terça-feira, 16 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P759: Panfletos de propaganda dirigidos ao 'homem do mato'

Panfletos de propaganda política, destinados aos combatentes do PAIGG, elaborados em 1970 pelo Exército Português, escritos em crioulo. Chegaram à nossa tertúlia por mão do Manuel Mata. Foram-lhe oferecidos pelo seu amigo, o comerciante Sr. Teófilo, de Bafatá (1).

© Manuel Mata (2006) (2)

Tradução do crioulo: © Mário Dias (2006) (3)


"COMBATENTES, NÓS FOMOS ENGANADOS!

Agora nós sabemos que no PAIGC
nós lutamos só contra a felicidade do povo,
e contra o progresso da Guiné...
Agora nós vemos claro como os dirigentes do PAIG nos enganam".
Foi assim que NHATE BUIDA falou na Rádio de Bissau no dia 23 de Junho de 1970.

HOMEM DO MATO:
O Governo está a construir o progresso e a felicidade do povo.
O PAIGC só traz morte, miséria e sofrimento para o povo
e para os combatentes.

HOMEM DO MATO!
NO PAIGC TU LUTAS CONTRA O POVO

VEM JUNTAR-TE AO POVO PARA CONSTRUIR
UMA GUINÉ MELHOR.


HOMEM DO MATO !
O MOTIVO DA LUTA JÁ ACABOU

Assim disse Nhate Buida, chefe de grupo do PAIGC, de Naga,
que foi apanhado pela tropa no dia 16 de Maio de 1970.
ELE NÃO QUER REGRESSAR PARA O MATO.
__________

Notas de L.G.

(1) Vd. posts de:

11 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCXCIV: Panfleto de propaganda, em crioulo, do PAIGC: Irmãos...(1970)
2 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCLXXII: Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Manuel Mata) (5): Foguetões 122 mm no Gabu

(2) Manuel Mata, ex-1º cabo apontador de Carros de Combate M 47, Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Bafatá, 1969/71).

(3) Mário Dias, ex-sargento Comando (Brá, 1963/66)

segunda-feira, 15 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P758: Eles apenas queriam uma pátria (Américo Marques)

Texto do Américo Marques (Ex-soldado de transmissões, 3ª CART / BART 6523, Nova Lamego e Cansissé, Junho de 1973-Setembro de 1974) (1):

Boa tarde Luis!

Aqui envio uns desabafos em jeito de solidariedade para com os nossos Camaradas Combatentes, nascidos na Guiné. Que a reportagem televisiva mostrou, e ficamos a saber que existem; o que não sabemos, é se vivem! E esse pensamento mexeu comigo como eu não pensava. Porque os nossos governantes estão sempre atentos aos problemas dos Países que falam português; porque nunca imaginei que se esquecessem destas Pessoas que também falam português e são portuguesas.

Américo Marques

Gatilhos de Aluguer

Gatilhos de aluguer... É o que me apetece dizer! Depois de ouvir com a alma e ver com emoção cabisbaixa a reportagem televisiva, sobre os Competentes e Leais Combatentes da então Província Ultramarina da Guiné. E por conseguinte, irmãos de sortes e desventuras, servidores da Bandeira das Quinas.

Por estas e por outras, no meu ponto de vista, poderemos descobrir o porquê da nossa falta de autoestima; o determinismo redutor das capacidades individual e colectiva. Assim como se cultiva roendo unhas uma grande fragilidade patriótica.

E sobre a Pátria vou escrever e vou citando. Neste caso, Zeca Afonso que cantava “não sejas tão Castelhana” . E eu, como não sei cantar, apupo: não sejas tão Madrasta! Porque Aqueles esforçados Combatentes não eram mercenários. Eram, sim, pedaços de grande Gente que recebia uns poucos pesos e uns quilos de bianda.

Porque País não é o mesmo que Nação; então só lhe terá direito e direitos quem a defendeu quando necessário, e todo o outro que a dignificou. Logicamente, e óbvio não se pode tratar nunca semelhantes pessoas como números duma estatística comum da sociedade. Universalmente têm direito ao aplauso e ao respeito. Ao fim e ao cabo, oferecer-lhes uma existência digna.

Concluindo com prosa de escuteiro: "Honraram a Pátria para Serem Contemplados mas a Pátria não Os Contemplou”. E eles apenas queriam uma pátria que fosse: Protectora; Optimista; Respeitadora;Tolerante; Uniforme; Generosa; Altruísta; Leal

Américo Marques
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Nota de L.G.

(1)Vd post de 12 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXVI: Américo Marques, o último soldado do Império (Cansissé, 1974)

Guiné 63/74 - P757: A festa do fanado ou a cruel Mutilação Genital Feminina (Jorge Cabral)

Cartaz de campanha internacional contra a Mutilação Genital Feminina, em inglês, francês e árabe, com apoio da União Europeia.

Foto: © International Campaign for The Eradication of Female Genital Mutilation (2002) (com a devida vénia...).

O Jorge Cabral, advogado e professor universitário, director do Instituto de Criminologia da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, deu há tempos uma entrevista a dois dos seus alunos (1), aceitando falar da sua condição, algo priviliegiada, de testemunha presencial de uma acto de mutilação genital feminina (MGF) na Guiné, em 1969.

Pelo contexto e época, percebemos que essa cereimónia decorreu nas imediações de Fá Mandinga, a nordeste de Bambadinca. O Jorge Cabral, branco, europeu, militar, comandante do Pel Caç Nat 63, deverá ter sido ser um dos raros homens, africanos e não-africanos, a assistir a este cruel ritual de passagem, ainda profundamente enraízado na cultura de certos povos, nomeadamente de África.

Pelo seu interesse e actualidade, voltamos a publicar esta entrevista (1), agora em post autónomo.

Entrevista ao Prof. Dr. Jorge Cabral (2)

P: Quando é que assistiu à excisão?

R: Em 1969.

P: Foi na Guiné Bissau?

R: Sim

P: Porque é que quis assistir?

R: Por curiosidade antropológica. Eu fui sempre uma pessoa extremamente curiosa. O problema da colonização portuguesa, que é o problema de qualquer colonização, é que o colonizador não fez um esforço para perceber a cultura do colonizado. A colonização é isto: partir da base que a nossa cultura é que é.Neste sentido, já que eu estava numa posição privilegiada, procurei compreender alguma coisa dessa cultura e, obviamente, a excisão fazia parte dela. Também procurei compreender o tipo de famílias, as relações familiares, perceber porque é que alguns cortavam as cabeças a outros, qual o significado de cortarem a cabeça e pô-la nos pântanos... procurei entender, embora não seja antropólogo.Eu nessa altura nunca tinha ouvido falar da excisão... em 69. Foi uma experiência sobretudo traumatizante. Se calhar tenho o trauma da excisão!

P: Mas foi lá de férias, estava de passagem...?

R: Não, não! eu estava na guerra!

P: Qual foi o tipo de excisão a que assistiu?

R: Foi a mais simples, foi a ablação do clítoris.

P: Em que condições foi feita?

R: As condições eram más... mas estavam várias miúdas para fazer a cerimónia. A cerimónia só tinha mulheres, a rapariga... era uma miudita de onze anos talvez... estava amarrada, era evidente que gritava, gritava bastante e era uma mulher mais velha que fez o corte para a ablação do clítoris.

P: Com que objecto?

R: Com uma faca e sem quaisquer condições de higiene, aliás, como era feita a circuncisão dos miúdos. Era feita com uma faca ou com uma lâmina.

P: Como é que foi feita a abordagem, como é que se proporcionou a hipótese de ver uma excisão?

R: Eu estava numa situação muito privilegiada, primeiro porque eu era chefe daquilo tudo, segundo porque estava só com soldados africanos e com população africana, cada soldado tinha as suas três mulheres, não sei quantos filhos, de maneira que eu era, pelo menos a um nível simbólico, uma espécie de chefe. Nesse sentido, por curiosidade, falei com mulheres, não falei com homens, e disse que estaria interessado. Primeiro negaram, disseram que os homens não podiam assistir e eu lá expliquei, lá entreguei dinheiro e lá consegui. A cerimónia não é feita na aldeia, é feita fora da aldeia.

P: Porquê?

R: Porque mesmo entre eles é dotado de algum secretismo, é uma cerimónia que tem alguma coisa de religioso por isso mesmo não é feita na aldeia, é feita na floresta. A rapariga não sabia como era. Há simultaneamente medo mas algum orgulho porque significa uma passagem para uma idade adulta, por isso há essa duplicidade, penso eu, ao nível das miúdas que têm medo, é evidente, porque as outras também já contaram como foi e que vão sofrer muito, mas ao mesmo tempo... se calhar é como usar o primeiro sutiã. Há efectivamente um certo orgulho.

P: Qual é a posição dos homens em relação à excisão?

R: Os homens concordam até porque eles não aceitam para mulher alguém que não seja excisada.Dentro da própria comunidade uma rapariga que não tenha passado pela excisão, dificilmente arranjará marido. Uma rapariga que não tenha feito a excisão é uma criança por isso elas submetem-se para evitarem a exclusão.Não podemos generalizar e falar da mulher africana porque mesmo na Guiné não são todas as etnias que fazem a excisão. Normalmente são os islamizados. Há excisões muito mais gravosas principalmente na Somália, na Etiópia.Há outro tipo de excisão, já agora. É uma excisão que se faz em Angola, eu ainda estou a começar a estudar isso, é uma excisão ao contrário, serve para mulher ter mais prazer durante o acto sexual. Ainda não vi nada disso escrito, li isso num romance. Já perguntei a várias angolanas e elas não sabem nada mas é uma excisão para dar mais prazer à mulher, não é como a outra. Não é a ablação do clítoris, é como um “desembaraçar” do clítoris e também é feita na pré-adolescência, aos 12, 13 anos.

P: A maior parte das pessoas é contra esta prática porque é uma violação dos direitos humanos...

R: Sim, embora isso hoje seja muito discutível há uma posição radical que diz que isto ofende os direitos humanos mas há vozes autorizadas que a defendem e eu já tive a oportunidade de assistir a uma conferência, creio que há três anos, em Valência, em que um professor dizia “O que é que nós temos a ver com isso?! Isso é um valor cultural, porque é que nós estamos sempre a ver de uma perspectiva europeia, europocêntrica o problema?”Por isso há vozes que discordam desta luta contra a mutilação sexual.

P: Mas hoje em dia há organizações e outras pessoas que trabalham no terreno, no sentido de dissuadirem as mulheres a praticar este tipo de ritual.

R: Pode ter o efeito contrário, não é?!, se é proibido...

P: O isolamento destas tribos torna muito mais difícil o acesso a qualquer alteração na mentalidade destas pessoas?

R: Será muito difícil. Se nós defendêssemos sempre os mesmo valores culturais não havia evolução. É precisamente a mesma coisa, os chineses partiam os pés às crianças, os aztecas apertavam os olhos, o meu avô tomava banho uma vez por mês... quer dizer esses são valores culturais. As coisas alteram-se.

P: O que é que a lei portuguesa diz acerca disto?

R: A lei portuguesa não prevê a excisão. Se aparecer algum caso será um crime contra a integridade física grave, se aparecer algum caso. Já me contaram um caso que apareceu num hospital em que os próprios médicos nunca tinham ouvido falar da excisão e não foi levantado nenhum processo crime. Os médicos apenas verificaram que havia uma ablação mas não sabiam mais nada.

P: A quem seria aplicada a medida?

R: Neste caso seria contra a mãe. Ela é que é responsável porque leva a criança e, também, contra quem fez isso. É evidente que os casos vão aparecer. Será inevitável que qualquer dia apareça um caso destes, em França já foram julgados alguns casos.

P: Quer dizer que não estamos preparados...

R: Claro que não! É natural que uma miúda apanhe uma infecção qualquer, vá para a Estefânia e... é natural! O que o médico devia fazer era participar imediatamente mas para isso é preciso que os médicos saibam o que é a excisão e que se pratica em Portugal .
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Notas de L.G.

(1) Mafalda Sofia Félix dos Santos; Paulo César Lino Belchior de Matos - Mutilação genital feminina. Trabalho apresentado na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias no Curso de Pós-Graduação em Criminologia. s/d.

(2) Vd. post de 17 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXXII: Vocês não tenham medo, não fujam, sou o Cabral (Fá, 1969/71)

Guiné 63/74 - P756: Conferência sobre a Mutilação Genital Feminina, Hospital dos Capuchos, Lisdboa, 17 der maio de 2007, àss 16h00, com a participaçao de Jorge Cabral e Luís Graça



Mutilação Genital Feminina (MGF) > Cartaz da conferência a realizar, em Lisboa, no Centro de Formação do Hospital dos Capuchos, dia 17 de Maio de 2006, às 16h00.

Foto: Fórum de Santo António dos Capuchos (2006) (com a devida vénia...)

Convidam-se os membros da nossa tertúlia, e quaisquer outros vistantes do nosso blogue que estejam eventualmente interessados nesta problemática, a participar na sessão de apresentação e discussão do trabalho “Mutilação Genital Feminina”, de Mafalda Sofia F. Santos e Paulo César L.B. Matos (Universidade Lusófona).

Trata-se de um conferência sobre a abordagem multidisciplinar da Mutilação Genital Feminina (MGF), a realizar no Hospital dos Capuchos, Centro de Formação, no próximo dia 17 de Maio, às 16h.

Entre os comentadores figuram o editor deste blogue (Prof. Luís Graça, ENSP/UNL) bem como o nosso amigo e camarada da Guiné, o Prof. Jorge Cabral (Universidade Lusófona). Para mais informação ver o sítio Fórum de Santo António dos Capuchos.

Segundo o texto de apresentação desta confereência, a MGF provoca 3 Milhões de Vítimas por ano, de acordo com a denúncia feita no relatório da Unicef, Mudar uma convenção social nefasta: a mutilação genital feminina, publicado em 2005.

"Fenómeno social complexo, porque a sua explicação requer diferentes perspectivas de abordagem (antropológica, sociológica, religiosa, etc.), a mutilação genital feminina tem merecido a condenação dos organismos de direitos humanos, mas a prática continua violentando crianças e jovens mulheres.

"A temática escolhida para a conferência organizada pelo Fórum de Santo António, que reúne especialistas de renome, pretende evidenciar um diagnóstico e levantar pistas para a intervenção social, especialmente numa perspectiva de prevenção, dando visibilidade a um problema que muitas das vezes se apresenta escondido e clandestino".


Trata-se de uma conferência certificada, que se recomenda a profissionais, docentes e estudantes das várias profissões de intervenção social (porfissionais de saúde, técnicos de serviço social, animadores socioculturais, etc.).

Sobre este tema (que no nosso tempo, em plena guerra colonial, não mereceu qualquer atenção, interesse ou preocupação por parte das autoridades portugueses bem como dos militares portugueses), já em tempos foi aqui publicado um post de Luís Graça, com data de 4 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XII: O silêncio dos tugas face à MGF (Mutilação Genital Feminina)

Segundo dados da OMS - Organização Mundiald e Saúde, a taxa de prevalência da MGF na Guiné-Bissau seria da ordem dos 50%, atingimdo maior percenategm entre as mulheres fulas e mandingas (70% a 80%). A modalidade MGF mais praticada é de tipo II: Excisão do clitóris com parcial ou total excisão dos lábios menores...

Há um excelente dossiê do jornal Público sobre a MGF, disponível em linha.

A jornalista Sofia Branco recebeu o Prémio Mulher Reportagem Maria Lamas 2002 pelo trabalho “Mutilação genital feminina — O holocausto silencioso das mulheres a quem continuam a extrair o clítoris”, publicado em 4 de Agosto de 2002.

Guiné 63/74 - P755: Ajudar os guineenses a fazer o luto (Luís Graça)


Guiné-Bissau > Africanidades, blogue do Jorge Neto > Um tuga, da nova geração, um alentejano, que não fez a guerra colonial, que vive e trabalha em Bissau, e que dá voz (e imagem) aos guineenses que a não têm... Aqui, as crianças a caminho da escola. "25.4.06. Nós vamos à escola...e para além do caderno levamos o banco, para nos sentarmos!"... Que maravilhas, a foto e a legenda! Esta é a Guiné que queremos também a ajudar a construir...

Foto: © Jorge Neto (2006 (com a devida vénia, amigo...)

Mensagem enviada ao Jorge Neto:

Meu caro Jorge (1):

Continuo a apreciar (e a invejar...) o teu trabalho como jornalista independente, lúcido, sensível e corajoso e sobretudo o teu Africanidades, que muito nos ajuda a (re)construir uma certa ideia da Guiné, de hoje e de ontem... Tu fazes mais pela nossa cultura portuguesa e sobretudo pela lusofonia do que todos os burocratas do MNE [Ministério dos Negócios Estrangeiros] juntos e atirados ao Rio Corubal...

Desculpa-me a minha incursão pelos teus sonhos, ou melhor, a minha intempestiva intromissão, com os meus pesadelos atávicos, pela bolanha dos teus sonhos... Mas acho que, juntos, podemos de algum modo contribuir para que os velhos irãs da floresta da Guiné-Bissau se acalmem...

Quando fores para os lados de Bambadinca e do Xime, peço-te que procures almas penadas como o do Abibo Jau, o Jamanca e tantos outros, que foram meus camaradas de armas e que, enquanto guinéus, apostaram no cavalo errado (2)... Um dia destes, se fores para aqueles lados, para a região leste, procura saber notícias deles... Tal como fizeste como o Seni Candé, quando foste ao Cantanhez.

Um grande chicoração para ti.

PS - Estive há dias no teu chão e na tua terra. O Alentejo, rouxo, verde e amarelo, estava esplêndido. Tal como na Páscoa, em Abril, quando lá estiveste e fizeste umas belíssimas fotos que publicaste no teu blogue... E a tua Évora, cada vez mais menina e moça... Enfim, sabes que a beleza é um estado de espírito. Mas tu devias de gostar de atravessar o teu Alentejo no mês de Maio (3)...

Luís


2. Resposta do Jorge;

Olá Luís,

Obrigado pelo e-mail e pelas elogiosas palavras. Ainda este fim-de-semana passei por Bambadinca, mas só de passagem. Um dia que passe com tempo pararei e perguntarei por essas pessoas.

A situação dos antigos combatentes é de lamentar. Vamos tentar, devagarinho, alertar consciências. O problema é sensível e antigo, mas não pode ser esquecido. Sinto vergonha de ser português, quando encontro homens como o Seni [Candé], a viver como vivem!

Espero que as forças para continuar com a Blogueforanada continuem, pois tornou-se um espaço de referência para questões ligadas aos antigos combatentes e à guerra colonial (e não só)! Ainda um dia o veremos em livro, ou, se as editoras persistirem em não abrir as pestanas para certas realidades, concerteza vê-lo-emos citado em trabalhos de investigação, pois ele é uma fonte a não descurar no estudo do que foi a nossa passagem por África.

Um abraço,
JN
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Notas de L.G.

(1) Mensagem enviada no seguimento de uma outra, que mandei, sábado, 13 de Maio, ao resto da tertúlia, e que dizia basicamente o seguinte:

"Amigos e camaradas: A barra hoje está pesada... Temos que despejar o saco...Só quero lembrar que na nossa tertúlia ninguém censura ninguém: somos a mais plural das casernas de todas as tropas do mundo... Aqui só é proibido proibir... Eu bem gostaria de pôr a falar os guineenses... Talvez o nosso amigo Lepoldo, o historiador, o nosso doutor, queira dar uma achega... O meu muito obrigado ao José Carlos Mussá Biai, o nosso menino do Xime... Os teus olhos de criança já viram demasiadas coisas (más) na vida... Obrigado ao António Duarte, ao Hugo, a todos os demais tertulianos que também são capazes de falar destas merdas que nos atormentam... Obrigado também ao João Tunes, pela sua brutal franqueza... Confesso que hoje estou deprimido: levei um murro algures, no corpo e na alma, não sei onde... Vou beber um copo... Luís".

(2) Vd post de 12 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIX: O fuzilamento do Abibo Jau e do Jamanca em Madina Colhido (J.C. Bussá Biai)

(3) Também escrevo no Blogue-fora-nada ... E Vão Dois. E às vezes sobre o Alentejo > vd. post de 14 de Maio de 2006 > Blogantologia(s) II - (26): Às vezes este país quase perfeito e sem mácula

Guiné 63/74 - P754: O Nosso livro de visitas: Joaquim Pinheiro (CCAÇ 3566, Empada/Catió, 1972/74) - Que maravilha de trabalho

Texto do Joaquim Pinheiro (CCAÇ 3566, Os Metralhas, (Empada/Catió, 1972/74) (1):

Olá, amigo Luís!

O Xico Allen já me havia falado do seu blogueforanada, mas como foi por telefone, penso que tenha deixado de anotar algo, pois não consegui acesso.

Ontem [7 de Maio de 2006], fazendo uma pesquisa sobre Empada [na região de Tombali, Catió], eis que me deparo com este seu maravilhoso trabalho! Me emocionei, pois logo á entrada reví a foto e a história da morte de um soldado na cagadeira que eu tão bem conheço (2)... e cuja história, logo que eu cheguei a Empada, uns amigos que arranjei da Companhia, Os Catedráticos, me contaram.

Juro que, como periquito, fiquei muito impressionado. Ao ponto de sempre me conscientizar que, em caso de ataque, jamais correria pra lá...

Bem.... o importante, é que agora eu conheço melhor (estou conhecendo) o seu trabalho. Muito obrigado. Pois coisas como estas, nos fazem retornar a tão longínquos tempos.... É como se, por magia, o tempo voltasse e a memória se rejuvenesce, fazendo-nos lembrar de tantos amigos, de tantos momentos (bons e ruins) e acima de tudo, fazer aflorar o sentimento que penso todos nós, independentemente da patente carregamos nos nossos corações...A SAUDADE!!!!

Vou tomar a liberdade de enviar algumas fotos que possuo, da malta da CCAÇ 3566, Os Metralhas (Empada/Catió, 1972/74).

Um abraço deste seu fã,
Joaquim Pinheiro da Silva (o brasileiro)

(Cidade de Itanhaém - S.Paulo/Brasil)
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Notas de L.G.

(1) Sobre outros camaradas da CCAÇ 3566 - Os Metralhas, vd os posts de:

16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXVI: O Xico de Empada, grande amigo dos guinéus (Albano Costa)

18 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCX: O Cherno Rachid da Aldeia Formosa (Antero Santos, CCAÇ 3566 e CCAÇ 18)

(2) Vd. post de 11 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXIV: Estórias do Zé Teixeira (2): o Conceição ou o morrer de morte macaca

(...) "O Conceição era uma camarada de Lisboa, que tanto quanto eu sabia, não tinha pais e vivia com a avó. Era um moço muito alegre e passava o dia a cantar.

Já perto do fim da comissão, em Empada (...), estava na retrete ... e a cantar. Não ouviu as saídas de morteiro que nos foram enviadas do cimo da pista e controladas via rádio por alguém lá dentro ou junto ao arame farpado. Uma das primeiras rebentou no telhado da retrete e projetou-o para trás, esmagando parte da nuca contra a parede.

"Eu, logo após o ataque, dei uma volta pelo quartel. Fiquei assustado, pois cairam várias lá dentro e gritava de contente. Não havia aparentemente feridos e muito menos mortos. Nesse momento, o Furriel Pedro (actualmente muito doente, com um derrame celebral) grita-me:
- Teixeira vem aqui ! - Fiquei horrorizado com o que vi. Mais uma vez chorei de raiva" (...).

Vd. também post de 2 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DC: Poema em memória do Conceição (Zé Teixeira)

Guiné 63/74 - P753: O Nosso Livro de Visitas: Torcato Mendonça, ex-Alf Mil da CART 2339 - O Malan Mané estava vivo em Novembro de 1969 e eu abracei-o

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Estrada Bambadinca-Mansambo > 1970 > Uma coluna auto da CCAÇ 12 a caminho de Mansambo.

Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

Foto: © Humberto Reis (2006)


Texto do Torcato Mendonça (ex-Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69):


O [Carlos] Marques dos Santos deu-me a conhecer este blogue. Há muito que a guerra acabou para mim, só que quase diariamente ela aparece…! Não resisti, fui à Net e tenho navegado pelo blogue.

Fui alferes miliciano na CART 2339 [Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69](1). Li certos eventos que os vivi: por exemplo, o Malan Mané (2) estava vivo em Novembro de 1969 e recebia tratamento no Hospital Militar de Bissau. Abracei-o, causando espanto ao fuzo que o guardava. Só que eu estive na mata com o Malan Mané, soube que foi ferido (... Eu usava como arma, quando se justificava, o dilagrama)...

Meu caro, há escritos que não tinha deles essa recordação. Vou ter que ir á História da Companhia. Agradeço-lhe este blogue, o fazer-me relembrar certas vivências e questionar-me sobre outras. A Mansambo da foto não era a do meu tempo. O Zacarias Saiegh [da 1ª Compnahia de Comandos Africanos] foi meu amigo. Era um homem extraordinário, ele e outros que foram meus camaradas e foram fuzilados. Nunca os esqueço e não sei perdoar.

Vou reler a história da CART 2339 e talvez um dia faça um escrito e lho envie. Em Madina Xaquili o meu Grupo de Combate fez escolta a uma CCAÇ… seria a 12? Estávamos no Cop 7, em Galomaro É a memória a abrir-se. Paro aqui.

Um abraço do
Torcato Mendonça
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Notas de L.G.

(1) Há cerca de 4 dezenas de referências à CART 2339 no nosso blogue. Dica: pesquisar no blogue, inserindo o termo "CART 2339" através da janela ao canto superior esquerdo (clicar depoois em "search this blog").

(2) Guerrilheiro do PAIGC, feito prisioneiro pelas NT e ferido na Op Pato Rufia, na regiãodo Xime (7 de Setembro de 1969): Vd post de 9 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - CXLVII: Malan Mané, guerrilheiro, vinte anos, mandinga

Guiné 63/74 - P752: O abandono dos comandos africanos (Paulo Reis)

Texto do jornalista Paulo Reis:

Caro Professor Luís Graça:

Tenho 'passeado' longas horas, nas últimas semanas, pelo Blogue-fora-nada. Sou jornalista profissional (carteira nº 734) há 24 anos e trabalho em regime de freelancer, actualmente.

Tenho um contrato com uma editora para fazer um livro sobre o abandono dos comandos africanos da Guiné-Bissau. É uma história com que me cruzei, ainda estagiário, em 1982, quando encontrei o alferes Bailo Jau, já falecido e o soldado Demba Embaló com quem ainda mantenho contacto.

Estive na Guiné em 1998, por duas vezes, quando da guerra do Ansume Mané. Andei por Pirada, Bafatá, Bambadinca, Mansoa, Gabú, Bissau, etc, etc. Tendo, para além disso, nascido e vivido em Angola até 1976, calcula que sinto algo mais que mera curiosidade profissional, em relação a África.

Segui com atenção o programa da RTP1 ' Órfãos de Pátria', e acho que foi fraco - a montanha pariu um rato, como dizia um dos comentários que vi, no seu blogue. Houve, de facto um processo de decisão política, da parte portuguesa, que levou ao abandono desses homens. Mas houve também a aplicação, no terreno, dessa decisão - através, por exemplo, da passagem de licenças registadas a muitos deles, com ordens para se apresentarem no quartel no dia 1 de Janeiro de 1975, já a retirada portuguesa estaria concluída há muito.

Gostaria de poder trocar algumas impressões consigo e de saber se poderei contar com a sua ajuda, tanto em matéria de contactos como de informação e documentação de que disponha e que possa ser útil para clarificar esta página menos feliz da nossa História.

Com os meus melhores cumprimentos

Paulo Reis

Comentário de L.G.:

Meu caro Paulo: O que sabemos sobre a ascensão e queda dos comandos africanos tem sido divulgado através do nosso blogue. Estamos, eu e os restantes membros da tertúlia dos amigos e camaradas da Guiné, disponíveis para trocar impressões, informação e até documentação sobre este e outros tópicos.

De qualquer modo, bom sucesso (e boa sorte) para as suas pesquisas sobre este tema, que há muito caiu no esquecimento de portugueses e guineenses... Sem querer parecer cínico ou provocador, quem no continente africano (com tantos desastres humanitários, com tantas violações dos direitos humanos, com tantos genocídios nestes últimos cinquenta anos, que foram os anos das independências, como por exemplo a tragédia do Darfur ou a hecatombe da Sida) se vai interessar pela sorte de algumas centenas de homens que escolheram o cavalo errado, servindo a bandeira dos colonialistas, e foram tratados como mercenários e traidores pelos guerrilheiros do PAIGC que substituiram os tugas no poder, em Bissau ?

Infelizmente o que sabiam (de) mais já morreram ou foram mortos. Outros, os que podiam e deviam falar,vão provavelmente morrer na cama e até, alguns, ser tratados como heróis, com direito a lugar no panteão nacional da santa terrinha... Sempre foi assim ou tem sido: são os vencedores que escrevem a história. Nós, quando muito, podemos pôr um pauzinho na engrenagem, fazendo alguns perguntas incómodas, insalubres e perigosas... (LG)

domingo, 14 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P751: Do Porto a Bissau (15): Diário de bordo e avisos à navegação (A. Marques Lopes)





Viagem Porto-Bissau > Abril de 2006 > Percalços no deserto. Créditos fotográficos:

© A. Marques Lopes (2006)


Texto do nosso amigo e veterano desta tertúlia, o A. Marques Lopes, coronel DFA, na reforma, ex-alferes miliciano na Guiné (1967/68) (CART 1690, Geba, 1967/68; e CCAÇ 3, Barro, 1968)...

Caros camaradas e amigos:

Já lá vão quinze dias após o regresso. Vários problemas que houve a resolver. Só agora deu para começar a falar.

Não vos vou fazer o relato pormenorizado desta nossa viagem por terra até à Guiné-Bissau (Rali Porto-Bissau...) (1). Vou, apenas, realçar alguns aspectos que, em minha opinião, podem ser úteis e alertas para futuros andantes nestas aventuras.

MARROCOS:

5 de Abril [de 2006]


Em Tânger, já de noite, o inspector da alfândega Abderalak El Moussadek, com os seus ares e ademanes esquisitos, reteve o jipe por causa do material médico que continha (cerca de 200 quilos de soro fisiológico e seringas), alegando falta de guia e incumprimento das normas nacionais marroquinas, e dizendo que, pelas mesmas razões, já tinha sido detida uma viatura portuguesa na véspera...

Grande chatice (no barco que faz a travessia de Tarifa para Tânger, o Allen já tinha sido obrigado por um polícia a apagar uma fotografia, pois é proibido tirar fotografias no barco...); mas deu para uma conversa amigável com o sargento dos guardas, Mohamed Farak, que tem duas mulheres e sete filhos, com 30 anos de serviço e prestes a reformar-se (a reforma é aos 50 anos) com dirhams equivalentes a 300 € e, por isso, muito interessado em saber as condições de reforma dos militares portugueses; dorminos no Hotel Ibis (El Jadida, Place Nour El Kamar, Route de Casablanca), que se recomenda, tem perto o Café Oasis, aberto toda a noite (mas, cerveja só no hotel...).

6 de Abril

Eu, o Allen e a Inês voltámos à alfândega logo de manhã para ver da situação. Ainda pensámos que o amigo sargento Farak tivesse feito alguma coisa a nosso favor. Mas não, o inspector, só visto ao longe, agora, tinha dado ordem para o material médico não sair sem guia. Os muitos cadernos e canetas, bem como as centenas de chupa-chupas e dezenas de camisas que tínhamos não interessaram... Palpitou-nos, a mim e ao Allen, que a razão era o receio de entregarmos o material médico à Frente Polisário. Pusemo-nos a andar e lá ficaram os 200 quilos de soro fisiológico e as seringas.

7 de Abril

Dormimos em El Quatia, praia perto de Tan-Tan, já pero do Sahra Ocidental, na Villa Ocean, uma pequena pousada de um casal francês, ele ex-militar. Também a recomendo. Depois do jantar, eu fui dar uma volta (meu hábito) e encontrei um marroquino que me perguntou se tínhamos vinho e se lhe dávamos um copo. Fui buscar um copo de vinho e dei-lhe (no dia seguinte trouxe-me o copo lavadinho).

A seguir entrei numa escola infantil, porque a vi aberta, com luzes e gente lá dentro. Espanto deles e o director dirigiu-se a mim e perguntou-me o que queria. Disse-lhe que só queria visitar. Depois de eu falar, diz-me ele:
- Você bebeu vinho!.

Perguntei-lhe como é que ele sabia. Disse-me que o cheiro conhecia (o bafo deu-lhe...). Não me digam que ele vai bufar a alguma autoridade religiosa... Lá lhe fui dizendo que as religiões na minha terra não proibiam as bebidas alcoólicas, cada um podia ter a religião que quizesse, que eu até nem tinha nenhuma, etc, etc... Mas, depois desta conversa, achei por bem desistir da visita à escola e fui-me embora.

SAHARA OCIDENTAL

8 de Abril


Saímos de El Quatia em direcção ao Sahara e, 20 km depois tivemos um controlo policial. Cinco minutos depois, fui eu controlado pessoalmente. É que o Allen tinha dado antes uma lista com os passageiros e respectivas profissões, tendo colocado que eu era militar. Que estivessem descansados, que estava reformado e não tinha já nada a ver com a actividade militar... Lá os consegui convencer e seguimos para Tarfaya.

No caminho para lá, o turbulento fotógrafo Hugo pediu ao Allen para sair do asfalto para colher uma imagem. Assim foi feito e... o jipe enterrou-se na areia, rodou, rodou, mas nada. Lá ficou. Valeu-nos a juda de uns marroquinos que passaram num camião. Com uma corda que tinham e força de braços lá conseguimos voltar ao asfalto.

Às 11h20 entrámos no Sahra Ocidental, por Tah. Às 12h10 tivémos um controlo policial. Cinco minutos depois, antes de entrarmos em Layoune, capital do Sahara, novamente controlados, desta vez com militares também. Há, aliás, um quartel à entrada desta cidade, que, verificámos depois, está altamente militarizada, com vários quartéis e muita tropa pelas ruas, embora não armada. Sinal da situação são também as dezenas de jipes junto à delegação da ONU. Depois de Layoune, há uma grande cimenteira, em El Marsa, com uma grande cintura de segurança à volta e várias guaritas de vigia.

Almoçámos conservas no meio do deserto, ao sol, e surgiu um jipe da polícia pelo que tivemos de beber o vinho à pressa e guardar as garrafas. Seguimos e, às 14h45 tivemos novo controlo da polícia, com um camião de soldados por perto. Às 15h15 novamente controlados.

Entrámos, de seguida, em Boujdour, que verificámos ser igualmente uma cidade muito militarizada, também com muitos soldados na rua. Boujdour tem uma extensa praia, o que leva a estranhar que seja aqui o cabo Bojador dos portugueses (o nome foi afrancesado), mas tem um grande farol. E há razão para isso, embora não haja penhasco algum, nem na praia nem no mar: os vários navios que se vêem encalhados testemunham as marés e correntes contrárias que se cruzam naquela zona, a dor que os marinheiros portugueses tinham de passar.

À saída de Boujdour há um grande quartel e fomos controlados por perto. Seguimos e fomos novamente controlados às 16h20, e mais outra vez às 16h30. Houve outro controlo policial às 17h30, e mais outro às 18h45.

Dormimos em Rokchip, no Hotel Oasis (fácil de encontrar, pois é uma localidade muito pequena), com chuveiros e casas de banho comuns, mas já vi pior. Travei aí conhecimento com três marroquinos imigrados em Itália e que vinham com duas brutas máquinas, um BMW e um Mercedes do último modelo. Falámos lindamente em italiano e...
- Temos de fazer pela vida!, disseram-me. Os carros eram roubados e eram para vender na Mauritânia. Pediram-me para os acordar às 7 da manhã (eu era, aliás, o despertador de todo o nosso grupo), pois tinham pressa para serem os primeiros na fronteira.

MAURITÂNIA

9 de Abril

Antes de pertirmos, um dos guias do deserto pediu-nos, a mim e ao Allen, para lhe arranjarmos uma garrafa de vinho e lha darmos, depois, na terra de ninguém, cerca de um quilómetro pedregoso e sem qualquer controlo entre a fronteira do Sahara e a fronteira da Mauritânia.

Às 08h48 chegámos a Gargarate, a fronteira do Sahara, mas já estava uma longa bicha de carros. Nos primeiros lugares da frente lá estavam os tais marroquinos italianos. Durante a espera vi muitos tuaregues, claramente aborrecidos, assentados no chão, à espera que os funcionários marroquinos os atendessem. Decidi fazer uma provocação a um deles. Perguntei-lhe se era marroquino. Olhou-me duramente e com ar ofendido:
- Marroquino no!! Esta es mi tierra!- respondeu-me em perfeito castelhano. E lá me explicou que a terra dele tinha sido uma colónia espanhola e que os marroquinos a tinham ocupado após os espanhóis saírem.

Esperámos algum tempo, mas, após várias conversas minhas e do Allen com os funcionários alfandegários, e após o Allen lhes ter dado várias camisas, canetas e chupa-chupas lá passámos à frente da bicha. Os italianos olharam para nós desconsolados. O tuaregue perguntou-me:
- Te marchas ya?- Disse-lhe que sim e ele pôs a cabeça de lado e abriu os braços como quem diz: - Blanco, claro.

Antes de sair a fronteira fomos controlados por militares. Depois da terra de ninguém , entrámos na Mauritânia, depois de três controlos, um na alfândega, um policial e um militar. Depois, fiquei a saber, junto de uns tratadores, que podia comprar um camelo por 2 €.

Até Nouakchott fomos controlados às 15h35 pelos militares mauritanos, às 16h20 pela guardas alfandegários e às 16h35 pela polícia. Chegámos a Nouakchott, capital da Mauritânia (e, se não única, quase única cidade deste país deserto). É uma cidade que se caracteriza pelos montes de lixo acumulado nas ruas e nos passeios, com um trânsito caótico, sem regras, com os ministérios, os organismos oficiais e a estação de rádio guardados por militares.

Falei com um mauritano (sei o nome dele mas não ponho aqui, por razões óbvias) sobre isto, sobre um país com uma cidade, com escassos centros populacionais, muito deserto, e um governo que parece não tratar de nada, não cuidar do bem da população:
- Oh, le gouvernement!... Il mange, il mange, seulement! (que é como quem diz: eles comem tudo e não deixam nada).
- E vocês não fazem nada?
- É que - disse-me ele - há poucos brancos, alguns árabes e a esmagadora maioria são pretos, como eu, mas o problema é que estão divididos em vários partidos políticos que não se entendem, é difícil.

Dormimos no Hotel El Amane (Av Gamal Abdel Nasser, 26), um sítio muito agradável, com uma recepcionista muito simpática, destoando de todo o ambiente degradante da cidade.

10 Abril

Metemos-nos ao caminho e tivemos às 09h00 o primeiro controlo policial do dia, seguido, às 09h15 de um controlo militar. Às 10h20 tivemos outro em Tiguent e, às 10h52 e 11h20, mais dois controlos policiais. Á entrada de Rosso dois controlos policiais imediatamente seguidos: um às 11h30 e outro às 11h35.

Metemo-nos, de seguida, por uma picada de 90 quilómetros até chegarmos à fronteira (lado da Mauritânia), onde chegámos às 14h00, demos 5€ ao guarda da alfândega, o Mohamud (disse que era solteiro e perguntou ao Allen quanto é que queria pela Inês...), mas só saímos de lá às 14h55.

Desde esta hora até às 16h10 estivemos empatados com os vários guardas da fronteira do Senegal, polícias, alfandegários, militares, e até nos obrigaram a fazer um seguro para o carro. Aqui, com os senegaleses, foi só largar dinheiro. No final, um major queria meter um polícia no jipe para ir connosco até à Guiné-Bissau. Chamei-o à parte, mostrei-lhe o meu cartão militar:
- Ouve lá, nós somos colegas! Não confias em mim? Pega lá 50 € e deixa-nos andar.

E lá andámos, sem polícia pendura. Fomos controlados pela polícia às 16h30 e chegámos a Saint Louis às 16h40. Dormimos no Hotel Cab St. Louis. Muito agradável, e pudémos aí comprar CFAs. Fica perto da margem direita do rio Senegal e está pegado, do outro lado, a uma praia oceânica.

SENEGAL

11 Abril

Partimos para Tambakounda e fomos controlados às 12h00 e 12h15 pela polícia. Chegámos a Tambakounda depois de almoço (de conservas, no caminho). Ficámos no Hotel Oasis. Houve quem fosse à piscina. Não é mau. A empregada do bar é solteira mas diz que não quer saber de homens.

12 Abril

Saímos às 07h10 a caminho da Guiné-Bissau. Às 10h15 passámos a fronteira do lado do Senegal sem qualquer problema. À entrada da Guiné já não estavam para chatear. Também há uma terra de ninguém. A entrada na Guiné foi uma festa.
- Até que enfim oiço falar português - disse-lhes eu.

E um guarda até era sportinguista!

Recomendações ou dicas para quem se aventurar por estes caminhos:

(i) Quem se aventurar nestes caminhos conte em levar bastante dinheiro para distribuir pelas várias fronteiras (nós gastámos cerca de 500€, pagos pelos patrocínios conseguidos); levem camisas, caramelos e canetas também para distribuir, em certas situações os guardas contentam-se com isso;

(ii) Quem se aventurar nestes caminhos tenha uma conversa prévia com o Francisco Allen, o globtrotter destas viagens, batido em todos os esquemas necessários para ultrapassar as chatices destes espíritos africanos.

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Nota de L.G.

(1) Vd post de 20 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXIII: O Rali Porto-Bissau (1): Jantar em Moreira de Cónegos

Guiné 63/74 - P750: Capelão militar por quatro meses em Mansoa (Padre Mário da Lixa)

Guiné > Mansoa > BCAÇ 1912 (1967/68) > O capelão, Mário de Oliveira, alferes miliciano, entre soldados. Viria a receber ordem de expulsão da Guiné em 8 de Março de 1968.

Foto: © Padre Mário da Lixa (2003) (com a devida vénia...)

Já aqui falámos de vários capelães militares: por exemplo, do Padre Libório, que passou por Nova Lamego e Canjadude, no tempo do José Martins (1); do major capelão Nazário, que o A. Marques Lopes conheceu, em Lisboa e em Geba (2); do Padre Poím, que era amigo do David Guimarães (3)... Também já aqui evocámos a curta e dramática experiência de capelão militar do Padre Mário de Oliveira, mais conhecido por Padre Mário da Lixa (4). Este último foi, dos poucos (onde se inclui o açoriano Poím) que entrou em rota de colisão com a dupla hierarquia da Cruz e da Espada...
Da sua página pessoal retirámos alguns apontamentos autobiográficos que nos ajudam a entender melhor a o seu percurso como homem, cidadão e padre bem como a sua curta passagem pela Guiné. Espero que o Mário (que eu conhei, pela primeira vez, no dia do meu casamento civil, em Candoz, Paredes de Viadores, no dia 7 de Agosto de 1976) me perdoe este abuso e que venha a aceitar o meu convite para integrar esta tertúlia de amigos e camaradas da Guiné:

(i) Nascido em 1937, na freguesia de Lourosa, concelho de Santa Maria da Feira, numa família da classe trabalhadora, entrou no seminário em 1950;

(ii) Em 1962, foi ordenado padre, na Sé Catedral do Porto, pelo bispo D. Florentino de Andrade e Silva, Administrador Apostólico da Diocese, que subsitui o Bispo D. António Ferreira Gomes (1906-1989), exilado por ordem de Salazar em 1959...

(iii) A partir de 1963 foi professor de religião e moral em dois liceus do Porto;

(iv) Em Agosto de 1967 "foi abruptamente interrompido nesta sua missão pastoral pelo Administrador Apostólico da Diocese, por suspeita de estar a dar cobertura a actividades consideradas subversivas dos estudantes (concretamente, por favorecer o movimento associativo, coisa proibida pelo regime político de então)"... Nomeado capelão militar, "sem qualquer consulta prévia, pelo mesmo Administrador Apostólico", viu-se compelido a frequentar, durante cinco semanas seguidas, um curso intensivo de formação militar, na Academia Militar, em Lisboa;
(v) Em Novembro de 1967, desembarca na Guiné-Bissau, na qualidade de alferes capelão do Exército português, integrado no Batalhão 1912, com sede em Mansoa;

(vi) "Março 1968: foi expulso de capelão militar, por ter ousado pregar, nas Missas, o direito dos povos colonizados à autonomia e independência, e regressou à sua Diocese, rotulado pelo Bispo castrense de então, D. António dos Reis Rodrigues, como padre irrecuperável " (2).

(vii) Em Abril de 1968, foi nomeado pároco da freguesia de Paredes de Viadores (Marco de Canaveses);

(viii) Em Junho de 1969 é exonerado da paróquia de Paredes de Viadores pelo mesmo Administrador Apostólico da Diocese do Porto, que o havia nomeado;

(ix) Em Outubro de 1969 está a paroquiar a freguesia de Macieira da Lixa (Felgueiras), por nomeação do Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, entretanto, regressado do exílio;

(x) Em Julho de 1970 é preso pela PIDE/DGS;

(xi) Em Março de 1971 sái da prisão política de Caxias, depois de ter sido julgado e absolvido pelo Tribunal Plenário do Porto;

(xxii) Volta a ser preso pela PIDE/DGS em Março 1973; quando sai em liberdade, em Fevereiro de 1974, é "informado, de viva voz, pelo Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, que já não era mais o pároco de Macieira da Lixa";

(xxiii) Em 1975 torna-se jornalista porfissional ...

(xxiv) "Em Julho 1995, e a convite do jornal PÚBLICO, regressou à Guiné-Bissau, onde permaneceu durante uma semana, com o encargo de escrever uma crónica por dia sobre o passado e o presente daquela antiga colónia portuguesa, hoje, mais um país de língua oficial portuguesa, felizmente independente" (...) (5).

Guiné > Mansoa > 1995 > Mário de Oliveira com o padre missionário que foi encontrar em Mansoa.
Foto:© Padre Mário da Lixa (2003) (com a devida vénia...)

Sobre a sua experiência na Guiné entre finais de 1967 e princípios de 1968, disse o seguinte:
"Na guerra colonial, vivi integrado no Batalhão 1912, sedeado em Mansoa. Era o único padre capelão. Havia outro padre em Mansoa, mas na igreja da Missão, com quem sempre dialoguei, durante os quatro meses que lá vivi e actuei. Mas como capelão militar era o único padre no Batalhão.
"Enquanto não me expulsaram, pude privar de perto com as diversas chefias militares e com as centenas de soldados rasos que davam corpo ao Batalhão. Encontrei homens que estavam na guerra com convicção. A tese oficial do Regime sobre a guerra estava bem interiorizada neles. E eram generosos, à sua maneira, na entrega de si mesmos àquela causa, sem se aperceberem que era uma causa perdida. Mas havia também os que se aproveitavam da guerra, com sucessivas comissões, bem remuneradas, e quase sempre longe dos perigos das frentes de combate. Dizê-lo, não é novidade para ninguém. E havia os oficiais milicianos que, duma maneira geral, estavam na guerra contrariados e cuja preocupação maior era poderem regressar à sua família e à sua terra sãos e salvos" (...).
Fonte: Vd. post de 27 de Junho de 2005 > Guiné 60/71 - LXXXV: Antologia (5): Capelão Militar em Mansoa (Padre Mário da Lixa)
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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 12 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLVI: Procissão em Canjadude ou devoção mariana em tempo de guerra (José Martins)

(2) Vd post de 28 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXVII: A caminho da Guiné, no "Ana Mafalda" (1967)

(..) "Mas deixem-me contar o que aconteceu antes do embarque. No dia 3 de Abril [de 1967] houve a cerimónia de despedida, assim lhe chamaram, no RAC (Regimento de Artilharia de Costa) de Oeiras, que era onde estávamos à espera de embarque. Houve missa na parada celebrada pelo padre Nazário, perdão, o senhor Major-Capelão Nazário, que, ainda por cima tinha sido meu superior quando eu fiz a instrução primária nas Oficinas de S. José, em Lisboa!

"Não fui à missa nem ouvi o sermão que ele fez, e que me disseram que foi uma bela dissertação sobre o amor à pátria e a defesa do património nacional. Mas tive que o gramar mais tarde, porque ele, um dia, apareceu em Geba para ver como estava a guerra.
- Nós por cá todos bem, é claro, disse-lhe eu" (...).

(3) Vd post de 27 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXIV: A igrejinha de Geba

(...) "Em Bambadinca lembro-me do Padre Poím, capelão militar, de origem açoriana, pertecente ao BART 2917 (1970/72) (vd. respectiva foto com o furriel miliciano Guimarães da CART 2716, na nossa página dedicada ao Xitole).

"Devido às suas homilias, este capelão teve problemas com a PIDE/DGS, acabando por ser expulso do Exército, tal como o Padre Mário da Lixa. Não sei muito bem o resto da história, que me foi (re)contada pelo Guimarães. Confesso que nunca ouvi nenhuma das suas homilias, uma vez que não ía à missa. Mas conheci-o pessoalmente em Bambadinca e lembro-me do seu ar frágil e sofrido" (...).

(4) Esta experiência foi relatada no seu livro Como fui expulso de capelão militar (Edições Margem, 1995)
(5) Essaas crónicas forma publicadas em livro: "Mas à África, Senhores, Por Que Lhe Dais Tantas Dores...(Porto, Campo das Letras, 1997). Vd post de 17 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CX: Bibliografia de uma guerra (4)

sexta-feira, 12 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P749: O fuzilamento do Abibo Jau e do Jamanca em Madina Colhido (J.C. Bussá Biai)



Guiné > Brá > 1966 > O Alf Mil Briote, à esquerda, ladeado de dois dos primeiros comandos africanos, o Jamanca e o Joaquim. Esta era a 1ª equipa do seu grupo de comandos. Em vésperas da Op Atraca. O Jamanca será mais tarde ofical da 1º Companhia de Comandos Africanos, participará na Op Mar Verde (invasão da Guiné-Conacri, em 22 de Novembro de 1970) e comandará, em 1973, a CCAÇ 21, da qual farão parte antigos graduados africanos da CCAÇ 12. A CCAÇ 12, provavelmente refrescada, foi colocada no Xime, de meados de 1973 até ao final da guerra, e dela fez parte o furriel miliciano António Duarte, membro da nossa tertúlia. A CCAÇ 21 ficou em Bambadinca como unidade de intervenção (LG)

Foto: © Virgínio Briote (2005)


1. Texto do nosso querido amigo José Carlos Mussá Biai (outrora, o nosso menino do Xime) (1):

Caro Luís:

Acabo de ler depoimentos muito impressionantes que me fizeram recuar a minha infância em Xime, que você e muitos outros tertulianos bem conhecem de outros tempos.

Aquilo que o António Duarte escreveu e que lhe foi transmitido por um estudante guineense no ISEG é pura verdade.

Eu (com os meus quase 11 anos) e muitos outros, em 1974, vimos os militares do PAIGC em dois camiões de fabrico russo, um deles completamente tapado de toldo. Passaram por Xime, de manhã, para Madina Cudjido (Colhido, como vocês dizem). Passados uns 30 minutos ouvimos muitos tiros. Só que por volta da hora do almoço ouvimos [dizer] que foram lá fuzilados 8 pessoas. E das pessoas que nós ouvimos que tinham sido fuzilados - não sei se corresponde a verdade ou não - um deles era o tal Abibo Jau (2) que esteve na CCAÇ 12 em Xime. A outra pessoa seria o Tenente Jamanca, da CCAÇ 21 que estava em Bambadinca.

Mas tudo isso não me espanta porque os meus irmãos e primos que cumpriram o serviço militar no exército português, em Farim e depois em Bissau e Bambanbadinca, também foram presos, mas felizmente não lhes aconteceu o pior.

Um abraço.

José Carlos Mussá Biai

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Nota de L.G.

(1) Vd posts anteriores do (ou relacionados com o) J.C. Mussá Biai:

10 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XVI: No Xime também havia crianças felizes (2)

20 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXII: Estou emocionado (J.C. Mussá Biai)

20 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXI: Sete mortos civis no ataque ao Xime (Dezembro de 1973)(J.C. Mussa Biai)

(2) Soldado Arvorado 82 107 469 Abibo Jau, 1ª secção, 1º Grupo de Combate, CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71), Comandante: Alf Mil Op Especiais Francisco Magalhães Moreira...

O Abibo era o nosso bom gigante, um poço de energia... Era ele que transportava às costas os restos dos nossos mortos ou até os nossos feridos... Estou ainda vê-lo a levar um dos embrulhos macabros dos camaradas, tugas, da CART 2715 que foram massacrados na Op Abencerragem Candente. Quem sabe, talvez do malogrado Cunha, do meu amigo furriel Cunha... Vd post de 25 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970)...

Mas o Abibo também era o nosso torcionário: o trabalho sujo era para ele... Nós fomos embora da Guiné, repressámos a casa e dormimos, hoje, tranquilos (?), em camas com lençóis lavados... É certo que, pelo menos no nosso tempo, travámos alguns dos impulsos de morte do Abibo... Mas, que sei eu ? Ele interrogava os nossos prisioneiros (o Malan Mané, o Jomel Nanquitande, o Festa Na Lona...), e a essas cenas eu poupei-me, nunca assisti... Eu e todos (ou quase todos) nós, os milicianos, os gajos decentes da CCAÇ 12 e das outras unidades estacionadas em Bambadinca...

Imagino o pó que os gajos do PAIGC lhe tinham... O Abibo há muito que apodrece em Madina Colhido. Mas não podemos ignorar ou escamotear que o Abibo foi uma criatuar nosso, uma peça da nossa máquina de repressão... Hoje ele teria ficado livre da tropa: sofria de epilepsia e de elefantíase... Tinha ataques frequentes. Era preciso meia dúzia de homens possantes para o segurar. Um dia vi o diagnóstico da doença dele numa ficha médica, no nosso posto clínico. O seu mau génio e o seu corpo de gigante foram postos ao serviço do exército português. Nunca houve um cabrão de um miliciano (médico, alferes, furriel...) ou de um oficial do quadro do exército (civilizado) do meu país (civilizado) que dissesse: este homem é um doente, não pode ser soldado!... Eu sabia que algo estava errado no comportamento, bipolar, do Abibo Jau... Simplesmente, também eu me calei... Todos nós gostávamos do lado bom do Abibo, do bom gigante do Abibo...

José Carlos, que raio de notícia é que me trazes!... E, no entanto, não era nada que eu não temesse... Mas fizeste bem: é assim, falando - mesmo com o coração apertado - que a gente, tu e nós, o teu povo, os guineenses, os fulas, os mandingas e os demais povos da Guiné, vamos fazendo as contas com passado que nos atormenta, a todos, de uma maneira ou de outra... É assim que vamos exorcizando os nossos fantasmas, libertando-nos dos diabos da floresta...

Abibo, paz à tua alma e que a tua morte não tenha sido totalmente inútil, para que os meninos do Xime e de Madina Colhido, livres, possam hoje contar outras estórias, dos bons gigantes da floresta, expulsos os diabos que um dia os atormentaram...

Vd post de 9 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - CXLVII: Malan Mané, guerrilheiro, vinte anos, mandinga

(...) "O intérprete é o Abibo Jau, o bom gigante epiléptico com o seu metro e noventa e tal de altura e os seus mais de 100 quilos de peso. Não sei quem lhe descobriu o seu talento para torcionário. Pertence ao 1º Gr Comb, do Alferes Moreira. É visível o medo que o Abibo inspira ao Malan Mané. Um fula e um mandinga, frente a frente. Velhos ajustes de contas com a memória colectiva de cada grupo vêm provavelmente ao de cima.

"Fulas e mandingas já foram os donos destas terras. Cada um, no seu tempo. Teixeira Pinto vingou os aristocráticos mandingas, ao subjugar os fulas. Em contrapartida, deixou a estes os papéis subalternos, mais sujos, do aparelho de repressão administrativo-militar. Os pobres dos fulas tornam-se os maus da fita, aos olhos dos outros povos da Guiné. Aqui, pelo menos na zona leste, os mandingas e os balantas têm um ódio de estimação aos fulas. Um ódio que é recíproco. O poder sempre soube dividir (e aterrorizar) para reinar" (...).

Guiné 63/74 - P748: Vítimas e carrascos, amos e servos, sacanas e traidores (João Tunes)


Guiné-Bissau > Região Leste > Secytr L1 > Bambadinca > Missirá : Pelotão de Caçadores Nativos nº 54, em 1970. Tugas e nharros eram pessoas, tem um rosto, tinham um nome...

"Na 1ª fila da direita para esquerda: do pessoal metropolitano, o primeiro é o furriel miliciano Mário Armas; o terceiro é o 1º cabo Capitão; na 2ª fila da direita para a esquerda: o primeiro é o soldado Amarante; o segundo é o soldado Bulo; o quinto é o furriel miliciano Inácio; o sexto é o 1º cabo Tomé; o nono é o soldado Samba; na 3ª fila da direita para a esquerda: do pessoal metropolitano, o primeiro é o furriel miliciano Sousa Pereira; o quinto é o alferes miliciano Correia (comandante de pelotão); o sétimo é o 1º cabo Monteiro; o oitavo, africano, é o soldado Pucha (era guerrilheiro do PAIGC, foi capturado e ficou no nosso exército)"

Foto e legenda do © Mário Armas de Sousa (2005)

Texto do João Tunes:
Caro Camarada e Amigo Luís,

Claro que aceito todos (repito: todos) os argumentos e sensibilidades que se exprimiram e venham a exprimir sobre o drama dos guineenses que, tendo lutado pelo lado colonial, no exército colonial, em que também eu servi, nós todos servimos, foram vítimas, no pós-guerra, de ajustes de contas entre guineenses. Mas, como não há almoços grátis, aceito todos os argumentos e sensibilidades esperando que as minhas tenham lugar na formatura (1).

Concordo com o argumento que assenta no raciocínio de que o exército colonial devia ter protegido, em plano de absoluta igualdade, todos os que o serviram. Da única forma que podia ter sido viável - trazê-los para a Sede do Império (extinto). Como, aliás, se fez relativamente aos pides. Até porque, falando de escumalha, não encontro medida para achar que um pide fosse melhor rês que um guineense que traiu o seu povo, lutando pelo lado do ocupante, o nosso lado, o lado pelo qual combatemos. Pois que um torturador e assassino impune, um homem que fez profissão da tortura e do desmando, também renega a sua pátria - a da humanidade, do direito e da civilização. Nisso, não o considero melhor que o guineense que lutou pelo Império e contra a Guiné.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > 1969 ou 1970 > Pessoal do 2º Grupo de Combate da CCAÇ 12 atravessando em coluna apeada a bolanha de Finete na margem direita do Rio Geba. No primeiro plano, para além de municiador da Metralhadora Ligeira HK 21, Mamadú Uri Colubali (salvo erro), vê-se o Furriel Miliciano Tony Levezinho, ao meio, ladeado pelo 1º Cabo Branco (à sua direita) e pelo 1º Cabo Alves (à sua esquerda) (LG).
Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
© Humberto Reis (2006).

Devíamos ter trazido todas as nossas porcarias próprias dos ocupantes que fomos. Recolhendo o nosso lixo mais o lixo que ajudámos a criar, multiplicar e acumular. Se trouxemos de volta militares culpados (embora sem culpa formada) de crimes de guerra, mais outros culpados de invasão de países estrangeiros tentando executar em terra alheia golpes de estado, se trouxemos impunes violadores de bajudas, se trouxemos vaidades com os nossos roncos, se trouxemos essa persistente distinção entre NT e IN, se trouxemos um falar em que se mantém o termo turra para aqueles que combatemos e nos combateram, se até Spínola trouxemos e ainda o fizemos Presidente, se trouxemos a eterna incapacidade de entender que fizemos uma guerra que perdemos e em que cada um alguma coisa de si ali inutilmente perdeu (pelo menos, parte da sua juventude), se nunca apurámos se todos os peitos medalhados com cruzes de guerra e torres e espadas o foram por valentia cometida por homens leais na guerra ou se têm, á mistura, alguns peitos inchados de crime e de abusos, se trouxemos os pides e outros mais, se trouxemos essa forma atávica de olhar os guineenses de cima para baixo e ainda se ouve falar deles como sendo simpáticos bárbaros que sem nós não passam, devíamos ter trazido, e protegido, todos os que nos serviram (como nós servimos, acreditando ou não na bondade do projecto imperial). Porque as pessoas decentes não deixam lixo em casa alheia, trazem-no para depositar nos seus contentores caseiros, suportando-lhes o mau cheiro, inclusivé um que é super pestilento - o da traição ao seu povo.

Afinal e talvez, no essencial, estejamos todos de acordo. Pelo menos no repúdio quanto às execuções sumárias, esse macaquear de justiça dos vencedores guerreiros, iníqua, cruel e desumana, de que foram vítimas os traidores da Guiné e nossos companheiros de barricada colonial. Porque é uma vergonha que nos deve envergonhar. Nem menos. Pior, abandonando-os ao ajuste de contas, cometemos, nós outros - os coloniais, uma dupla sacanice - servimo-nos da sua traição de sacanas, depois deixámos os sacanas à mercê do destino pior que se reserva aos sacanas (morder o pó da vingança). Daí até se transformar um sacana, o melhor que seja entre os melhores sacanas, porque abandonado pelo amo a quem serviu em troca de pré e rancho, em herói ou patriota de pátria ocupante (o que é, como identidade, um anacronismo), além do silêncio conveniente com os nossos muitos milhares de sacanices e dadas em desconto para o rol inimputável das contingências da guerra, vai um passo, digamos, de grande (demasiado) tamanho, com alguma desfaçatez e uma mão bem cheia de hipocrisia insuflada de duplicidade moralista.

E, perante um tal eventual convite a salto, se para ele fosse convidado, que não foi nem é o caso, eu não me mexo, fico aqui a ler-vos com toda a atenção e consideração, concordante ou discordante, mas quieto, em sentido. A ver o batalhão passar. Mas sem dar um cêntimo para esse peditório.

Abraços para ti e para todos os estimados camaradas tertulianos.
João Tunes

Uma versão ligeiramente diferente deste texto foi publicada no Água Lisa (6)
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Nota de L.G.

(1) Sobre este tópico (directa ou indirectamente com ele relacionados), já foram publicados diversos posts no nosso blogue. Eis uma lista indicativa:

11 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri

9 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVII: Malan Mané, guerrilheiro, vinte anos, mandinga

4 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXIX: Guerra limpa, guerra suja (3)

21 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCIV: Eu estava lá, na entrega simbólica do território (Mansoa, 9 de Setembro de 1974)

3 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXXI: O juramento dos guerrilheiros do PAIGC

8 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DVI: As (des)venturas de Seni Candé (Jorge Neto)

10 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXVIII: A sanha revolucionária e os meus Jagudis (A. Marques Lopes)10 de Fvereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXV: Uma dívida que Portugal nunca pagou aos seus soldados africanos (Mário Dias)

11 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXII: Os ajustes de contas do PAIGC: o caso do Candé de Quebo (Zé Teixeira)

15 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXVI: Carta (aberta) ao Luís (Jorge Cabral)

4 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCV: A última noite em Canjadude (CCAÇ 5) (João Carvalho)

6 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCIX: Salazar Saliú Queta, degolado pelos homens do PAIGC em Canjadude (José Martins)

11 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCXCIV: Panfleto de propaganda, em crioulo, do PAIGC: Irmãos...(1970)

4 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXII: Onde é que vocês estavam em 22 de Novembro de 1970 ? (João Tunes)

6 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXX: Ex-comandos africanos, 'órfãos de Pátria', reportagem na RTP 1 (José Martins)

9 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXVI: A RTP1 e os 'Órfãos de Pátria': a montanha pariu um rato (José Martins)

10 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLII: O poilão dos fuzilamentos em Bambadinca (David Guimarães)

Guiné 63/74 - P747: Metade da CCAÇ 6 (Bedanda, 1967/74) foi fuzilada (Hugo Moura Ferreira, ex-alf mil, CCAÇ 1621, Cufar, e CCAÇ 6, Bedanda, 1966/68)


Caros amigos:

Tudo o que ambos [António Duarte e Luís Graça] afirmam é a verdade, pura e crua!


Eu também tenho conhecimento através de quem por lá esteve, como cooperante militar, já depois do 25 Abril, com instruções para que usasse da postura dos três macacos (não ver, não ouvir e não falar), que o mesmo aconteceu a metade dos nossos homens guineenses, não só graduados, da CCAÇ 6, de Bedanda. Alguns deles eram meus Amigos. Poderia aqui mencionar uma data deles, mas talvez um dia se faça justiça e os seus nomes venham a integrar a triste lista que se encontra gravada no Monumento do Forte do Bom Sucesso.

E, se querem confirmação, é só ouvirem os relatos do Seni Candé, que pertencia ao pelotão de Milícias destacado naquela Companhia, inseridos nos posts do Jorge Neto no seu Africanidades e nomeadamente em 8.2.06 e 25.1.06, sob os títulos Seni Candé - Iludido pelo Destino  e O Canto dos Daris do Sul, respectivamente, em parte reproduzidos no nosso blogue (1).

Este, e se calhar outros, não foi ele visitar e ouvir, pois que ele vive tão longe, no Cantanhez, a seis horas de caminho de Bissau. Desculpem esta ironia, mas não me resta outro sentimento depois de ter andado ansioso por ver o que a RTP tinha para nos mostrar e depois... depois... depois... Sim, depois NADA ou quase nada.

É a tal coisa, ninguém tem a coragem. Será que só no tempo da guerra é que ela existia? É o mesmo que se está a passar com a célebre Lei 9. Não há coragem!!!

Desculpem o estado de espírito.

Um abraço para todos.
Hugo Moura Ferreira
Ex-Alf Mil Inf (1966/1968)
CCAÇ 1621 e CCAÇ 6
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Nota de L.G.

(1)Vd post de 8 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DVI: As (des)venturas de Seni Candé (Jorge Neto)

Guiné 63/74 - P746: Procissão em Canjadude ou devoção mariana em tempo de guerra (José Martins)


Texto e fotos do
© José Martins (2006)

Caros camaradas

Com o aproximar das celebrações Marianas, envio um texto, de REFREGA (livro meu de memórias, não publicado) que relembra uma procissão em Canjadude (1) em 1969, ou seja, há 37 anos.

Um Abraço
José Martins
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PROCISSÃO EM CANJADUDE

Todas as unidades a nível de batalhão ou escalão superior incluíam no seu quadro de pessoal um sacerdote católico romano que, depois de uma breve instrução militar na Academia Militar e graduado no posto de Alferes, acompanhava as unidades combatentes para África, para as apoiar moral e religiosamente durante a sua comissão de serviço (2).

Na zona onde se encontrava a minha companhia, Nova Lamego, o capelão do batalhão ali estacionado e que dirigia a actividade daquele sector, era o padre Libório, natural dos Açores, que, na sua missão de visitas de rotina a todos os destacamentos da área do Batalhão, se encontrava a passar uns tempos em Canjadude.

Na manhã de 12 de Maio de 1969, logo ao pequeno almoço, confidenciou que gostaria de fazer uma cerimónia especial nesse dia, já que se celebrava o 51º aniversário da primeira aparição, em Fátima, de Nossa Senhora aos pastorinhos.

Não seria necessário repetir. Com a amizade e respeito que todos nutriam por ele e, ainda na sua qualidade de hóspede, os seus desejos eram ordens para qualquer um dos militares, independentemente do posto e mesmo posicionamento perante a religião. O que se iria realizar, e cujos planos e preparativos ali mesmo começaram a ser traçados, iria exceder a expectativa, não só do capelão, mas de todos os que assistiram.



Um pequeno barril de vinho foi serrado ao meio para, com a ajuda de duas varas, servir de base ao andor. Esta base foi revestida de verduras, já que não havia flores para ornamentar o andor. Para servir de base à imagem, e para a fazer sobressair sobre o rebordo da meia pipa, foi colocada uma pilha de um emissor/receptor AN-PRC/10 que com as medidas de 25x25x6 centímetros, mais ou menos, e que também serviu para alimentar um pequeno projector com que a imagem foi iluminada.

Este projector eram restos de um bombardeiro T-6 que se tinha despenhado numa zona próxima do destacamento e que a companhia tinha ajudado os mecânicos da Força Aérea a retirar do local e que por ali ficou, com outros destroços irrecuperáveis.


Se nos outros dias se notava uma necessidade louca que o tempo voasse para riscar mais um dia do calendário, aquele dia parecia que nunca mais passava. Notava-se alguma agitação em todos os rostos.

Ao jantar, e ainda que o dia ainda fosse bastante claro, já os militares se apresentavam com fardas lavadas, antecipando o momento de se incorporarem na procissão.

Quando a noite caiu, o padre Libório paramentou-se e deu início à cerimónia. Depois de uma breve alocução que serviu não só como preparação para os católicos, mas fundamentalmente como explicação para os muçulmanos que estivessem presentes, deu início à procissão.

Na frente, a abrir, seguiam as flâmulas dos pelotões da companhia. Seguiam-se os fiéis, com as suas velas acesas, o andor iluminado de Nossa Senhora, logo seguido do sacerdote que ia dirigindo as orações e cânticos.

A procissão saiu do edifício onde estava instalado o Comando e outros serviços, e iria percorrer uma área interna do destacamento, onde não houvesse o perigo de queda na rede de valas que ligavam os vários abrigos.

Calmamente e sem que tal estivesse previsto, os elementos que abriam o cortejo digiram-se para o cavalo de frisa que separava a parte militar da parte civil, entrando na tabanca pelo caminho que a atravessava.

Rezando e cantando, a procissão percorreu o caminho que levava à porta sul, tantas vezes percorrido pelas patrulhas quando se dirigiam para efectuarem operações para aqueles lados. Chegando ao fim do caminho, circundou uma árvore enorme, à sombra da qual se davam reuniam os homens grandes, regressando pelo mesmo caminho até ao aquartelamento.

Se no percurso de ida o caminho estava ladeado pela população que tinha acorrido, não só atraído pelas ladainhas e cânticos, mas também pelo cortejo de luz que as velas proporcionavam, no regresso pouca gente se via. Poucas pessoas estavam a ladear o caminho.

Feitas as orações finais e quando o padre Libório se voltou para os militares para proferir a despedida, ficou surpreso, direi mesmo espantado. Na sua frente estavam quase todos os habitantes civis que, tendo à frente os seus sacerdotes, com os seus terços, rezando a Alá, se foram integrando no cortejo, fazendo daquela procissão, um acto ecuménico espontâneo.

Terminada a cerimónia, os homens grandes dirigiram-se ao padre e ao comandante para partir mantanha (cumprimentar), dizendo que tinha sido um grande ronco (festa).

Quando todos começaram a dispersar, a foco de luz que iluminava a imagem da Santa apagou-se subitamente, como que a lembrar-nos que naquele local, em pleno mato africano, a par da devoção, que tínhamos acabado de demonstrar, havia a obrigação, ou seja, teríamos que voltar a vestir a pele de soldados e regressar às nossas tarefas.

José Martins
Ex-Furriel Miliciano de Transmissões
CCAÇ 5, Canjadude (1968/70)
26 de Agosto de 2002
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Notas de L.G.

(1) Canjadude: ficava entre Nova Lamego (Gabu Sara) e Cheche, no Rio Corubal.

(2) A experiência de capelania nem sempre correu bem, do ponto de vista do Exéricto e da Igreja Católica...
Já aqui citámos dois casos de capelões, expulsos do exército:
(i) O Padre Poím (Bambadinca, BART 2917, 1970/72)
(ii) e o Padre Mário (mais tarde conhecido como Padre Mário da Xira) (Mansoa, BCAÇ 1912, 1967/1968): vd post de 27 de Junho de 2005 > Guiné 60/71 - LXXXV: Antologia (5): Capelão Militar em Mansoa (Padre Mário da Lixa)

quinta-feira, 11 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P745: Ex-graduados da CCAÇ 12 também foram fuzilados (António Duarte)

1. Caro Luís Graça,

Sou o António Duarte, ex-furriel atirador da CART 3493 e da CCAÇ 12 (1). Quero dizer-te que tenho uma nova religião, que passa por todos os dias ver o nosso blogue (peço desculpa pelo nosso, mas já o sinto como tal).

Tenho escrito muito pouco, porque o tema ainda me incomoda, mas gostava de dar duas notas [a segunda, a ser publicada noutro post, tendo a ver com a contagem do tempo para a reforma].

A primeira prende-se com o programa [da RTP 1, Órfãos de Pátria, que passou na 3ª feira]. Partilho das opiniões já expressas, traduzidas pela expressão muita parra e pouca uva. Foi pobre na forma e no conteúdo. Foi superficial e não quis ser politicamente incorrecto.

Sem querer alongar-me, gostava de apresentar um exemplo. O programa foca-se exclusivamente nos comandos africanos e, tanto quanto sei, os graduados das CCAÇ africanas, de origem local, foram também fuzilados.

Esta informação foi-me prestada por um estudante guineense, meu contemporâneo no ISEG - Instituto Superior de Economia e Gestão (ex-ISE). Referia esse jovem, que era natural de Bafatá, que grande parte dos graduados da CCAÇ 21 foram fuzilados.

Ora, para nós, ex-militares da CCAÇ 12, esta situação toca-nos profundamente, pois em 1973 esta companhia [a CCAÇ 21], que ficou em Bambadinca comandada pelo Ten Jamanca [ex-comando africano], foi constituída, tendo por base furriéis que eram ex-cabos da CCAÇ 12 (na época colocada no Xime).

Com a ausência de referências aos outros fuzilamentos, fica a ideia de que se tratou de uma mera perseguição aos homens dos Comandos Africanos, o que realmente não foi. Foi muito mais do que isso.

Este assunto, para ser tratado num órgão de informação como a TV, merecia mais. Deveria ter uma forte componente política, onde provavelmente os governos de Portugal iriam ser responsabilizados sobretudo pelas omissões.

O comandante da nossa Marinha ainda aflorou o assunto, mas o jornalista não pegou. Acho que mais para a frente poderemos voltar ao tema.

(...) E por hoje deixo-vos com um abraço de camaradagem,

António Duarte

2. Comentário de L.G.:

O António Duarte (que foi furriel miliciano na CCAÇ 12 na fase final, depois de transitar da CART 3493, que esteve em Mansambo) vem lembrar que em Bambadinca (e um pouco por todo o lado), os que foram encostados ao trágico poilão por onde passávamos muitas vezes, não foram apenas os comandos africanos mas também os nossos nharros da CCAÇ 12 (que foram constituir novas unidades, como a CCAÇ 21), e se calhar dos Pel Caç Nat 52, 53, 54, 63... 

No nosso tempo já havia ou dois três soldados arvorados por cada grupo de combate da CCAÇ 12... Mais tarde passaram a cabos e, em segunda comissão, foram promovidos a furriéis, ao que parece na CCAÇ 21, comandada pelo comando Jamanca...

Dos soldados arvorados da CAÇ 12 estou-me a lembrar do Abibo Jau, do Vitor Santos Sampaio (um dos raros que não era fula, era mancanhe, um reguila de Bissau...), o Mamadu Baló, o Alfa Baldé, o Mamadu Baldé, o Braima Bá, o Totala Baldé, o Mamadu Jau, o Saljo Baldé, o Samba Só, o Quecuta Colubali...

O único cabo era o bom do Zé Carlos Suleimane Baldé, que estudava português que se fartava para chegar a graduado... É provável que muitos destes homens e nossos camaradas (alguns, ainda putos, quando eu os conheci em Contuboel) tenham sido fuzilados no poidão de Bambadinca...

Esta é a parte feia, macabra e trágica da história da nossa guerra... Ainda hoje os guineenses têm dificuldade em falar disto... As testemunhas, os figurantes, os actores, os executantes, os mandantes... Se calhar todos têm medo de falar, por vergonha, culpa, cobardia ...

Nós, amigos e camaradas da Guiné, temos a obrigação de falar - com emoção, mas também com dignidade moral e elevação intelectual, com serenidade... Até para os ajudar a fazer o luto (individual, familiar, colectivo)...

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Nota de L.G.

(1) Vd. post de 18 Fevereiro 2006 > Guiné 63/74 - DLXI: Um periquito da CCAÇ 12 (António Duarte / Sousa de Castro)

Guiné 63/74 - P744: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (7): A ida ao Morés: atenção, heli, aqui tropa à rasca

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Alouette III, a descolar do heliporto local. O piloto era o Coelho, diz a legenda do fotógrafo. No mato, em operações, o helicóptero era o nosso anjo da guarda, como muito bem diz o Paulo Raposo. A sua presença era sempre securizante e protectora. Até ao dia em que começaram a ser abatidos, nos primeiros meses de 1973, pelos foguetões terra-ar e nós perdemos a nossa supremacia aérea... (LG).

Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

© Humberto Reis (2006).

VII parte do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).

Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. pp. 22-25 (1).



5. A nossa ida ao Santuário do inimigo, no Morés:

Durante uma semana, a Força Aérea tinha estado a bombardear os objectivos. Após este bombardeamento, organizou-se uma grande operação, formada por várias companhias. Umas iam pelo Norte e outras pelo Sul.

Nós saímos de madrugada, de Mansabá, conjuntamente com outra companhia, depois de uma noite dormida no chão, em quartel alheio. Logo depois de sairmos dei por falta de um soldado. Até ao fim da operação fiquei sem saber o que se tinha passado com ele. Tinha ficado para trás no bem bom. O susto e a responsabilidade foram grandes.

Para esta operação, a Força Aérea tinha deslocado muitos meios, DO e helis. A meio do dia tivemos contacto com o inimigo. Depois do tiroteio, perdemos o contacto com os nossos da frente, e eu fico para trás, com apenas uma secção e alguns africanos. Para nossa salvação, tínhamos ficado com o banana, nome que dávamos ao rádio que fazia a ligação à Força Aérea.

A curta distância vimos passar o inimigo, com as armas às costas, a fugirem. Nem eles nem nós fizemos fogo.

Passados estes momentos, seguimos um trilho que julgávamos ser o da companhia. Um africano disse logo:
- Por aí não, Alfero, que é caminho de turra.

Vejo-me perdido. Agarro no banana e, sem saber os códigos, chamo a Força Aérea:
- Atenção heli, aqui tropa à rasca.

Instantes depois, Nossa Senhora mandou-nos o nosso Anjo da Guarda, na forma de um heli. Acenámos e pedimos via rádio para voar em círculo por cima do local onde estava a companhia. E foi assim que nos juntámos a eles.

Logo de seguida vá de sair dali, uma vez que estávamos localizados. Durante toda a noite andámos pelo mato denso com os mosquitos agarrados aos ouvidos e com os ramos que os da frente afastavam, a baterem-nos continuamente na cara. Foi um suplício de noite. Só parámos na estrada que ligava Mansabá a Mansoa. Deve ter sido a noite mais penosa que passei na minha vida.

6. Havia na estrada entre Mansoa e Mansabá, um aquartelamento a nível do grupo de combate, perto de um trilho inimigo que passava perpendicular à estrada, chamado Cutia. Era uma zona perigosa.

Um belo dia, mandaram-nos, a nível da companhia, fazer uma emboscada durante toda a noite nesse trilho, para criar insegurança ao inimigo. Foi um pesadelo de noite.

Choveu toda a noite, ficámos molhados até aos ossos e com os mosquitos a morderem-nos os ouvidos o tempo todo. Se o inimigo por lá tivesse passado, teria sido um desastre. Hoje vejo os rapazes a perderem noites em discotecas, com toda a ligeireza.

7. Uma operação:

As operações ou patrulhamentos tinham como objectivo manter o inimigo em respeito e longe das nossas posições. Em Mansoa nunca perdemos a nossa capacidade ofensiva. Saíamos normalmente do quartel para as operações pela meia noite.

Quando estávamos no melhor do sono vá de levantar. Passávamos a noite toda a andar, dormíamos mais uma noite no mato, e regressávamos cheios de fome e de sede no dia seguinte. Aquelas noites no mato eram o pior que podíamos ter, ora os mosquitos ora as formigas não nos davam descanso. Se tivéssemos a azar de pisar um formigueiro, estas subiam-nos pelas pernas acima e mordiam-nos todos. Tínhamos de nos despir e retirar as formigas o melhor que podíamos. Isto, é claro, sempre sem fazer barulho e às escuras.

Há histórias de soldados que se queixaram de sentir cobras a passearem-lhe por cima enquanto estavam deitados à noite.

Como calçado, tínhamos umas botas de lona com piso de borracha, que se desgastava rapidamente. O pé andava sempre à vontade. Calçar novamente sapatos de couro era uma tortura para os pés.
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Nota de L.G.

(1) Vd último post, de 8 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXXIII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (6); Mansoa, baptismo de fogo

Guiné 63/74 - P743: Aos nossos queridos nharros (Zé Teixeira)

Guiné > Zona Leste >Sector L1 > Estrada Xime-Bambadinca > 1970 > Coluna auto da CCAÇ 12 nas proximidades da tabanca fula, em autodefesa, de Amedalai.

Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

© Humberto Reis (2006).


1. Em pleno chão fula, foram os balantas, os beafadas e os mandingas que aderiram mais facilmente (ou foram condenados a aderir) à guerrilha. Os fulas, pelo contrário, reforçaram a sua velha aliança secular com os tugas. Fulas e balantas cultivavam um ódio de estimação. Eu, pessoalmente, nunca consegui falar, olhos nos olhos, a um balanta de Nhabijões (1)...

Os demónios étnicos e velhas contas por liquidar vieram, infelizmente, ao de cima, a seguir à nossa saída da Guiné. Bambadinca, tal como no início da guerra, em 1963, foi depois da independência palco de crimes contra a humanidade, nomeadamanente de execuções sumárias de dirigentes fulas, de ex-comandos e outros ex-militares que estiveram integrados nas NT. Ou seja, desta vez, de sinal contrário. A extensão destes crimes está por investigar.

Provavelmente nunca chegaremos a conhecer toda a verdade dos crimes praticados nas décadas de 1960 e 1970 na Guiné, por nós e pelo PAIGC, em nosso nome e em nome do PAIGC. Os fuzilamentos do Cumeré, de Bambadinca e de outros sítios, praticados por ou em nome dos guerrilheiros no poder, não podem todavia fazer esquecer, ignorar ou branquear a repressão exercida pelas autoridades coloniais no início da guerra: Samba Silate e Poidon, por exemplo, não honram a memória dos tugas. Foram lugares de massacres no início da guerra (1).

Eu não estava lá, mas os meus meus nharros, os mais velhos, os homens grandes, contavam-me estórias desse tempo, do terror branco de Bambadinca. Terror branco ou crioulo, já que a administração colonial da Guiné era basicamente preenchida por funcionários oriundos de Cabo Verde, ou de origem caboverdiana... Na Missão do Sono de Bambadincazinha, a G-3 a tiracolo, enquanto fazíamos horas para o sol esplendoroso de África aparecer e fazer espantar os nossos medos e os nossos fantasmas nocturnos. E com aquela espécie de inocência de criança com que os fulas falavam destas coisas trágicas e macabras da guerra e da morte aos senhores da Guiné, que eram os tugas...

Tive as relações mais afáveis, afectuosas e cordiais que me foi possível manter com os fulas, com os meus queridos nharros, mas eu sabia que as relações entre iguais, logo as relações de amizade, eram impossíveis entre nós: eu, fardado, representava uma potência estrangeira, colonial; eles, fardados, soldados de 2ª classe, pertenciam a um tempo e a mundo que já não existia... Os fulas estavam condenados pela história: infelizmente, eles não tinham alternativa... Corrompidos pelo poder colonial, cinduzidos pelos seus altos dignatários a um beco sem saída, os fulas acabaram por escolher o lado errado da barricada. Nem mesmo neutrais eles poderiam ter sido...

Enfim, especulo: que sei eu, ao fim e ao cabo, das complexas relações das principais etnias da Guiné, entre si, e com o poder colonial, durante os anos de guerra ?!... No entanto, subscrevo, de coração aberto, o belíssimo e texto que o Zé Teixeira me enviou e que passo a inserir no blogue... O Zé foi talvez dos poucos que, graças ao seu papel de enfermeiro (e também por mérito pessoal e pelas suas qualidades humanas), consegui saltar a barreira da espécie: ele, tuga, foi aceite e amado pela população fula, e ainda hoje tem verdadeiros amigos fulas...

Devo acrescentar que o termo nharro, que nós usávamos no nosso calão militar da Guiné, e nomeadamente na zona leste, não tinha propriamente uma conotação racista... Não era sinónimo de preto ou de barrote queimado... Enfim, tudo dependia da entoação... Não sei qual é a origem do termo, provavelmente é crioulo da Guiné. Ele ainda não consta do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, mas continua a fazer parte da língua portuguesa viva... Já o vi traduzido por gandarro, massaro, pessoa ignorante, sem conhecimentos, num sítio brasileiro ... Continua a fazer parte do calão dos nossos jovens urbanos e suburbanos... Já vi inclusive a utilização do termo como adjectivo: um tuga nharro (ou português ignorante)... (LG)


2. Texto do José Teixeira

Luís: Saúde, paz e felicidade.

Após algum silêncio... É bom dar espaço a outros, ler e apreciar e reviver a Guiné de outrora nos seus testemunhos e as suas histórias.

Volto de novo para entrar na onda que passa sobre os antigos combatentes nativos, que recordo com saudade, que admiro e e a quem presto a minha homenagem.

Recordo os que tive o prazer de rever, abraçar e com, eles recordar bons momentos (hoje, são todos bons, esses momentos), porque guera na passa manga di tempu e ainda estamos vivos, com há um ano [em 2005] me dizia um turra, embora muitos deles e de nós, tenham no corpo o ferrete desse tempo e que teima em não desaparecer Se vires que tem interesse para entrar no Blogue.. .
Um abraço fraterno,
Zé Teixeira
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Aos nossos queridos nharros... Tropa africana que connosco deram o seu sangue suor e lágrimas, por Portugal, com toda a carga emotiva, de carinho e afecto que a palavra nharro possa conter.

O programa aparecido na TV (2) teve pelo menos o condão de nos pôr a reflectir, a nós que durante cerca de dois anos convivemos diariamente com a tropa africana, fiel a Portugal e não ao regime, como alguns tentam deixar passar.

O conceito de mãe-pátria, Metrópole, Lisboa, estava arreigada naquela gente, não pelos políticos, mas pelos portugueses brancos que por lá foram passando, muitos dos quais para cumprir penas de índole criminal e quantas vezes por estarem em desacordo com os políticos e as políticas exercidas em Portugal.

Era um conceito forte, de esperança e de orgulho. Foi com eles que eu aprendi quanto se deve respeitar a bandeira do meu País. Com que orgulho eles a saudavam (e toda a população) no hastear e arrear diário. Gesto que ainda hoje se repete. Há um ano em Bissau pude testemunhar o toque de hastear no quartel da Amura e a reacção de toda a população na rua exterior, até onde era possível ouvir o toque.

Era este conceito de filhos de Portugal, aliado naturalmente à propaganda da época e aos benefícios financeiros que os faziam alinhar ao nosso lado com a sua experiência e conhecimento de logística local, dos carreiros das tabancas inimigas, dos perigos desconhecidos para um europeu ingénuo, para quem tudo era estranho, desde o clima ao modo de estar em sociedade, à floresta com os seus segredos e perigos, às técnicas de guerrilha usadas pelo adversário.

Pergunto:

- Quem de nós, periquitos, não sentiu ao chegar, uma mão amiga, um sorriso e um alerta para um eventual perigo ?

- Quem nos orientava na Tabanca, na busca de uma lavandera bonita e jeitosa ?

- Quem nos avisava dos perigos da floresta, abelhas, formigas, cobras ? (Aos bloguistas que se deram ao trabalho de lerem o meu diário (3), recordo a cena do ataque de abelhas e a forma como um milícia cujo rosto não fixei que me agarrou por um braço, me escondeu atrás de uma árvore e me aconselhou a ficar rigidamente quieto até elas, as abelhas, se irem embora. Foi assim que aprendi a não ter medo de abelhas e tanto jeito me fez no segundo ataque que sofri mais tarde.)

- Quem nos indicava à chegada o melhor sítio para tomar banho, no rio para tomar banho sem correr perigo ?

- Quem nos arranjava os frangos e os cabritos para as tainas, para esquecer as mágoas ?

- Quem se prontificava a ajudar o colega do morteiro, o enfermeiro ( Bons amigos que tive e recordo com saudade), no transporte do equipamento, etc ?

- Quem ainda hoje apesar de tão desprezados pela mãe-pátria, como costumavam dizer, nos recebem com um carinho e afecto, que só quem lá foi consegue entender e apreciar ? (Vi e senti lágrimas, recebi abraços longos e quentes, passados 35 anos de separação).

- Quem servia o meu País e desprezava o seu país, deixando mulheres e filhos da outra banda (Kebá de Empada, meu querido amigo, recordo as conversas que tive contigo, sobre as tuas duas mulheres e os teus filhos que optaram pelo outro lado, quanto tu sofrias quando eras atacado! Porque te recusavas a ir comigo para o mato!).

- Quem, debaixo de fogo, avançava de peito aberto para o Inimigo (eu
testemunhei), protegendo-nos (quantos de nós tão acagaçados, que não cabia um feijão no buraquinho) convencidos que era esse o caminho certo para o seu País ?

- Quem vergonhosamente os abandonou, deixando que tantos fossem assassinados pelos seus conterrâneos, só porque estavam do lado errado, quando politicamente correcto Portugal admitiu que não tinha saída, a não ser dar a oportunidade a um povo de construir e seguir o seu próprio destino ?

- Quem a partir desse momento os deixou órfãos de Pátria, obrigando-os a irem procurar a sua pátria que até então lhe garantiam não existir, sem qualquer preocupação de lhe dar o prémio merecido por tudo quanto fizeram em nome e para Portugal ?

- Quem lhe traiu todas as promessas de uma Guiné melhor, com Portugal ?

Sinto vergonha. Estão-me na memória, os Sambá, os Adbulai, os Ussumane, os Amadu, os Aliu, os Braima, os Mamadu, tantos outros, que conheci e com quem convivi sadiamente, que me acompanharam em tantos encontros com o adversário e que merecem ser considerados filhos de Portugal, pelo que fizeram, pelo que sentiam e ainda sentem, pela alegria que expressam quando nos vem chegar.

Quantos deles assassinados por incúria de Portugal, quantos andaram anos fugidos no mato, deixando a família nas mãos dos adversários, quantos ainda não reconstruíram as suas vidas, quantos sofrem o stress de guerra, quantos morreram à fome, quantos passam fome, por falta de trabalho. Não sabiam fazer mais nada a não ser guerra.

Telefonou-me há dias o Quintino Procel, de Empada. Esse conseguiu fazer no meu tempo a 4ª classe e seguiu a carreira de enfermeiro, sendo hoje o enfermeiro-chefe em Canjadude. Quando em 2005 passei por Empada, procurei-o.

Alguém o informou da minha presença e o seu telefonema chegou um ano depois:
- Tissera, tu vai na Guiné e não fala comigo ? Eu na tem casa em Canjadude. Bó na vem e firma lá. Eu fico triste, manga dele, por não ver Tissera. - Foram estas palavras que guardei no coração passados 35 anos.

Creio que ainda há algum tempo para Portugal olhar para esta gente. Não pode desperdiçar esta oportunidade.

Creio que nós, antigos combatentes, ainda podemos fazer algo por eles. No mínimo ir visitá-los(os que puderem), testemunhar-lhes a nossa amizade, tanto quanto eles nos deram a deles. Permitir que sintam e vivam essa alegria de não sentirem que foram esquecidos, por aqueles que, como eles, deram sangue, suor e lágrimas, por uma Pátria que, não sendo actualmente a deles, se deve sentir orgulhosa de os ter tido como filhos, embora de 2ª...

Zé Teixeira
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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 28 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXCIV: Nhabijões: quando um balanta a menos era um turra a menos

(...) "Há uns anos atrás, nos anos do terror, ser encontrado fora da sua tabanca ou do seu perímetro, de catana na mão ou faca de mato à cintura - que é ronco ou adorno para um balanta que se preze - , eis um belo pretexto para um balanta ser preso, levado para o posto administrativo de Bambadinca, sumarianente interrogado e às vezes, hélàs!, mais sumariamente ainda liquidado.

"A justificação era simples, segundo os meus nharros: "um balanta a menos, era um turra era menos" (sic)… Admito que haja aqui alguma dose de fanfarronice e de exagero, por parte dos fulas, históricos inimigos e vizinhos dos balantas… Mas não há fumo sem fogo: estas histórias parecem-me ter consistência…

"Donde esta hostilidade passiva que julgo poder ler nos olhos e nas atitudes da população de Nhabijões que alimenta a guerrilha, em homens e mantimentos, provavelmente mais por razões de parentesco do que por simpatia para com o PAIGC: ao avistarem-me, fardado, na sua tabanca – a mim, tuga, representante da tropa ocupante - os mais velhos baixam a cabeça ou viram-me as costas como se sentissem acabrunhados com a minha presença… Quem se sente mal, sou eu, que venho invadir-lhes a sua privacidade e perturbar os seus irãs…

"Devia ser esta, aliás, a atitude com que caminhavam para a morte: sem medo mas também sem revolta, com uma estranha dignidade ancestral, a pá e a pica em cada uma das mãos. Sim, por que o método era tão requintado como o dos nazis, a crer na descrição que me fazem alguns dos meus informadores, os mais velhos, como o Abibo, por exemplo – o Abibo, o bom gigante do Abibo, que sofre de epilepsia e tem elefantíase no escroto…

"Ou até senão mais: a própria vítima abria a estreita vala onde devia caber o seu próprio corpo, três palmos abaixo da superfície, e onde ficava deitado… à espera que o carrasco da polícia administrativa (sempre os africanos para as tarefas sujas…) se dignasse dar-lhe o passaporte para a eternidade: um tiro de pistola, uma lata de gasolina, um fósforo…

"Ter-se-á passado assim ? Um frémito de horror passa-me pela espinha acima. Recuso-me a aceitar que isto se tenha passado debaixo da bandeira verde-rubra da minha pátria, com a cumplicidade ou até o envolvimento (activo ou passivo) das tropas portuguesas ou dos representantes das autoridades portuguesas… Faço, ao menos, votos para que estes crimes sejam apenas imputados à odiosa PIDE… Enfim, nunca o saberei… Ou melhor, poderei perguntar-lhes onde era o sítio... O Adibo e outros falam-me do antigo cemitério de Bambadinca, um sinistro local de outrora onde hoje as alfaces crescem, viçosas" (...)…


(2) Vd. post de 6 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXX: Ex-comandos africanos, 'órfãos de Pátria', reportagem na RTP 1 (José Martins)

(3) Vd. post de 14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi