terça-feira, 18 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2664: Os Cães de Guerra (Mário Fitas e Carlos Filipe, ex-Fur Mil, CCaç 763, Cufar, 1965/66)

Elementos da CCaç 763 em Cufar: Mário Fitas é o 2º da direita).




Companhia de Caçadores 763

Guiné 1965/1966

História da criação da Secção de Cães de Guerra



Texto de Mário Fitas * e Carlos Filipe.

Fotos: © Mário Fitas. Direitos reservados.

Para nos revermos, e ter fundamentos para esta experiência de introdução de Cães de Guerra na contra-guerrilha em terras da Guiné, há que remontar a 1961/1962. O então Cap Inf Carlos da Costa Campos, a prestar serviço em Moçambique, foi indigitado para se deslocar a Pretória, África do Sul, a fim de durante seis meses, lhe ser administrado um curso de Cinotécnia.



Para o efeito, adquiriu três cachorros Pastor Alemão, para melhor entrosamento do seu curso aos quais pôs os nomes: Cadete e Punch (Machos) e Carhen (Fêmea).




O Cadete em pose.

Após a formação técnica recebida em Pretória, o capitão Costa Campos regressou a Moçambique, onde foi incumbido da instalação do Centro de Treino e Instrução de Cães de Guerra de Boane. A partir deste momento estava criado o 1º Centro de Cinotecnia do Exército Português. (**)

Regressado à Metrópole, foi mobilizado para comandar a CCAÇ 763 em Setembro de 1964, tendo aquela companhia como unidade mobilizadora o RI 1 na Amadora. Conhecedor da mais-valia que o Cão de Guerra, quando devidamente treinado, poderia dar às Forças Armadas, em patrulhas, guarda, sentinela, esclarecedores no terreno, ataque e combate, decidiu particularmente, e por conta própria, formar uma Secção de Cães com os três que já possuía e com a aquisição de mais cinco.

Porquê a escolha da raça Pastor Alemão?


Por reunir as melhores condições para o Cão de guerra, pelas razões que se descrevem:
- Aprende e pensa rapidamente;
- Tem o ouvido mais apurado do que qualquer outra raça;
- O seu faro é melhor que qualquer outra raça do mesmo tipo:
- É extraordinariamente ágil e rápido ;
- Come pouco em relação ao seu tamanho;
- O seu pêlo confere-lhe protecção contra o calor ou frio, picadas de insectos e mordeduras de outros animais;
- Demonstra elevado moral sobre desordeiros ;
- Domina com facilidade quem se lhe oponha.

Tendo consciência que este seu projecto implicaria custos não só na aquisição de animais como em todo o equipamento necessário (trelas, coleiras, açaimes, material de limpeza e cirúrgico/veterinário de Laboratório, para além de material de treino) e não dispondo de qualquer dotação para a alimentação e outros gastos, o capitão Costa Campos resolveu, mesmo assim, avançar com a formação da secção em várias etapas.

1ª. Fase:

Selecção do graduado que ficaria com a responsabilidade de administrar a formação e que ficaria como comandante da Secção. Havendo vários candidatos entre os Furs Mil fazendo parte dos quadros da Companhia, a escolha recaiu no Fur Mil Carlos Filipe pelo facto de ter o curso de Engº Técnico Agrário, reunindo portanto conhecimentos de veterinária através da Zootecnia.

2ª. Fase:

Formação dada ao comandante da secção através de fichas e práticas, utilizando para o efeito demonstrações com o Cadete, a Carhen e o Punch.
3ª. Fase:
Selecção dos tratadores, os quais deveriam possuir as seguintes qualidades: Ser amigo de cães, paciente, perseverante, inteligente, expedito e desembaraçado, imaginativo, com capacidade de coordenar física e mentalmente e dispor de boa resistência física.

A secção ficou com a seguinte formação:

Cadete - tratador 1º. Cabo Galaio
Punch - idem, 1º. Cabo Madeira
Carhen - idem, Soldado Ruiz
Fado - Idem, Sold Montijo
Bissau - Idem, 1º. Cabo Galvão
Dick - Idem, Sold Pernas
Lady - Idem, Sold Bordadágua
Guiné - Idem, Sold Galaio



Secção de cães da CCaç 763


4ª. Fase:
Treino dos cães em equipa já com os respectivos tratadores.
Treino de Obediência – com aprendizagem da voz do comando:

Neste período, o animal aprendeu a colocar-se junto ao tratador, a deitar-se, a pôr-se de pé, a ladrar, a estar quieto, a conduzir objectos, a rastejar, a progredir, a interromper a marcha, a executar acções de busca, a atacar, etc.

Físico – (obstáculos)
Treino Básico

Treino Específico – patrulha, guarda, sentinela, busca e pisteiro.


Exercícios físicos e de perseguição

Ultrapassadas que foram as dificuldades da viagem para a Guiné, dada a inexistência de condições no N/M Timor, para o seu transporte, a secção de cães voltou ao seu treino em Bissau no antigo BCAÇ 600, enquanto a CCAÇ 763 recebia todo o equipamento para partir para Cufar.

Acção Operacional

Algumas dificuldades surgiram, na actuação dos cães no teatro de guerra da Guiné, e que levaram a alterações na utilização do Cão de Guerra e que se especificam:

- A existência de abundantes bandos de macacos cães que pela sua extrema agressividade enfrentavam os cães com grande alvoroço e agitação, o que permitia a fácil detecção das nossas forças pelo IN;
- O aparecimento de várias infecções nas patas dos cães, que se verificou serem causadas pela existência de vasta vegetação arbórea constituída por espécies com espinhos.


Estes factos limitaram a utilização dos cães principalmente em operações, cuja natureza requeria a surpresa, nomeadamente em assaltos a acampamentos IN. A redução da utilização do cão Patrulha levou a que o treino e utilização fosse intensificado na utilização como cão Pisteiro e Sentinela.

Como cão Sentinela, a sua prestação foi extraordinária, dando a possibilidade de poupança de meios humanos, e melhor garantia de alerta pela grande capacidade de faro e audição. Foi de reconhecido mérito, a sua utilização, quando na pista de Cufar por qualquer motivo teria de pernoitar qualquer aeronave.



O Fado vigia a passagem de mulheres para a pesca no rio Manterunga.

Como cão Pisteiro, teve uma grande prestação, no controlo das populações, a Sul de Cufar, não só na detecção de material como de pessoas que, escondendo-se, tentavam fugir à vigilância das nossas tropas. Aqui pode referir-se a captura de guerrilheiros e controleiros do PAIGC.

Refira-se também a utilização do cão como guarda de prisioneiros.


Poder-se-iam narrar casos. Por exemplo, o Punch rastejar junto ao seu tratador numa emboscada, descobrir munições e pessoas escondidas em depósitos de arroz ou telhados de moranças etc.

Embora com os contratempos descritos e que impediram a utilização plena do Cão de Guerra, pode afirmar-se que foi uma experiência bastante positiva levada a efeito pela CCaç 763 o que permitiu ser conhecida na Região, para além dos Lassas, como a Companhia dos Cães.

Poderemos considerar que com estes valiosos animais a CCAÇ 763 contou com mais oito elementos de grande valia. Um testemunho, que os grupos armados do PAIGC que operavam no sector nessa altura, poderiam dar.

Foi-nos comunicado por testemunha idónea que, em 1999, trinta e quatro anos depois, ao passar por aquela Zona, ouviu referenciar a Companhia dos Cães.

__________

Notas de vb:

(*)  Mário Fitas foi Fur Mil Op Esp, da CCAÇ 763 (Cufar 1965/66). É autor dos dois romances sobre a guerra da Guiné: Putos, Gandulos e Guerra e Pami Na Dondo A Guerrilheira (este transcrito aqui no blogue).
ver artigos de

11 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2257: Convívios (34): CCAÇ 763 (Cufar 1965/67) (Mário Fitas)

(**) Ou Cinotécnica = Conjunto de técnicas para criação e treino de cães.


Guiné 63/74 - P2663: Tabanca Grande (58): Luís Guerreiro, ex-Fur Mil da CART 2410 e Pel Caç Nat 65 (Ganturé, 1968/70)



Luís Guerreiro, Ex-Fur Mil
CART 2410 e Pel Caç Nat 65
Ganturé, 1968/70





1. Em 25 de Fevereiro de 2008, Luís Guerra dirigia-se a Luís Graça nos seguintes termos.

Caro camarada Luis

Há umas semanas tive conhecimento do blog, aonde me fez relembrar tempos remotos, mas não esquecidos.

Sou Luís Guerreiro Ex-Fur Mil do 4.º GC da CART 2410 e mais tarde do Pel Caç Nat 65.

Desde 1971 resido em Montreal no Canadá.

Ontem li sobre o ataque da aviação a Sangonhá, cujo relato do José Rocha (1) é conforme ao que se passou nesse dia 6 de Janeiro de 1969.

Eu sofri esse ataque em Ganturé, pois era o meu Grupo de Combate que estava lá e era comandado pelo Alferes Jerónimo.

Estava ainda no meu quarto nessa manhã de 6 de Janeiro, quando o ataque começou por volta das 8 horas.

Corri e comecei a fazer fogo com o morteiro 81, passados uns minutos o ataque parou, deu-me tempo para ir tomar o pequeno almoço pois pensei que tudo tinha acabado.

Enganei-me, porque pouco depois o PAIGC começou a regular o tiro, com uma granada aos 5 minutos, até que começaram a cair com maior frequência.

E como era de dia, foi pedido o apoio aéreo, com os resultados já mencionados pelo José Rocha.

Uns dias depois e segundo informações do régulo de Ganturé o "Abibe", o PAIGC estava a fazer os preparativos para o ataque final durante a noite.

Junto envio algumas fotos de Ganturé, de Guileje também tenho, as quais enviarei em breve.

Um abraço
Luis Guerreiro


Foto 1> Carretéis de fio telefónico que encontrámos no percurso de Sangonhá depois do ataque


Foto 2> Ganturé> Vista parcial da povoação


Foto 3> Luís Guerreiro com o Alf Jerónimo e soldados Nativos


Foto 4> Ganturé> População de Ganturé numa visita do General Spínola


Foto 5> Ganturé> Construção de abrigo


Foto 6> Ganturé> Abrigo à entrada da povoação


Foto 7> Luís Guerreiro junto ao morteiro 81

2. Comentário de C.V.

Caro Luís Guerreiro

Estou a receber-te em nome do nosso camarada Luís Graça.

És mais um camarada na diáspora que se dirige a nós. É um enorme prazer para nós receber-te na nossa Tabanca Grande.

Instala-te confortavelmente, puxa das tuas fotos, inspira-te e conta-nos a tua experiência como combatente da Guiné.

Como saberás, cá dentro não há postos nem distinções sociais. Verdadeiros camaradas respeitam-se e tratam-se por tu.

Discutimos as nossas ideias e os nossos pontos de vista, quando diferentes das dos nossos interlocutores, mas dentro daquele espírito saudável.

O que lá vai, lá vai, diz o povo com razão. No presente repeitamos os nossos adversários de ontem e só queremos o bem daquela terra que nos marcou até ao fim dos nossos dias.

Em nome de todos os tertulianos da Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné, deixo-te um abraço de boas vindas, com votos de muita saúde.

Ficamos à espera das tuas fotos e das tuas estórias.
Carlos Vinhal
______________

Nota dos editores:

(1) Vd. poste de 23 de Fevereiro de 2008 >Guiné 63/74 - P2574: Estórias de Guileje (9): O massacre de Sangonhá, pela Força Aérea, em 6 de Janeiro de 1969 (José Rocha)

Guiné 63/74 - P2662: Fórum Guileje (8): O nosso património histórico comum (Leopoldo Amado)



Guiné-Bissau > Bissau > Palace Hotel > Simpósio Internacional de Guiledje (1 a 7 de Março de 2008) > 4 de Março de 2008 > Painel 1 (Guiledje e a Guerra Colonial / Guerra de Libertação) > Comunicação do Leopoldo Amado (Génese e evolução do sentido estratégico-militar do corredor de Guiledje no contexto da guerra de libertação nacional). Ladeado à esquerda pelo moderador do painel, João José Monteiro, Reitor da Universidade Colinas do Boé; e, à direita, por Maneul Santos (Manecas), guineense, ex-comandante militar do PAIGC.

Fotos: ©
Luís Graça (2008). Direitos reservados.


1. Mensagem do nosso amigo Leopoldo Amado, lusoguineense, doutorado em História Contemporânea pela Universidade de Lisboa (2007), especialista da história da guerra colonial / luta de libertação na Guiné-Bissau:

Caro Luís Graça,

Para efeitos de publicação, junto envio um texto para a nossa Tabanca Grande. Logo verás se tem ou não interesse ou se é ou não pertinente para o momento vertente, pelo que deixo à tua consideração a possibilidade de o publicar ou não,

Mantenhas di ermondadi,

Leopoldo Amado (****)


2. Fórum Guileje (*) > A ENCRUZILHADA DE GUILEDJE OU O CLIC PARA UMA NOVA DIMENSÃO DE HUMANISMO...
por Leopoldo Amado

Revisão de texto e subtítulos: L.G.

O papel da Tabanca Grande é simplesmente extraordinário. Tão extraordinário é a ponto de, muito provavelmente, apenas disso virmos colectivamente a dar conta, pelo menos na sua verdadeira dimensão e impacto, após muitos anos passados.

Acresce a essa importância o facto de nela não haver, nem processos de intenção e muito menos processos inquisitórios, o que permite que a tertúlia continue a registar opiniões concordantes, mas igualmente dissonantes e até contraditórias (exercício esse louvável, e, por isso, verdadeiramente magnânime e democrático), e que, certamente, adensando-se cumulativamente, à medida que o tempo passa, proporcionará num futuro próximo uma impar visão de conjunto, aliás, tendência essa que já se esboça na Tabanca Grande relativamente à História da guerra colonial e a da guerra de libertação – sintomaticamente, o maior desafio às duas historiografias que, não obstante possuírem de comum o mesmo palco de guerra (o mesmo TO, se se quiser) e, grosso modo, o mesmo objecto de estudo – não privilegiam por vezes as mesmas temáticas e nem as mesmas conclusões (e isso não tem que acontecer forçosamente), pese embora a aliciante perspectiva comparativa que oferece a confrontação da factologia das duas abordagens da mesma guerra.

(i) As limitações da(s) nossa(s) historiografia(s)

Infelizmente, quer dum lado como doutro, a historiografia ainda não está imune às tentações de interpretações exageradas ou às influências dos lugares-comuns cuja permissividade é de alguma maneira facilitada pela inexistência ou a ausência de uma visão de conjunto, situação essa que, quer queiramos, quer não, irá por muito tempo ainda continuar a potenciar situações do género.

Ainda há dias, em pleno Simpósio Internacional de Guiledje, Fernando Delfim da Silva, meu compatriota e amigo e, incontornavelmente, um ilustre intelectual guineense, garantia que tinham sido os mísseis Strella que fizeram desequilibrar definitivamente a correlação de forças em favor do PAIGC, quando, na verdade, desde o começo da guerra foi sempre visível, até para os comandos-chefes portugueses, que o desequilíbrio de forças foi sempre favorável ao PAIGC, mercê da sua permanente melhoria estratégico-táctica e, também, da perfeita combinação de acções de guerrilha com as da guerra convencional, para além de uma manifesta superioridade do PAIGC em termos de arsenal bélico, sem ainda contar com o conhecimento do meio e uma elevada moral combativa que os seus efectivos demonstravam.

(ii) Não foram os Strella, mas o génio político-militar de Amílcar Cabral que levou ao desequilíbrio de forças, a favor do PAIGC

Efectivamente, não foram os mísseis Strella, nem os temíveis morteiros [de 82 ou 120 mm] e nem os foguetões de 122 mm [, o Graad ou jacto do Povo,] ou ainda peça de artilharia 130 mm [, M-46, de origem soviética] (arma de longo alcance capaz de atingir 30 quilómetros e que, com base de fogo a partir da Guiné-Conakry, foi posto à disposição do PAIGC pelas autoridades militares daquele país e utilizada aquando do assalto ao aquartelamento Guiledje, em Maio de 1973) (1), foram decisivos no sentido de configurarem uma alteração marcadamente significativa em termos estratégico-tácticos.

Esse desequilíbrio a favor do PAIGC era já uma realidade e ela evoluiu no tempo de forma quase inalterável porque Amílcar foi capaz, desde o início da luta armada, de adequar a estratégia militar e a consequente táctica às estruturas logísticas e ao próprio dispositivo, colmatando, aqui acolá as situaçõesque se impunham e fazendo face aos desafios próprios de crescimento que requeriam o confronto das estratégias dos exércitos em presença, aliás, processo esse que foi impondo as FARP uma gradativa subida de patamar em termos organizacionais e uma constante adequação dos desígnios militares aos estritamente políticos, donde a necessidade de, no caso concreto do PAIGC, de se proceder sempre a uma interpretação tripartida e, sempre que possível, fundada a mesma nas vertentes conjugadas dos aspectos militar, diplomático e político, sob pena de não se compreender, no essencial, os objectivos que perseguiam Amílcar Cabral e o PAIGC.

Em todo este xadrez político-militar, a aviação portuguesa era de facto muito importante para o Exército português, mas em nenhum momento a sua superioridade aérea ou a naval foram de molde a aniquilar ou a impedir que a correlação de forças continuasse a desequilibrar favoravelmente ao PAIGC. Da mesma forma, os mísseis Strella não provocaram propriamente uma derrota militar ao Exército português na Guiné e nem sequer o colocaram em situação de cheque mate, tanto é que, apesar da FAP (Força Aérea Portuguesa) ter sido apanhada de surpresa com o surgimento dos Strella, quase imediatamente o Governo português, não obstante o embargo de vendas de armas que lhe era imposto internacionalmente, mesmo junto dos seus tradicionais aliados, tentou, ainda assim, utilizar os privilegiados canais diplomáticos com Espanha para procurar garantir a compra de novas armas que pudesses anular ou minimizar os efeitos dos Strella, os quais, na realidade, restringiam consideravelmente a acção da aviação portuguesa, seja em missões ofensivas, de reconhecimento ou de evacuação dos feridos.

Todavia, durante todo o período que se estende até 1971, a correlação de forças no teatro das operações que pendia favoravelmente às FARP, permitiu ao PAIGC estender o seu controlo por quase toda a região Sul, o que por sua vez criou as condições ideais para o alastramento do conflito para a região Centro-Oeste, apesar das contra-ofensivas de Cantanhez e Quitafine desencadeadas quase em simultâneo pelo Exército português, mas que não conseguiram debelar o ascendente militar do PAIGC que, ainda assim, consegue abrir novos corredores de infiltração e abastecimentos a partir da fronteira Norte, dos quis se destacam os de Sitató, Jumbenbem, Sambuiá e Canja, obrigando por isso o Exército português a uma nova e profunda remodelação do seu dispositivo táctico.


(iii) A aposta (ganha por Amílcar Cabral e pelo PAIGC) da internacionalização do conflito

Entretanto, chega-se a 1971 com a política da Guiné Melhor de Spínola a lograr atingir, pela primeira vez, uma situação de equilíbrio e impasse militares, mercê sobretudo da introdução de um novo conceito operacional, baseado na crescente africanização do conflito, com a formação de unidades de recrutamento local, de espírito marcadamente ofensivo, de pendor atacante e de procura de supremacia, mesmo que transitória, em todas as zonas em disputa, denotando tal alteração estratégica uma profunda percepção por parte de Spínola dos aspectos doutrinários da guerra anti-subversiva, a qual, doravante, era direccionada no sentido da conquista das populações por meio de acções socioeconómicas, a ponto de lograr espalhar, momentaneamente embora, o desanimo nas hostes combatentes do PAIGC.

Apercebendo-se ambos de que havia que tirar partido da situação de equilíbrio e impasse militares, quer Amílcar Cabral, quer António de Spínola, quiseram potenciar positivamente para o seu lado as oportunidades que para tal surgiam, optando claramente o primeiro por uma estratégia global assente na internacionalização do conflito, para cujo fortalecimento era sumamente importante a componente militar, enquanto que o segundo apostava seriamente num trabalho de sapa que visava minar a credibilidade da direcção do PAIGC, visando igualmente forjar uma solução politicamente negociada para o conflito, uma vez que era um dado adquirido que o conflito só podia resolvido pela via política e não pela militar, pelo que através da acção concertada da PIDE-DGS e da APSIC, as autoridades coloniais começaram paralelamente a desenvolver, com um notável sucesso, todo um meticuloso e paciente trabalho de sapa e de infiltração às estruturas intermédias e, em certa medida, a própria cúpula do PAIGC.

Guiné-Bissau > Bissau > Palace Hotel > Seminário Internacional de Guiledje (1 a 7 de Março de 2008) > Painel nº 11 da muito visitada e apreciada exposição sobre a Memória da Luta de Libertação Nacional. Concepção e execução: Fundação Mário Soares / Arquivo Amílcar Cabral.

Aproveito para dar aqui os meus parabéns pelo entusiasmo, paixão, rigor e profissionalismo que mostrou a equipa do Arquivo e Biblioteca da FSM e que partilhou, com os restantes portugueses e demais participantes do Simpósio, uma semana memorável: são eles o Alfredo Caldeira (na foto, à esquerda), a Catarina Santos (na foto, de costas) e o Vitor Ramos (na foto, à direita; ao centro, em segundo plano, vê-se a nossa amiga Diana Andringa, membro da nossa Tabanca Grande, e co-autora, com Flora Gomes, do filme documentário As Duas Faces da Guerra, que será exibido no penúltimo dia do Simpósio, na presença do Chefe de Estado da República da Guiné-Bissau, e demais participantes do Simpósio).

Reproduzimos aqui, com a devida vénia, o painel nº 11. O resto dos painéis (bem como um desdobrável) podem ser vistos em: Fundação Mário Soares > Guiledje, Simpósio Internacional, Bissau, Guiné-Bissau, 1 a 7 de Março de 2008 > Exposição (LG).


Perante tal estado de coisas, Amílcar Cabral responde com uma nova modificação nos aspectos gerais da manobra global do PAIGC, que passa doravante a preocupar-se em manter no teatro das operações, com grande economia de meios e de materiais, um estado de guerra que servisse a sua propaganda interior e exterior, visando especialmente sucessos sobre as tropas portuguesas e a conquista da adesão das populações, tanto é que, em 1971, como já referimos, a acção psicossocial de Spínola e não a situação militar em si, tinha logrado conferir um equilíbrio militar no teatro de operações, portanto, diferentemente do período anterior em que, na verdade, a situação era genericamente favorável ao PAIGC, pelo menos desde de 1965.

Do confronto de duas convicções estratégicas muito claras, resulta, do lado português, a introdução de forte componente política na sua actuação, tanto junto das populações como na procura de uma solução negociada, ao que Amílcar Cabral responde com a uma inusitada acção psicossocial do PAIGC, amplamente realizada pelo PAIGC com o apoio da Suécia e, articulada a mesma, no plano das operações militares, com acções coordenadas, quer atacando as guarnições com possibilidades de apoio simultâneo de artilharia e tirarando o máximo rendimento da sua actividade, quer ameaçando zonas urbanas e os chamados reordenamentos populacionais, organizados pelo Exército português em autodefesa, quer provocando intervenções junto da tropa portuguesa e montando de seguida emboscadas nos itinerários de acesso directo das forças de socorro.


(iv) Op Maimuna: A queda de Guiledje e o seu esperado efeito de dominó...


O Exército português caiu assim numa fase desconcertante e o PAIGC, que já havia adquirido novas e potentes armas, aproveita e coloca os aquartelamentos situados ao longo da fronteira sob permanente fogo de artilharia. Assim, a 22 de Maio de 1973, conseguiu apoderar-se de Guiledje, onde as forças portuguesas deixaram armas, entre as quais três peças de artilharia e outros importantes materiais. Gadamael foi seguidamente atacada, contando a guarnição, entre os dias 13 a 27 de Maio, 38 mortos e 55 feridos.





Guiné-Bissau > Bissau > Hotel Palace > Simpósio Internacional de Guiledje (1 a 7 de Março de 2008) > Pormenor do excelente folheto da exposição, organizada pela Fundação Mário Soares / Arquivo Amílcar Cabral, Memória da Luta de Libertação Nacional.


Na imagem, reproduz-se dois documentos originais, que constam do folheto, um mapa desenhado da Frente Sul, com as posições das NT, nomeadamente de Ponte Balana, Guileje e Gadamael, bem como a primeira página do manuscrito de Amílcar Cabral com o minucioso planeamento da Op Maimuna. O Simpósio e a Exposição contribuiram, em muito, para aumentar a sensibilidade dos antigos combatentes do PAIGC e das autoridades guineenses e as instituições, públicas e privadas, responsáveis pela educação, a ciência e a cultura, para a importância que têm os arquivos documentais bem como a memória dos actores que participaram na guerra colonial / luta de libertação.


O folheto distribuído pode ser visto, na íntegra, em: Fundação Mário Soares > Guiledje, Simpósio Internacional, Bissau, Guiné-Bissau, 1 a 7 de Março de 2008 > Exposição (LG).


Na contra-ofensiva Nô Pintcha, no Norte, o quartel de Guidadje, Bigene e Binta foram violentamente atacados e cercados durante dias, e ali morreram mais de 20 soldados portugueses. Os elementos do Exército português apeados que tentaram acudir aos elementos sitiados, caíram em emboscadas ou foram apanhados pelas minas que os guerrilheiros utilizaram para vedar o acesso nas estradas que ligavam estas localidades às povoações vizinhas. Obedecendo ao ciclo normal da guerra da Guiné, a contra-ofensiva do PAIGC só parou com a chegada da época das chuvas, o que teria poupado o Exército português de mais estragos materiais e humanos.

Todavia, já o dissemos, o PAIGC perseguia objectivos políticos e nunca agendou a possibilidade de derrotar militarmente o Exército português, obedecendo sempre as diferentes estratégias militares e as correspondentes tácticas aos objectivos políticos. Compreende-se assim que, não obstante importantes, os Strella apenas representaram para o PAIGC uma subida de patamar na defesa contra a FAP, ou seja, a única e talvez a mais eficaz das armas contra a qual, até então, o PAIGC se via impossibilitado de ripostar convenientemente.

Nesse sentido, o surgimento dos Strella traduziu-se, isso sim, no reforço da tendência de isolar ainda mais as unidades de quadrícula do Exército português e assim retirar-lhes a mobilidade e a iniciativa combativas, não tanto com a pretensão de apenas lhe subtrair a superioridade aérea que de facto detinha, mas com o objectivo claro de forçar nas instâncias políticas e internacionais uma solução para o conflito, de resto, possibilidade essa que Amílcar Cabral vinha ponderando desde pelo menos 1965, mas que não conseguia pôr em marcha nos anos imediatamente subsequentes, justamente porque, no teatro de operações, era crucial elevar o nível organizacional das FARP e dota-lo gradativamente de um nível de eficiência e eficácia susceptíveis de chamar à atenção da opinião pública mundial e assim colocar o PAIGC na agenda internacional.

No entanto, apesar da introdução dos Strella terem contribuído significativamente para novamente desequilibrar a correlação de forças a favor do PAIGC, os factores decisivos, isto é, aqueles que na realidade geraram uma decisiva viragem no evoluir da guerra foram, por um lado, a substancial melhoria das FARP em termos de organização militar, mormente os aspectos estratégicos e tácticos (sem as quais, os mísseis Strella, por si sós, pouco significariam) e, por outro, a ampla e bem sucedida acção psicossocial que Amílcar Cabral e o PAIGC lograram realizar, com apoio sobretudo da Suécia, e que foi capaz de contrabalançar a inteligente acção psicossocial de Spínola.

(v) A propaganda [do PAIGC] da possível e até iminente derrota militar do Exército Português

A associar a estes dois aspectos, Amílcar Cabral introduz um terceiro, a todos os títulos demolidor, que é a de alimentar permanentemente nos areópagos internacionais a ideia de uma possível e até iminente derrota militar do Exército português, não apenas com o objectivo de assegurar que as questões relativas à justeza da luta do PAIGC se mantivessem em permanência na agenda internacional, mas sobretudo com a finalidade de criar um ambiente internacional favorável à sua intenção de proclamar o Estado da Guiné-Bissau e assim assestar um golpe diplomático fatal ao colonialismo português, pois para ele era ponto assente que o Estado da Guiné-Bissau existia de facto, através de toda uma organização social, política e económica criada nas zonas libertadas, apenas precisando, por isso, de ser formalizada de jure, com a proclamação da independência e a adopção de uma Constituição que criasse os seus órgãos de governo, transformando assim a presença do Exército português na Guiné, à luz do Direito Internacional, como se uma a força invasora se tratasse.

Dentro desta nova concepção militar do PAIGC, Guiledje, ou melhor, o Corredor de Guiledje, voltou novamente a ganhar significativa importância estratégica, aliás, importância essa inequivocamente expressa na Operação Maimuna, uma ordem de batalha não datada, que presumimos ter sido elaborada em 1971, pois enquadra-se perfeitamente no novo conceito global da guerra quo PAIGC adopta a partir dessa altura, tanto é que previa, entre outras acções, um assalto generalizado ao aquartelamento de Guiledje como o mais fortificado aquartelamento do Exército português no Sul, justamente porque Amílcar Cabral estava convencido de que com a queda de Guiledje, cairiam igualmente uma série de outros aquartelamentos portugueses situados ao longo da linha da fronteira Sul.

Assim, reconhecemos a importância de Guiledje não apenas porque para muitos dos soldados portugueses foi um palco de dramáticos e violentos combates, roçando, nalguns casos, é certo, situações de extrema desumanidade a que muitos soldados portugueses souberam heroicamente sobrepor-se (vide à propósito os pungentes relatos de Idálio Reis na Tabanca Grande sobre Gandembel-Balana) (**).

Reconhecemos ainda a sua importância não porque quisemos com uma espécie de triunfalismo pacóvio evocar o seu infortúnio (o mesmo, aliás, aconteceu aos combatentes do PAIGC em muitas ocasiões, nomeadamente aquando das operações de reocupação de Cantanhez em Cadique e Cafine). Reconhecemos Guiledje, isso sim, porque praticamente, desde o início da guerra, o Corredor de Guiledje representou, intermitentemente embora, uma área fulcral de intervenção na estratégia global e evolutiva do PAIGC, apesar de reconhecermos que isso só podia tornar-se sustentável se se tiver em consideração a historicidade própria de outros Guiledjes que, à sua semelhança, aliás, não se explicam por si sós, pelo menos autonomamente, senão adentro da concepção global das estratégias dos contendores que se confrontaram numa perspectiva dinâmica e evolutiva e que, como tal, elas próprias se apresentam com processos internos entrecortados de roturas e continuidades, condicionados estes, nas suas diversas fases de evolução, por uma série de factores que de alguma forma o Simpósio Internacional de Guiledje quis trazer à luz do dia, em prol de uma maior e mais profícua interpretação dos meandros da guerra colonial e/ou guerra de libertação, e não apenas de Guiledje como à priori parece.


(vi) Simpósio Internacional de Guiledje: para além do sucesso extraordinário da iniciativa, há um património histórico comum...

Neste sentido, caro Lema Santos, corroboro com a indignação com que se insurge contra as abordagens históricas que tendem a subvalorizar o importante papel desempenhado pela marinha portuguesa na guerra colonial da Guiné, mas há-de igualmente convir que não é menos lamentável a forma como a emergente historiografia da guerra colonial da Guiné e, paradoxalmente, a da luta de libertação (incipiente, por isso compreensível), vêm remetendo para um plano secundário o imprescindível estudo evolutivo da organização militar do PAIGC (como se de um apêndice se tratasse), bem como das estratégias e tácticas que evolutivamente as condicionaram, no qual sobressai, sem margem para dúvidas, a gigantesca e complexa rede logística (sem dúvida, a maior do PAIGC) que, estendendo-se desde Conakry e perpassando por outras cidades da República da Guiné como Boké, Kandiafara, Simbel e Tarsaia, prolongava-se depois pela então Guiné Portuguesa adentro pelo Corredor de Guiledje, a partir do qual, sintomaticamente, se despachavam o maior volume (dir-se-ia mesmo a esmagadora maioria) do armamento e munições e ainda os víveres imprescindíveis ao esforço de guerra do PAIGC.

Para concluir este já longo texto, concorde-se com Lema Santos de que, para a elaboração histórica da guerra colonial da Guiné urge ter em consideração “uma perspectiva global integrada dos três ramos das Forças Armadas portuguesas”, mas eu acrescentaria que essa mesma perspectiva integrada pode e deve ser alargada à produção historiográfica contemporânea que, na Guiné-Bissau, vem sendo esboçada, embora ainda de forma embrionária, pois, ainda assim, ela é igualmente enriquecedora para a nossa História comum, assim como para a História da Guerra colonial de Portugal na Guiné, para além, obviamente, de se afigurar igualmente importante para o incremento do estado actual de conhecimento da História Contemporânea universal e o processo em curso de apropriação pelos guineense da sua própria História.

Não creio não estar longe da verdade se afirmar que o Simpósio Internacional de Guiledje foi um extraordinário sucesso e que simbolizou e simboliza a amizade, o reencontro, para além da redescoberta, por todos, de uma nova dimensão do humanismo, até mesmo por parte dos que, desavindos outrora, tiveram com armas nas mãos em lados opostos da barricada e que, obviamente, eivados de um profundo sentido de partilha da História de uma guerra que todos experimentaram (a de toda a Guiné e não apenas de Guiledje), a qual, afinal, é (foi e certamente será), por maioria de razão, um património da nossa História comum.

Leopoldo Amado

__________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes desta série:

12 de Março de 2008 >
Guiné 63/74 - P2626: Fórum Guileje (1): E Cameconde ? Cabedu ? E a nossa Marinha ? (Manuel Lema Santos / Jorge Teixeira / Virgínio Briote)

12 de Março de 2008 >
Guiné 63/74 - P2628: Fórum Guileje (2): Nunca uma guerra foi feita de uma só batalha (Mário Fitas)

13 de Março de 2008 >
Guiné 63/74 - P2629: Fórum Guileje (3): A Marinha esteve como peixe dentro de água no CTIG, e teve um papel logístico fundamental (Pedro Lauret)

14 de Março de 2008 >
Guiné 63/74 - P2638: Fórum Guileje (4): Minas aquáticas em Bedanda (Ayala Botto)

15 de Março de 2008 >
Guiné 63/74 - P2642: Fórum Guileje (5): Que sentido dar a esta vaga de fundo ? Da guinefobia à guinefilia (Hélder de Sousa / Luís Graça)

15 de Março de 2008 >
Guiné 63/74 - P2645: Fórum Guileje (6): Antes que se esgote... Gandembel (Jorge Félix, ex-Alf Mil Pil Av Al III, BA12, Bissalanca, 1968/70)

16 de Março de 2008 >
Guiné 63/74 - P2649: Fórum Guileje (7): A importância do Caminho do Povo (Paulo Santiago)

(**) Vd. poste de 18 de Abril de 2007 >
Guiné 63/74 - P1672: Guileje: a artilharia do PAIGC (Nuno Rubim) Guiné 63/74 - P2640: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (5): Um momento de grande emoção em Gandembel

(****) Historiador, orador no
Simpósio Internacional de Guiledje



(i) Nota curricular:

Nasceu no Sul da Guiné-Bissau e licenciou-se desde 1985 em História pela Universidade de Lisboa. Doutorou-se recentemente pela mesma Universidade em História Contemporânea, com uma tese sobre a guerra de libertação da Guiné-Bissau. É autor de inúmeras publicações de natureza científica e literária.

Desempenhou no país várias funções directivas em instituições de ensino e em projectos de investigação histórica e, igualmente, como funcionário e consultor junto de inúmeras instituições da sociedade civil, designadamente, nos de desenvolvimento, dos Direitos Humanos e dos Direitos das Crianças, para além de experiências como consultor de várias organizações e organismos internacionais na Guiné-Bissau, a saber: Plan International, Radda-Barnen, Unicef, Fnuap e Pnud.

No exterior (Cabo Verde, Portugal e França), trabalhou em diversos projectos de investigação e foi consultor da Unesco, Amnistia Internacional, Editora Nathan e CPLP, desempenhando actualmente as funções de Secretário da Guineáspora (Portugal), investigador associado do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (Guiné-Bissau), investigador auxiliar do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto (Portugal) e Professor convidado da Faculdade de Jornalismo da Universidade do Porto (Portugal).

(ii) Título da comunicação: Génese e evolução do sentido estratégico-militar do corredor de Guiledje no contexto da guerra de libertação nacional

(iii) Sinopse da comunicação:

Do ponto de vista militar e por razões diversas e até diferenciadas – entre as quais sobressaem as de ordem política, estratégica e táctica – o Sul da Guiné-Bissau afigurou-se para os contendores, tanto o Exército português como o Exército Popular, como área fulcral de intervenção.

A esta ambivalência dicotómica, que decorre da substantiva diferenciação do sentido táctico-estratégica de cada um dos contendores, sobrepuseram-se também, no decorrer da guerra, diferenciadas percepções e opções estratégicas, em cujo confronto e justaposição, procurar-se-á dissecar os contornos que alavancaram a sua perspectiva evolutiva e, tanto quanto possível, estabelecer parâmetros teóricos e conceituais susceptíveis de melhorar o estado actual do conhecimento com relação às circunstâncias e condicionamentos vários que, ao longo do conflito, determinaram as opções estratégicas por que se pautou a intervenção militar do PAIGC e, na qual, indubitavelmente, o chamado corredor de Guiledje assume particular significação histórica.

Guiné 63/74 - P2661: CART 3331, Cuntima, Natal de 1971: Mensagens da RTP (Vitor Silva)

Guiné > Zona Leste > Cuntima > CART 3331 / Outras unidades > Mensagens de Natal de 1971, transmitidas pela RTP.

Vídeo (1' 45''): Vítor Silva (2008). (Com a devida vénia à RTP...)

Mensagem do Vitor Silva, novo membro da nossa Tabanca Grande, ex-1º Cabo, CART 3331, Cuntima, 1970/72 (1):

Caro amigo Virgínio:

Anexo um pequeno extracto de um DVD alusivo às MENSAGENS DE NATAL 1971, transmitidas pela RTP no tempo da Guerra Colonial.

Posso enviar uma cópia do DVD, caso esteja interessado. Haverá concerteza muitos ex-combatentes que gostariam de o ver.

Eu senti uma emoção muito grande quando vi a minha própria mensagem ... passados mais de 30 anos!

Se estiver interessado, envie-me a sua direcção para que eu lhe possa enviar o DVD Um abraço.

Vitor Silva

_________

Nota de vb:

(1) Ver post de 17 de Março de 2008 >
Guiné 63/74 - P2657: Cuntima nos tempos da CART 3331 (1970/72) (Vítor Silva)

6 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2245: Cancioneiro de Cuntima (Vitor Silva, CART 3331, 1970/72)

Guiné 63/74 - P2660: Notas de leitura (10): Jorge Félix, o nosso piloto aviador, fala do livro do Beja Santos e evoca o Alf Mil Brandão (CCAÇ 2403)

1. Mensagem do Jorge Félix, o primeiro piloto aviador a aterrar na nossa Tabanca Grande (1)... Vive em Vila Nova de Gaia, foi Pil Av Al III, entre 1968/70 (2). Bateu todos os ceús da Guiné, incluindo os do triângulo Bambadinca-Xime-Xitole...

Caro Luís,

Junto o e-mail que enviei ao Beja Santos, não como crítica, mas mais para esclarecer. Não vejo inconveniente algum que o leias e dele o que de bom tiver seja aproveitado para nosso Blogue


2. Mensagem enviada ao Beja Santos:

Senhor Beja Santos,

Bem-haja. As suas recordações fazem-nos bem. Os estilhaços da memória falam de muita gente com quem também convivi.m O Pimbas, o Hélio Felgas, o Caco Baldé (Brigadeiro Spínola), O Capitão Bruno.

Que satisfação ter recordado a figura do Zé Paz, julgo que o encontrei em todos os casinos da Guiné.

Claro que foi o mundo de Bambadinca. Estão para escrever os de Aldeia Formosa, Buba, Tite, Teixeira Pinto, ... como escreveu o Patrão, na altura Ten Pil Av:

Bissau, Olossato, Cuntima, Bedanda,
Farim , Catió, Mansabá, Mansoa,
Terras de um todo que irei voando à toa,
Irmãs de muitas outras em infernal sarabanda,
De ódios, de paixões, de luta e morte.
De mal que te fiz eu? …


Do seu livro Diário da Guiné 1968/1969, e é esta a razão do e-mail, há dois nomes que vou destacar se me permite. O do Alferes Brandão e o do furriel Casanova. Ambos voaram comigo.

Espero que este Casanova seja o Furriel que mais tarde, nos anos oitenta, veio a ser Presidente da Câmara de Barcelos, cidade de onde é natural. Como não tenho a certeza falo só de uma boleia que dei de Bissau para o quartel onde na altura prestava serviço. Julgo que vive em Luanda. (o Casa tinha umas manchas nas mãos, despigmentação).

(i) O meu amigo António Luís de Freitas Brandão, cujo cadáver transportei para Bissau

Sobre o Brandão, natural de Braga, Sportinguista e bom camarada, gostava de contar um pouco mais, por ele e por todos os que como ele nos fugiram.Fui colega de escola e liceu, Sá de Miranda de Braga, onde terminamos o sétimo ano. Fui como voluntário para a FAP e o Brandão foi para o exército.

Encontrei o Luís na Madeira, quando lá fui na passagem de ano de 67. Eu de férias e ele no exército a terminar o tempo de tropa. Já não contava ir par o Ultramar. Em Setembro de 68 aterro em Bissalanca e um dia (?) em Bambadinca, encontro o Brandão. Tinha sido apanhado.

Pouco depois de termos posto a roupa suja em dia , disse-me:
- Eu não vou sair daqui!

Era um dito que muitas vezes tive que contornar com os habituais:
- Estás doido, não penses nisso, oh pá , vamos mas é beber um copo...

O Brandão tinha razão.Um dia, na sala de operações da BA 12 cai um pedido para evacuar um oficial cadáver. Era um voo para as seis da manhã. Algo me dizia que era o Brandão. Ofereci-me para este TGER.

Enquanto tratavam de o colocar no heli que eu pilotava, contaram-me como tinha sido. Numa emboscada, o Brandão e demais camaradas apanharam algum armamento ao IN. No regresso ao aquartelamento voltaram a ter contacto com o IN. Um elemento que transportava algum do armamento capturado, enquanto rastejava para se defender, não reparou que o gatinho de uma das armas apreendida se prendeu algures e disparou a bala que se alojou na cabeça do Brandão, matando-o (3).

Transportei o Brandão para o hospital de BS [Bissau]. Bebi um copo pelas suas brincadeiras, outro pelas suas certezas.Nunca mais falei deste acontecimento, até ter perguntado à uns dias ao Luís Graça se tinha ouvido falar de um Brandão em Bambadinca.

Bem-haja por ter recordado o Brandão (4). Só por isto valeu a pena o livro.

Enquanto o lia, imaginei as milhentas histórias que há por contar. Sabe que no dia em que houve o acidente no Saltinho, morreram muitos Madeirenses na ZOPS de Teixeira Pinto, e perto de Bissau vários militares foram estilhaçados por várias granadas que explodiram no transporte em que se seguiam?

Isto sei eu pelos meus registos, que constará nos outros meus camaradas? Não se terá evitado contar a guerra para não ferir as glórias e feitos de cada um?

(ii) O meu heli também voava de noite
Obrigado por ter posto um Heli na sua capa. Gostaria de esclarecer que os pilotos portugueses, e na Guiné, faziam voo nocturno.Na pg 136 fica-se com a ideia que "helicópteros portugueses nunca circulam de noite". Eu fiz, tenho isso registado, 21horas 20 minutos de voo nocturno em Operações.

No dia 19 de Maio de 69 fiz uma evacuação (TVES) do Xime para BS tendo a última meia hora ter sido feita de noite. Falo de Xime porque é uma terra por onde também andou. (Aconteceu ter ido com um heli, passar a noite a um acampamento (?) onde já teriam visto helis do IN a fazer evoluções de noite. Fomos atacados, não atingiram o nosso Heli , não vi nenhum Heli IN).

A história do saco de farinha lançado de 15 metros de altura, pg 59, é caricata. Era mais fácil fazer estacionário a 3 metros de altura, havia menos perigo, mas mesmo com o heli no chão, sem cuidado o saco podia rebentar. Tentemos colocar-nos no lugar dos aviadores e sentir o gozo que terão hoje a recordar esse acontecimento.

Na pg 123, se havia algum rancor (!), com a frase "Havia que sair daquela floresta e chamar um helicóptero bendito», ele voou.

Finalmente, e foi assim que eu li o seu livro, gostei de ler (Pg 204). «Nisto, uma trovoada de rotores anuncia uma série de chegadas aflitivas: o helicóptero desce, saem homens que gritam,...o heli parte e logo aterra outro, o espectáculo repete-se...Parece um filme, aliás foi assim que sempre vi a guerra da Guiné".


(iii) O Cândido Lima, alferes, que no mato tocava Bach e Chopin num piano vertical

Não me leve a mal falar-lhe da sua selecção musical. Foi um privilegiado, como pode imaginar, mas ao pedir-lhe desculpa é por ir falar de um outro megalómano que tem direito ao meu espanto. Um Alferes miliciano levou para o mato um piano vertical onde diariamente tocava Chopin, Bach,... o seu nome Cândido Lima. Outra história para ser contada.

Parabéns pelos livros que conseguiu ler.

A carta final é um bom fecho da elipse cinematográfica que pretendeu dar ao seu livro.

Bem-haja, só não gostei de ver o Casanova acabar muito doente, melhor, não se sabe o que lhe aconteceu.

Nós por cá todos bem.

Jorge Félix
ex Alf Pil Av
Guiné 68-69-70

Vila Nova de Gaia, 10 de Março 2008.

3. Nota final do Jorge Félix:

Depois deste e-mail Beja Santos informou-me que poderia conversar comigo depois de Abril pois anda muito ocupado a escrever o segundo livro de memórias. Sossegou-me com o Casanova, e eu descobri pela memória que estava equivocado, há um outro Casanova e recordo-me agora era Alferes.

Vou ler as histórias do nosso blogue , um outro livro, cheio de amor, de saudade e amizade.

Jorge Félix

_________

Notas dos editores:

(1) Substítulos da responsabilidade dos editores.Aguardamos as duas fotos da praxe, para pôr na nossa fotogaleria.

(2) Vd. poste de 12 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2627: Vídeos da Guerra (8): Nha Bolanha (Jorge Félix, ex-Alf Mil Piloto Aviador, 1968/70)

(3) António Luís de Freitas Brandão, Alf Mil Exército, morto na Guiné, por acidente, em 18 de Setembro de 1969. Era natural de Braga, freguesia de Real. Pertencia à CCAÇ 2403 / BCAÇ 2851 (1968/70).

Fonte: Liga dos Combatentes > Mortos do Ultramar Moçambique - Guerra do Ultramar

(4) Vd. poste de 29 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1129: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (14): Procurar em vão a nossa alma

(...) "Em Bambadinca, a 30 de Agosto [de 1968], de um regresso a uma vigilância em Mato de Cão, tinha um maço de fotografias reveladas à minha espera. Muitas delas ajudam-me agora a reconstituir os estilhaços da memória. Eu no Uige, sozinho e acompanhado. Numa delas estou ao lado do Brandão. Despedimo-nos a 31 de Julho, ele seguia para Bula, eu parti para outra oblíqua, em direcção ao Geba. Ver-nos-emos mais tarde, na Op Anda Cá, em Fevereiro [de 1969][, pela última vez. Brandão, tu eras zombeteiro e caçoavas permanentemente dos acasos da fortuna. Eras um verdadeiro minhoto. Nesta fotografia tu sorris. Na minha recordação, tu levas duas granadas lança-foguete ao ombro quando, a escassos metros dos teus pés, rebenta um fornilho. Com o rebentamento, revolteias numa nunvem de salitre e clamas:- Meu Deus, estou morto!

Não ganhaste para o susto. Numa cratera ali ao teu lado um dos teus soldados deixou os ossos triturados e Fodé Dahaba chora mansinho. Mais tarde, por aerograma, um amigo avisa-me:- O Brandão finou-se.

Foi um acidente estúpido, um soldado seguia à frente dele com a G3 no ombro, o cano virado para ele. Foi um acidente estúpido, um arbusto destravou o gatilho, a bala entrou-lhe pela fronte. Mais estúpido de tudo é que no caixão, sossegado, parecia dormir serenamente" (...).

Guiné 63/74 - P2659: Histórias da Marinha (1): Um ataque à LFG Lira em 1967, em Cadique, no Rio Cumbijã (Manuel Lema Santos)


O NRP Lira - P 361, foi a terceira de seis LFG - Lanchas de Fiscalização Grandes, a ser construída nos Estaleiros Navais do Alfeite e a sétima de 10 idênticas, pertencentes à mesma classe Argos. Foi aumentada ao efectivo dos navios da Armada em 19 de Junho de 1964.
Montou chapa balística de protecção, de 1/4 de polegada, na ponte e no costado, na zona da casa das máquinas. A LFG Lira deixou Lisboa em 1 de Outubro com destino a Bissau onde chegou a 13 do mesmo mês, depois de ter escalado os portos do Funchal, S. Vicente de Cabo Verde e Praia. Na Guiné, desempenhou missões de simples cruzeiro, patrulha, fiscalização, transporte de fuzileiros e de militares de outros ramos das FA, incluindo feridos e prisioneiros, tendo participado em diversas operações naquele teatro de guerra. Esteve iualmente empenhada em escoltas à navegação comercial e transportes de tropas, apoio à oceanografia com colocação de bóias e reparação de marcas. Foi abatida ao efectido dos navios da Armada em 30 de Setembro de 1975, em Luanda. Efectuou na totalidade, entre 1964 e 1975, cerca de 7.817 horas de navegação.
Fonte: Foto e legenda > Blogue do Manuel Lema Santos, 8º CEORN - 1965 > Reserva Naval > 30 de Setembro de 2006 > NRP Lira (com a devida vénia...)

1. Mensagem do Manuel Lema Santos,

Assunto - As LFG da Classe Argos e os Comboios do Cumbijã


A todos os tertulianos,

Não resisto a enviar um apontamento do que foi a vida das LFG da classe Argos, desde finais de 1963 e até meados de 1968, nas temíveis passagens mensais do rio Cumbijã, frente ao Cantanhez. Com periodicidade mensal, rara era a vez em que os comboios não eram atacados, de forma mais ou menos intensa, em toda a frente compreendida entre a foz do rio Cobade e o porto-cais de Impungueda que servia Cufar, especialmente nas zonas de Catesse, Darsalame, Cafine, Cafal Nalu, Cafal Balanta e Cadique (1).

No pequeno exemplo inserido no blogue [ Reserva Naval] [...] , pretendi incutir apenas uma ideia facilmente compreendida por quem os visita, omitindo voluntariamente alguns pormenores da estratégia naval global que tornariam pesada a apresentação. Todas as LFG passaram por situações idênticas no Cantanhez e algumas - não sei exactamente quais - chegaram mesmo a aportar a Bedanda, caso da LFG Orion.

Blogue Reserva Naval > 15 de Março de 2008 > Guiné, 1967 - Rio Cumbijã: Um ataque à LFG Lira em 4 de Abril de 1967

(....) "Estas linhas são editadas como uma singela homenagem a todos as guarnições de LFG’s, LDG’s, LFP’s, LDM’s, DFE’s, CF’s, que durante anos, nunca deixaram de abastecer os aquartelamentos que disso dependiam ainda que para isso fosse necessário enfrentar o temível Cantanhez. Em todas aquelas unidades a Reserva Naval da Marinha de Guerra esteve sempre presente.

"Homenagem extensiva aos aquartelamentos de Catió, Bedanda, Cufar, Cabedu, Cacine e Gadamael que sempre nos apoiaram e receberam com Camaradagem e Amizade, sem esquecer igualmente a Força Aérea que representou, muitas vezes, a diferença decisiva entre o combóio passar ou não" (...). (2)


Um abraço para todos,

Manuel Lema Santos

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Notas de L.G.:

(1) Vd. poste de 12 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2626: Fórum Guileje (1): E Cameconde ? Cabedu ? E a nossa Marinha ? (Manuel Lema Santos / Jorge Teixeira / Virgínio Briote)


(2) Excerto do artigo do nosso camarada Manuela Lema Santos, com a devida vénia (recomenda-se a leitura do original, enriquecido com fotos e um ficheiro de som):


(...) "Naquele dia, 4 de Abril de 1967, cumprida a rota de ida sem incidentes, iniciou-se então a viagem para juzante, em postos de combate, com o apoio da aviação, rumo à confluência dos rios Cumbijã e Cobade, comboiando duas embarcações civis carregadas com arroz proveniente de Bedanda.

"Tanto embarcações civis como unidades navais navegavam estrategicamente em coluna com uma LDM na testa e a outra na cauda, aproveitando a maré na vazante com os batelões encaixados a meio da coluna. Cada uma das embarcações civis levava uma guarda de fuzileiros constituída por 4 elementos. Comunicações em cima.

"A LFG 'Lira', em cruzeiro na área e vinda do rio Cacine para o Cumbijã para apoio e escolta ao comboio, mantinha-se interposta entre a cauda do comboio e a margem, ligeiramente caída para ré. Com cerca de um quarto de hora de navegação, para jusante, ouviu-se fogo de rajada de metralhadoras ligeiras da margem esquerda.

"A LDM da frente informou serem de flagelação inimiga pela amura de BB, sem que fosse possível localizar correctamente a origem. Foram dadas instruções para manter o silêncio de fogo para que, visualmente, fossem melhor localizadas as armas, pela chama à boca, evitando manobras de diversão do inimigo com o intuito de desviar a atenção do centro de fogo principal, instalado mais a montante. O desenrolar dos acontecimentos veio corroborar a hipótese.

"Pelas características hidrográficas do rio Cumbijã, na curva frente a Cadique, delimitando um estreito canal de navegação existente, o comboio via-se forçado a navegar a uma distância de 30 a 40 metros da margem.

"Precisamente nessa zona, numa extensão de cerca de milha e meia, foi desencadeado violento ataque. Quando a zona provável de origem da flagelação se encontrava no enfiamento do través do navio testa, toda a margem, numa vasta extensão de cerca de 600 metros que abarcava todo o comboio, irrompeu num fogo intenso de armas, com metralhadora pesada e ligeira, pistolas-metralhadoras e bazucas visando, sem distinção, todas as unidades do comboio.

"Quase de seguida, foi desencadeado ataque de morteiro com salvas contínuas de projecteis, algumas com o tiro bem regulado, outras com enquadramento sistematicamente longo, com as granadas a deflagrar para lá de meio do rio.

"As unidades navais reagiram instantaneamente e, em conjunto, bateram sistematicamente com Bofors, Oerlinkon e MG 42 toda a área de ataque apoiadas pelos aviões T-6 que sobrevoavam a zona, picando em sucessão e metralhando o local de ataque. A LFG, com máquinas a vante, toda a força, interpôs-se entre o comboio e o fogo, protegendo a coluna e batendo cadenciadamente a margem com as peças Bofors de 40 mm apoiadas pelas MG 42 montadas nas asas da ponte, pelo fogo das LDM’s reforçadas pelos fuzileiros.

"A cadência de fogo de barragem provocava um ruído ensurdecedor e obrigava a arrefecer os canos das anti-aéreas Boffors com as mangueiras de água ligadas. Os invólucros de latão espalhavam-se pelo convés junto ás peças de vante e de ré.

"Com alguma certeza e à medida que a navegação prosseguia, puderam contar-se diversas bocas de fogo de bazuca postadas ao longo do percurso, possivelmente actuadas por atiradores colocados em abrigos, bem como atiradores com armamento portátil.

"A intensidade de fogo e a extensão da frente inimiga permitiu estimar o grupo em mais de uma centena de homens, todos colocados junto à margem, deitados na bolanha ou em abrigos cavados. Observaram-se mesmo movimentação de alguns, dada a curta distância.

"De Cafal, quase simultaneamente, foi feito fogo de canhão sem recuo, embora apenas três ou quatro disparos e mal direccionados. O campo de tiro a partir daquela zona, não era tão afectado pela limitação natural provocada pela diferença de altura das marés. Seria possível vir a enquadrar, no mesmo enfiamento, todas as unidades que navegassem no local, para montante ou para juzante, oferecendo ao inimigo condições quase ideais para interditar a passagem à navegação.

"Provavelmente posicionado a cerca de 400 metros do comboio porquanto se ouvia distintamente o disparo, sentia-se o sopro do projécteis passando sobre as unidades para, decorrido tempo sensivelmente igual, rebentarem na margem oposta junto à agua, na bolanha.

"Na foz do rio Macobum, o comboio inflectiu o rumo para a margem contrária continuando a ser batido intensamente do lado de Cadique, sobretudo com metralhadora pesada e armas ligeiras, enquanto de Cafine rompia também fogo com armas automáticas e morteiro.

"Entretanto a LFG, ao chegar àquela zona inverteu o rumo e manteve-se frente a Cafine, a efectuar a cobertura de protecção do comboio, voltando a fechar a cauda da coluna, batendo sistematicamente as posições do ataque e calando o inimigo pouco depois.

"Tinha decorrido uma longa hora e um quarto, sem quaisquer baixas mas com diversos impates nas embarcações e nas LDM’s. Baixas prováveis no inimigo mas carecendo de confirmação".

segunda-feira, 17 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2658: Dando a mão à palmatória (6): Desabafo do Mário Dias (José Teixeira)

1. Em 17 de Março de 2008, José Teixeira, recém chegado da Guiné-Bissau, onde acompanhou o Simpósio Internacional de Guiledje, enviava-nos esta mensagem

Caríssimos editores.
Ao assaltar o blogue, logo após a minha chegada da Guiné, deparei com o Desabafo do Mário Dias (1), contestando um artigo meu, resultante de uma conversa com o Raúl Fodé (2), sobre a sua justificação para não se dedicar à agricultura.

Se possível, gostava que o texto em anexo fosse publicado, não como uma justificação, mas muito mais como um obrigado ao Mário, pela reposição legal dos factos.

Com votos de uma boa Páscoa
J.Teixeira

2. O Desabafo do Mário Dias
Por José Teixeira

Como não podia deixar de ser, o desabafo do Mário Dias, mereceu de minha parte uma leitura atenta e uma reflexão profunda.

Reconheço-lhe autoridade para melhor que ninguém repor a verdade dos factos, que eu de algum modo, sem intenção, poderei ter adulterado ao tentar expor o pensamento do Raúl Fodé, no que respeita à exploração de que eram vítimas os indígenas no período antes da eclusão da guerra colonial.

De facto, o Mário, melhor que ninguém pode falar sobre estes assuntos. Bem haja pela sua atitude esclarecedora.

Por mim devo apenas dizer que tentei passar ao papel, o sentimento que me ficou após uma conversa passada há cerca de 39 anos com o Raúl. Logicamente distorcida pelo tempo que passou e pela possível traição da memória.
Posso afirmar que na altura, sensível como era a injustiças sociais, por estar ligado à Juventude Operária Católica (JOC) fiquei perturbado com a descoberta, a qual de algum modo vinha dar razão à luta do PAICG.

O que retive da dita reflexão, foi que a diferença entre o preço de venda ao comerciante e a margem de lucro deste, era de um para quinze e utilizei a linguagem figurada, para melhor me fazer entender.
Também é evidente para mim, que anda meio mundo a tentar enganar o outro meio. No comércio, muitas vezes ganha o mais esperto e o africano também tem esperto no cabeça.

Os testemunhos do Mário reflectem uma vida intensa na Guiné, uma experiência de comerciante, que não me deixa margem para dúvidas.

Só tenho a agradecer ao Mário Dias o esclarecimento objectivo, da verdade legal, sem esquecer que nem sempre e sobretudo nem todos os comerciantes eram, como em tudo, sérios e honestos. Que a máquina estatal colonizadora protegia o colonizador e estava interessada, naturalmente, em obter os produtos agrícolas a preços baixos.

Continua a escrever, melhor que qualquer um de nós, pois podes contribuir para a História da relação entre estes dois povos, que hoje mais que nunca, se sentem irmãos.
Zé Teixeira
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Notas dos editores:

(1) - Vd. post de 15 de Março de 2008> Guiné 63/74 - P2644: Economia colonial: O preço da mancarra no meu tempo (Mário Dias, empregado da NOSOCO, em 1955/59)

(2) - Vd. post de 5 de Fevereiro de 2008> Guiné 63/74 - P2507: Estórias do Zé Teixeira (24): Raúl Fodé (José Teixeira)

Guiné 63/74 - P2657: Cuntima nos tempos da CART 3331 (1970/72) (Vítor Silva)

A CART 3331 em Cuntima (1970/72)

Texto e imagens de Vítor Manuel Silva, o novo membro da nossa Tabanca Grande ,

A CART 3331 foi mobilizada para a Guiné pelo RAP 2, Vila Nova de Gaia. Composta por 158 militares era comandada pelo Capitão Miliciano Art Manuel Sena Boléo. A Formação era chefiada pelo 1º Sargento de Art Manuel Joaquim Moreira Dias.

Esta dividia-se nas seguintes secções:
- Comando
- Alimentação
- Manutenção Auto
- Sanitária
- Reabastecimento e Manutenção de Armamento.

A 1ª parte da Instrução de Aperfeiçoamento Operacional (IAO) foi feita no RAP 2.
A Companhia embarcou no Cais da Rocha do Conde de Óbidos para a Guiné no dia 14 de Dezembro de 1970, a bordo do navio Uíge.


O Vítor Silva no Uige, em pleno Atlântico, a caminho da Guiné.

A CART Chegou à Guiné no dia 19 de Dezembro de 1970. No dia 21 de Dezembro embarcou na LDG Alfange com destino ao Centro de Instrução Militar de Bolama. O pessoal fez treino de adaptação ao mato, iniciando a 2ª parte da Instrução de Aperfeiçoamento Operacional.
A 25 de Janeiro de 1971, de novo na Alfange, a Companhia deslocou-se para Farim onde chegou no dia 28 de Janeiro. Aí participou em algumas acções no mato e na estrada Farim-Jumbembem.

A 20 de Fevereiro a CART 3331 deslocou-se em coluna-auto, rumo a Cuntima, dependente do BCAÇ 2879, onde rendeu a CCAÇ 14, durante a qual tomou conhecimento directo com a Zona de Acção (ZA).

Guiné > Zona Leste > Cuntima > A Avenida Central (também conhecida por Av do Senegal).
Enfim, estávamos em pleno teatro da Guerra.

O terreno

O terreno, aliás como de uma maneira geral em toda a Guiné, é plano. Convém no entanto referir que Cuntima é ligeiramente mais elevada que o restante terreno da Z.Z. Daí, talvez o antigo nome de Colina do Norte?

A nossa Z.A. era muito extensa. Delimitada a Norte, numa extensão de aproximadamente 30km, pela República do Senegal, a Este pelo rio Corlá (Sare Dambé Badoral, Sitató, Sinchã Fogã e Sare Tombom), pela bolanha de Sinchã Massa e a Sul pela bolanha de Sinchã Massa e bolanha do rio Norobanta e pelo marco 107.

O sector era servido pela estrada Farim-Cuntima, por onde eram feitos os reabastecimentos.

Inimigo

O IN não se encontrava instalado nem tinha bases dentro da nossa Z.A. Irradiava sempre do Senegal, pelo tradicional corredor de Sitató. De uma maneira geral evitava os contactos.
As suas acções contra as NT manifestaram-se especialmente por ataques ao aquartelamento, implantação de minas na estrada Farim-Cuntima e, esporadicamente às colunas de reabastecimentos.

População

Na sua maioria era de etnia Fula, de religião muçulmana. Apenas uma pequena parte era Mandinga.


Cuntima todas as manhãs bem cedo tinha visitantes do Senegal. Uns para fazerem comércio, outros para partir mantenhas com familiares e amigos e muitos outros para serem assistidos no Posto de Socorros pelo Médico e Enfermeiros da Companhia. Estas duas bajudas senegalesas prestaram-se para a fotografia à distância conveniente, da máquina e dos militares.


O Vítor (de bigode), um Camarada, a bajuda e o Pilão. Para a fotografia.


Cuntima vista, salvo erro, da pista.


Vista panorâmica de Cuntima. Uma povoação com gentes de várias origens (não faltavam os comerciantes libaneses).

Dia de festa na Tabanca. A alegria e o colorido das gentes Guineenses.
Cuntima: Poço de água utilizado pela população.

Cuntima: A Escola Primária.


Vendedores ambulantes (djilas) e a curiosidade da população e dos militares. O Vítor com um menino ao colo.


Cuntima. Reservatórios de água, as duas professoras ao fundo e a casa do agente da PIDE/DGS.


O ex-libris de Cuntima.



Cuntima. Vista aérea.

Nossas Tropas

Em virtude da nossa ZA ser muito extensa, a defesa e ocupação ficou a cargo de duas Companhias, a CART 3331 e a CCAÇ 2547, ambas instaladas em Cuntima. Para além da ocupação e defesa do Sector, a nossa missão dominante e primordial era evitar a infiltração do IN para dentro do TO.
O cumprimento fiel desta missão tornou-se bastante penoso para as NT, pois exigiu delas um trabalho aturado e um elevado grau de sacrifício. Poder-se-á mesmo dizer que a nossa missão foi bastante ingrata pois que foi prática e humanamente impossível fechar os corredores de infiltração numa extensão de fronteiras de 15 km.


Entrada em Cuntima, podendo ser visto o posto nº 1 e a 1ª Caserna, aquela que foi o Hotel do Vítor Silva durante os 23 meses que lá passou.


Um dos três Obuses que existiam em Cuntima.


Como é fácil de ver, para procedermos à contra-penetração usámos como dispositivo dominante as emboscadas sucessivas, quer diurnas quer nocturnas, nos corredores mais propícios e mais prováveis à infiltração.




Pois, elas existiam mesmo. Depois, os bocados chegavam ao aquartelamento envoltos em lençóis.
Para além da actividade principal, procedíamos a frequentes patrulhamentos e seguranças afastadas, diurnas e nocturnas (para evitarmos ataques ao aquartelamento) bem como numerosas operações, colunas e picagens.

Militar à porta de entrada de quem vinha do Senegal.


Sempre que necessário montávamos segurança aos trabalhos agrícolas da população, embora existisse um Pelotão de Milícias que nem sempre era suficiente.

Pessoalmente não me posso esquecer do ataque ao aquartelamento no dia 30 de Maio de 1971. Eu estava de Serviço ao Posto avançado nº 9.


Posto avançado nº 9. Estive lá de serviço no dia 31 de maio de 1971, no que foi considerado o maior flagelamento IN a Cuntima. As tropas do IN vieram mesmo ao arame farpado.

Cerca das 23 horas ouviu-se um barulho junto ao arame farpado. Pensámos que se tratasse de galinhas ou outro animal qualquer. Mas não! Eram mesmo eles que ali estavam. A 50 metros de nós. Foi uma coisa incrível que jamais esquecerei.
O Céu ficou completamente iluminado. Muitos feridos (alguns com gravidade, amputações, cegueiras...) e 3 mortos na População. Felizmente a nossa Companhia não teve qualquer baixa no pessoal.
(...)
A Psico de Spínola


Exemplar de salvo conduto. A Psico de Spínola.



O Vítor e a lavadeira.


O Vítor e o Hélder na Secretaria da Companhia.

A CArt 3331 regressou, num avião dos T.A.M, à Metrópole no dia 25 de Novembro de 1972, orgulhosa de ter cumprido o seu dever. Era o que eu pelo menos na altura pensava.

Pelos bons serviços prestados à Pátria, o Vítor Silva trouxe o apreço do Comandante Militar

o Guião e o crachá da CART 3331

e o livro da História da CART 3331
Fotos: © Vítor Silva (2008). Direitos reservados.
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Fixação do texto e sublinhados de vb: ver artigo de
6 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2245: Cancioneiro de Cuntima (Vitor Silva, CART 3331, 1970/72)