onde? Sei lá, p’ráqueles lados. Queres ver as marcas deles, olha a parede cheia de buracos dos gajos. Não, não fomos ver, ainda não saímos daqui, o Nelas, agitado…

Ficais aqui uns dias, não? Temos um cabritinho para logo, assado vai saber que nem ginjas! E temos mais ali, para ocasiões especiais, como esta é que espero que não! Não pode ser tudo mau, não é?

Quando voltais a sair? Esta noite não, porra! E o Rasas, meteu-se muito nos copos? Aquele gajo já veio bêbado da metrópole, é um profissional do mergulho!

Outra vez, ouviste? Filhos da mãe, os gajos outra vez, que porra! É cada estouro, pá, ouviste? A malta de Bigene, coitados, nem abrigos em condições têm! P’ró rádio! Começou para aí há meia hora, meu alferes, veja lá, há que tempo a nossa malta está a ser atacada, o telegrafista para eles.
Outra vez para Bigene, a mesma caminhada, quase as mesmas horas, procedimentos idênticos. Só o barulho de helis para os lados de Bigene é que foi diferente.

À entrada da povoação atacada nessa noite, os nativos remexiam no chão, nos buracos frescos, não os viam a chegar ou então faziam de conta. Ar de apardalados, caras desanimadas, uma noite infernal! O Rasas, decidido, tinha pedido apoio médico a Farim. Chegara há momentos uma equipa médica e mais um pide. Havia mais cabo-verdianos e negros dentro de cadeias improvisadas. Bigene estava a ser atacada de fora, mas também de dentro, as trajectórias das balas, da casa do administrador e de outras casas também, para a sala dos oficiais e para alguns quartos, não lhes deixavam dúvidas.

Militares num magote, a uma centena de metros além do arame farpado, rodeavam dois tipos brancos com ar de polícias e um desgraçado, àquela distância parecia cabo-verdiano, no meio deles.

São os pides que estão a interrogar o administrador do posto! Está farto de enfardar, toda a maralha já molhou a sopa no gajo, um soldado para outros que corriam para lá, no meio de uma enorme agitação.

Diga lá, senhor Sony, como combinaram então o ataque? Recapitulando, o senhor veio até aqui, esperou junto a esta árvore o Ramos, não foi? E depois, abra lá essa cloaca, conte tudo, que a gente não sai daqui sem o senhor contar tudo, não é? O desgraçado com marcas de sangue fresco na cara, nos braços, nas costas, os olhos exaustos! Até bocados de pele e carne lhe faltavam!

É guerra, Gil, é guerra, o Rasas em brasa! Não é a sua? Aqui não há guerras minhas nem tuas, há guerra só, o Rasas a espumar uísque, no seu ambiente. Só me faltava esta, um gajo dos comandos com comichão? Gil afastou-se, foi sentar-se de costas para lá, com uma água fresca ao lado.

O espectáculo continuava, sem intervalos, agora com mais gente, população local também, todos num magote. E o Álvaro, soldado do seu grupo, no meio deles, parecia também entusiasmado! Ááálvaro! Chega aqui! Estava só a ver, meu alferes! A minha parelha? Estava ali há pouco!

Um dia para esquecer, ou para não esquecer nunca mais! O grupo tinha o regresso a Bissau, marcado para a manhã seguinte. Durmo nas instalações do grupo, disse ao capitão. Até amanhã!

A preparar o burro para se deitar, chegou-se o Gigante. Estávamos a formar o grupo para jantar, quando o Álvaro e o Matos deram um passo em frente. O Álvaro disse alto para todos ouvirem, que o meu alferes os tinha encontrado desaparelhados. Fizeram as 20 flexões da praxe.
A mulher do administrador, de vestido preto sem mangas, o gabinete do Rasas, o gajo a levantar-se, beijo na mão, o sentar elegante e digno dela, o Rasas a passar a mão pela careca, olhos de uísque, a porta a fechar-se com estrondo, o Gil com o coração aos pulos, a querer abrir a porta, não abria, a maçaneta soltou-se com a força, a mão com a maçaneta aos murros na porta, capitão, capitão, não! Acordou sobressaltado, os estrondos enormes lá longe, outra vez Barro, toda a gente a pé, a correr para a rua, o mesmo espectáculo.

Os ataques às povoações de Barro e Bigene fisicamente não os tinham apanhado, nunca souberam nem como nem porquê, talvez coincidências só. Alguém alvitrara que a mudanças constantes terão sido um motivo forte, outros que talvez o IN estivesse a jogar ao gato e ao rato. Chegara até a pegar no grupo e sair aí pelas três ou quatro da tarde, grandes desvios pelo mato para disfarçar, pusera-se com o grupo em frente a uma e outra povoação e depois, aguardara emboscado noite fora até o Sol nascer, que os guerrilheiros flagelassem para os poder apanhar na retirada. Nunca aconteceu. Emboscadas, patrulhamentos, nem um contacto.

Toda a gente falava em Sano. É de lá que os gajos vêem, um acampamento grande! Onde fica isso, o que é que há lá, algum guia para nos levar? Uma noite destas vamos lá acordá-los. E foram até Sano, ao Senegal, sem mais informações a não ser os caminhos que os guias conheciam. Era uma data festiva na metrópole. O Nelas a dizer, esta noite não pode ser, nunca ninguém saiu numa noite destas! Por isso mesmo, Nelas, é uma noite muito conveniente.

Um incidente à partida, invulgar para os costumes deles! O sargento Gigante, bom condutor de homens, pega-lhe no braço, puxa-o para o lado para ninguém ouvir. Estamos com um problema na equipa do White.

Algum problema que o chefe de equipa não possa resolver? O Djassi recusa-se a levar o lança-rockets e as respectivas munições, 6. Mas é costume, isso sempre foi assim, desde sempre, outros carregaram sempre com o material, porque não quer, porque é que o White não consegue que ele entenda?

Que é muito peso, só quer levar 4 munições, os outros que levem as restantes! Não pode ser, Gigante, o Altino leva a MG, as fitas, mais de 10 quilos! Foi ter com o Djassi, ouviu-lhe as razões, pareceu-lhe mais birra que outra coisa.

Os rockets vão, contigo ou com outros, Djassi! Não posso, meu alferes! Algemas nas mãos, enfiaram-no num galinheiro cheio de suspeitos apanhados nos últimos dias, arame farpado à volta, enquanto o grupo se aprestava para sair.

Impossível, um comando estar preso com terroristas, fazer-me isto a mim, o Djassi aos gritos! Tudo pronto para a saída, pelotão do Nelas incluído, o Gigante outra vez, braço no Gil, que tinha resolvido o problema. Djassi achava ter razões suficientes, na instrução o alferes sempre lhe dissera para pensar com a cabeça, mas cumpriria a ordem.

White, Cabelo, os outros todos à volta a aguardar, uma chatice. Tiraram-no e puseram-se a caminho, os dois guias à frente, o Djamanca logo a seguir, o Álvaro e o Gil com o grupo todo atrás. Meia hora depois, o alferes Nelas arrancou com o pelotão. Uma noite boa para andar, lua fraca, noite seca, um pouco fresca.

Viram luzes, ouviram galos, estavam perto de Sano (**), os guias a dizerem que era em frente, aquelas casas que se recortavam ao fundo. Fizeram o que deviam, em linha, bem separados. Curvado, percorrera parelha por parelha, tudo em ordem, que aguardassem. Estamos em Sano, parece não haver dúvidas, Gigante!

Uma povoação no Senegal, se calhar só civis, guerrilheiros o que se sabia até agora era só lenda, mais nada, histórias que tinham um acampamento em Sano. Isto que estamos a ver parece mais uma povoação, galos a cantarem, é melhor pensar bem, não?

Minutos a mirarem Sano. Certo, Gigante, não vamos atacar! Civis lá dentro, amanhã o Shenghor, o Touré, os N’Krumahs (1) todos, um barulho danado na ONU, o Salazar furioso, inquéritos, mais merda, vamos mas é dar meia volta.

Foi o que fizeram, não sem um perguntar, então, e os rockets voltam outra vez? E outro, nem um aviso deixamos? Achas que é preciso, o Gigante a cortar. Regressaram a Brá todos enlameados, por fora e por dentro.

A guerra era para aguentar, só isso. O que havia a fazer era preservar o grupo de tarefas inúteis, de algumas guerras que uns escritores de relatórios muito gostavam de desenhar, para depois realçarem no papel a intrepidez da acção, a argúcia do ataque, os resultados brilhantes, que só eles viram. Quem os devia ler, nas sedes dos batalhões e mais tarde no QG, deveria achar uma autêntica felicidade, tanto fogaréu, ataques tão violentos, tantas baixas no In e a NT sem uma beliscadura, ou então uns feridos ligeiros.

Já à noitinha, em Brá, tão exausto que se deitara só para matar saudades da cama, antes de tomar um bom banho, a cara ainda preta de carvão e suor, o Vidraças a querer saber coisas, a contar-lhe de Bissau. Ficara colado como um íman, a noite toda.

Abriu os olhos para os dentes brancos do Sany, sentado a olhar para ele. Estava sem calças, sem botas, sem meias, em cuecas só! Sem dar por nada, o Sany tirara-lhe a roupa toda! O saco arrumado no canto, o quarto outra vez um brinco.

Enfamara Sany, herança do capitão Manilha, era um tipo raro na Guiné daqueles tempos. Uma dedicação que incomodava, treinado pelo Manilha. Sany!...Sanyyyy!...ofegante, meu alferes estou aqui, essa moeda de cinco pesos (2) caiu-me ao chão, ai que desgraça, acode Sany, depressa! Diligente, elegante como um gato, rosto a rir-se todo, gargalhada estridente, a moeda na mão, posso ir?

Em frente do Sany não podia tirar a camisa. Quando ia pegar nela outra vez, já tinha ido para lavar. Botas a reluzir, fardas lavadas a cheirar a tide, engomadas que era um regalo, o quarto a brilhar, nunca em casa alguma em que estivera antes, vira tanta coisa tão limpa ao mesmo tempo!

© Virgínio Briote (2005)
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(1) Khuamah N’Krumah, Presidente do Ghana, um percursor da África Independente

(2) Escudo da Guiné, naquele tempo, valia um pouco menos que 1 escudo da metrópole.

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Notas de L.G.

(*) Vd. os nossos cartazes de propaganda, em post de 25 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXI: Cartazes de propaganda dirigidos aos "homens do mato"

(**) Vd. post do A. Marques Lopes, ex-alf mil da CCAÇ 3, em Barro, relatando uma incursão, em 1968, a Sano, com o seu grupo de jagudis > 24 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXIX: Nome di bó ? Terça, simplesmente Terça! (Em Sano, no Senegal)

Guiné 63/74 - P243: Memórias de um comando em Barro (Parte II) (Virgínio Briote)

Texto de Virgínio Briote (ex-Alf Mil Comando, Brá, 1965/67)


BARRO, BIGENE

A caminho de Bula, atravessaram o Rio Mansoa em Safim, meteram-se outra vez, a subir até embarcarem em S. Vicente, Cacheu acima, num NRP (1), sentados no convés, a dormitarem. Um marinheiro de ordenança a perguntar, quem é o comandante do grupo, ah aquele ali, o gajo é alferes, tenente ou quê, cumprimento militar para o alferes, de quico em cima dos olhos, a passar pelas brasas.

O marujo, cheio de maneiras, como se estivesse num Hilton, senhor alferes, o senhor tenente Peixeiro tem muito gosto em convidá-lo para almoçar. Uma sala de refeições, grumete negro a servi-los, de travessa na mão, um luxo!

Pés na margem, Unimogs à espera, todo o pessoal lá dentro a caminho de Barro. Nelas, alferes Nelas, apresentou-se. Mas, espera aí, já te conheço, porra, estive contigo em Buba, lembras-te? Não? Duma vez em que andamos perdidos a noite toda, naquele tarrafo (2), lodo por todo o lado, nem conseguimos entrar! Ah, estava a ver que não te lembravas!

Como vai isto? Por aqui, até agora, tudo ok. Em Bigene é que as coisas têm estado mais para o aquecido. A Pide até está lá, têm-se fartado de prender gajos, aquilo tudo minado, os turras estão infiltrados em todo o lado, pá!

O sargento Gigante alojou o grupo, num sítio precário como era tudo ali. Uma rua se tanto, algumas casas de tijolos e cimento, a tabanca atrás.

Pessoal novo tem chegado estes dias? Não, alfero Nela, cá (3) tem chegado, o negro descalço. Atenção Mané, vê lá, se pessoal novo chegar, avisa alferes Nelas, Nelass, não é Nela, correcto? Temos que estar sempre a pau, não é, Gil?

Na manhã do dia seguinte, ao nascer do Sol, despedira-se do Nelas. Vamos dar uma volta por aí. Arrancaram para Bigene, uma dúzia de quilómetros a pé, pelas margens da picada. Tudo calmo. Bigene à vista, um Barro um pouco maior. Foram, entrando, espaçados, em coluna por um, como era hábito, com os nativos a olharem para eles.

Capitão Rasas, comandante desta merda! Baixo, atarracado, para o forte, à volta dos 40. Boa ideia terem vindo, os gajos ontem estiveram aqui, já sabia? Foi forte, coisa em grande, rajadas de fora e de dentro ao que parece, morteiradas, uma hora e tal que durou!Sim de dentro também! Sei lá como entraram, entraram, porra, como quer que saiba?

Não, felizmente, dois feridos ligeiros só, nada de grave, com estilhaços de uma morteirada para além daquela casa, ali, está a ver? Tinha lá um pelotão alojado! Tenho a Pide cá, parece que um gajo de Farim está a falar, temos metido uns gajos dentro.

O pide, camisa de caqui de cor indefinida, cabelo a cheirar a panténe, pusera-os ao corrente. Os gajos, ah, senhor capitão, a comer à vossa mesa, ah? Agora sente-se capitão Rasas, sente-se, se não cai…

Preciso que venha comigo, o capitão para o Gil, vamos ali fazer uma visita, com este senhor. Venha, venha daí, vamos conversando! Uma casa ampla, flores à entrada, pequena horta nas traseiras. “Panténe” a abrir o portão, o capitão com o alferes atrás, 2 ou 3 escadas. Uma senhora, 30 e tal, graciosa, cabo-verdiana, mão na porta, surpreendida com as visitas. Meu marido está no banho, vou-lhe dizer, voz de medo, o pide, desconfiado, a olhar para o capitão.

Nós entramos, com a sua licença, minha senhora. Mas ele está no banho, vou chamá-lo, não demora! Uma sala espaçosa, mesa, as cadeiras, mais duas grandes para a preguiça, motivos africanos, estatuetas de pau-preto, coisas assim. Bons momentos devem escorrer aqui, os dois, as tardes a irem-se na calmaria, a imaginação do Gil.

O administrador do posto de Bigene, algemado com as mãos atrás, carapinha ainda a escorrer, um equívoco, senhor, só pode ser, a mão do pide nele. Deixa apertar a camisa, Sony, tira as sandálias, calça o sapato, a senhora ajoelhada, aos soluços, lágrimas pela cara abaixo.

Bem boa, ah, mesmo no ponto, ó Gil, não diga que não marchava já, cá fora o capitão Rasas, gorduroso, os olhos pequeninos. Que merda! Mão na cara, a limpar os perdigotos. Um cheiro a uísque, um uísque velho, azedo. Merda de gajo!

© Virgínio Briote (2005)
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(1) Navio da República Portuguesa

(2) Tarrafo: na margem daqueles rios, uma teia densa de troncos finos de 2 cms de espessura máxima, rijos, muito juntos, formam uma autêntica cortina, impossibilitando praticamente a visão para dentro da mata. Enterram no lodo os caules finos que se alimentam de água salgada, outras vezes incrustam-nos em aflorações rochosas semeadas de ostras. Vista de longe, a folhagem verde absorve a tonalidade característica dos caules e mostra um ar sombrio, clorofila baça.

(3) Não, em dialecto crioulo

Guiné 63/74 - P242: Memórias de um comando em Barro (Parte I) (Virgínio Briote)

Texto do Virgínio Briote com a seguinte nota ao editor do blogue: "Das minhas memórias de uma estadia de quase três semanas em Barro. Não sei é se a linguagem passa... fica ao teu critério. Mando-te hoje a parte 1". [Vd. a nossa página dedicada aos comandos na Guiné].
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AULA DE GEOPOLÍTICA EM BARRO

Que foda! Esta merda, ah! Não, pá, estava tudo calmo. Bem temos que ver, isto é geopolítica complicada, a malta, o nosso governo tenta manter esta merda sob controlo, estamos aqui quê, 15, 20 mil gajos, não? Não é pela Guiné, claro, esta terra não tem nem um caralho, por outro lado é preciso ver, os soviéticos querem manter o Salazar sob pressão, estás a ver, dispersão de esforços, para a malta não se concentrar em Angola, petróleo, diamantes, madeira e tal, a Guiné é pretos, água e mosquitos, fazem-me a vida num inferno, os filhos da puta picam-me até dentro dos lençóis, grandes cabrões, aqui mais nada, estás a ver, não é? É pá, falam da ONU, a ONU é outro buraco, dali não sai nada para nós, pá, o Johnsson[1] está ensopado no Vietname, não vês, porra, os Américas nem a cabeça podem pôr de fora, caladinhos que nem cucos, votam a nosso favor nas coisas menos importantes, votam contra nós nas outras, porra, querem lá saber!

Barro, o que é Barro? Um buraco minúsculo, muito pequenino mesmo, metido num buracão que é a Guiné, correcto? Mas nada de problemas, sempre calmaria até à semana passada, percebes? Agora, aquela bronca de Farim, é que foi o caralho! Está aqui a malta metida, meia dúzia de gatos-pingados, ainda por cima meias-fodas, que não têm onde cair mortos, a ver se o tempo passa, agora chegam vocês, só me faltava mais esta, caralho!

Mas qual ajuda, qual merda! Vocês vêm mas é foder-nos, foder-nos, letra grande, ouviste? Ó pá, isto em linguagem vernácula é assim, nós abrimos o cu, alargamos bem com as mãos e vocês metem, é o que é, porra! Montam aqui as barracadas e tal, abanam a árvore, as putas das abelhas, dá-lhes não sei o quê, parecem stukas a cair em cima de nós, é um caralho! Vocês a seguir vão para o quentinho, para Bissau não é, p’rás cabo-verdianas, para o meio da coxas delas, lençoizinhos brancos que elas gostam, mosquiteiro e tudo, não é, que eu bem sei, também passei por Bissau, ainda me lembro, que é que julgas, a malta aqui nem o padeiro vê, há que tempos que já nem me lembro, ó pá, aqui só tropa branca e pretos, atenção, mais nada, nem pides ah!

A propósito não és da pide, pois não? Estás a brincar, olha que tu és dos comandos mas eu fodo-te! Ouviste, desculpa lá, cabo-verdianas, pois, obrigado, agora estou sempre a lembrar-me é da mão, sim é com esta, sou canhoto, porquê importas-te? Ah bem, era só o que me faltava vir agora um guerrilheiro de Bissau dar-me moral, dizer-me para mudar de mão, nem a professora, a Dª Eugénia, lá de Vinhais, boa senhora coitada, aquilo é que era uma professora agora já não há disso, o que é que estava a dizer, ah já sei, olha que nem a Dª Eugénia, coitada da senhora, cansou-se de falar com a minha mãe, não me puxavam as orelhas, qual quê, amarravam-se a elas, foda-se, estás a ver como ficaram, espera aí, acabo já, de que é que estávamos a falar, ah a mão, claro já me lembro, estou a dizer-te, amigo, nem a Dª Eugénia conseguiu mudar-me a mão, ouviste?

Ainda há bocadinho, antes de vocês chegarem, dei com uma revista, ai nossa senhora, uma revista qualquer, sei lá, qual Playboy qual caralho, essa merda fica toda em Bissau nas mãos da coronelada, ar condicionado e tal, espera aí, já sei, Estúdio ou Studio, agora não tenho bem a certeza pá, era uma revista de cinema, a Ava Gardner, uma artista, sabes quem é? Sentada num banco alto, sabes, ai nossa senhora, não vais acreditar, umas pernas, o vestido um bocadinho acima, os joelhos à mostra, quando fui à sentina, baixei as calças pá, não sei como, sai-me o pau virado p’ra cima, quase encostado ao umbigo, ouviste?

Estás a rir-te? Desculpa, amigo, agora a sério, desculpa pá, estavas a falar de quê? Estou meio zuca, não repares pá! Não era só eu que estava a falar, desculpa lá, mas tens que ver, estou aqui há não sei quanto tempo, há dias que não falo, há dias em que falo sozinho, acreditas? Gil, ó Gil, espera aí, o que é que eu estava a dizer? Ah, sim! Então, vocês levantam a caça, põem-se na alheta, depois é que é o caralho, nós é que vamos apanhar com os cagalhões em cima, foda-se, fodam-se todos mas é!
...

Olha é trovoada, não estás a ouvir? Não ouves, porra? Ouvidos de Bissau, claro, é só carros, não têm ouvidos para outra coisa. Aqui em Barro não há surdos, ouvimos tudo, até vocês a foderem em Bissau!

Pouco mais de um metro e meio, cabelo só dos lados, de bigode farfalhudo, Nelas, o alferes Nelas como era conhecido, comandava aquele destacamento com a garrafa de uísque mesmo à mão. Gil ao lado, numa esteira presa aos pilares da casa onde estava alojada a inteligência deste posto avançado, Barro, na fronteira norte com o Senegal.

Do quarto onde funcionava o posto rádio, o radiotelegrafista a gritar, alferes Nelas, Bigene está a ser atacado.

© Virgínio Briote (2005)
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[1] Lyndon Johnson, Presidente dos EUA que sucedeu a J. Kennedy

Guiné 63/74 - P241: O regresso dos Comandos (Amílcar Mendes)

Guiné > Brá > 1965:

Os "velhos comandos"

Fonte: © Virgínio Briote (2005)

Texto de A. Mendes (... com um abraço ao Briote) (1):


Escolheram um entre cem. A elite do exército. São 130 com oficiais sargentos e praças. São uma companhia de Comandos que aguardam o fim do silêncio ao cair da noite. Todos envergam o dolmen que ostenta o crachá e o lenço preto será o respeito pelos que ficaram. São todos veteranos de Africa . Soldados que guardam no fundo do peito, após o regresso de África, a nostalgia indefinível de terem deixado lá longe, do outro lado do mar, a liberdade de uma vida há pouco começada. Pois lá longe havia a guerra e nela sentiam-se livres, livres e iguais, livres e pobres. Ricos, somente, dos seus músculos, das suas armas e da sua Audácia.

Lá longe até o vento tinha um certo gosto e a terra selvagem parecia cantar. É certo que havia medo e era preciso ter corajem.Uma bala perdida ou um estilhaço acabavam sempre por vencer.
A Pátria dos Comandos estendia-se de Lamego aos planaltos de Moçambique, onde as granadas erguiam a noite dos tempos para os bravos. Era aí que se batiam os jovens guerreiros que só em si próprios acreditavam, recitando por puro prazer o credo das suas legiões a milhares e milhares desses senhores palavrosos que se permitiam medir-lhes a glória ou a crueldade.

Foram felizes e todo-poderosos. Regressaram para cumprir os ritos da sua guerra. Para se recolherem. Para compartilhar, também, da sua Pátria faternal, beber em honra dos sacrificados, cantar com os camaradas de armas. Como já tinham feito outrora os seus irmãos, seguindo a tradição dos veteranos. Soldados das matas, marcados pela África onde se bateram para respeitar o juramento à Bandeira e ao Código Comando.
____

(1) O Mendes foi comando na Guiné, de 1972 a 1974. Bateu o território "de norte a sul, de este a oeste". Esteve em todos os sítios quentes: Morés, Cubiana-Churo, Óio, Cantanhez... E ainda "em Guidaje, no cerco de Binta a Guidaje, enterrando os nossos mortos na bolanha do Cufeu" (!)... Promete voltar e contar coisas que vocês não sabem... Saúda todos os ex-combatentes da Guiné.

segunda-feira, 31 de outubro de 2005

Guiné 63/74 - P240: Ana/Siga ou as mulheres do PAIGC de que nunca se fala (Virgínio Briote)

1. Fiquei com curiosidade em saber o resto da estória contada pelo Virgínio Briote sobre a Ana, enfermeira do Morés. Mandei-lhe um e-mail:

"Virgínio: Já publiquei a tua estória que voltei a adorar. Parabéns!... Fico com curiosidade em saber o que fizeram, naquele tempo, ao comandante que vocês apanharam com as calças na mão (literalmente!) e com a enfermeira que deveria ser uma mulher corajosa, uma verdadeira mulherd e armas (...). Um abraço".

Publico aqui a pronta resposta que ele, V.B., teve a amabilidade de me dar. Aqui fica a resposta, sem mais comentários ou, se o os tertulianos assim o quiserem, com um desafio para sabermos mais sobre o papel das mulheres que, de um lado e de outro, também participaram na guerra, de maneiras diferentes (como confidentes, madrinhas, amantes, enfermeiras, professoras, combatentes, etc.):


2. Texto do Virgínio Briote:

O Comandante teve que ser interrogado logo ali, sem as cerimónias que o cargo dele exigia. Uma vez que as informações que passou eram claramente sem importância, não houve possibilidade de proceder a qualquer exploração. De resto uns tipos, poucos, talvez três ou quatro, estavam a fazer-nos pontaria e a Siga, verdadeiro nome da Ana, resistiu quanto pôde, como só as mulheres o sabem fazer, quando querem.

No chão, mamilo na boca da bebé, era muito difícil, a qualquer um de nós gerir a situação. Por um lado, o respeito que a imagem nos merecia, por outro a consciência de que a Siga estava a fazer o que podia para que os [seus] camaradas tivessem tempo para nos preparar uma retirada como devia ser. E ela veio, à força, dois soldados a arrastá-la pelo chão, a bebé no colo de outro soldado, as chicotadas a ouvirem-se, os gritos dela e doutras bajudas, um pandemónio.

Depois, já na estrada, recolhidos pela companhia de apoio, a Siga e o comandante foram na minha viatura. Ela ficou muito ofendida comigo, pela forma como foi tratada, sem humanidade, disse-me na cara. E que, quando chegasse a Mansoa, iria apresentar queixa contra mim. O que fez, vim eu a saber uns tempos mais tarde pela boca do major das operações do batalhão de Mansoa.

O que foi deito deles? Gostaria de saber, mas não soube mais nada. Os procedimentos que seguíamos, no caso de prisioneiros, era entregá-los à chefia do Batalhão. Nunca vim a saber o que foi ou é feito deles.

Que merda!
Um abraço,
vb


PS - Luís, já depois de termos falado ao telefone [,hoje, da parte da tarde], contactei um velho camarada de armas que, muito jovem, acompanhou os pais na viagem rumo à Guiné, onde tinham vida estabelecida. Estudou em Bissau, foi colega de muitos jovens que mais tarde se envolveram na luta pela libertação. Um deles, o Domingos Ramos, foi mesmo incorporado no 1º CSM que se fez na Guiné. Ora o Domingos era irmão do Pedro. Diz-me o velho camarada que eles eram negros "assimilados", talvez da etnia papel.

A Fima Siga era uma das enfermeiras (auxiliares, penso eu) de Morés. Na altura encontrámos uma caixa com os medicamentos que eles estavam a utilizar e as informações que me foram transmitidas no trajecto do regresso levaram-me a crer que ela respondia pela enfermaria. O Comandante tratava-a com alguma reverência, apercebi-me disso.

Já depois de ter lido a nota que te enviei sobre o que tinha sido feito deles, notei que escrevi que se ouviam "chicotadas, bajudas aos gritos", etc... Ora bem, as chicotadas que se ouviam eram chicotadas de projécteis. E foram só essas que eu ouvi.
Gostei de te ouvir.

Fonte: © Virgínio Briote (2005)

3. Transcrição da carta (ou bilhete, entregue por mão própria) de Pedro Ramos, quadro do PAIGC, dirigida a Siga, sua amiga, namorada, noiva ou simples camarada de partido (A Ana, enfermeira do Morés, na estória do Virgínio Briote). Não tem indicação de data, mas deve ser de Maio de 1966, a avaliar pelo seu conteúdo:

"Quirida Siga:

"Junto a este bilhete desejo-te uma optima saude e a Odete. Eu por cá saudades sua[s].

"No que se trata [a]o meu regresso até agora não poço esplicar ninguém [não posso explicar a ninguém] se vou regressar em breve, porque o camarada Osvaldo (1) não disse nada na [sobre a] minha vinda, mas parecia-me que regressava logo que acabar.

"Recebi os medicamentos e a pasta. Não te enviei arroz agora porque estamos ali com faltas de camaradas devido aqueles que mandamos para Morés no dia 20/4/66 para levarem os postos de Radio.

"Espero vires passar aqui uns dias conforme carta de Nha Maria, isto é se não te dá sarilho mais tarde no teu serviço. A respeito ainda da vinda do teu pai que me encontra ausente, só te digo uma coisa. Sinto muito pena a [de] não podermos conhecer-se e falarmos principalmente a teu respeito. Cumprimentos a todos, Pedro Ramos".
_________

(1) Presumo que se trate do histórico dirigente do PAIGC, o Osvaldo Vieira, um dos heróis da luta de libertação. O Aeroporto Internacional de Bissau ostenta o seu nome. L.G.

4. Comentário de L.G. :

Virgínio: Esta peça vale ouro...Presumo que tenhas encontrado o bilhete na posse da Siga... O bilhete deve ter sido escrito em maio de 1966, por um tal Pedro Ramos, que tinha na época uma missão importante na guerrilha e que estava sob as ordens do histórico e poderoso Osvaldo Vieira... Confirmas ?

Sabes mais alguma coisa desse Pedro Ramos, que devia ser um jovem de Bissau, escolarizado, de etnia papel (ou seria caboverdiano, pela utilização do "nha", em Nha Maria ?)... Tento descobrir a relação que ele tinha com a Siga: deveria ser noiva, na época (a avaliar pela referência ao pai dela)... Mas tu e o teu grupo apanharam-na já com uma filha de colo...

Em meados de 1966, estavas tu em Mansoa. Ela era efectivamenhte uma enfermeira do PAIGC, ou apenas um "elemento suspeito" da população do Morés ? Pelo comportamento dela, que tu descreves, deveria ser alguém muito determinado e com envolvimento político... Tens mais estórias destas, envolvendo mulheres na guerrilha ? Um abraço. Luís Graça.

5. Novo esclarecimento do V.B.:

Mais um dado ou pista fornecido pelo meu velho camarada de armas que viveu a adolescência em Bissau:

"Caro Briote: Acabo de ler as suas intervenções no blogueforanada que achei excelentes.
Ainda bem que, lentamente, se vai fazendo luz sobre o que verdadeiramente se passou por terras de África durante a chamada Guerra Colonial. Continue.

"Veio-me à memória, toldada por uma compreensível neblina (já lá vão mais de 40 anos), que o Pedro Ramos foi funcionário do porto de Bissau ou da Alfândega. Não sei se teria ou não fugido para o mato para o PAIGC mas pelo relato da carta parece que sim" (...).

Guiné 63/74: P239: Estórias do outro lado: Ana, a enfermeira do Morès (Virgínio Briote)

O alferes miliciano comando Briote (à esquerda), na base aérea de Bissalanca, em Bissau, juntamente com o Furriel Azevedo (ao centro) e o Sargento Valente (à diereita). Foto de 1965 ou 1966.

© Virgínio Briote (2005)

Texto do Virgínio Briote, ex-alferes miliciano, comando (1965/67)

Caro Luís,

Das minhas memórias, uma história passada no Óio.
Um abraço, vb.


Ana, enfermeira do Partido

As cordas apertadas demais, os pulsos a inchar, amarrados atrás das costas. Tinha acabado de ser apanhado pelos tugas, ainda nem sabia como, e logo a ele é que deveria acontecer. Como comandante do PAIGC, sempre fora muito rigoroso com os 10 homens que agora estavam sob o seu comando, sempre exigira que se deslocassem separados uns dos outros, que parassem de vez em quando, escutassem a mata, os olhos a varrerem devagar, da esquerda à direita, e só depois avançar outra vez. E, afinal, fora apanhado desprevenido, sem arma, sem nada!...

Viera a semana passada dos lados de Sano, no Senegal. Muito cansado. Estivera com os camaradas do sector, os dias pelas noites fora, analisaram o trabalho do mês, cada um apresentou o seu trabalho, as emboscadas que fizeram, as minas que plantaram, os ataques aos quartéis da tropa. Fizeram um balanço da situação, leram as directivas do camarada secretário-geral, as orientações gerais para a luta, a referência expressa à luta dos povos da Guiné e Cabo Verde, para a independência nacional, para a libertação, nunca contra o povo português, juntos na mesma luta contra o colonialismo e o imperialismo, depois as orientações locais, o plano para o mês, não descansar a tropa, escrever papel para deixar junto aos quartéis deles, para desmoralizar, e a ordem para mudar, outra vez, o acampamento de Uália (I).

Cartão de identificação militar do Alf Mil Comando Briote > Brá, 1965 > A assinatura parece ser a do comandante da compamnhia de comandos, o capitão de artilharia Nuno J [osé Varela] Rubim.

© Virgínio Briote (2005)

Enquanto regressava com os camaradas, ia pensando nos locais, escolhera o melhor, bem dentro da mata, umas centenas de metros a seguir à bolanha, um barraco junto a esta para vigiar a entrada. Sacos de arroz, mancarra, tudo às costas, bicicletas, cunhetes de munições, armas, tanta coisa, casas às costas, tão pouca gente, precisaram mais que uma vez.

Tinha estado a cavar um abrigo, precisava de se lavar. Fora à bolanha para tomar banho e trazer água. Viu-se cercado por dois soldados de arma apontada, sem saber como, os tugas emboscados mesmo à porta das casas de mato, os garrafões na mão dele, que a tropa tinha deixado em Morés da última vez (II).

Tropa diferente esta, não era a que estava habituado a ver passar. Sem emblemas, sem anéis, sem fios que os outros tugas trazem sempre, ronco nenhum, só lenços camuflados ao pescoço, sem capacetes até, aquele tem barrete diferente, caras pintadas de preto, nunca vira tropa assim.

Pára-quedistas, se calhar! Não, não deviam ser, esses são todos altos, têm camuflado muito verde, a bota que usam é de couro, conhecera-os bem quando assentara praça no colonialismo em Bissau. A farda destes é castanha como a dos outros, uns muito altos, outros pequeninos, todos desiguais, não, estes são outros. Estranhos, quase não falam entre eles, o cano das armas deles também têm olhos, vêem por ele, para a esquerda, para a frente, para a direita, aquele está sempre a olhar para as árvores, tudo muito devagar, assim é bem difícil, camaradas, apanhá-los.

Abriram-me a boca à força, eu não sabia para quê, um lenço preto nos dentes, atado na nuca, outra vez que me levantasse, sem palavras nem maneiras, corda nos pés, uma à cintura presa ao soldado Papel [1]. Via-os à frente, no trilho para Uália, nosso pessoal descuidado a esta hora da manhã, sem aviso, vai ser uma desgraça, tanto trabalho para nada. Todos não estão, felizmente, mandara 8 para Mansabá, uns para montar mina e os outros para segurança.

Aquelas bajudas com os cestos à cabeça vão ser apanhadas, gritai, gritai com toda a força que puderdes, mais alto, mulheres do PAIGC, glória da nossa luta, assim, para camarada ouvir! Os tugas todos a correr, o traidor Papel amarrado a mim, não deixa andar, se eu pudesse! Aquelas crianças ali também!

A enfermeira de Morés? A mulher do Paulo Ramos com a criança às costas?! Porque não fugiu? Não pode ser! Não, não lhe façam nada, ela trata do nosso pessoal da luta, faz curativos só, os tugas não me ouvem, lenço não deixa.

... Não sei, não tenho nada para dizer, meu nome é Ana, sou enfermeira, não sei nada da guerra, trato de feridos só, não pode mexer nesse papel, é carta de meu marido, ouviu? Não pode tirar bilhete de meu marido, não pode! Tenho filhinha às costas, não vê? É hora de ela mamar, largue-me!

© Virgínio Briote (2005)
_________________________________


[1] Tribo Guineense (nota de V.B.).


Observação de L.G.: O guarda do prisioneiro desta estória era de etnia papel e, muito provavelmente, era apenas um milícia ou guia das NT, se bem que esta companhia de comandos a que pertencia o Alf Mil Briote integrasse já alguns africanos, tão voluntários como os tugas: seria o caso, por exemplo, do Jamanca, que fazia

© Virgínio Briote (2005)

parte da 1ª equipa do Grupo de Combate do Alf Briote (vd. foto ao lado). O Jamanta viria, mais tarde, a fazer parte dos quadros da 1º Companhia de Comandos Africanos, como alferes graduado e que eu cheguei a conhecer, superficialmente, em Fá Mandinga, em 1970: vd post de 11 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri


Nota de L.G. :

(I) Na carta da Guiné, dos Serviços Cartográficos do Exército, de 1961, há uma povoação com este nome, Uália, na região do Óio, a nordeste de Mansabá, na bacia hidrográfica do Rio Ionfarim, também perto de Mansomine.

Quem conheceu bem esta região, e esteve em Mansabá (sede do COP 6) e fez protecção aos trabalhos da estrada Mansabá-Farim, foi o Vitor Junqueiro, membro da nossa tertúlia, hoje médico. Ele foi Alf Mil Atirador de Infantaria da CCAÇ 2753 (Os Barões)(1970/72). Vd. post do nosso camarada, de 4 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXV: Informação & propaganda: de que lado estava a verdade ? (2).

Nesse texto ele faz referência a dois destacamentos temporários onde esteve a CCAÇ 2753, na sua missão de protecção aos trabalhos da estrada (estratégica) de Mansabá-Farim: Bironque (a partir de 1 de Dezembro de 1970) e Madina Fula, mais a norte, a 8 km de Farim (a partir de 13 de Janeiro de 1971).

É neste contexto que o Vitor faz referência à base de Uália: "Numa região enxameada por bases do PAIGC localizadas nas regiões de (e volto a citar dos registos) Cã Quebo, Santambato, Cambajú, Iracunda, Mansodé, Cubonje, Canjaja, Biribão, Ionfarim, Uália, Mansomine, Binta, Queré, Banjara e Manhau, qualquer movimento nosso era acompanhado por acção semelhante por parte do IN, tornando-se o contacto inevitável".

(II) O Morés era uma das zonas míticas do nosso tempo: vd. localização da antiga povoação do Morés, no mapa dos Serviços Cartográficos do Exército (1961), dentro do triângulo Olossato - Mansabá + Bissorã.

terça-feira, 25 de outubro de 2005

Guiné 63/74 - P238: Antologia (22): Madina do Boé, por Jorge Monteiro (CCAÇ 1416, 1965/67) (Luís Graça)

Vista aérea do aquartelamento de Madina do Boé (1966)

© Manuel Domingues (s/d) (?) (1)

Madina do Boé foi varrida do mapa da memória dos portugueses, excepto muito provalvelmente no nosso caso, ex-combatentes. A geração dos nossos filhos e netos não conhece esta pequena parte da nossa história do Século XX. Madina do Boé não lhes diz nada, a não a ser talvez o termo bué, que nada tem a ver com Madina do Boé: Bué "é um calão luandense, que tem o significado do beaucoup francês, muito de: bué de charros, bué de confusão, bué de preconceitos. Tudo o resto (incluindo a variante boé) são corruptelas derivadas de uma apropriação crescente da linguagem popular portuguesa" (Fonte: Ciberdúvidas da Língua Portuguesa).

Para a nossa tertúlia e demais ciberamigos, achei por bem transcrever uma velha entrevista que o ex-capitão miliciano Jorge Monteiro, comandante da CCAÇ 1416 (1965/67) deu ao semanário luandense A Palavra, em 1 de Fevereiro de 1974.

Este depoimento foi depois reproduzido no livro do Manuel Domingues, já aqui recenseado pelo nosso camarada A. Marques Lopes (2): Uma campanha na Guiné (1965/67): história de uma guerra: relatos e memórias dos intervenientes.

Neste livro, que é edição de autor e que relata a experiência dos homens do BCAÇ 1856, espalhados pela região do Gabu (Nova Lamego, Madina do Boé, Béli, Bajocunda, Copá, Buruntuma, Ponte Caiúm)(3), há pelo menos quatro depoimentos sobre Madina do Boé:

(i) Afinal o que é Madina do Boé?", por Jorge Monteiro, Cap Mil da CCAÇ 1416;

(ii) Retalhos de uma campanha, por António Sousa Madureira, Fur Mil da CCAÇ 1416;

(iii) Aconteceu em Madina do Boé, por José Miranda Alves, 1º Cabo da CCAÇ 1416;

(iv) Aspectos caricatos de uma guerra, por António Araújo, da CCAÇ 1416.

Infelizmente ainda não encontrei nem li o livro. Reproduzo, com a devida vénia, o depoimento do Jorge Monteiro, a partir de uma versão digital que encontrei no Blogue do Fernando Gil > Moçambique para todos. A uns e a outros a minha homenagem e agradecimento.

Mais do que a leitura que entrevistado e entrevistador fazem da retirada de Madina do Boé (que é a da desvalorização do seu significado político-militar) e da proclamação posterior de Madina do Boé como capital - não do PAIGC, mas da nova Guiné-Bissau, imediatamente reconhecida por dezenas países -, importa sobretudo perceber as duras condições físicas e psicológicas em que os nossos camaradas viveram, durante anos, em Madina do Boé. Tiro o meu quico aos bravos de Madina do Boé, heróis de ontem, hoje já esquecidos tal como a sua/nossa guerra, perdida (4). L.G.


2.2. Afinal o que é Madina do Boé? Por Jorge Monteiro, Capitão Miliciano da CCaç 1416

Nota: Este documento foi-me entregue por Jorge Monteiro e reproduz uma entrevista que concedeu ao Semanário de Luanda A Palavra, em 1 de Fevereiro de 1974. O motivo próximo, conforme é referido pelo entrevistador, cujos comentários aparecem no texto em itálico, tem a ver com o facto de o PAIGC, em 24 de Setembro de 1973, ter proclamado a unilateralmente a Independência, exactamente em Madina do Boé.

O significado político deste acto era muito mais importante do que o valor que Madina do Boé militarmente pudesse representar para o Exército Português, o que na altura parece ter passado despercebido aos estrategas militares. Mantivemos o texto integral da entrevista de quem viveu onze meses, naquele que em 1966/67 era considerado o pior local da Guiné. MD [Manuel Domingues]

Entrevista de Jorge Monteiro, ao semanário A Palavra, Luanda, 1 de Fevereiro de 1974:

A recente visita de Baltazar Rebelo de Sousa, Ministro do Ultramar, a terras guineenses, aproximou de mim Madina do Boé. Ela veio personificada num amigo de todos os dias, o ex-capitão miliciano Jorge Monteiro, que em 1965 iniciou prestação e serviços na Guiné como comandante de Companhia 1416 (integrando o BCAÇ 1856) reconhecido posteriormente como um dos mais valorosos servidores da causa portuguesa em terras ultramarinas.

Em 1967, regressado à Metrópole, ele foi condecorado, nas cerimónias do 10 de Junho, pelo próprio Salazar, com a condecoração de grau mais elevado atribuída esse ano, a medalha de valor militar com palma, ganha precisamente por actos praticados na defesa intransigente, durante onze meses, de Madina do BOÉ, ora apontada pelo PAIGC como capital da Guiné Livre.

Já tinha lido muito sobre essa localidade, tão na boca do mundo ultimamente, mas jamais poderia ter chegado a conclusão tirada após a conversa esclarecedora: Madina, afinal, é apenas um escroto, um resto deixado ao desbarato pelos planos tácticos portugueses, desde que se entendeu ter ela pouco ou nulo valor estratégico, mesmo olhada como base tamponária.


Diz-me Jorge Monteiro:

Madina do BOÉ eram (hoje não são) cinco casas, incluindo uma escola. Escola, que já nessa altura, estava completamente abandonada, Aliás, tudo estava abandonado, por que Madina servia em tempos tão somente como passagem entre a desolação Sul do BOÉ e as riquezas nortenhas do Gabu, parecendo incrível como um rio, o Corubal que separa as duas regiões, seja suficiente para demarcar uma fronteira de potencialidades.

O BOÉ, a zona mais pobre de toda a Província, sofre a inclemência impiedosa do tempo que vai de Maio a Setembro, com chuvas torrenciais contínuas que alagam por completo a região vedando portanto qualquer tipo de plantio para a agricultura mesmo arcaica.

Como te disse já, em 1967 só lá havia a minha Companhia, completamente isolada nessas alturas do mundo circundante, a tal ponto que só podíamos ser abastecidos de pára-quedas. Felizmente que assim era, pois esse isolamento fazia com que não tivéssemos uma população civil por quem responder, toda ela preventivamente evacuada Não nos podemos esquecer, aliás, que o primeiro indício de actividades do PAIGC, no BOÉ, data de Novembro de 1964.

Com efeito, o PAIGC tinha começado muito antes a sua actividade, organizando-se burocraticamente desde aquele ano de 1959 quando Amílcar Cabral, hoje falecido por causas ainda não totalmente determinadas ingressou no Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), quando do regresso da União Soviética.

Porém, o conflito armado, com acção directa sobre o território português da Guiné, só se verificaria mais tarde, em 1962, nas povoações limítrofes de Susana e Varela, na fronteira Norte, muito longe do Sector Leste, onde está integrado o BOÉ.

Nesse lado, vis-a-vis o Senegal, há uma fronteira de quarenta quilómetros, muito mais pequena do que a que delimita o território português a Sul e a Leste, num total de 350 quilómetros face à República da Guiné, de e por onde, a infiltração dos efectivos do PAIGC nunca encontrou quaisquer dificuldades, progredindo sem perigos de retaguarda, por todo um baldio, e dominando as posições estratégicas que sobranceavam Madina, flagelada constantemente com fogo cerrado, acobertados pelos contrafortes que dominavam a antiga povoação em três quartos do seu perímetro topográfico.

Madina, diz-me o ex-capitão Monteiro, era o penico dos gajos. Havia horas certas para eles fazerem as suas dejecções muito desajeitadamente com obuses, granadas, rockets, e utilizando indiscriminadamente bazucas, morteiros e canhões sem recuo. Foi assim sempre, eu e os meus homens aguentámos aquilo durante onze meses, contados dia a dia pelas salvas com que eles nos mimoseavam.

Naquela, altura a ordem era AGUENTAR, por ser necessário tamponar convenientemente a retaguarda, implantando um sistema defensivo eficaz. Porque aquilo era mesmo de abandonar, pela pobreza da Zona e sobretudo não merecer sequer a conclamação das atenções, a vigília constante e a tensão desgastadora com que lá se vivia. Com um cordão defensivo, como o que se efectivou, atrás da posição de Madina ter Madina ou não ter era a mesma coisa.

Vou explicar: 200 homens da minha Companhia, aliás antes eram também 200 de outra e, depois de mim, eram outros 200 da que nos substituiu, chegaram e sobraram para manter a posição. Um número tão diminuto de homens nunca foi ultrapassado territorialmente pelos efectivos do PAIGC, que se entretinha a dar tiros de longe para marcar uma posição mais sonora que física.

Só uma vez tentaram o assalto, chegando mesmo a lançar cordas com ganchos para destruir a vedação farpada, servindo-se da chuva mais opaca que já vi na minha vida que nos impedia a visibilidade e lhes abafava ou confundia os ruídos dos passos. Mesmo assim foram repelidos, sofreram baixas bastante consideráveis e optaram por voltar à origem preferindo continuar no dia seguinte os tiros de longe e repudiando para sempre o corpo a corpo. Ora bem: se 200 homens aguentaram a posição ano após ano, e repara que em 1967 eles já tinham todo aquele potencial bélico, quem acredita que o abandono de Madina foi imposto?

Pensar isso é ridículo, mesmo objectando que eles poderiam ter aumentado os seus efectivos para um ataque maciço: Mas ainda há dois meses o general Bettencourt Rodrigues esteve lá, e quem faz guerra, quem viveu ou vive a guerra sabe que não se brinca com essas coisas, mesmo num bluff cuidadosamente calculado, mas mesmo assim sempre irresponsável, as balas matam seja lá quem for e os próprios jornalistas que o acompanharam por certo também não arriscavam de ânimo leve, as suas vidas, eles que são correspondentes de guerra com experiência de outras, por virtude muito mais violentas e que ainda se desenrolam. Em resumo: ninguém estava lá. O interesse de Madina era limitado a um certo tempo, e a partir daí não contava mais.

Eu, que vivi em MADINA durante onze meses, que constatei a inutilidade daquele chão, o clima inóspito, a desolação desértica, sei que Madina não vale sequer a chuva que lá cai. E eu, deixa-me ser um pouco contemporizador, que me apercebi duma certa coerência por parte de quem norteava a táctica das guerrilhas do PAIGC (porque é sempre preciso ser-se coerente para não se perder tudo de uma só vez, contra um adversário técnica e tacticamente muito mais evoluído), não posso sequer admitir que ATÉ ELES apregoem Madina, uma autêntica fossa, como capital do seu orgulhoso desiderato. Se isso for verdade, se de facto eles dizem isso, então nem sequer é um grito de liberdade, mas apenas um facto ridículo, caricato até, mesmo para os olhos de quem confere as guias de despacho do armamento que eles utilizam...

Madina, a sete quilómetros da fronteira da Guiné-Conackry, está ligada por estrada a Nova Lamego ao Norte, ramificação rodoviária para toda a Provinda, com estradas que servem bem no tempo seco mas que são pântanos autênticos nos dias de chuva, principalmente os de Julho e Agosto.

O Boé, tem solo muito pouco permeável, sem elevações consideráveis e consequentes declives escoatórios causando portanto a estagnação da água, que só a absorção lenta pela terra, já de si saturada de humidade, fará acabar com a ajuda do sol violento de Setembro, a apressar a evaporação. São dezenas e dezenas de quilómetros de área inundada charco imenso de que apenas as rãs parece acharem uma justificativa.

Quando tínhamos uma operação, fosse de que tipo fosse, andávamos com água pela cintura. Há por lá muitos riachos e rios pequenos (o único verdadeiramente rio, é o Corubal, o maior da Guiné) mas quando a chuva cai, e eu conheço a chuva de Angola há mais de vinte anos!, tanto faz caminhar pela estrada, pelo capim ou pelo leito dos rios: o "boal" imenso é raso, e a água nem sequer é mais alta aqui ou acolá. O nível é sempre igual, como se a Natureza caprichasse em transferir para ali toda a inutilidade que a chuva possa querer significar na Guiné.

Ao princípio, causava-nos uma certa perturbação andarmos com os fundilhos molhados, depois de habituados acabámos por aceitar a nova situação com uma filosofia muito própria — enquanto caminhássemos, era sinal de que não boiávamos, o que, naquelas circunstâncias, não era bem uma questão de natação. Mas como se pode depreender, tanto a manobra táctica, como a movimentação física, e sobretudo enfim, a própria lei da sobrevivência, estavam reduzidas em muito, com um desgaste anímico, multiplicado por um coeficiente que só os nossos corpos conheciam...

Acontece, contudo, que tínhamos uma vantagem: a exemplo do sol, a chuva quando vem também é para todos e assim os elementos do PAIGC tinham precisamente os mesmos problemas.

E por muito paradoxal que pareça, a tropa da Europa, habituada à amenidade do seu próprio clima, dava melhor conta de si naquelas condições verdadeiramente incríveis, por inóspitas e insalubres, do que no tempo seco, já que o desaparecimento das águas activava sobremodo os nossos «amigos» do outro lado...

O refúgio da Companhia 1416 era um acampamento subterrâneo protegido por arame farpado e seteiras, um alvo apetecido para os ataques diários dos revolucionários, que em Dezembro de 1966 bateram todos os recordes de desperdício de munições. Recorrendo ao seu diário de combate Jorge Monteiro diz-me, entre irónico e nostálgico:

Tenho um certo carinho por este livro, não só por ter sido escrito por mim, mas sobretudo por ser eu a ler, ainda algumas passagens para teu esclarecimento, sinal óbvio de que estou vivo e de boa saúde.

Ora vê: No dia 01 de Dezembro às 18H15, mandaram-nos seis granadas de morteiro 82. Às 19H30, se calhar por não terem acertado, mais seis. Estas deviam ser as do dia seguinte, porque só no dia 03 voltaram à fogaceira, e desrespeitosamente às seis da manhã: mais meia dúzia.

À tarde do dia 4 (para eles era demasiado acordarem dois dias seguidos às seis da manhã...) nove granadas, também de 82. No dia 5 descansaram, mas o dia seis vingaram -se bem, puseram dois morteiros e dois canhões sem recuo a trabalhar, conseguindo deitar abaixo uma parede. Uma das tais casas abandonadas. No dia 7, sem olhar a que merecíamos descanso começaram as três da madrugada: 15 granadas.

No dia 8, às seis da tarde, cinco granadas, e logo a seguir, às sete e meia, e duas granadas de canhão sem recuo. Onde elas caíram não sei... Não vale a pena continuar, por ser fastidioso e maçador. Por que, acredita, foi sempre assim, durante todos os onze meses que lá estive, uma e outra vez sujeitando-nos a um bombardeamento de quatro e cinco horas seguidas.

Como curiosidade, digo-te que houve um dia que assinaram o ponto cinco vezes, mas respeitaram religiosamente o Natal: houve tiros só no dia 23, mas voltaram à carga no dia 26, logo às seis a manhã. Para o fim, já era monótono pois sabíamos a horas certas dos tiros...

Conclui-se, portanto, que o bombardeamento sobre Madina era contínuo e eles próprios lá iam esburacando as casas, já por si a cair de podres. Pouco ficou, e se implantaram lá a Independência, então meteram água pela certa, pois não há qualquer tecto que os proteja da chuva.

Madina do Boé. O vazio de todo um pesadelo muito e mais vazio depois de Spínola ter inutilizado o abrigo e armadilhado tudo aquilo em redor. Madina do Boé, cinco casas esventradas, pântano perpétuo, chão inútil. A capital do PAIGC.
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Notas de L.G.:

(1) Imagem reproduzida, sem menção da fonte, no Blogue do Fernando Gil > Moçambique para todas. Presumo que a sua autoria seja do Jorge Monteiro ou do Manuel Domingues.

(2) Vd. post de 18 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CXI: Bibliografia de uma guerra (5)

(3) Para uma melhor localização destes sítios, vd. o mapa da Guiné dos Serviços Cartográficos do Exército (1961).

(4) Vd. posts de:

(i) 17 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIX: Antologia (7): Os bravos de Madina do Boé (CCAÇ 1790);

(ii) 2 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXIII: O desastre de Cheche, na retirada de Madina do Boé (5 de Fevereiro de 1969).