domingo, 18 de dezembro de 2005

Guiné 63/74 - P367: ´'Bom festa pa tudo dgenti' ou o Natal de Bissau de 52 (Mário Dias)


Guiné-Bissau > Bissau > 2001: A catedral de Bissau símbolo do catolicismo, num país em que as religiões (o Islão e o cristianismo) disputam almas e território.

© David J. Guimarães (2005)


1. Mensagem de L.G.:

Grande Mário ! És aquela máquina (não era assim que se dizia entre a rapaziada dos comandos ?). Devo dizer-te que apreciei muito o teu relato (inédito) sobre a Op Tridente, os teus longos dias na Ilha do Como. Vejo que a idade se tornou um homem sábio e ponderado.

Fico à espera da tua crítica aos escritos fantasiosos e propagandísticos que por aí circulam, de um lado (NT) e doutro (PAIGC). Dá-lhe neles!... A verdade (dos factos) acima de tudo.


2. Resposta do Mário:

Obrigado, Luis, pelas tuas palavras. É verdade que a idade nos torna mais sábios pois, como dizia a minha avó, "o diabo sabe muito não é por ser esperto; é por ser velho".

Quanto à minha prometida crítica aos relatos fantasiosos sobre a Guerra do Ultramar que por aí circulam, vou deixa-los para o início do próximo ano que já não está longe.

Não quero estragar com críticas, que terão forçosamente de ser muito contundentes e polémicas, esta época natalícia de paz e amor. ( embora, para mim, Natal seja todo o ano).

Entretanto, aqui vai, não propriamente uma estória, mas o que poderemos chamar uma crónica ou memória de como era celebradao o Natal pelos rapazes (nunca vi raparigas a participar) de Bissau.

Caros camaradas de tertúlia:

Tintim, tintim, tintim,… “Bom festa pa tudo dgenti. Prança Deus bó iangaça tudo quê que bó misti”

Traduzo, ou não é preciso? Então lá vai: Boas-festas para todos. Queira Deus que alcanceis tudo quanto desejais.

Mário Dias


3. O NATAL EM BISSAU, NOS TEMPOS “DO ANTIGAMENTE”

Tinha 15 anos no tempo já distante de 1952. Ia passar o meu primeiro Natal em Bissau e nem calculava, nesses meus verdes anos, quão verdadeiro é o ditado popular: “cada terra com seu uso; cada roca com seu fuso”.

Em casa de meus pais, reunida a família para celebrar a consoada, comecei a escutar na rua sons e cantigas que me eram de todo estranhas, bem diferentes das que, em Portugal, celebravam o Natal. Curioso, vim à varanda e deparei com um cenário que me encantou de tal forma que ainda hoje dele me recordo com muita saudade.

Toda a rua onde morava (ia dar à avenida principal, perto do cinema da UDIB) era um mar de luzinhas e de sincopados sons. Não resisti e fui ver. Não queria perder o espectáculo para mim novo e bem longe do que poderia imaginar pudesse existir.

Grupos de 3 ou 4 crianças, transportavam pequenas casas feitas com armações de finas tiras de cana ou material semelhante revestidas com papel de seda de várias cores. Com um coto de vela aceso no seu interior, resplandeciam como se de vitrais se tratasse. E como havia algumas tão bem construídas e belas!... A catedral de Bissau, a casa do governador, o edifício da Administração Civil, ou simples casas saídas da fértil fantasia do seu construtor.

Também havia quem desse asas à criatividade e aparecesse com navios, aviões e de quanto a imaginação fosse capaz.

Iam parando em cada casa, ora à porta quando situada ao rés do passeio, ora penetrando nos pequenos jardins das mais recuadas, e um deles, portador de uma garrafa vazia e de um pequeno ponteiro de ferro batia o ritmo: tintim, tintim. tintim…

Então, ao compasso que o “tocador de garrafa” ordenava, todos rompiam nesta cantilena: ( por sinal bem afinados)

S. José, sagrada nha Maria,
e quando foi, quando foi para Belém,
a resgatar o Menino de Jesus,
lá ao pé, lá ao pé da santa cruz.


(refrão)

Adoro mistério sobrinho da minha alma (1)
sobrinho da minha alma louva o Senhor.
Coração Santo todo ruminado
Todo vez em quando sempre a chorar
ai, ai, ai de vez em quando sempre a chorar,
ai, ai, ai de vez em quando sempre a chorar. (2)


O Angelino, Angelino já morreu,
e não queria confessar senão do Papa,
e nem do Papa nem do Bispo confessou
para nos dar boas-festas boa sorte. (3)


(repetiam o refrão)

Terminada a cantilena, dirigindo-se aos donos da casa, soltavam o inevitável “partim festa” (dê-nos as festas), querendo com isso pedir dinheiro ou algo que lhes fosse útil. Um deles estendia a mão para o donativo que sempre surgia e enquanto iam a caminho de outra casa algum perguntava:

- Kanto qui dá-bo? (quanto te deu)
- Dôs peso e meio.
- Esse i bom branco.
Desta maneira corriam todas as ruas de Bissau, visitando as casas ou abordando quem passava nas ruas:

- Partim festa.
- Kanto que dá-bo?

- Só cinco patacon (20 centavos)
- Bé… rijo mon (bolas…que avarento)

Intercalados, outros grupos diferentes surgiam. Eram os rapazes do “Kinkon”. Traziam também uma garrafa para marcar o ritmo, (tintim, tintim, tintim,) mas o “chamariz” apelativo ao “partim festa” era outro. Um boneco recortado em papelão, com braços e pernas articuladas por um engenhoso sistema de cordéis e montado numa vara, era transportado por um dos miúdos que o fazia movimentar ao ritmo da batida na garrafa “tintim, tintim, tintim”.
O portador do boneco atirava:

- Kinkon, kinkon.
Respondiam os outros em coro:
- Rabada di kon.De novo o líder:
- Kinkon, Kinkon.
Resposta do coro:
- Nariz di Kon.
E sempre alternando, líder e coro iam acrescentando à cega-rega diversas partes do corpo:

Kinkon, kinkon,
Cabeça di Kon.
Kinkin, kinkon,
Orelha di Kon.


Por vezes, os mais ousados lançavam alusões a partes anatómicas menos próprias. Alguns dos companheiros riam-se, outros não gostavam e protestavam:
-Abó ka t’a burgonho (tu não tens vergonha).

Mantinham a cantilena o tempo necessário a que alguém viesse oferecer as desejadas “festas” e seguiam para outro lado.

Por ali me quedava embevecido, admirando estas encantadoras cenas tão inesperadas e atraentes.

E por ter ficado de tal forma apaixonado com tão extraordinária tradição, todos os anos, mal se aproximava o Natal, não continha em mim a ânsia da sua rápida chegada, para mais uma vez ver as crianças de Bissau, vindas do Chão Papel, Alto do Crim, Cupilon, Gã Beafada, Santa Luzia e outros bairros, inundarem as ruas com as suas casinhas luminosas ou com os “kinkons” articulados e garrafas para marcar o ritmo:

…tintim, tintim… São José, sagrada nha Maria…
…tintim, tintim… Kinkon, kinkon,… rabada di kon…


Certamente que muitos dos que passaram por Bissau assistiram a esta tradição e dela se devem recordar. Quanto a mim, já passaram mais de 50 anos e ela continua tão viva na minha memória que, quando chega o Natal, dou por mim a cantarolar aquela lenga-lenga e nos meus ouvidos ecoa o “tintim, tintim”. Involuntariamente sinto-me transportado ao passado e perante mim desfila, com toda nitidez e riqueza de pormenores, o encanto de cores e de sons que os rapazes de Bissau me proporcionavam.

Falando há tempos com um amigo que lá esteve recentemente, por ele fui informado que esse costume se perdeu e que as actuais gerações nem o conhecem. Se assim for, é pena. Nenhum povo deve esquecer e, menos ainda, menosprezar as sua tradições.

Caros amigos guineenses: Vamos restaurar esta tão bela tradição?

Torna-se talvez conveniente explicar o significado da cantiga que, como devem ter reparado, não é crioulo. É pretensamente cantada em português, com versos de cânticos religiosos que os rapazes, na sua ingenuidade deturparam.
_________

(1) “Adoro o mistério sobrinho da minha alma…” corresponde a: “Adoro o mistério sublime da minha alma…”

(2) “Coração santo todo ruminado, todo vez em quando, sempre a chorar” é do cântico “coração santo, tu reinarás, o nosso encanto, sempre serás”.

(3) Quanto a esta alusão ao tal Angelino, nunca consegui saber do que se trataria.

Guiné 63/74 - P366: O meu Natal de 1966 no QG, em Bissau (Virgínio Briote)

O meu último Natal na Guiné, no QG. Um luxo!
vb

NATAL DE 1966,

Virgínio Briote

Uma eternidade aquele mês de Dezembro, nunca mais acabava.

Arrumações no quarto, ordem na papelada, cópias dos relatórios das operações, as centenas de fotos. Estas são para rasgar, isto onde foi, quem é este gajo, apontamentos ao lado, nomes dos camaradas atrás, e depois disto, para onde fui? Anotava o que se lembrava, folhas e folhas, dois anos quase, ali à sua frente, parecia um romance.

O aroma dela nas cartas, falta pouco, um mês só, não vou a Lisboa esperar-te, mas quando puseres os pés em terra, pensa em mim. E uma folha toda em branco, enorme, com tanto espaço para responder, sem ideias, nem sabia como começar.

Quero estar contigo, só contigo, sem mais ninguém por perto. Uma frase só numa carta. Não tenho mais para dizer, nem sei o que devo escrever.

O sono leve, intermitente, e as malas, o que vou levar? Uma chega, leva tudo. Já pensaste no que vais levar, o que é que vai contigo? Os livros, todos, uma muda de roupa civil, as coisas do quarto de banho. Os sapatos civis e militares, o camuflado, tudo no saco da tropa. Levaria vestida a farda amarela, a que envergara aquele tempo todo, as botas de cabedal e a boina. O resto fica tudo.

O despertar súbito, outra vez muito acordado, uma sensação de medo a aparecer, a tomar conta dele, uma vontade irreprimível de fugir, os pés fora da cama, o que vou fazer, para onde, a tremer como se estivesse com febre. No quarto de banho, frente ao espelho, este sou eu com as mãos na cara, isto vai passar, só falta um mês.

Tinha que ser, numa daquelas tardes entrou no cemitério. Foi directo à campa do Silva. As diligências que fizeram, até o dinheiro que receberam pelas armas que capturaram, reverteu todo para as urnas de chumbo, para as trasladações dos corpos dos camaradas mortos. Tantos trabalhos que ele e o capitão Leão tinham feito e o Silva ainda aqui está, à minha frente.

António Maria Alves da Silva. Nasceu em 17 de Janeiro de 1942. Faleceu em 6 de Março de 1966. Sem flores, sem nada.

A menina Teresa? É noutro lado. Lá em baixo, aquela do meio, sim, à beira daquela palmeira. Uma tampa de mármore. “A saudade dos teus Pais e Amigos. Maria Teresa Campos Correia. Nasceu na Praia em 27 de Maio de 1947. Faleceu em Bissau em 23 de Outubro de 1966. Paz à sua alma”. Um jarro simples com flores frescas.

A guerra via-a de muito longe, como se fosse um assunto que já não lhe dizia respeito. Mas mesmo assim, às vezes não podia esquivar-se aos relatos dos recém-chegados do mato.

A nova companhia de comandos andava por Tite. Raramente saíam com efectivos inferiores a dois grupos. Entretanto chegara outra companhia, de um jovem capitão, um tipo simpático. Então como é isto aqui, fresco, não? As zonas da guerrilha são todas iguais ou há diferenças? Antes que me esqueça, cumprimentos do Manilha, quando chegar a Lisboa contacte-o.
Praticamente inexpugnável o Sul, as NT confinadas aos aquartelamentos. Madina do Boé, um inferno, o Diem-Biem-Phu dos portugueses, o capitão de lá a dizer que só viviam dentro dos abrigos, cavados no solo, suportados por troncos e enchidos com cimento em barda. Passavam os dias a verem a vida em frente por entre os buracos. Abastecidos do ar, os aviões faziam malabarismos para não serem atingidos. Madina vai ser o primeiro aquartelamento a ser tomado pelo PAIGC, era um assunto arrumado, ouvia-se em muitas bocas.

Um Allouette mergulhou numa bolanha, na zona de Tite, não se sabia se fora atingido ou se fora um acidente. Foi montada uma autêntica batalha, daquelas que se vêem nos filmes. Fuzileiros e comandos a protegerem o heli, sob fogo cerrado. O coronel da base aérea, ele próprio a pilotar um Dakota teve que se impor para meter os páras dentro do avião. Largou-os na zona da batalha, os pára-quedas abriram-se e toda a gente parou o fogo, não acreditas, Gil?

Um mecânico francês que estava em Bissau a fazer a manutenção dos helis foi transportado para o local com o equipamento todo para ver se conseguia tirar o aparelho das águas da bolanha. E não é que conseguiu, pá?

O norte em brasa, Barro, Bigene, Guidage, o Oio nem se fala, o leste ainda assim-assim!

Natal à porta, as montras de Bissau mudaram a cara, muitos militares nas ruas a entrarem e a saírem das lojas. Devia estar a fazer um ano andava por Barro e Bigene, foi um fim de ano diferente.

No QG organizaram uma ceia de natal como devia ser, bacalhau e os doces todos. Estava lá toda a oficialada superior, Brigadeiro incluído.

Beberam todos muito bem, alguns demais, como acontece sempre. Depois, ao ar livre, viram um filme italiano, com o Gianni Morandi, um cantor novo que estava na moda, a fazer o papel principal dentro da farda de um soldado, o que é que havia de ser? Um apaixonado, aquele Morandi, tirava canções atrás de canções. Tantas que a maralha lá de trás, entusiasmada, começou a acompanhar a música, primeiro muito baixo, depois já se sabe como é, outros entusiastas também, até o Morandi se virou para eles, a cantar de lágrimas nos olhos. Uns alferes de merda, uns comunistóides, que é para isso que agora servem as universidades, dizia um major do cága-e-tosse voltado lá para trás!

No outro dia, corria pelas mesas da messe uma história meio esquisita. Lá para as tantas, um noctívago quando ia a entrar para o quarto, ouviu música de samba a vir da porta entreaberta de uma das vivendas. Quis dançar também, empurrou a porta e fechou-a logo. Deve ter visto mal, uns gajos todos nus a dançarem encostados uns aos outros, pode lá ser?

Se calhar o líquido que tinha nos olhos era álcool! Mas eu vi, o fulano encostado ao sicrano, o beltrano amarrado ao… Estás a ver, nem te lembras dos nomes dos gajos!

Guiné 63/4 - P365: Comandos à procura do Amílcar (Virgínio Briote)

Guiné > Brá > 1966 > O Alf Miliciano Comando Briote eo seu grupo, prontos a entrar em acção. © Virgínio Briote (2005)

Texto do Virgínio Briote:

À PROCURA DO AMÍLCAR (1)

No quarto em Brá, o capitão Leão sentou-se numa das camas.

O Amílcar Cabral esteve até ontem no Oio em reunião de quadros, dois ou três dias.

Está a retirar, a caminho do Senegal, para os lados de Sano, presume-se. Certeza é que já passou, está a passar ou vai sair pela zona de Bigene, num dos caminhos para a fronteira.

Está tudo mobilizado na zona, Força Aérea também, todas as tropas disponíveis nos trilhos para a fronteira. Uma boa oportunidade para o apanhar, que tal?

Amanhã, às 5 no aeroporto, nos helis. Vou estar em cima no PCA.

O Alegre teve que se pôr a pé, meteu-se no jeep para Bissau à procura dos furriéis. Reunião com eles, grupo acordado, conferir o material, o costume. Pequeno-almoço na cantina às 4 e meia, grupo ao corrente dos pormenores.

Era apenas uma hipótese em mil na melhor delas e, se os encontrássemos, teríamos que contar com uma larga coluna do IN a servir de escolta.

Levantaram à hora, com a Guiné a acordar, dirigiram-se para norte, pouco mais de meia hora depois estavam próximos da fronteira, T6 a aparecerem, a brilharem ao Sol, vai estar um dia quente.

Do heli viram os trilhos, o tenente Caldas, o piloto, a dizer-lhe para escolher. Onde quer ficar, talvez ali, sim, aí mesmo, OK, vamos baixar mais.

Ouviu a comunicação com o resto da esquadrilha, preparar a formação, por cima das árvores, abrir portas, uma mão no cinto outra na arma, saltar!

Tiros dispersos para os helis, a virarem-se em formação, os T6 lentos, a picarem, fumos a sair das asas, estrondos, mais uma vez o costume, nada que não tivesse acontecido antes.

Reagrupados, correram a abrigar-se, vegetação rasteira, não tinha muito aonde. Os T6, no rádio, diziam estar um pequeno grupo para aí a um km, na direcção da fronteira, iam picar nessa direcção. Coluna por um, trilho fora, o sol em cima deles, pegadas frescas, mais nada a não ser estrondos ao longe, de vários lados.

Pouco tempo depois, o PCA num DO a comunicar que já não havia sinais de movimento, informações agora mesmo a confirmar a presença de Amílcar Cabral no Oio, e que terá passado a fronteira há já algumas horas, por outra zona, mais para leste.

Terá? E as suas instruções, quais são? De momento não pode adiantar mais nada? O que sugiro? Não, nós não, aqui de baixo a vista alcança pouco, e aí em cima vê alguma coisa? Nada? Para procurarmos aqui em baixo, onde, pode dizer? Não sabe, cá em baixo é que devemos saber, OK, terminado.

Uma conversa que já tivera antes, lembrou-se, mas com outro protagonista.

Sempre em frente, a caminho da fronteira, nem tempo tiveram para meter guias da zona, iam por ali como se estivessem a subir a Avenida da Liberdade. A boca seca, borbotos brancos de saliva nos cantos dos lábios colados, uma chuvada agora é que vinha a calhar, nem uma nuvem, um sol muito grande. Ao longe, no caminho para lá, pareceu-lhes ver uma sombra de árvores.

Gigante, arranque com a sua equipa, olho vivo, atenção. Os 5 a andar, parecia um bailado, uma eternidade! Desapareceram na mata, uns minutos. Um sinal deles, lá foi o resto do grupo abrigar-se do sol.

Uma plantação de abacaxi, a crescer meia selvagem. Cortaram o que lhes apeteceu, sentaram-se à sombra, limparam a saliva da boca com fatias cortadas com o punhal. O silêncio, um oásis!

Tinha passado pelo Bento (2) depois de jantar, as pernas doridas a pedirem descanso, mas a levarem-no para a Sé, rua acima, as luzes das janelas a apagarem-se.
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Notas de L.G.

(1) Vd. o post anterior >Guiné 63/74 - CCCLXXXIII: O que diziam os jornais estrangeiros (1): Le Nouvel Observateur no Morès

(2) Café Bento, ou a 5ª Rep, em Bissau, onde se juntavam os militares.

Guiné 63/74 - P364: O que diziam os jornais estrangeiros (1): Le Nouvel Observateur no Morés (1966) (Luís Graça)

Gérard Chaliand: Com os Rebeldes da Guiné. Nouvelle Observateur (Paris) 13 de Julho de 1966. Notas de leitura de Virgínio Briote (ex-alferes miliciano, comando, Brá, 1865/66)

O autor começa por descrever um bombardeamento aéreo, algures no norte da Guiné, pela aviação portuguesa, com aviões americanos e alemães, o 11º num período de 12 dias e dizendo que, desta vez os portugueses iam em força porque havia uma razão: Amílcar Cabral encontrava-se naquela região.

Depois de descrever a visita de Cabral a uma aldeia da zona libertada, referindo uma concentração de 3.000 homens aclamando o dirigente do PAIGC, o jornalista prossegue:

"(...) Tudo se passou sem história. Em linha recta está-se a 80 kms de Bissau, a capital, mantida pelos portugueses que dispõem de 25.000 homens (...)..

"Em Abril de 1964, 3.000 portugueses apoiados pela aviação, não podiam, depois de 65 dias de combate, retomar a ilha do Como (1), no sul do país. Este pequeno país de 36.000 kms e de 800.000 habitantes é a zona mais activa de África (...)

"Os aviões picam antes de metralhar. Depois é o som espesso das bombas. Durante a noite um informador preveniu um dos postos portugueses da região. Os portugueses sabem certamente que o dirigente se encontra na zona. Bombardeiam com intensidade durante toda a manhã. No entanto, não haverá senão 7 mortos e 5 feridos em Djagali (2). Dissimulados num pequeno bosque - um grupo de 15 – esperamos que tudo se acalme. Muito perto fica a base de Maqué (2), onde há mais de 100 guerrilheiros. No dia da nossa chegada, depois de 40 kms de marcha, Cabral passou-os em revista. Com uniformes de caqui, correctos, quase todos calçados com sandálias de plástico – a propaganda portuguesa descreve-os nus – têm morteiros, bazucas e metralhadoras pesadas. Pertencem às FARP (Forças Armadas Revolucionárias do Povo). Nas aldeias existem aldeões sem uniforme, mas armados de espingardas de modelos recentes.

"Nesta base realizou-se, durante 2 dias, a reunião dos quadros do norte do país. Uma grande casa onde a luz penetra. Duas mesas rodeadas de cadeiras de palha. Trabalha-se com magnetofone, pois evita-se assim a papelada (...).

"O acolhimento, na dezena de aldeias que visitámos, foi sempre caloroso. Numa delas ofereceram-nos nozes de cola e sal, às vezes um frango e vinho de palma. Os camponeses conhecem os combatentes pelo próprio nome; às vezes, estes últimos são até da própria aldeia. Por toda a parte os camponeses elegeram os comités do Partido: 3 homens e 2 mulheres, que estão em ligação com o comissário político que comanda cada grupo de combatentes.

“ - No tempo dos Portugueses - diz um responsável de uma aldeia - existia o trabalho forçado, o imposto, os castigos de palmatória e o chicote. Há já dois anos que nunca mais vimos Portugueses por aqui" - (...) Este ano o Partido vai fazer armazéns para o povo. Trocar-se-à o arroz e o amendoim pelos tecidos (...)".

E depois de uma entrevista com um desertor português, em que este refere a vida impossível nos estacionamentos e o mau trato dado aos soldados, o autor da reportagem aborda a assistência médica e educativa nas zonas sob controlo do PAIGC:

"Na base, dois médicos cirurgiões tratam os feridos, quando os há – havia uns 10 quando por lá passámos. A mesa de operações é rudimentar, mas os medicamentos não faltam. Enfermeiras formadas no estrangeiro, preparam por sua vez, no próprio local, jovens auxiliares. Ensina-se igualmente a ler. Duzentos alunos, rapazes e raparigas, estudam em Morés. Têm entre os 7 e os 15 anos. Divididos em secções, já todos sabem ler e escrever correctamente o português. Professores-combatentes dão-lhes 4 horas de aula por dia. Os exercícios fazem-se num quadro suspenso numa árvore. Há exames trimestrais e semestrais para transferência de secção. No bom tempo da Paz Lusitana tinham os portugueses escolarizado 2.000 crianças. Em três anos o PAIGC escolarizou 4.000, sempre a conduzir a guerra (...).

" - As razões do sucesso da nossa luta - diz Chico, comissário político do Norte - estão no facto de dois anos antes de rebentar, Cabral ter formado centenas de quadros em Conakry e de ter enviado dezenas deles para fazer o trabalho de explicação e mobilização nas aldeias. Quando começou a luta não tivemos que nos esconder dos Portugueses e dos camponeses, pois estes últimos informavam-nos sobre todos os movimentos das tropas. Depois velou-se sempre para que não surgissem atritos entre os combatentes e a população" (...).

E o artigo termina assim:

"Esta manhã, enquanto bombardeavam Djagali, os Portugueses(3) mandaram uns 50 homens de helicóptero até à zona da fronteira. Foram interceptados por combatentes do PAIGC; retrocederam, depois de algumas horas de combate, deixando vários mortos no terreno. Quando chegámos, a estrada estava livre. A estação das chuvas vai começar. Para poderem ver, os aviões descem abaixo dos 1.000 metros. É a esta altitude que os guerrilheiros já abateram 3 aparelhos no último ano. Além do mais chegaram armas pesadas.
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Notas de L.G.:

(1) Vd. a crónica do Mário Dias: pots de 15 de Dezembro > Guiné 63/74 - CCCLXXII: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): Parte I (Mário Dias).

(2) Região do Oio > Jagali entre Bissorã e o Rio Cahceu. Maqué fia entre Bissorã e Olossato. Vd. mapa geral da Guiné (1961)

(3)
"O meu grupo esteve numa acção nesta zona, na data indicada. Ver a seguir aquilo que escrevi na altura (VB)": Guiné 63/74 - CCCLXXXIV: Comandos à procura do Amílcar.

sábado, 17 de dezembro de 2005

Guiné 63/74 - P363: Vocês não tenham medo, não fujam, sou o Cabral (Jorge Cabral)

1. Através do Humberto Reis, reencontrei o Jorge Cabral que é do nosso tempo de Guiné. Falei com ele pelo telefone, soube do crescente interesse com que ele tem acompanhado o desenvolvimento da nossa tertúlia e lido as nossas estórias...

O Jorge era, para mim, o mais paisano dos militares que eu conheci na Guiné: alferes miliciano, foi o comandante do Pel Caç Nat 63, afecto ao Sector L1 (Bambadinca) da Zona Leste, tendo estado em Fá Mandinga e em Missirá (1969/71).

Em Fá não se limitava a ser um heterodoxo representante do exército colonial, actor e crítico ao mesmo tempo. Era também homem grande, pai, patrão, chefe de tabanca, conselheiro, amigo do PAIGC, poeta, antropólogo, feiticeiro, cherno, médico, sexólogo, advogado e não sei que mais. Um verdadeiro Lawrence da Guiné. Alguns dos seus amigos e companheiros de Bambadinca (aonde ele ia com frequência matar a sede) chegaram a recear que ele ficasse completamente cafrealizado!...

Até ao dia em que chegou o circo dos Comandos Africanos (1): montaram tenda em Fá Mandinga e daí só zarparam para a misteriosa Op Mar Verde ... Vendo o caso mal parado, e não querendo correr o risco de ser enforcado num candeeiro público em Conacri, o Jorge lá conseguiu mexer os seus pauzinhos e ser destacado para Missirá, mais a norte, embora se tratasse de um destacamento mais exposto às morteiradas e roquetadas dos camaradas do PAIGC... O que para o Jorge não era problema, já que era o único de todos nós a quem o PAIGG tinha respeito. Desde o famoso dia em que foi atrás deles, na bolanha, a apaziguá-los e a tranquilizá-los:
- Vocês não tenham medo, não fujam, sou o Cabral!

Ele um dia há-de contar essa estória para gáudio (e cultura militar) da nossa tertúlia... O convite está feito e ele irá aparecer por aqui, um belo dia destes... Mais: irá explicar-nos como é que foi parar, já em finais de comissão, em 1971, a Madina/Belel, sem ter sido convidado... Julgo que lá foi beber uns copos com os camaradas do PAIGC, aproveitando uma boleia dos paraquedistas!...

2. Outro Jorge, mas este Santos, que é um dos principais fornecedores desta tertúlia, tinha-me mandado há tempos, em 7 de Julho passado, uma mensagem com poemas, em anexo, sobre a Guiné. Eu não consigo dar vazão a tudo o que ele me manda: não há nada sobre a Guerra Colonial que lhe escape. Vasculhando nos arquivos da minha caixa de correio, não é que vou dar com um poema do Jorge Cabral, com data de 1970, escrito em Missirá ?

É claro que não resisto a publicá-lo. Com isso mato dois coelhos de um só tiro: dou a conhecer esta faceta de poeta que muitos dos seus camaradas de Bambadinca não conheciam; e, por outro, divulgo também a APOIAR - Associação de Apoio aos Ex-Combatentes Vítima de Stress de Guerra(2). Esta associação tem uma revista, bimestral, sendo o último número editado o 36º, de Maio-Junho de 2005. Esta associação médico, psicológico e jurídico aos seus associados, ex-combatentes da guerra colonial.

O belíssimo poema do Jorge Cabral aqui vai:

O HELICÓPTERO

Pelo ar lento que aquece
Um pássaro de ferro e aço
Leva o morto que apodrece
Na boca mais um abraço

A gente fica a pensar
Mas mais um morto que interessa
Já vêm mais pelo mar
Vêm muitos e depressa

A gente pensa
Mas fica com o dedo no gatilho
Na garganta um nó que pica
Na preta o ventre com o filho.

Jorge Cabral – Missirá, Guiné – 1970
In Jornal “Apoiar”. 23 (Jan/Mar 2002)

(Selecção de Jorge Santos, membro da nossa tertúlia, e autor da página sobre A Guerra Colonial.

3. O Jorge Cabral é hoje um ilustre advogado na nossa praça e professor universitário, director do Instituto de Criminologia da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias.

Para que os nossos tertulianos tenham uma ideia mais completa desta personalidade fascinante, dou-vos a conhecer uma entrevista que ele deu a dois dos seus alunos (3), como testemunha presencial de uma acto de mutilação genital feminina (MGF) na Guiné, em 1969. Pelo contexto e época, terá sido em Fá Mandinga. O Jorge Cabral deverá ser um dos raros homens (e brancos) a assistir a um controverso ritual de passagem como este, ainda profundamente enraízado na cultura de certos povos africanos. O problema da MGF já foi aqui abordado neste Blogue (4).


Entrevista ao Prof. Dr. Jorge Cabral

p: Quando é que assistiu à excisão?

r: Em 1969

p: Foi na Guiné Bissau?

r: Sim

p: Porque é que quis assistir?

r: Por curiosidade antropológica. Eu fui sempre uma pessoa extremamente curiosa. O problema da colonização portuguesa, que é o problema de qualquer colonização, é que o colonizador não fez um esforço para perceber a cultura do colonizado. A colonização é isto: partir da base que a nossa cultura é que é.

Neste sentido, já que eu estava numa posição privilegiada, procurei compreender alguma coisa dessa cultura e, obviamente, a excisão fazia parte dela. Também procurei compreender o tipo de famílias, as relações familiares, perceber porque é que alguns cortavam as cabeças a outros, qual o significado de cortarem a cabeça e pô-la nos pântanos... procurei entender, embora não seja antropólogo.

Eu nessa altura nunca tinha ouvido falar da excisão... em 69.
Foi uma experiência sobretudo traumatizante. Se calhar tenho o trauma da excisão!

p: Mas foi lá de férias, estava de passagem...?

r: Não, não! eu estava na guerra!

p: Qual foi o tipo de excisão a que assistiu?

r: Foi a mais simples, foi a ablação do clítoris.

p: Em que condições foi feita?

r: As condições eram más... mas estavam várias miúdas para fazer a cerimónia. A cerimónia só tinha mulheres, a rapariga... era uma miudita de onze anos talvez... estava amarrada, era evidente que gritava, gritava bastante e era uma mulher mais velha que fez o corte para a ablação do clítoris.

p: Com que objecto?

r: Com uma faca e sem quaisquer condições de higiene, aliás, como era feita a circuncisão dos miúdos. Era feita com uma faca ou com uma lâmina.

p: Como é que foi feita a abordagem, como é que se proporcionou a hipótese de ver uma excisão?
r: Eu estava numa situação muito privilegiada, primeiro porque eu era chefe daquilo tudo, segundo porque estava só com soldados africanos e com população africana, cada soldado tinha as suas três mulheres, não sei quantos filhos, de maneira que eu era, pelo menos a um nível simbólico, uma espécie de chefe. Nesse sentido, por curiosidade, falei com mulheres, não falei com homens, e disse que estaria interessado. Primeiro negaram, disseram que os homens não podiam assistir e eu lá expliquei, lá entreguei dinheiro e lá consegui.

A cerimónia não é feita na aldeia, é feita fora da aldeia.

p: Porquê?

r: Porque mesmo entre eles é dotado de algum secretismo, é uma cerimónia que tem alguma coisa de religioso por isso mesmo não é feita na aldeia, é feita na floresta.
A rapariga não sabia como era. Há simultaneamente medo mas algum orgulho porque significa uma passagem para uma idade adulta, por isso há essa duplicidade, penso eu, ao nível das miúdas que têm medo, é evidente, porque as outras também já contaram como foi e que vão sofrer muito, mas ao mesmo tempo... se calhar é como usar o primeiro sutiã. Há efectivamente um certo orgulho.

p: Qual é a posição dos homens em relação à excisão?

r: Os homens concordam até porque eles não aceitam para mulher alguém que não seja excisada.

Dentro da própria comunidade uma rapariga que não tenha passado pela excisão, dificilmente arranjará marido. Uma rapariga que não tenha feito a excisão é uma criança por isso elas submetem-se para evitarem a exclusão.

Não podemos generalizar e falar da mulher africana porque mesmo na Guiné não são todas as etnias que fazem a excisão. Normalmente são os islamizados. Há excisões muito mais gravosas principalmente na Somália, na Etiópia.

Há outro tipo de excisão, já agora. É uma excisão que se faz em Angola, eu ainda estou a começar a estudar isso, é uma excisão ao contrário, serve para mulher ter mais prazer durante o acto sexual. Ainda não vi nada disso escrito, li isso num romance. Já perguntei a várias angolanas e elas não sabem nada mas é uma excisão para dar mais prazer à mulher, não é como a outra. Não é a ablação do clítoris, é como um “desembaraçar” do clítoris e também é feita na pré-adolescência, aos 12, 13 anos.

p: A maior parte das pessoas é contra esta prática porque é uma violação dos direitos humanos...

r: Sim, embora isso hoje seja muito discutível há uma posição radical que diz que isto ofende os direitos humanos mas há vozes autorizadas que a defendem e eu já tive a oportunidade de assistir a uma conferência, creio que há três anos, em Valência, em que um professor dizia “O que é que nós temos a ver com isso?! Isso é um valor cultural, porque é que nós estamos sempre a ver de uma perspectiva europeia, europocêntrica o problema?”

Por isso há vozes que discordam desta luta contra a mutilação sexual.

p: Mas hoje em dia há organizações e outras pessoas que trabalham no terreno, no sentido de dissuadirem as mulheres a praticar este tipo de ritual.

r: Pode ter o efeito contrário, não é?!, se é proibido...

P: O isolamento destas tribos torna muito mais difícil o acesso a qualquer alteração na mentalidade destas pessoas?

R: Será muito difícil. Se nós defendêssemos sempre os mesmo valores culturais não havia evolução. É precisamente a mesma coisa, os chineses partiam os pés às crianças, os aztecas apertavam os olhos, o meu avô tomava banho uma vez por mês... quer dizer esses são valores culturais. As coisas alteram-se.

p: O que é que a lei portuguesa diz acerca disto?

r: A lei portuguesa não prevê a excisão. Se aparecer algum caso será um crime contra a integridade física grave, se aparecer algum caso.

Já me contaram um caso que apareceu num hospital em que os próprios médicos nunca tinham ouvido falar da excisão e não foi levantado nenhum processo crime. Os médicos apenas verificaram que havia uma ablação mas não sabiam mais nada.

p: A quem seria aplicada a medida?

r: Neste caso seria contra a mãe. Ela é que é responsável porque leva a criança e, também, contra quem fez isso. É evidente que os casos vão aparecer. Será inevitável que qualquer dia apareça um caso destes, em França já foram julgados alguns casos.

p: Quer dizer que não estamos preparados...

r: Claro que não! É natural que uma miúda apanhe uma infecção qualquer, vá para a Estefânia e... é natural! O que o médico devia fazer era participar imediatamente mas para isso é preciso que os médicos saibam o que é a excisão e que se pratica em Portugal .
_____________

Notas de L.G.

(1) Vd. post de 11 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri

Já na altura eu tinha escrito o seguinte parágrafo, referindo o nome do Cabral:

"Um dos comandos africanos mais tristemente famosos era o furriel Uloma, filho de régulo, da zona de Varela, e um dos raros felupes que vestiam a farda do exército português, segundo se dizia no meu tempo. Uloma era uma espécie de coqueluche ou mscote da companhia, não só pelo seu aspecto físico de orangotango (sem ofensa para os felupes e para os orangotangos) como sobretduo pelos seus estranhos rituais de guerra e pela sua macabra colecção de cabeças cortadas ao inimigo, conservadas em álcool (trinta e duas, ao que parece, segundo os cálculos do Carlos França, que terá privado com ele, em Fá).

"Essas práticas culturais de bom selvagem teriam a ver com as reminiscências do canibalismo ritual entre os felupes – como me tentava, em vão, explicar, em jeito de antropólogo, com uma garrafa de uísque na mão, o meu amigo Cabral, poeta, antifascista, calejado nas lutas estudantis, antimilitarista, filho de militar de carreira, alferes miliciano, tão dilacerado como eu pela brutal irracionalidade daquela guerra, e que privava como os comandos africanos na sua qualidade de comandante do Pelotão de Caçadores Nativos local, o PEL CAÇ NAT 63".

(2) Sede da Associaão Apoiar:

Rua C, Lote 10, Loja 1.10 - Piso 1
Bairro da Liberdade
1070-023 Lisboa~
Telefones: 213 870 174 / 213 808 000
E-mail: apoiar@mail.telepac.pt

(3) Mafalda Sofia Félix dos Santos; Paulo César Lino Belchior de Matos - Mutilação genital feminina. Trabalho apresentado na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias no Curso de Pós-Graduação em Criminologia. s/d.

(4) Vd. post de 4 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XII: O silêncio dos tugas face à MGF (Mutilação Genital Feminina)

Guiné 63/74 - P362: Poesia de Cabo Verde de Aguinaldo Fonseca (Jorge Santos)

Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo >

"O belo porto de mar de São Vicente; ao centro o ilhéu que se confunde com um barco. Outubro de 1941".

Luís Henriques (ex-1º Cabo nº 188/41 da 3ª Companhia do 1º Batalhão Expedicionário do Regimento de Infantaria nº 5, que esteve em Cabo Verde, Ilha de São Vicente, no Lazareto, 1941/43).

© Luís Graça (2005)

Selecção do nosso camarada Jorge Santos

Aguinaldo Fonseca (1)


POVO

É sempre a mesma história repetida.
É sempre o mesmo lodo, a mesma fome
É sempre a mesma vida mal vivida
De quem amassa o pão mas não o come.

É sempre a mesma angústia desgrenhada
De quem naufraga em terra olhando o oceano;
O rubro desespero, a mão crispada,
O sonho a desfolhar-se… e o desengano.

É sempre este horizonte de fuligem,
É sempre este arranhar em duro chão,
Com fúria até ao centro da vertigem
Em busca da raiz da salvação.

In “Boletim Mensagem”, Ano III, nº 1, Janeiro de 1960


TERRA MORTA

Os meus irmãos, na terra estéril,
Seguem aos tombos pela vida fora,
Tontos de sol
Fartos de vento,
E sobre as ondas
Nas claras noites de lua cheia
Bóiam miragens
De verdes prados e extensos bosques.

Os meus irmãos na terra triste
(O mar em volta, o céu por cima)
Arrastam longas canções de bruma
Que sobem no ar buscando céus
E depois caem de asas fechadas
Desamparados.

Os meus irmãos na terra morta
Exposta ao vento, ao sol, às aves
Olham o mar
Olham as nuvens…
- Ficam à espera
De mãos vazias.

In “Mensagem – Casa dos Estudantes do Império, 2º Vol. ”, ALAC Editor, Outubro 1996.
____________

(1) Há um texto de Amílcar Cabral, originalmente publicado em 1952, onde se faz referência ao jovem poeta Aguinaldo Fonseca:

"A Poesia Cabo-Verdiana abre os olhos, descobre-se a si própria, - e é o romper duma nova aurora. É a claridade que surge, dando forma às coisas reais, apontando o mar, as rochas escalvadas, o povo a debater-se nas crises, a luta do cabo-verdiano "anónimo", enfim, a terra e o povo de Cabo Verde. Por isso, o caracter intencional - e felizmente intencional - do nome da revista que revela essa profunda modificação na Poesia Cabo-Verdiana: Claridade (...).

"As mensagens da Claridade e da Certeza têm de ser transcendidas. O sonho de evasão, o desejo de "querer partir", não pode eternizar-se. O sonho tem de ser outro, e aos Poetas - os que continuam de mãos dadas com o povo, de pés fincados na terra e participando no drama comum - compete cantá-lo. O cabo-verdiano, de olhos bem abertos, compreenderá o seu próprio sonho, descobrirá a sua própria voz, na mensagem dos Poetas.

"Parece que António Nunes e Aguinaldo Fonseca estão na vanguarda dessa nova Poesia. Não se conformam com a estagnação. A prisão não está no Mar.

"O primeiro, auscultando a terra e o povo, sonha com um "Amanhã" diferente, que antevê possível. E descreve a alteração que há de operar-se: "Em vez dos campos sem nada..." E profetiza, para a terra cabo-verdiana, a "vivificação da Vida".

"O segundo exprime, em toda a sua grandeza, o "naufrágio em terra" do povo a que pertence. Retrata os "homens calados" sofrendo a "dor da Terra-Mãe...num abandono de não ter remédio". Dos homens, "presos na cadeia da desesperança". E o seu sonho, não é de "querer partir": é de
Outra terra dentro da nossa terra".

Amílcar Cabral > Apontamentos sobre a Poesia Caboverdiana (*)

* Apareceu pela primeira vez em Boletim de Propaganda e Informação III, 28 (01/01/1952). Reproduzido em Obras Escolhidas de Amílcar Cabral, Vol. I: A Arma da Teoria - Unidade e Luta. Lisboa: Seara Nova. 1976. 25-29.

Guiné 63/74 - P361: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): III Parte (Mário Dias)



Quase 42 anos depois da Operação Tridente, alguns dos elementos que nela tomaram parte, pertencentes ao Grupo de Comandos, fotografados a 24 de Setembro de 2005,durante o convívio dos Grupos de Comandos que actuaram na Guiné entre 1964/66. 

Foto (e legenda): © Mário Dias,

Da esquerda para a direita: 

(i) sold João Firmino Martins Correia; 

(ii) 1ºcabo Marcelino da Mata; 

(iii) 1º cabo Fernando Celestino Raimundo; 

(iv) fur mil António M. Vassalo Miranda; 

(v) fur Mário F. Roseira Dias; 

(vi) sold Joaquim Trindade Cavaco 

(Os postos, referentes a cada uma, são os que tinham à época dos acontecimentos).


Texto da autoria do Mário Dias, sargento comando (Brá, 1963/66):

OPERAÇÃO TRIDENTE > Guiné > Ilha do Como > De 14 de Janeiro a 24 de Março de 1964

III (e última) Parte

7. As abelhas

Dia 23 de Fevereiro novamente embarcados numa LDM com o Pelotão de de Paraquedistas e 8º Destacamento de Fuzileiros, rumo a Curcô onde pernoitámos.

No dia seguinte, com mais um grupo de combate da CCAV 488, iniciámos uma batida à mata. Por duas vezes tivemos contacto com um numeroso grupo de guerrilheiros que dispunham de um morteiro 82 e 1 metralhadora pesada 12,7mm. 

As NT causaram 7 mortos confirmados, sendo 3 cabo-verdeanos, armados com pistola-metralhadora, dois deles fardados de caqui. Nesta acção, o Pel Paraquedistas teve 1 morto, 1 ferido grave e 1 ferido ligeiro. Uma rajada de PPSH inutilizou a arma do comandante dos páras, que ficou ferido na cabeça.

Quando me recordo, à distância dos anos, do que aconteceu a seguir, dá-me vontade de rir da cena caricata que devemos ter feito.

Eu conto: tendo nós conseguido sempre levar a melhor nos contactos com o IN, eis que um enorme enxame de abelhas se abateu sobre nós. Toda a gente a sacudir-se, ferroadas de criar bicho, correria desenfreada. Quem diria… pequenos insectos conseguiram aquilo que o IN nunca foi capaz: pôr-nos em fuga. Com o pessoal todo picado, já havia muitos olhos tumefactos, nada poderíamos fazer a não ser o regresso a Curcô. Ganharam as abelhas.

Na orla da mata perto de Curcô, ainda descobrimos uma plataforma construída sobre palafitas, com cerca de 1,80m de altura, e que servia como posto de vigia sobre aquela localidade. Deixámo-la ficar armadilhada. Não sei se a armadilha chegou ou não a ser activada. Hoje, faço votos para que não.

8. Acentuam-se os indícios de fraqueza do IN

Que bem dormia eu quando, naquela madrugada do dia 27 de Fevereiro, “às 4 da matina” me acordaram:

- Porra… são lá horas de acordar um pacato cidadão embrenhado em sonhos tão deliciosos!...
- Vamos embora! - Mais uma vez a mata espera por nós. E fomos.

Sol já a brilhar, movimentos suspeitos no tarrafe. Avançámos cautelosamente para averiguar. Apenas algumas pegadas de 2 ou 3 pessoas que devem ter fugido com a nossa aproximação.
Nesse dia, juntamente com o Pel Paraq e 1 grupo de combate de elementos das CCAV 487 e 489 foi destruída a tabanca de Catabão Segundo onde fizemos um prisioneiro e apreendemos 2 binóculos, 1 cantil, 1 espingarda G3 com 4 carregadores, e 3 granadas de mão. Mais uma acção em que o IN não deu sinais de vida.

Voltemos então para a praia.

Decididamente não me concedem o prazer de me entregar nos braços de Morfeu tranquilamente.

- Eh pá, ainda só são cinco horas.
- Deixa-te de tretas e vamos embora. Temos que explorar uma informação importante dada pelo prisioneiro que capturámos no dia 27.
- É isso? É para já.

Enfiar camuflado, botas, pegar no equipamento e armamento. Está tudo em ordem? Claro que está. A arma de um comando está sempre junto dele e pronta a funcionar ao segundo.

Progressão silenciosa, escondidos, calma, devagar, parar e escutar com frequência. Sem surpresa é impossível um golpe de mão bem sucedido.

Acampamento atingido e assaltado às 9 horas, praticamente sem resistência (o IN fugiu). Era constituído por cerca de 50 casas de mato com uma centena de camas de madeira e de ferro. Viva o luxo!...até havia mosquiteiros, colchões, lençóis, colchas e outras “mordomias”. Espalhados por diversos locais, máquina de escrever, máquinas de costura, roupa já confeccionada e peças de tecido, muitos livros de instrução primária em português, muita correspondência, e os habituais utensílios de uso doméstico. O acampamento estava rodeado por alguns abrigos e tinha postos de observação nas árvores.

Incendiadas as casas de mato começou o habitual estoiro de munições e granadas que ali se encontravam escondidas escapadas à nossa observação.

Nas proximidades estava um cemitério com 30 sepulturas recentes.

Desta acção, realizada no dia 1 de Março, trouxemos para a base (rica praia!): 

  • 1 cunhete com 800 cartuchos 7,9; 
  • 80 cartuchos 7,62; 
  • muitas munições de diversos calibres; 
  • 1 granada de mão incendiária; 
  • 1 cantil USA; 
  • catanas.

Aos poucos, a forte resistência inicial do PAIGC vai caindo por terra. Mostram já sinais evidentes da falta de agressividade, que é parte da doutrina da guerrilha: “ataca quando o IN está fraco; esconde-te se ele é mais forte”.

Mensagem de Nino aos seus guerrilheiros em poder de um prisioneiro por nós capturado:

“Hoje faz 48 dias que os nossos camaradas estão enfrentando corajosamente as forças inimigas. Camaradas, tenham paciência, porque não tenho outra safa senão o vosso auxílio… As tropas estão a aumentar cada vez mais as suas forças…camaradas, não tenho mais nada a dizer-vos, somente posso dizer-vos que de um dia para o outro vamos ficar sem a população e sem os nossos guerrilheiros. Já estamos a contar com as baixas de 23 camaradas… do vosso camarada, Marga - Nino “,

Emboscadas do grupo de comandos na mata de S. Nicolau, na noite de 5 de Março até à tarde do dia seguinte, mais uma vez os guerrilheiros não compareceram.


9. As vacas e o arroz

Um agrupamento constituído pelo grupo de comandos, 8º Dest Fuz, e um grupo de combate da CCAV 489, iniciaram, por volta das 8 da manhã de 12 de março, uma acção sobre Catunco Papel e Catunco Balanta a fim de cercar e bater todas a zona destruindo tudo quanto possa constituir abrigo ou abastecimento para o IN e que não seja possível recuperar pelas NT.

Cercada a tabanca de Catundo Papel e de seguida Catunco Balanta, foram as casas revistadas e destruídas, tarefa que demorou quase 5 horas. Foram recuperadas 5 toneladas de arroz; capturado um elemento IN e apreendidas 2 granadas de mão, livros escolares em português, cadernos, fotografias, facturas, recibos de imposto indígena, e um envelope endereçado a BIAQUE DEHETHÉ, sendo remetente MUSSA SAMBU de Conakry.

Terminamos este dia com a acção que mais me custou durante toda a permanência no Como. Têm que ser abatidas cerca de uma centena de vacas que por ali andavam na bolanha bucolicamente pastando. Não havia forma de podermos transportá-las connosco. Começado o tiro ao alvo, iam caindo sem remédio. Pobres bichos. E que desperdício. Enquanto fazia pontaria ia ironicamente pensando naquela carne que por ali ia ficar para os jagudis enquanto nós tínhamos andado 23 dias a ração de combate.

- Que desperdício!... - E pensava:
- Olha aquele lombo como ficava bom num espeto a rodar, bem temperado com sal, limão e malagueta!...(pum) e aquela, que belo fígado deve ter para uma saborosas iscas !...pum… e pum… e mais pum até chorar de raiva.

Coisas da guerra … sempre impiedosa.

Concluída a mortandade, ainda alguns esquartejaram pernas e extraíram lombos para uma refeição extra. Deve ter sido fruto desta acção, a oferta pelos fuzileiros de carne de vaca à CCAV 489 a que se refere o Joaquim Ganhão na sua ”Cónica do soldado 328” (1).

10. Últimas operações.

Às 03H30 do dia 16 de março, chegados a Curcô, aguardamos a aurora pondo-nos a caminho com a CCAV 489 (-). A missão era bater a mata até Cassca e daí virar a Sul até Cauane, eliminando ou aprisionando qualquer elemento IN e detectar e destruir tudo quanto possa oferecer abrigo ou recursos para o IN. Resistência ?...mais uma vez, nada.

Foi encontrado um acampamento com 15 casas de mato. Uma delas bem grande que nos pareceu ser destinada a reuniões onde estava um molho de panfletos de acção psicológica das NT, recentemente lançados na ilha pelos nossos aviões. Numa outra barraca, um caderno de cópias de INÁCIO BATALÉ, datado de 12 de novembro de 1963. Nas imediações foram descobertos e destruídos 3 depósitos de arroz, estimando-se serem cerca de 15 toneladas.

Progredindo para Sul, dentro da mata da região de Cauane, e a cerca de 600 metros da tabanca, detectou-se um grupo de 7 elementos armados de espingarda e de pistola-metralhadora. Fogo…pum. Dois tiros chegaram e caiu um. Mais dois tiros e caiu outro armado de PPSH e de farda camuflada. Mais um tiro e outro ferido que fugiu aos gritos.

Os sobrantes puseram-se em fuga. O inimigo não parecia o mesmo das primeiras semanas da batalha do Como. Estava de facto enfraquecido e fugia ao contacto.

Com a operação a chegar ao fim previsto, o Comandante das Forças Terrestres, Ten Cor Cavaleiro, saiu com o grupo de comandos e o pelotão de paraquedistas às 23h30 do dia 20 de março, atravessando a mata de Cauane, Cassaca e Cachil com a finalidade de verificar pessoalmente a capacidade de combate do IN.

Passagem e pequena paragem na tabanca de Cauane, troca de informações com o comandante da CCAV 488, dono da casa, e iniciámos a penetração na mata à 1 hora do dia 21, partindo da casa Brandão. Reacção do IN?...nenhuma. Progredimos até Cassaca que foi alcançada às 02h30. Feita uma batida cuidadosa à região, encontraram-se a Norte algumas casas de mato quase destruídas e há muito abandonadas.

Siga a tropa. Para a frente é que é o caminho. Já próximo da orla da mata de Cachil, ao “romper da bela aurora”, detectados 3 elementos IN um armado de PPSH e os outros dois de espingarda. Meia dúzia de tiros foram suficientes para fugirem. Um deles, ferido, deixou para trás a espingarda Mauser 7,9mm e 5 cartuchos da mesma. Tinha sangue na coronha.
Mais tarde, outro grupo de 5 elementos, avistados um pouco à distância, foram alvejados e fugiram sem responder ao nosso fogo. Levaram dois feridos.

Atingimos Cachil, na outra extremidade da ilha, que foi atravessada pacificamente de Sul para Norte sem qualquer beliscadura nem qualquer oposição à nossa presença por parte dos guerrilheiros.

Embarcados na LDM, lá fomos nós de regresso à praia. Foi a última operação da batalha do Como.

Por brincadeira dizíamos que tínhamos ido “fechar as portas da guerra”. Foram também os últimos banhos.

No dia 22 de Março, o grupo de comandos regressou a Bissau, aproveitando a boleia da Dornier e alguns hélis que em diversas vagas nos transportaram. O Grupo de Comandos não teve baixas, nem feridos, nem nenhum elemento evacuado por doença, fazendo juz ao nosso lema: “Audaces fortuna juvat” (2).

Para as restantes tropas foram mais dois dias de trabalho a “desmontar o arraial.” Creio que foi o que menos lhes custou.


BAIXAS DE AMBOS OS LADOS

Das NT:

8 Mortos
15 Feridos


Do IN:

76 Mortos (confirmados)
29 Feridos
9 Prisioneiros


CONCLUSÕES

De tudo quanto descrevi, e que corresponde à realidade por mim vivida durante a Operação Tridente, podemos verificar que nem sempre, ou quase nunca, a história é escrita com isenção. Na verdade, tem-se especulado muito sobre o que realmente se passou no Como. Derrota para as tropas portuguesas, dizem uns, grande vitória, contrapõem outros.

Para mim, nem uma coisa nem outra, porque na guerra, em qualquer guerra, não há vencedores: todos são vencidos pela existência da própria guerra.

Porém, analisando a Operação Tridente no âmbito estritamente militar, facilmente se chega à conclusão que:

- O PAIGC dominava a Ilha do Como em 1963;

- Nas primeiras duas semanas opôs feroz resistência às NT, a quem causou baixas, não
permitindo a nossa progressão pela mata onde estava fortemente instalado;

- Graças à nossa persistência no combate, favorecida pela superioridade de meios que
na altura ainda tínhamos, fomos aos poucos dominando a situação;

- A partir da 3ª semana já conseguíamos entrar e progredir na mata;

- Sensivelmente na 5ª semana, já nos movimentávamos facilmente por toda a ilha e os
guerrilheiros opunham esporádica e fraca resistência;

- Começou a notar-se, a partir da 7ª semana, uma completa desagregação da
capacidade de combate dos guerrilheiros: basta ler a mensagem do Nino dirigida ao
seu pessoal e transcrita nesta crónica;

- No final da operação o PAIGC já não dominava a ilha;

A teoria defendida por alguns, sobretudo pelo PAIGC (mas essa não é de admirar) que as tropas portuguesas se viram forçadas a abandonar a ilha, não é verdadeira:

1) As tropas retiraram por ter terminado a operação e não se justificar a sua continuação uma vez alcançado o objectivo: o domínio da ilha pelas NT;

2) A ilha não foi abandonada pois ficou instalada em Cachil (na tal “fortaleza” de troncos de palmeira) uma companhia para patrulhar e não deixar que o IN se reorganizasse naquela região;

3) Se mais tarde se veio a verificar o recrudescer da actividade no local, isso deve-se ao facto de a Companhia que lá ficou se ter refugiado na “fortaleza”, nunca de lá saindo a não ser para ir para Catió quando era substituída por outra (mas isso, é outra história);

Finalmente, uma palavra de apreço a quantos, de ambos os lados, se esforçaram e sacrificaram superando todas as dificuldades e,

Sentida homenagem aos que tombaram. A todos. De ambos os lados.



COMO É BOM VIVER EM PAZ!...

Quase 42 anos depois da Operação Tridente, alguns dos elementos que nela tomaram parte, pertencentes ao Grupo de Comandos, fotografados a 24 de Setembro de 2005,durante o convívio dos Grupos de Comandos que actuaram na Guiné entre 1964/66. Da esquerda para a direita [vd. foto no início deste pot]:

Sold João Firmino Martins Correia;
1ºcabo Marcelino da Mata;
1º cabo Fernando Celestino Raimundo;
Fur mil António M. Vassalo Miranda;
Fur Mário F.Roseira Dias;
Sold Joaquim Trindade Cavaco.

(Os postos referentes a cada uma, são os que tinham à época dos acontecimentos.)


Guiné > Brá > 1966 > O Alf Mil Briote, à esquerda, ladeado de dois dos primeiros comandos africanos, o Jamanta e o Joaquim. O Jamanta será mais tarde, em 1975, fuzilado no Cumeré, juntamente com outros comandos africanos.

© Virgínio Briote (2005)


Não posso deixar aqui de referir e prestar homenagem a alguns extraordinários elementos deste grupo, já falecidos:

- Fur mil Artur Pereira Pires, morto alguns meses depois na explosão de uma mina anti carro, nas proximidades de Madina do Boé;

- 1º Cabo Abdulai Queta Jamanca, fuzilado, juntamente com muitos outros ex-comandos africanos após a independência, por ordem de Luís Cabral;

- Por causa do natural e inexorável girar da roda da vida: Alf Maurício Leonel de Sousa Saraiva e Alf mil Justino Coelho Godinho.

PAZ ÀS SUAS ALMAS!

Guiné 63/74 - P360: Uma aposta estúpida (Rui Esteves)

Guiné > João Landim > 1965/66 > A famosa jangada que atravessava o Rio Mansoa em João Landim, ligando Bissau com a região do Cacheu.
Aqui o rio é largo e lodoso.

© Virgínio Briote (2005)


Uma aposta estúpida, por Rui Esteves (1)

Estávamos na região de Teixeira Pinto / Cacheu e tínhamos vindo a Bissau tratar de assuntos da Companhia.

No regresso, enquanto aguardávamos vez que os nossos Unimogs tivessem lugar na barcaça que fazia a passagem do rio (em João Landim, se bem me lembro), entretinha-me a deitar pedras para o meio do lodaçal que ficava a descoberto pela maré vasa.

Era um lodaçal preto, viscoso, com cerca de 50 metros de extensão, onde se viam centenas de caranguejos a passear.

Qualquer pedra que atirássemos, fosse leve ou pesada, era rapidamente engolida por aquele lodaçal.

Ao meu lado estava o 70, um soldado cozinheiro da minha Companhia, um pouco destravado.

Comentei com ele que, se um homem se aventurasse naquele lodaçal, provavelmente ficaria ali, afogado.

Diz-me logo o 70:
- O meu furriel quer apostar como vou ali à beira do rio sem me afogar?

Há dias assim, uma pessoa não pensa e dei por mim a aceitar a aposta, convencido que ele não teria a coragem ou a imprudência para arriscar a própria vida.

Ora o 70 não primava pela prudência e também não era conhecido pelo juízo e, quando dei por ele, estava completamente despido e a atravessar o dito lodaçal.

Devagar, fui vendo o 70 a avançar, afundando-se mais e mais, até chegar a um ponto em que só se via a cabeça.

Escusado será dizer que, à medida que o 70 ia ficando submerso em lodo, cada vez ficava mais preocupado, temendo que duma aposta estúpida resultasse a morte de um homem.

Bom, o 70 chegou ao tal ponto de só se ver a cabeça, acenou, e assim como foi, assim regressou à margem, completamente coberto de lama.

Passou-se por água, retirou a maior parte da lama, vestiu-se e disse-me:
- Furriel, ganhei a aposta, dê-me os meus 500 pesos!

Era muito dinheiro, quase metade da remuneração de um soldado no Ultramar, mas acho que nunca paguei tão bem uma aposta perdida.

E serviu-me de lição, que quem faz apostas com tolos…
____________

Lavadores, 13 de Dezembro de 2005.

(1) Rui Esteves, ex-furriel miliciano enfermeiro, CCCAÇ 3327 (Teixeira Pinto e Bissássema, 1971/73).

O Rui diz-me que "aos poucos e poucos" se vai (re)lembrando de alguns episódios da Guiné. Este é um deles.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2005

Guiné 63/74 - P359: Um conto de Natal (Artur Augusto Silva, 1962) (Pepito)

Guiné > Bissau > Brá > 1965 O General Schultz (à esquerda)

© Virgínio Briote (2005)

Texto do Carlos Schwarz (mais conhecido por Pepito, na sua terra natal, a Guiné-Bissau)

Caro Luís,

Envio-te um conto de Natal, escrito por meu pai, Artur Augusto Silva que nasceu na Ilha da Brava, em Cabo Verde, e que foi advogado na Guiné-Bissau desde 1948, tendo defendido os presos políticos do PAIGC, em 61 julgamentos, um dos quais com 23 réus tendo tido apenas duas condenações.

Em 1966, a mando do governador Arnaldo Schultz, foi preso pela Pide, no aeroporto de Lisboa, quando vinha de férias tendo ficado cinco meses na prisão de Caxias. Quando foi libertado, proibiram-no de regressar à Guiné e fixaram-lhe residência em Lisboa.

Em 1976, quando me veio visitar a Bissau, o então Presidente Luís Cabral convidou-o a trabalhar como juiz do Supremo Tribunal de Justiça, tendo também leccionado Direito Consuetudinário na Escola de Direito de Bissau desde que ela foi criada e até a 1983, quando faleceu.

Trata-se de um conto de que gosto muito (nós, os 3 filhos, pensamos editar em Fevereiro de 2006 um livro com os contos dele)e por isso te envio como postal de Feliz Natal.

abraços
pepito
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Comentário de L.G.:
Obrigado, Pepito, é um gesto muito bonito e que nos sensibiliza a todos nós, tertulianos. O teu pai deve ter sido um grande homem, de coragem e de cultura. E este pequeno conto é de primeira água. Que descanse em paz o Dr. Artur Augusto Silva. E paz na Guiné-Bissau e no resto da terra aos homens e às mulheres de boa vontade!
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Um conto de Natal

Noite luarenta de Dezembro …

Na povoação de Quebo, perdida no sertão da terra dos Fulas, o tubabo conversa com seu velho amigo, Tcherno Rachid (1), enquanto as pessoas graves da morança, sentadas em volta, ouvem as sábias palavras do Homem de Deus.

Esse Homem de Deus é um Fula, nascido na região, mas cujos antepassados remotos vieram, há talvez três mil anos, das margens do Nilo.

Mestre da Lei Corânica e filósofo, Tcherno Rachid ligou-se de amizade profunda com o tubabo - o branco - vai para quinze anos, quando este chegou à sua povoação e se lhe dirigiu em fula.

O tubabo é também um filósofo que veio procurar em África aquela paz de consciência que o mundo europeu lhe não podia dar.

Fora, noutros tempos, um crítico de Arte e um poeta, um paladino das ideias novas, e porque proclamara em concorrida assembleia de jovens que um automóvel lançado a cem quilómetros à hora era mais belo do que a Victória de Samotrácia, firmara seus créditos de «pensador profundo».

Se alguém perguntasse ao branco porque razão se encontrava ali, no coração de África, naquela noite de Natal, talvez obtivesse como resposta um simples encolher de ombros ou, talvez, ouvisse que o seu espírito necessitava daquelas palavras simples que consolam a alma dos justos e acendem uma luz no peito dos homens .

Tcherno Rachid acabara, nesse momento, de repetir as palavras do Profeta: «Nenhum homem é superior a outro senão pela sua piedade».
- Irmão, retorquiu o tubabo: então o crente não é superior ao infiel?
- São ambos filhos de Deus - respondeu o tcherno - e aos homens não compete julgar a obra do seu Criador.

Aquele que só ama os que pensam como ele, não ama os outros, antes se ama a si próprio. Só quem ama os que pensam diversamente, venera Deus, que é pai comum de todos.

Assim como tu podes adorar Deus em diversas línguas, assim podes entrar numa igreja, numa mesquita, ou numa sinagoga.

Quando vais pelo mato e admiras o grande porte de uma árvore, as penas vistosas de um pássaro, a força do elefante ou a destreza da gazela, tu murmuras uma oração que agrada a Deus, Criador de tudo o que existe, mais do que agradam as orações que só os lábios pronunciam e o coração não sente.

- Irmão tcherno, e aquele que não acredita em Deus, esse merece a tua estima ?
Rachid semi-cerrou os olhos, alongou a mão descarnada para a lua cheia, então nascente, e disse:
- Ouvirás a muitos que esse não merece o olhar dos homens: mas eu penso que o descrente merece mais o nosso amor do que o crente. É um companheiro de caminho que se perdeu. Devemos procurá-lo, ajudá-lo, e até levá-lo para nossa casa, a fim de repousar. É um filho de Deus como tu, como eu … como todos nós.

A lua, antes de ter em si tanta luz como a que tem hoje, esteve sete dias obscura, sem ser vista de ninguém, se não de Deus.

Ouve, irmão: quem julga que não crê em Deus, é porque acredita em si próprio e, crendo em si, já crê em Deus, porque o homem foi iluminado com o sopro Divino e é, assim, uma sua imagem.

A lua ia subindo nos céus, lenta, majestosa, iluminando a povoação e a floresta, os rios e os mares…

Os homens graves, de autoridade e conselho, aprovavam as palavras do tcherno, e o branco, oprimido pela ideia de que lá longe, a muitos milhares de quilómetros, reunidos em volta de uma mesa de consoada, seus avós, pais e irmãos, celebravam uma festa antiquíssima e lembravam, por certo, o «filho pródigo», deixou nascer uma lágrima que se avolumou e correu pela face tisnada pelo ardente sol dos trópicos.

Artur Augusto Silva, 1962
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Nota de L.G.

(1) Julgo ser o mesmo Cherno Rachid que eu vi, de relance, em Bambadinca, em 10 de Janeiro de 1970... Vd. post de 16 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LVII: O Cherno Rachid, de Aldeia Formosa (aliás, Quebo)

Guiné 63/74 - P358: Aquelas noites frias de Dezembro (2) (David Guimarães)

Guiné > Zona Leste > Xitole > 1970 >

Os belos penteados que se fazia no quartel para ver as mamas da bajuda e afinal tudo tudo isso era a Guiné, era o nosso dia a dia... Com boinas diferentes, uns como querendo ser melhor que outros e outros descansando ao esforço dos mais simples...

© David J. Guimarães (2005)

Texto do David Guimarães, ex-furriel miliciano de minas e armadilhas, da CART 2716, aquartelada no Xitole (1970/1972), e pertencente ao BART 2917, sediado em Bambadinca.

"Estórias que ajudam a fazer a História do nosso país, daquele país, daquele povo tão massacrado. Merecem melhor sorte".


1. Humberto, muito bem!... São mesmo estas histórias que ajudam a fazer outras histórias e relembrar os espaços de guerra que percorremos... E a guerra que tivemos... a surdez do massacre e a resistência dos heróis. Nãão daqueles que descreveram grande feitos mas daqueles que humildemente cumpriram o que lhes era ordenado e viveram os espaços que outros contaram e contam... "Como grandes operações"... Grandes feitos através de situações ligadas à ficção e em que se põem como actores principais.

Lembro o grande discurso feito por Sua Excelência, o Sr. General Spínola. Era assim... um discurso inflamado ao Batalhão [2917], em Brá... Lindo discurso patriótico em que falava das falsas elites da retaguarda... Lembro que de imediato se reuniu com todos os oficiais e sargentos e o seu discurso começou assim:
- Eu costumo punir... responsabilizando um a um até ao Furriel, porque se o cabo e o soldado eram maus a culpa era dele que não os tinha sabido instruir e/ou comandar...

Ele, afinal esqueceu-se de dizer uma coisa e hoje ainda lembro:
- Se esta merda está assim a culpa é minha porque como COM-CHEFE terei que saber conduzir este Comando Territorial.... Isso esqueceu-se ele. Morreu herói... e um grande homem... Bem melhor do que aqueles que lhe lamberam as botas. Mas não era dos piores, não, ele era intocável...

2. Tenho lido atentamente tudo - mesmo tudo o que se escreve nesta bela tertúlia. Hoje por acidente até já sonhei ... Curioso., sonhei com o tempo em que estávamos todos naquele barco, naquele charco quente de mosquitos, rãs que coaxavam a noite inteira, os serviços, os macacos e essa amálgama toda de coisas que se sucediam... Os tempos em que partíamos armados até aos dentes e lá íamos ... Guiné fora... E no meio daquela amálgama de coisas, carros novos da última grande Guerra e aviões T6 que parece que tinham custado 1 Dólar... As granadas que temos na cabeça e não temos os calibres - ai senhor do céu, tanta coisa!...

Mas é isto, a guerra era isto... e de repente um rebentamento, mais uma evacuação, ai e ali morreu fulano e beltrano e mais um batalhão que chegou - alto... Os belos penteados que se fazia no quartel para ver as mamas da bajuda e afinal tudo tudo isso era a Guiné, era o nosso dia a dia... Com boinas diferentes, uns como querendo ser melhor que outros e outros descansando ao esforço dos mais simples...

Mas a Cavalaria, essa sim - imperava, era a arma de Sua Excelência...

Um aparte e quem quiser que desminta. Ou não se acredite em mim... Em Bafatá no fim da comissão do nosso Batalhão, em 1972, perto de Maio, lá fazíamos nós guardas avançadas para que a cidade dormisse... Exactamente, Humberto, isso mesmo...

Guiné-Bissau > Zona Leste > Xitole 2001: Ó David J. Guimarães à entrada da Ponte Marechal Carmona , sobre o Rio Corubal, do lado da estrada que conduzia ao aquartelamento do Xitole, a 5 km. Trinta anos depois...

© David J. Guimarães (2005)

Depois de tanta guerra que já tínhamos tido, cabia-nos essa missão: guardar as costas dos senhores da guerra e dos negócios. Mas a peripécia é mais linda... Quantas vezes picámos a estrada por onde depois passariam as chaimites... Exactamente, não fosse aqueles carros se estragarem. E entre eles ou um humano, era mais um, menos um combatente. Que e salvasse o material, que só patrulhava as zonas alcatroadas...

3. Ai, Humberto, Luís e camaradas.! Mais coisas tenho em mente e guerras feitas às surdas - os tempos em que passávamos o dia inteiro a ver as colunas a passarem... Sim, aquelas que vinham para o Xitole e Saltinho e nós alí, lá para os lados da ponte de Jacarajá (1)... Esta ainda me lembro, nos limites da CART 2716 [Xitole] com a 2714, sediada em Mansambo... E quando se ouvia os primeiros ruídos das viaturas contávamos que em 4 horas elas passassem ao contrário para irmos para o aquartelamento ... Sim, uns 10 Km atrás... E quem sabe, talvez para ir ainda fazer um patrulhamento nocturno ou uma vigília nas tabancas...

Isto era a Guiné dos nossos tempos... da guerra.

Um abraço,
David ou Guimarães.
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Nota de L.G.:

(1) Ou Jagarajá, camarada ? Vd. mapa do Xime. > Rio Jagarajá

Guiné 63/74 - P357: O Xico de Empada, grande amigo dos guinéus (Albano Costa)

Caro Amigo L.G.

O Xico de Empada ou Xico Allen (ou ainda Francisco Allen) é um ex-combatente que esteve na Guiné em 72-74. A CCAÇ dele, eu um dia destes dou toda a informação, era os «Metralhas», não era CCAÇ 2381, do José Teixeira, que esteve em Buba e Empada, de 1968 a 1970.

O Xico ainda hoje falei com ele e disse-lhe para ele também entrar na nossa tertúlia. Eu tenho a certeza que ele vai contar a sua estória mas ele não se sente muito à vontade para a escrita: é daqueles que só de empurrão mas vai...

Ja mandei um e-mail ao José Teixeira para nos encontrarmos um dia destes. Afinal também somos vizinhos.

O Allen é uma pessoa que tem uma visão da Guiné muito grande, ele já lá foi muitas vezes, conhece muitissimo bem a Guiné, e os guinéus conhecem-no bem a ele (1).

Um abraço,
Albano
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(1) Albano:

O Carlos Schwarz (mais conhecido por Pepito), que é o fundador e director executivo da AD - Acção para o Desenvolvimento, responsável pelo Projecto Guiledje, manda dizer que gostava de conhecer o Francisco Allen quando ele for à Guiné. E mais: e se ele precisar de alguma ajuda, que o contacte, sem qualquer constrangimento... Ora isto é que é de amigo! Transmite este recado ao Xico!

Há dias eu tinha tomado a liberdade de enviar ao Pepito, para o arquivo dele, um cópia das fotos de Guileje, tiradas pelo Xico em 2004, e que tu tiveste a gentileza de nos mandar. Também sugeri que ele aproveitasse as idas (frequentes) do Xico à Guiné... Não sei se foi abuso da minha parte, mas não há dúvida que o Xico tem que vir para a nossa caserna... Dessa parte encarresgas-te tu, que és amigo dele...
L. G.

Guiné 63/74 - P356: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): II Parte (Mário Dias)

Texto da autoria do Mário Dias, sargento comando (Brá, 1963/66):

OPERAÇÃO TRIDENTE
Ilha do Como – Guiné
De 14 de Janeiro a 24 de Março de 1964

II Parte


3. Acção

Precauções redobradas, chegada a Cauane festivamente saudada pelos guerrilheiros com nutrido fogo de PPSH (1) e de outras armas a partir da mata em frente, distanciada cerca de 200 metros da nossa posição. Felizmente os tiros saíam muito altos e só o som irritante das chicotadas incomodava.

Instalados em abrigos expeditos cavados no chão arenoso, as tropas montavam guarda aquele local estratégico por ficar próximo da mata, um pouco elevado, o que permitia
domínio sobre o terreno circundante. Sob orientação do cmdt. do 8º Dest.Fuz. que aí se encontrava já há 3 dias, foram-nos indicadas as nossas posições. Cavamos abrigos, o que não foi difícil, o terreno era mole, ficando uma equipa em cada abrigo. Sempre em mente o princípio sagrado de nunca se separarem os elementos de uma equipa.

A tabanca de Cauane, bem como as restantes, estava praticamente destruída assim como a casa do comerciante Brandão, ali bem próxima. Meses antes, já a aviação havia actuado na ilha bombardeando e destruindo todas as instalações que pudessem ser proveitosas ao IN. Recordo-me ainda de assistir no QG em Santa Luzia, onde ocasionalmente me encontrava, aos protestos do referido Brandão por lhe terem escavacado tudo quanto possuía no Como.

Mesmo em ruínas, as palhotas de Cauane foram úteis para guardar muito do nosso material e sempre proporcionavam alguma sombra. Junto a uma das casas, foi colocado um tosco mastro, bem alto, onde flutuava orgulhosamente a bandeira nacional. Creio que tal “provocação” irritava os guerrilheiros que para lá disparavam longas rajadas de metralhadora, sensivelmente de hora a hora. Nós, ao fim de algum tempo habituámo-nos ao festival e até já sabíamos que horas eram, sem necessidade de consultar o relógio. Bastava contar as rajadas. As munições que assim gastaram, e foram milhares delas, (nós nem respondíamos) nunca atingiram o pessoal instalado na tabanca de Cauane. Milagre ou falta de pontaria. Ou ambas as coisas.

No dia 20 de Janeiro de 1964, o 8º Dest. Fuz. Esp. saiu para uma incursão na mata entre Cauane e S. Nicolau. Como era de esperar, um numeroso grupo estimado em cerca de 100 guerrilheiros nos quais foram referenciados alguns brancos e caboverdeanos, recebeu-os com nutrido fogo que durou aproximadamente 2 horas. Devido à gravidade da situação, saímos em reforço. A distância não era grande e rapidamente chegamos ao combate que estava mesmo feroz. Os guerrilheiros não paravam o fogo. Escondidos na densa mata, eram alvos difíceis de atingir. Progredindo por lanços, de árvore em árvore ou qualquer pequena elevação de terreno que nos protegesse, fomos tentando a aproximação à mata onde se encontrava o in. Impossível. O terreno até lá era descoberto e as metralhadoras varriam tudo. Perto de mim, um fuzileiro, temerariamente em terreno descoberto, fazia fogo. Quando reparei e lhe gritava para sair dali e se abrigar, só o vi a virar-se de barriga para o ar e ali ficou atingido com um tiro na cabeça. Fiz um disparo com o lança-roquetes (a minha arma, além da indispensável G3) para quebrar o ímpeto do IN e permitir que fosse socorrido. Resultou, e alguns elementos dos fuzileiros foram buscá - lo. Estava morto.

Guiné > Ilha do Como > 1964 >

Na tabanca de Cauane, após a acção descrita. Estou eu, (de óculos) encostado a uma palhota, visivelmente cansado. A meu lado, a comer uma bolacha da ração de combate - não havia mais nada - o 1º cabo fotocine Raimundo que estava destacado pelo QG a fim de fazer a cobertura da operação, e que se juntou ao nosso grupo nunca mais deixando de nos acompanhar.

© Mário Dias (2005)

Nada a fazer. Tivemos que ordenadamente retirar e regressar às nossas posições na tabanca de Cauane. Nesta acção, os fuzileiros sofreram 2 mortos e 3 feridos graves. Dos guerrilheiros não se sabe pois ninguém conseguiu lá chegar e verificar o que entre eles se passou.

O PAIGC estava a opor grande resistência. Foi necessária a ajuda da aviação e artilharia para que aos poucos se fosse tornando possível a nossa progressão para o interior do Como. Recordo algumas noites em que nos era recomendado não acender fogueiras, nem sequer cigarros, pois os P2V5 vinham (à socapa pois eram da NATO) bombardear a mata. As explosões eram tão fortes que o chão onde estávamos deitados estremecia.

Durante o dia actuavam os F86 e T6 bombardeando e metralhando todos os movimentos que detectassem.

Uma noite, não sei se numa atitude provocatória ou se por terem frio, acenderam uma enorme fogueira mesmo na orla da mata à nossa frente. Via-se nitidamente a passagem de silhuetas humanos à sua volta. O cmdt. dos fuzileiros (1º Ten. Alpoim Calvão) chamou o Saco, apontador da instalaza (lança granadas foguete, como a nossa bazuca - aportuguesemos a palavra - mas com algumas diferenças: era de cor cinzenta, metalizada, com um óculo de pontaria mais perfeito e tinha um escudo para protecção do apontador.)

Chegou o Saco - engraçado como os fuzileiros tinham quase todos nomes de guerra pelos quais se chamavam! Era o Régua, o Setúbal, o Pistas, o Sono e outros que de momento já não recordo - e, municiada a arma, colocou-se de joelho em terra fazendo cuidadosa pontaria. Pum … lá vai ela. Segundos depois um tremendo estoiro. Então onde está a fogueira? Desapareceu. A granada acertou bem no meio e o sopro encarregou-se de a apagar. Nunca mais acenderam outra.

Um dos pontos que pretendíamos dominar era a picada que, partindo das imediações da casa Brandão, seguia para Norte em direcção a Cassaca e Cachil. Tarefa difícil pois o inimigo tinha instaladas à entrada da mata metralhadoras no enfiamento da picada. No dia 23 o grupo de comandos reforçado com uma secção da CCAV 488 e uma secção de fuzileiros dirigiu-se ao local para tentar alcançar e destruir as metralhadoras. Escondidos na casa Brandão, fomos progredindo de um e outro lado do ourique. Porém, ao chegarmos junto ao rio que atravessa a bolanha tínhamos que subir para o ourique e passar por umas tábuas que faziam de ponte. Como era de esperar, as metralhadoras entraram em funcionamento. Zás. Tudo a saltar de novo para o desnível do ourique.

E agora? Não podíamos prosseguir na relativa segurança de “encostados ao raio do ourique” porque as margens do pequeno rio e a bolanha que seguia até à mata estavam muito alagadas e eram lodosas. Nova tentativa e novas rajadas. Respondíamos ao fogo mas eles estavam abrigados e escondidos e nós a descoberto. Vantagem deles.

Chamou-se o apoio aéreo que não tardou. Dois F86 metralharam a zona de onde partiam as rajadas. Depois de algumas passagens, foram embora e ficou um T6. Largou as bombas. Subiu e rasou o solo metralhando. Subiu de novo e metralhou. Ao ganhar altura, ouviram-se gritos de júbilo na mata. Virou à esquerda e desapareceu da nossa vista. Pensei: bom, deve ter acabado as munições ou ter pouco combustível e foi-se embora. Vamos lá, que já devem ter ”amochado”. Qual quê? Tudo como dantes. Rajadas e mais rajadas que não deixavam sequer levantar a cabeça. Feita uma rápida avaliação, concluiu-se que daquela forma era impossível. Teríamos que voltar de noite ou madrugada para que não nos vissem e assim ser possível chegar às posições que defendiam à entrada da mata.

Quando estávamos a iniciar o regresso, surge ao nosso encontro o cmdt dos fuzileiros com mais homens do seu destacamento que nos pediu para o acompanharmos pois o avião T6 que nos apoiava tinha sido abatido. Percebi então o porquê dos gritos que os guerrilheiros tinham soltado. Rapidamente chegámos ao local, que não era longe, e deparámos com a avião ainda a fumegar, embora não totalmente ardido. Carbonizado, sim, estava no chão o corpo do infeliz piloto, alferes Pité, que encontrou a morte ao tentar proteger-nos. Ainda hoje me emociono ao lembrar este triste acontecimento. O corpo foi recuperado, o avião destruído com explosivos e nós regressamos a Cauane tentando esquecer.

O pior era a alimentação. 23 dias seguidos a ração de combate. Quem passou por isso poderá imaginar os problemas de saúde que isso causa pois ao fim de algum tempo já estamos enjoados e não conseguimos engolir nada. O corpo ressentia-se do esforço diário e ficámos debilitados. Água também era pouca pois só havia a que vinha de Bissau em barcaças. Mas um dia, o pessoal da minha equipa conseguiu cozinhar. Que luxo!... Juntámos os pacotinhos de canja que vinham nas rações e, com um pouco de arroz que desencantámos numa palhota, fizemos uma bela canja. Maravilha, sopinha de canja bem quentinha. Fomos para o nosso buraco com a preciosa iguaria numa marmita. Não sei já quem foi, mas um comensal mais apressado, com a “fussanga” de meter a colher, entornou a marmita. Sopa espalhada no pano de tenda que, por ser impermeável graças ao muito óleo e sujidade acumulados, reteve a abençoada canja. Pois foi mesmo do pano de tenda que foi comida e saboreada. Há muito tempo que nada me sabia assim tão bem.

Guiné > Ilha do Como > 1964 >

Especialidade gastronómica da ilha do Como. “Canja no pano de tenda”. Fez sucesso. Na foto podem ver-se à esquerda o alferes mil. Godinho, sold. João Firmino, eu (atrás, o meu lança-roquetes) e outro soldado cujo nome já não me recordo.

© Mário Dias (2005)

As acções continuavam e começou a notar-se um certo fraquejar nas hostes do PAIGC, submetidos a um permanente assédio, não só pelos que estavam em Cauane mas também os de Curcô, Cachil e Uncomene sem contar com a aviação e artilharia entretanto instalada na base logística. E foi assim que em 26, de manhã, o grupo de comandos conseguiu entrar na mata junto de Cauane. Passámos pelo local onde, no combate em que participámos em auxílio dos fuzileiros, o inimigo teve a sua força instalada. Sem novidade. Continuámos a internar-nos na mata em direcção a S. Nicolau.

Mais à frente fomos atacados. A nossa reacção foi imediata e provocámos 3 mortos aos guerrilheiros que retiraram. Estava quebrado o mito de que não era possível entrar naquela mata. A partir desse momento, as nossas tropas não mais foram impedidas nas suas iniciativas atacantes.

Nesse dia, à tarde, fomos mandados regressar à Base Logística que passou a ser a nossa “morada” durante o resto da Op Tridente.


4. A praia.

Aqui é que se está bem. Não somos “fogachados”, não precisamos de fazer sentinelas nem vigia durante a noite e, ainda melhor, podemos tomar banho no mar.

Era esta a opinião geral. Para o conforto ser completo faltava-nos material para construir barracas que não tínhamos e improvisar camas na areia da praia. Numa das minhas deambulações de reconhecimento do local, encontrei na mata de palmeiras que bordejava a praia, um enorme acampamento abandonado, pelos vistos à pressa, pois estava repleto de inúmeros daqueles panos que usam na Guiné como vestuário. Lavadinhos, a cheirar a sabão e, espanto!...passados a ferro. Tudo muito bem arrumado, chão varrido, dava gosto andar por ali. Nem sequer faltavam galinhas que lá ficaram, nem tiveram tempo de as levar.


Guiné > Ilha do Como do Como > 1964 - O meu turno de serviço à cozinha

© Mário Dias (2005)

Era mesmo o que eu precisava. Trouxe alguns panos para fazer uma barraca e me servirem de vestuário de "turista". A palha da cobertura das casas de mato, que eram muito baixas, serviu às mil maravilhas para improvisar um belo colchão. Alguns trouxeram mesmo catres para dormir. Quanto às galinhas, foram servindo de alimento para quebrar a monotonia das rações de combate. Mas tudo tem o seu preço. Onde há galinhas e areia, há matacanhas que não tardaram a fazer estragos. Poucos de nós se livraram delas e, diariamente, tínhamos que passar revista aos pés e proceder à sua extracção. A média diária era de 8 ou 10.

A Base Logística onde também funcionava o posto de comando, estava ampliada e melhorada. Pousavam lá os aviões ligeiros (Auster e Dornier) bem como helicópteros desde que a maré não estivesse totalmente cheia. A areia molhada formava uma excelente pista de aterragem. Também já lá estavam duas bocas de fogo de obus 8,8cm, comandadas pelo Alf Mil Carvalinho, exímio tocador de guitarra e igualmente exímio tocador de garrafa de cerveja que nunca abandonava.

Uma tarde, depois de almoço, estava eu a descansar um pouco e ouvi um tiro de obus.
Fui ver. O Alf Carvalinho, de calções, tronco nu, indispensável cerveja na mão, alguns passos atrás das peças ia ordenando ao apontador:
- Pá, levanta um bocadinho… não, foi demais, baixa… um pouco para a direita… está bom. Fogo!

E a granada partiu rumo ao seu destino. Salta de lá o Tenente-coronel Cavaleiro:
- Ó Carvalinho, você ainda me mata algum homem, temos tropas na mata.
- Calma meu Tenente coronel, isto vai ter aonde eu quero . - E continuou:
- Eh pá, baixa um pouco… está bom. Fogo! - E foi assim até disparar 4 granadas. Acercando-me dele perguntei:
- Meu alferes, para onde foram esses tiros? - Mostrando-me a carta indicou:
- Para o cruzamento destes caminhos. - E apontou um cruzamento de um caminho com a picada de Cassaca.

Não é que, alguns dias depois, ao passar pelo referido local, lá estavam, muito próximos uns dos outros, os 4 impactos das granadas?!

5. Os morteiros do Nino

Uma tarde, interrogavam um prisioneiro na tenda de campanha que servia de posto de comando/sala de operações. Perguntavam-lhe:
- Onde está o Nino?
Era um dos objectivos a que a operação se propunha. A captura do Nino era essencial.
Resposta do prisioneiro:
- Foi no chão francês (Guiné Conacri) buscar morteiro.

Gargalhada de um dos oficiais de alta patente presentes:
- Agora… pode lá ser?!.. Estes gajos alguma vez têm capacidade para manobrar um morteiro?

Ainda não tinha decorrido uma semana e já a CCAV 488 instalada em Cauane estava a levar com eles. Era noite e 4 granadas de morteiro caíram com grande estrondo nas imediações da tabanca. Não houve feridos nem estragos. Vim a saber o motivo alguns dias depois quando, ao passar por lá, me mostraram as granadas. Observei e não foi difícil concluir que se tratava de granadas de instrução ou talvez já muito velhas e com perda do poder explosivo. O corpo das granadas estava simplesmente aberto, mas inteiro, sem ter provocado qualquer fragmentação ou estilhaço. Pareciam bananas descascadas. Ainda bem.

Foram as primeiras “morteiradas” na guerra da Guiné. Ainda durante o resto do tempo que durou a Op Tridente, foram referenciados mais alguns ataques de morteiro, sempre sem consequências para as NT.


6. Parece que o pior já passou

A batalha continuava. No dia 28 à meia-noite saímos com o pelotão de paraquedistas em direcção de Cauane para montar emboscadas num poço de água existente na picada Cauane/Cassaca. Passado o ourique de triste memória onde dias antes fora abatido o T6, entramos na mata e nada, nem ao menos um tiro de sentinela a avisar da nossa presença. Progredimos mais e chegados à zona do poço instalámo-nos a aguardar a comparência dos guerrilheiros. Não compareceram para a festa que lhes estava preparada.

Pelas 17 horas de 29 regressámos à base (espera praia, já aí vamos) sem ter havido qualquer contacto nem sinal de actividade do inimigo.

Em 4 de Fevereiro, em mais uma incursão na mata de Cauane, o grupo de comandos ficou emboscado após a retirada das outras forças (CCAV 489). Surpreendemos elementos avançados do IN a quem provocámos 3 feridos. (Não sei se terão morrido mais tarde.)

Boas notícias. Vamos passar a ter uma refeição quente por dia: o almoço. Já não era sem tempo. Como estávamos instalados junto ao 8º Dest de Fuzileiros com quem nos dávamos extraordinariamente bem, tanto no aspecto operacional como no convívio diário, resolvemos também “juntar os trapinhos” na confecção da comida.

À vez, à volta dos caldeiros de campanha, armados em cozinheiros, lá íamos mostrando os nossos dotes. E, acreditem, tudo correu maravilhosamente. E nem sequer faltava marisco para petiscarmos. Quando a maré vazava e não estavamos em operações, era só ir até à linha de baixa-mar onde colhíamos grandes quantidades de combé que por lá abundava. Para quem não conhecer, combé é um bivalve parecido com o berbigão mas muito maior e de casca bastante grossa. Uma delícia. Atendendo à situação, claro.

No dia 6 de Fevereiro, o grupo de comandos com pelotão de paraquedistas, embarcou na LDM (2) ao fim da tarde com destino a Curcô para, a partir desse local atingir Cachida tentando surpreender o In. pela retaguarda. Chegamos a Curcô onde estava instalada a CCAV 489. Aí pernoitámos, aguardando a madrugada para iniciar a progressão.

Talvez o nosso amigo Joaquim Ganhão (3), que lá esteve, se recorde desta nossa passagem.
Madrugada. Antes do dia romper, verificação cuidadosa do armamento, equipamento, munições… os cantis estão cheios? Tudo em ordem?

Partimos, em silêncio como convinha, e embrenhámo-nos na mata. Olhos e ouvidos atentos, mão firme nas armas, prontos a reagir. Tudo vimos com cuidado, explorando indícios e tentando descobrir onde se acoitavam. Trilhos bem pisados pelo uso, mas as poucas palhotas que fomos encontrando estavam abandonadas, algumas recentemente, outras há semanas. Contacto, nenhum. Nem vê-los. De vez em quando soava um tiro isolado, talvez de aviso, e nada mais. Ao fim da manhã atingimos Cachida, que se encontrava abandonada, e derivámos em direcção à picada que liga Cassaca a Cachil.

Desde a manhã que nessa zona da mata de Cachil o 7º Dest de Fuz. estava fixado por um grupo de cerca de 50 guerrilheiros, bem armados e municiados, que os flagelava a partir da orla da mata de Cassaca. Uma secção dos fuz. chegou a estar isolada e cercada cerca de 45 minutos.


Guiné > Ilha do Como > 1964 - Um 'palácio à beira mar'. Um 'turista descontraído'

© Mário Dias (2005)

Conseguimos chegar ao local e detectamos a retaguarda do In. que atacámos causando-lhes baixas. Como a reacção não foi grande, deduzimos - ingenuamente como em breve viríamos a verificar - que se tinham posto em fuga e iniciámos a travessia de uma zona descampada, lisa como um campo de futebol e de capim muito rasteiro, com o intuito de nos juntarmos aos fuzileiros que nos aguardavam do outro lado. Ainda não íamos a meio quando estalou a fuzilaria vinda de um ponto mais a oeste da orla da mata que acabávamos de deixar.

Chão… rebolar…responder ao fogo… procurar alguma abrigo… não há nada, tudo liso como a careca de um careca. Eles não paravam o fogo, nós também não. Mas estávamos a descoberto, alvos fáceis.

O alferes Godinho gritando para o Saraiva:
- Porra, que estamos aqui a fazer? Vamos embora. - E fomos. Em lanços, uma equipa correndo em zigue-zague, as outras cobrindo, a equipa instala-se, outra se levanta e a ultrapassa, instala-se, outra faz o mesmo e assim conseguimos percorrer os 200 metros daquela maldita clareira, debaixo de cerrado fogo, sem qualquer arranhão, juntando-nos aos fuzileiros.

Quando recordo este episódio, lembro-me sempre do logro em que fiz cair um guerrilheiro e que me salvou a vida. Faltando-me alguns metros para atingir a orla da mata onde teria abrigo seguro, vi no chão os impactos de uma rajada mesmo junto aos meus pés. Bom, esta não é à toa, é mesmo apontada para mim. De imediato, nem sei mesmo como me ocorreu tal estratagema, armei-me em artista de cinema quando atingido por disparos e, abrindo os braços, mandei um salto deixando-me cair de costas desamparado. Remédio santo. A rajada que me era dirigida parou. Fiquei no chão alguns instantes, quietinho, e de repente, ala que se faz tarde. Alcancei a segurança da mata onde já estavam quase todos os elementos do grupo. Os restantes não tardaram a juntar-se a nós.

Os paraquedistas tiveram menos sorte. Como vinham atrás de nós, ao ouvir o tiroteio que nos atingia na clareira, resolveram atravessá-la um pouco mais a leste. O resultado foi terem demorado mais tempo permitindo a reorganização do IN que lhes dificultou seriamente a travessia da clareira. Tiveram um morto e um ferido grave.

Juntas todas as tropas, caminhámos até Cachil, onde estava em construção uma espécie de quartel para uma companhia que lá ficaria instalada, ocupando e patrulhando a ilha, uma vez terminada a Op Tridente. Era uma construção sui generis pois não passava de uma enorme paliçada feita com troncos de palmeira a pique para servir de abrigo. Parecia um cenário de filme de índios contra a cavalaria americana.

No rio esperava-nos uma LDM que nos trouxe de volta à base. Oh praia, lá vamos nós.

A 17 de Fevereiro, o grupo de comandos recebeu a missão de bater a mata desde o Norte de Curcô até Cauane. Confirmando a nossa convicção de que os guerrilheiros do PAIGC estavam a ficar enfraquecidos, não houve oposição à nossa penetração na mata que, até há pouco tempo, tinha sido um santuário que não deixavam profanar.

Apenas a cerca de 1 km a Norte de S. Nicolau se ouviram dois disparos de espingarda - código por eles usado para avisar que andava por ali a tropa e se esconderem. Prosseguimos a nossa patrulha em direcção a Cauane onde, sensivelmente no local do nosso primeiro contacto com o IN nesta operação (quando morreram dois fuzileiros), fomos flagelados com alguns tiros de PPSH (3) e Metralhadora, mais com o propósito de nos manter afastados do que nos enfrentar. Reagindo, abatemos um elemento IN. Alcançamos Cauane e daí a praia da Base Logística.

Estávamos de novo “ em casa”.

(Continua)
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Notas de L. G.

(1) A metralhadora ligeira PPSH era conhecida, no meu tempo, por costureirinha, devido ao seu inconfundível e enervante som, parecido com o de uma máquina de costura, manual, tipo Singer.

(2) LDM= Lancha de Desembarque Média

(3) Vd post de 17 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXVI: Antologia (25): Depoimento sobre a batalha da Ilha do Como . o 1º cabo Ganhão pertencia à CCAV 489, comandada pelo capitão Pato Anselmo.

Guiné 63/74 - P355: Aquelas noites frias de Dezembro (1) (Luís Graça / Humberto Reis)

1. Texto do Luís Graça:

Agradeço ao Zé Neto, que é capitão e eu não sou, a preocupação com o rigor em relação ao calibre das armas. Eu era de armas pesadas de infantaria, pelo que não percebia nada de artilharia... E o pouco que sabia, confesso que esqueci... Para mais, deram-me uma G-3, quando fomos para a guerra... A minha tropa-macaca não tinha canhão sem recuo nem morteiro 80 (81, 82 ?)... Merda, esqueci o calibre do nosso morteiro!... Ficam os tertulianos a saber que em artilharia quando se diz que o obus é de 14, estamos a falar em cm: 14 centímetros, que é já um calibre de respeito!... Em infantaria devia-se usar o mesmo padrão mas não: não se diz morteiro 6 (o que se diz é morteiro 60 mm). Enfim, cada arma tem os seus tiques (... e os seus traques).

Quero também com isto dizer que temos de manter o moral das tropas elevado, mesmo que a linguagem continue a ser de caserna, ordinária... Boa disposição, camaradas, apesar do frio, das intempéries, da seca, do aquecimento global, da crise, da nossa baixa autoestima colectiva, enfim, de mais um ano que não deixa puto de saudades, etc. Sejamos nós, ao menos, os velhos tugas, a manter acesa e viva esta nossa arte de (sobre)viver. Há um milénio: é obra!

A propósito, recordo que nunca rapei tanto frio na Guiné como no final do ano: à noite as temperaturas chegavam aos 15 graus e nem o uísque aqueciam os nossos pobres corações... Quem se lembra destes tempos fodidos, das emboscadas à noite no perímetro de segurança dos aquartelamentos, destacamentos, tabancas ?!... Para não falar, das noites no mato, em operações... Quem quer falar disto, para além do Briote, do Dias, do Parreira, do Lopes e de outros grandes operacionais que temos na tertúlia ? Eu fico para as faltas... De qualquer modo, camaradas, eu acho que todos nós já merecemos... o céu! Um abraço do Luís Graça.

2. Comentário do Humberto Reis:

Eu lembro-me bem, tu também te deves lembrar, tal como todos os que foram operacionais.

A desgraçada da CCAÇ 12, naqueles sectores L1 e L5 (do Enxalé, na margem Norte do rio Geba, até Galomaro e ao Saltinho), era pau para toda a obra.Tinha, em permanência, um pelotão no destacamento da Ponte (estrada Bambadinca-Xime) e tinha que TODAS AS NOITES colocar um outro pelotão nos arredores de Bambadinca a fazer a segurança ao aquartelamento para que "dentro do arame farpado" se pudesse dormir mais descansado.

De manhã, após uma bela noite a alimentar os mosquitos e depois dos Senhores da Guerra já terem feito o seu soninho mais tranquilo, quando o pelotão regressasse estava sujeito a sair para mais uma operação.

Aquando da abertura do novo itinerário Bambadinca-Xime (quando viemos embora em Março de 71, ainda não estava totalmente asfaltado) era exactamente o pelotão que tinha estado toda a noite emboscado que tinha de ir, com mais outro, fazer a segurança ao pessoal civil (era a empresa TECNIL) que estava a trabalhar nesse empreendimento. Só da parte da tarde estes dois pelotões eram substituídos por pelotões do Xime e regressavam então a Bambadinca.

Houve uma altura em que o comando do Batalhão sediado em Bambadinca (tinha a CCS com um Pel Rec, um Pel Sap, um Pel Morteiros, um Pel Daimler, um Pel Intendência e um Destacamento de Engenharia) ainda queria que o pessoal operacional da CCAÇ 12 fizesse serviços dentro do aquartelamento (oficial de dia, sargento de dia, cabo de dia, reforços, etc.).

Claro que eles pagavam HORAS EXTRAORDINÁRIAS, davam SUBSÍDIO DE REFEIÇÃO (em vales da Ticket Restaurante), um mês de férias com SUBSÍDIO, um 13º MÊS e uma mama de fora. Reclamei junto do nosso Capitão Brito (arrisquei levar uma porrada mas não levei por duas razões, nem eu fui malcriado ao ponto de ultrapassar os limites e ele é um bom homem) - Ele lá se convenceu e convenceu também o comando, da injustiça de tal situação e isso acabou logo após alguns dias.

Estórias que ajudam a fazer a História do nosso país, daquele país, daquele povo tão massacrado. Merecem melhor sorte.

Para TODOS UM SANTO NATAL.
Humberto Reis