segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4989: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/Mai 71)(3): De Bissau a Bambadinca, a cova do lagarto

1. Texto enviado pelo Arsénio Puim, em 13 de Julho último (Foto à esquerda, o autor de O Povo de Santa Maria – Seu Falar e Suas Vivências, apresentando o seu livro no Salão Nobre da Câmara Municipal de Vila Franca do Campo, em 12 de Dezembro de 2008):

Luis Graça:

Mando mais um 'Recordando', antes de ir passar alguns dias para Santa Maria, a minha santa terra.

Quero-te dizer que talvez não seja necessário remeteres-me por mail os meus trabalhos publicados, uma vez que já consigo aceder ao blogue. Assim, evitas este trabalho a mais, pois imagino que o tempo de que dispões nunca é muito, já que o blogue me parece ser um trabalho que deve aborver bastante tempo.

Os meus rapazes, o Pedro ainda está em Lisboa a fazer exame de cadeiras atrasadas e também adiantando a dissertação do mestrado integrado. O Miguel, que acabou Economia na Nova, está agora cá até Setembro, altura em que começará a trabalhar na Price Waterhouse Coopers, em Lisboa.

As minhas saudações à Alice.
Um abraço amigo
Arsénio Puim


2. RECORDANDO ... III - DE BISSAU A BAMBADINCA
por Arsénio Puim


Às duas horas da manhã do dia 31 de Maio de 1970 deixámos Bissau, numa LDG, e continuámos a subir o Rio Geba, em geral bastante largo e de margens baixas e arborizadas, pela calada da noite, estranhamente muito fria. Cinco horas de viagem, sem qualquer incidente, até ao Xime, onde ficou já a Companhia 2715.

No dia anterior tinha-se realizado a entrega das armas aos membros do Batalhão. Todos em fila, um por um. Quando chegou a minha vez, recusei receber a G3. Uma questão, simplesmente, de missão específica do capelão e de consentaneidade com as suas funções, enquanto sacerdote ao serviço da Igreja - expliquei.
- Você é testemunha de Jeová? – atalhou um oficial superior que superentendia ao acto.
- Não, sou padre católico – retorqui.

Acrescentei ainda que assumia a responsabilidade de não ter arma.

E sobre o assunto não houve mais questão alguma. De resto, tive sempre a impressão que os companheiros do Batalhão souberam interpretar a minha atitude pessoal como normal e condizente com a condição do sacerdote capelão.

Um dia, já em Julho [de 1970], numa ocasião em que eu seguia numa coluna de Bambadinca para o Xitole, num camião civil velho, sem portas nem vidros, o condutor, que era africano e me olhava com curiosidade de vez em quando, numa altura disse-me muito delicadamente:
- O sr. alfero não traz arma?!

O facto era estranho para ele. E para mim era difícil explicar-lho. Mas achei graça à observação.

A partir do Xime, e em face do estreitamento do rio que se processa para montante, a nossa viagem prosseguiu por terra, através duma estrada má e bem escoltada pelas forças nativas, até Bambadinca, palavra indígena que significa «cova do lagarto», segundo a informação que me foi prestada.

O aquartelamento de Bambadinca, que, para mim, me pareceu dotado de boas condições e com uma dimensão apreciável, fica situado, juntamente com a Administração, a escola e a igreja da Missão Católica, num pequeno planalto, rodeado duma tabanca, e com vista para um grande arrosal, dividido pelo rio.

A trinta quilómetros para leste fica Bafatá e, para o sul, havia comunicação, por uma picada, com Mansambo e Xitole, onde ficaram instaladas as Companhias 2714 e 2716.

É neste teatro, sinalizado pelas quatro localidades referidas e ainda ponteado por vários Destacamentos, que se vai desenrolar a comissão de serviço do Batalhão 2917 na Guiné e a minha própria vivência como alferes capelão – uma função que não considero fácil nem isenta de contradições numa situação de guerra.

Arsénio Puim
______

Nota de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores desta série:

14 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4521: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/ Mai 71) (1): No RAP 2, V.N. Gaia, onde fez mais de 60 funerais10 de Julho de 2009 >

Guiné 63/74 - P4666: Memorias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/Mai 71) (2): De Viana do Castelo a Bissau

Guiné 63/74 - P4989: FAP (33): Correio ao Domicílio (Miguel Pessoa)

1. Mensagem de Giselda e Miguel Pessoa (*), ex-Ten Pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74, hoje Coronel Pilav Reformado, com data de 18 de Setembro de 2009:

Carlos, Luís:
Para compensar o nosso afastamento do blogue por um período de férias dilatado (na verdade ainda continuam...) envio-vos duas pequenas histórias - uma minha ("Correio ao domicílio"), outra da Giselda ("Fartote de legumes").

Como é habitual são ligeirinhas, mas talvez não faça mal, para compensar a caloraça que este Verão trouxe ao blogue...

Um abraço
Giselda e Miguel Pessoa



CORREIO AO DOMICÍLIO

Nas missões que efectuavam por todo o território da Guiné os pilotos sabiam da importância que a chegada do correio tinha para o pessoal exilado nos locais mais recônditos, por ser o principal (às vezes o único) elo que tinham com a civilização.

Sucedeu comigo por várias vezes quando voava no DO-27 que, sobrevoando o território no percurso para o aeródromo de destino, ao passar sobre um aquartelamento, era interpelado por um operador de rádio mais ansioso, de que geralmente resultava uma conversa encriptada, mais ou menos nestes termos:

- Águia, Águia (ó aviador), aqui XX (código do quartel), informe se tem Sierra (serviço) para este?

- XX, Águia, negativo

- OK. Confirme que não tem Charlie (correio) para este?

- XX, Águia, negativo

- OK, Águia, Óscar Bravo (obrigado), o Charlie (comandante) manda um Alfa Bravo (abraço) e uma Bravo Victor (boa viagem)

- XX, Águia, um Alfa Bravo para vocês. Terminado. (**)

E lá continuava eu para o meu destino deixando para trás um interlocutor desiludido.

Deve-se reconhecer que os SPM (Serviços Postais Militares) tinham em consideração, sempre que possível, a necessidade que o pessoal tinha de receber notícias fresquinhas - das famílias, das namoradas, dos amigos. Por isso, estava bem organizada a distribuição dos sacos do correio, de modo a embarcarem no primeiro avião disponível para o local.

Para além de embarcarem o correio de acordo com as missões planeadas, sempre que surgiam missões inopinadas (como as evacuações ou um transporte inesperado), as Operações do GO1201 alertavam os SPM e estes, na medida do possível, levavam à placa onde se encontrava o AL-III ou o DO-27 o correio para o aquartelamento em causa, por vezes também para outros aquartelamentos próximos, a quem o correio seria enviado por terra, a partir do primeiro.

Também por vezes os pilotos tinham a iniciativa de mandar embarcar os sacos de correio dirigidos a outros locais em que não iríamos aterrar, mas que sobrevoaríamos; claro que não se adequava levar encomendas frágeis, que se pudessem partir, pois a ideia era desembarcarmos o saco pela porta lateral quando passássemos a baixa altitude por cima da área do aquartelamento. Mas para o simples correio era uma boa solução de recurso, principalmente em locais isolados sem pista.

Claro que por vezes as coisas podiam não correr tão bem como gostaríamos - o correio podia cair mais longe do que pretendíamos (e o pessoal do quartel também...) e alguns incidentes também ocorreram: por exemplo, um dos sacos que o meu ajudante de carga atirou levou consigo uma antena lateral do DO, outro piloto levou aguerridamente a antena de rádio do quartel. Enfim, foi tudo por uma boa causa, que era afinal a de mitigar as saudades dos nossos camaradas em terra por tudo aquilo que tinham deixado lá longe.


Um Dornier, DO 27, na pista, de terra batida, do aquartelamento.
Foto do saudoso Cap Ref José Neto (1927-2006)


Uma vez, um aviador de Fiat G-91, depois de executar uma missão no sul do território onde largou o ferro que levava, quando regressava a Bissalanca detectou uma anomalia suficientemente grave para o fazer dirigir-se de imediato para o sítio mais próximo que fosse apropriado para pôr o estojo no chão. Lá fez uma aproximação cuidadosa à pista, conseguindo parar o avião dentro do espaço disponível, sem mais problemas para além do susto inicial.

Ainda a recuperar do stress, enquanto saía do avião, vê que a capacidade de apoio do aquartelamento era superior à que esperaria, pois de imediato se aproximam rapidamente do local vários militares. Só então se apercebe das suas intenções quando um deles lhe dispara a pergunta sacramental:

- Traz correio?!

Miguel Pessoa

Fiat G-91 da FAP
Foto de Soares da Silva, com a devida vénia

__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 12 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4676: FAP (32): Defendendo a minha dama (Miguel Pessoa)

(**) Código Fonético Internacional

A - Alfa
B - Bravo
C - Charlie (lê-se tchar-li)
D - Delta
E - Eco (lê-se: é-cô)
F - Foxtrot (lê-se: focs-trote)
G - Golf
H - Hotel
I - Índia
J - Juliet (lê-se: dju-liete
K - Kilo (lê-se: qui-lô)
L - Lima
M - Myke (lê-se: mai-que)
N - November
O - Oscar
P - Papa
Q - Quebec (lê-se: qué-beque)
R - Romeo (lê-se: ró - mi - ou)
S - Sierra
T - Tango
U - Uniform
V - Victor
W - Whisky (lê-se: uís-qui)
X - Ex-Ray (lê-se: ecs-rei)
Y - Yankee (lê-se: ian-que)
Z - Zulu

Guiné 63/74 - P4988: Gavetas da Memória (Carlos Geraldes) (7): A Mina

1. Mais um episódio de Gavetas da Memória de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66.


A Mina

Era meia-noite em Pirada, pequeno povoado situado na fronteira norte, algures na Guiné Portuguesa.

A lua ainda tardava e um céu de veludo negro salpicado de jóias brilhantes pesava sobre as habitações, os homens, os animais e as coisas.
Há muito que reinava o mais profundo silêncio. A tabanca dormia tranquila. O nativo regula sempre todas as suas tarefas pelo nascer e pelo pôr-do-sol. Não precisa de outros horários.

Apenas, no quartel, se notavam alguns indícios de actividade. Rendiam-se as sentinelas, aqui e acolá, nos postos respectivos. Pela única rua da aldeia, regressava ainda o último grupo de retardatários. Dois oficiais, dois jovens alferes, confraternizavam com alguns sargentos, jovens também, companheiros desde os centros de instrução na Metrópole. Fumavam-se os últimos cigarros na perspectiva de uma noite sem história.

Foi nessa noite, uma noite vulgar, igual a tantas outras que a primeira surpresa viria a surgir.
No início, mais parecia ser o eco surdo de alguma trovoada seca, bem longe, para leste, ou nordeste, lá para as bandas de Bajocunda ou do Senegal, mas depressa chegaram à conclusão que os sons que o telégrafo do vento lhes trazia, eram na realidade detonações, tiros de armas de guerra. Tiros que estavam a ser disparados a poucos quilómetros dali.

E de facto ouviu-se, agora perfeitamente, o som inconfundível do matraquear de uma metralhadora ligeira, a arma preferida pelo inimigo. Desfeitas as dúvidas, todos se quedaram imóveis à escuta, perplexos, procurando uma explicação.

Alguém correra já a chamar o capitão que rapidamente também se veio juntar ao pequeno grupo que continuava a tentar perscrutar os sons que, a ligeira brisa da noite, conseguia fazer-lhes chegar. Entretanto, mais soldados, alertados pela movimentação inédita, foram-se juntando no meio da praceta da entrada do quartel, alguns, já com a arma segura numa das mãos, enquanto com a outra apertavam o cinto das calças, outros, espreguiçando-se lentamente, tentando perceber o que é que se estava a passar, perguntavam sem cessar:

- O que foi? O que foi? Aquilo são tiros mesmo?

Tão repentinamente como começaram, as detonações deixaram de se ouvir. Quando já se começavam a aventurar algumas hipóteses de explicação para tão insólito caso, uma sentinela, chamou baixinho:

- Meu Alferes! Meu Alferes! Pareceu-me ouvir um ruído qualquer, ali para os lados da estrada que vem de Bajocunda. Oiça! Oiça! Já se ouve melhor! Não está a ouvir?

De facto, um ligeiro rumor começava a deixar-se aperceber, entre a sinfonia monótona de todos os insectos nocturnos.
Um ligeiro roçagar que se ia tornando cada vez mais audível.

- É alguém que vem aí de bicicleta, meu Alferes! - Afirmava convicto a sentinela.

Distinguiu-se então, perfeitamente, um vulto branco a deslocar-se velozmente pelo caminho que vinha desembocar no largo, onde todos estavam. Seguiam-no um grupo de homens negros que resolutamente se dirigiam para o quartel. Entre eles distinguia-se a figura alta e esguia do régulo Solo Só. Chegando junto do capitão, rapidamente contou o que tinha chegado ao seu conhecimento. O jovem da bicicleta era um morador da tabanca de Sinchã Samba, aquela que ficava ali mais perto, cerca de uma hora de caminho pela estrada que levava a Bajocunda.

Segundo ele, quando regressava a casa, depois de uma noite de caça infrutífera, reparara nuns vultos estranhos que, no meio da estrada que passa mesmo junto à sua aldeia, pareciam estar a escavar o chão. Julgando que seria alguns dos seus vizinhos, chamou. Mas quando lhe responderam, notou logo se tratava de gente estranha e que algo de muito suspeito se estaria a passar. Rapaz avisado, como era, não hesitou, meteu a arma à cara, a fiel longa e fez um aparatoso disparo.

Como por encanto o grupo eclipsou-se, mas deixando como aviso uma rajada de pistola-metralhadora. Os habitantes da aldeia, por sua vez, já despertados pelo primeiro disparo, acorreram também com as suas longas e um pouco às cegas, na densa escuridão da noite, responderam aos tiros de armas automáticas que vinham do outro lado da estrada.

Quando tudo serenou e se deixaram de ouvir mais tiros, montou na bicicleta e viera para Pirada buscar auxílio e contar tudo à tropa. Não conseguia dizer ao certo quantos elementos teria aquele grupo terrorista, pareceu-lhe que seriam poucos, mas que de certeza estavam a fazer um buraco no meio da estrada.

Perante tais declarações e perante o olhar inquieto dos nativos que escutavam, ofegantes, tudo o que o bravo Braima (assim se chamava o rapaz da bicicleta) então dizia, o comandante do destacamento tomou rapidamente duas decisões:

- Primeiro, enviar um Grupo de Combate o mais urgentemente possível, fazer um reconhecimento, sem alarido, à zona afectada e atacar, se possível, o grupo inimigo que se infiltrara.

- Segundo, manter o destacamento em estado de alerta durante toda a noite, enviando para os caminhos da mata, que davam acesso à fronteira, alguns elementos da auto-defesa nativa, jovens decididos que, por sua própria decisão, tinha armado.

Tinha tido conhecimento, já há alguns dias, que um grupo inimigo se localizara do outro lado da fronteira. Era de prever qualquer tentativa de infiltração e talvez aquele pequeno grupo surpreendido pelo Abdulai Braima pretendesse de facto instalar uma mina que isolasse o aquartelamento, do lado nascente, para, no caso de resolverem atacar, ficarem com um caminho de fuga protegido.

Sem hesitações, os homens do 1.º GCOMB prepararam-se para partir. Ninguém falava ou gracejava e todos se mostravam interessados apenas no armamento a levar, que se queria leve, mas poderoso. Fixaram-se as últimas instruções, estudaram-se pela última vez, os mapas. O Sargento de Transmissões afinou os rádios, fixou as frequências indispensáveis. Todos os minutos eram preciosos. Não se poderia desperdiçar o efeito surpresa.

A um sinal do alferes, o grupo de combate embrenhou-se silenciosamente na escuridão do caminho, precedido por dois guias nativos que, ligeiros, ardiam de impaciência. Um a um deslizaram, como felinos, guiando-se pela estreita faixa clara da estrada, até que se deixaram de ver. O silêncio quase que não fora perturbado. O ar frio da noite que, de repente, começara a correr numa aragem fina, parecia querer impelir aqueles homens, sempre para a frente, de encontro ao negrume da mata.

Após os primeiros momentos de habituação, cada homem procurava não perder de vista o que lhe ia na frente, perscrutando ao mesmo tempo as sombras da noite em todas as direcções. Respiravam a curtos espaços, com os músculos tensos, prontos a qualquer reacção necessária. Em frente sempre aquela estrada branca, que mais parecia um estranho fantasma pairando diante deles.

Quando já estavam longe do aquartelamento, como medida de precaução, fizeram então o primeiro alto e todos se agacharam na berma do caminho, no lado mais escuro. O jovem alferes consultou os guias, confirmou, mentalmente, as distâncias e, depois de passar palavra, deu início a uma manobra de envolvimento, evitando o contacto directo com o desconhecido, e qualquer possível emboscada. Todos os cuidados não seriam demais.

Desta vez, o grupo embrenhou-se, depois de seguramente localizada pelos guias, por uma antiga picada que seguia paralela à estrada e que os levaria directamente à tabanca ameaçada. Esta, que se localizava um pouco a Sul da estrada, poderia ser assim atingida sem se ser visto da estrada. Era uma zona de mata densa, pela proximidade de um curso de água, propícia ao aparecimento de bolanhas, zonas alagadiças, locais de preferência para quem se quisesse ocultar.

Daí a pouco começavam a distinguir-se as copas arredondadas dos mangueiros, árvores de fruto, quase sempre identificadoras da proximidade de algum povoado.

A coluna redobrou de atenções e cuidados. Contra a impetuosidade dos guias, o oficial contrapunha calma e precaução. A aproximação deveria ser feita com o máximo de eficácia, pois o imprevisto poderia ser fatal.

Finalmente, a tabanca surgia no meio de uma imensa clareira. A Lua começava a despontar e iluminava já o cume das cubatas o que tornava, daí em diante, de certo modo arriscada a progressão daquele grupo de homens. Felizmente o vento vinha de frente e os cães não dariam pela aproximação deles.
O oficial fez um curto sinal com o braço e todos estacaram, ouvindo o vento, fixando os pontos característicos do terreno. Um silêncio de beatitude parecia querer desmentir todo aquele aparato de guerra.

Após uma ligeira troca de impressões, um dos guias partiu lesto na direcção da tabanca, confundindo-se com as sombras.

Os homens dividiram-se e uma secção embrenhou-se de novo na mata, com o outro guia, rodeando a tabanca pelo lado Sul, numa tentativa de conhecer melhor o terreno. O resto do grupo aguardou notícias do primeiro guia. Este não se fez esperar muito e, daí a pouco, estava já de volta, acompanhado por outro indígena que cumprimentava o alferes dando mostras de já o conhecer, de anteriores visitas, à tabanca.

Comunicou que os bandidos tinham feito muito fogo sobre eles, mas que se foram embora ao verem que da tabanca lhes respondiam também com tiros de espingarda. Todo o pessoal da aldeia estava de vigia e ninguém tinha fugido, acrescentou com um certo ar de vaidade. Só tinham pena que as munições tivessem acabado, senão tinham ido atrás deles. A tropa devia dar-lhes mais espingardas e mais balas, pois assim ficavam com medo que os bandidos voltassem para se vingarem.

Tranquilizado com estas informações, o alferes deu então ordem de avançar até à tabanca, deixando, no entanto, uma secção a proteger a retaguarda.
A tabanca parecia deserta, só aqui e ali se via uma cabeça a emergir de dentro de uma cubata. No largo central da aldeia, dois velhos e algumas mulheres. Um deles era o jarga, o chefe da tabanca. Acolheu a tropa com evidentes sinais de alegria e as mulheres, ao princípio atemorizadas, em breve começaram a tagarelar e a rir.
Surgiram depois os soldados da secção que fizera o envolvimento pelo sul, assustando algumas crianças desprevenidas, que correram a refugiar-se debaixo das saias das mães.

Nada de anormal do lado Sul. Restava portanto fazer o reconhecimento da estrada junto da tabanca, no local onde tinha sido avistado o grupo inimigo. Depois de uma breve comunicação rádio com o comando, o grupo espalhou-se, procurando então acercar-se da estrada. O silêncio continuava, interrompido apenas por um ligeiro rumor do vento nas copas frondosas dos grandes mangueirais. Os soldados esperavam, de armas prontas para uma qualquer reacção de um inimigo que poderia ainda estar presente por ali, emboscado.

Lentamente, atingiram a berma da estrada sem que nada acontecesse. A noite continuava a esconder os seus mistérios.

Um dos nativos indicou o local exacto onde tinham avistado os vultos suspeitos, uma cova escura, mesmo ali onde ficava a fonte da aldeia, segundo também informava.
A título preventivo e depois de prevenir o aquartelamento pelo rádio, dispararam-se algumas rajadas nas direcções mais prováveis, mas não houve qualquer resposta. Não havia dúvida, o campo estava livre.

Alguns soldados atravessaram a estrada e colocaram-se na outra berma. Outros, seguindo um dos nativos, embrenharam-se cautelosamente na mata que rodeava a fonte. Um deles, tropeçou num objecto duro e logo verificou tratar-se de uma caixa de ferro. Por precaução, tacteou a toda a volta com cuidado, certificando-se que não estaria armadilhado. Era um simples cunhete de munições abandonado talvez na precipitação da fuga

O guia regressava também com qualquer coisa na mão. Uma sandália de plástico e um boné de caqui.
Ali estavam, portanto, as provas definitivas de que, de facto, um grupo inimigo estivera naquele local e que teria retirado precipitadamente, abandonando, inclusive, uma pesada caixa de munições.

O alferes, entretanto, tinha localizado o sítio da estrada, onde o Braima tinha visto os suspeitos a cavar um buraco. Realmente, na parte onde a estrada descia para a bolanha, à luz fraca da lanterna eléctrica, conseguia notar-se uma ligeira depressão formando um quadrado, onde a terra parecia mais fofa e remexida. Como o local era muito escuro, não se fizeram todavia mais averiguações.

O inimigo, àquela hora estaria certamente do outro lado da fronteira e, não serviria de nada persegui-lo. Contactando novamente o Comando, ficou decidido então que metade do grupo permaneceria no local, guardando a estrada e impedindo a circulação de quaisquer veículos.
O resto regressaria ao quartel, trazendo tudo aquilo que tivesse sido encontrado, abandonado pelo inimigo.
Quando o pequeno grupo de soldados reentrou no quartel, todos ainda se mantinham na mesma expectativa aquando da saída deles.
A caixa metálica continha vários carregadores de espingarda metralhadora de origem soviética, ainda por utilizar e em perfeito estado de conservação.

Naquela noite, ainda, a sentinela deixada junto à estrada, perto do local onde se supunha estar a mina, deteve o condutor de uma pesada camioneta carregada de mancarra, vinda dos lados de Canquelifá, na ponta leste e que nada sabia do que tinha acontecido.
O motorista e algum pessoal que o acompanhava, encavalitado em cima das sacas do amendoim, tiveram mesmo de pernoitar ali na tabanca de Sinchã Samba, esperando que a tropa, mal amanhecesse, limpasse a estrada, assegurando-lhes uma passagem segura.

Logo que o dia clareou, uma força composta, então, por outro Grupo de Combate dirigiu-se ao sítio onde estaria a suposta mina. Cuidadosamente, foram picando o solo e mesmo no local onde o alferes estivera na noite anterior, detectou-se uma depressão coberta por terra fofa. Afastada a areia, destaparam uma caixa quadrangular de madeira. Era de facto uma mina anti-carro. Os turras, afinal, sempre tinham tido tempo para terminar o trabalho.

Com uma pequena carga de trotil, o Sargento Especialista rebentou o engenho, que fez um estrondo tremendo, perfeitamente ouvido a vários quilómetros de distância.

O motorista do camião de mancarra limpou o suor da testa e soltou um profundo suspiro de alívio. Profissional experiente, de muitas campanhas, nunca tinha sentido tão perto a perspectiva de poder vir a saltar com o rebentamento de uma mina. E daquela, escapara quase por milagre.

Pirada, 15 e 16 de Janeiro de 1965
(Publicado no “A Aurora do Lima” em 14.01.2009)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4898: Gavetas da Memória (Carlos Geraldes) (6): Os amores do Soldado Valença

Guiné 63/74 - P4987: Em busca de... (91): Informações de Camaradas do 3º turno de 1967 de Op.Esp./RANGERS que estiveram na Guiné, 1968 a 1970


1. O nosso Camarada António Brandão, foi Alf Mil Op.Esp./RANGER da CCAÇ 2336 (Angola 1968/70), enviou-nos o seguinte apelo de busca de camaradas do seu curso, que foram mobilizados para a Guiné nos anos de 1968/70, com data de 18 de Setembro de 2009.

Camaradas e Amigos,

Dirijo-me ao blogue do Luís Graça & Camaradas da Guiné, que muito me diz, porque trata de uma guerra que também é minha, embora numa frente um pouco mais ao lado.

Uma guerra que ceifou o meu 1º amigo nos idos anos de 1964 (era eu uma criança de 20 anos e alguns meses), um jovem Furriel Miliciano com mais dois ou três que eu, refiro-me ao Varinho (Álvaro Manuel Vilhena de Mesquita), que era atirador da CCAÇ 675.

Infelizmente não foi o último, outros lhe seguiram na Guiné, Angola e Moçambique.

Há alguns anos iniciei uma “cruzada” que tenho esperanças de concluir. Resolvi descobrir e saber do paradeiro dos 70 Aspirantes, que em Junho de 1967, comigo frequentaram o 3º curso de Op. Esp./RANGERS, em Lamego.

Na altura soube logo de dois mortos em combate, ambos em Moçambique, e sete vivos.

No início de 2008, ao ler um poste do Idálio Reis, publicado neste blogue, mandei-lhe um e-mail em que, entre outras coisas lhe dizia que tive um camarada em Lamego que se chamava Reis, de Cantanhede, e perguntava-lhe se ele tinha algo a ver com esse Reis.

Na resposta, escreveu-me a confirmar ser quem eu supunha. Estava assim encontrado o 8º camarada vivo, do curso. O Reis conhece o paradeiro de mais três, um destes, tem os nomes completos de 25 outros, alguns destes já localizados.

Enfim, um ano e alguns meses depois, com algumas centenas de euros derretidos em chamadas telefónicas, tenho na lista três mortos em combate, oito mortos depois do regresso, 49 vivos e muitas emoções contidas, ou não.

Falta-me localizar 10 homens, ou talvez apenas oito, pois presumo que dois, de quem não tenho fotografias, possam não ter chegado a frequentar o curso por qualquer motivo.

Dados que disponho:

O Nuno é aquele que menos “pistas” oferece. Terá feito a recruta em Janeiro de 1967 e, quando saiu como Aspirante Miliciano, em Junho do mesmo ano, foi colocado no C.I.O.E. com mais cinco outros novos aspirantes, que foram já localizados. Todos incorporaram o 3º curso de OEs/RANGERS que se iniciou nesse mesmo mês. O seu nome de “guerra” era Nuno. Indicia que o seu apelido poderia ser bastante comum e, por isso, podia já ter sido adoptado por outro camarada.

O Antunes poderá chamar-se Manuel Silva Antunes e ser, possivelmente, de Lisboa. Tal como todos os outros que se seguem, foi da recruta que se iniciou em 13 de Setembro de 1966.

O Barbosa presume-se que se chame Jorge A. B. S. Barbosa, deve ter sido colocado no C.I.S.M.I. em Tavira, de Março a Junho de 1967.

O Carneiro supostamente será Júlio F. J. Carneiro e, de Março a Junho de 1967, terá sido colocado na E.P.I. em Mafra. Os seus pais poderão ter sido proprietários da Sapataria Carneiro em Cascais.

O Ferreira, talvez Manuel C. Ferreira (?) saiu como Aspirante em Março, terá sido colocado no R.I.2.

O Guerreiro, supostamente, Manuel M. N. Guerreiro. Poderá ter seguido para o R.I.6. Era "Parelha" do Barbosa.

O Sequeira, terá o nome de José L. N. Sequeira (?) poderá ter ido para o R.I.2 (?).

O Vigano, de origem caboverdiana, poderá chamar-se José R. V. A. C. Pinto, terá passado pelo R.I.15.

O Cortesão e o Sobral, de quem não tenho fotografias, foram "Parelhas" um do outro. Do Cortesão, nada mais tenho, resta o facto de não ter havido muitos com esse nome.

O Sobral poderá chamar-se Victor Joaquim N. Ferreira Sobral, sem qualquer garantia, tal como todos os outros. Não é firme que tenham chegado a frequentar o curso.

Precisava assim de um grande favor, especialmente daqueles que entre 1968 e 1970 serviram o nosso Exército, que me possam ajudar, prestando-me alguma informação útil, pelos telefones: 22 7 824 725 ou 966 855 757, ou para o e-mail: ala.br@hotmail.com

Desde já os meus agradecimentos,

Um grande abraço a todos com um muito obrigado,

António Brandão
Alf. Mil. Op. Esp./RANGER da CCAÇ 2336 (Angola 1968/70)

Fotos: António Brandão (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:


Guiné 63/74 - P4986: Parabéns a você (27): O veterano Coutinho e Lima, Cor Art Ref, Gadamael (1963/65), Bissau (1968/70), COP 5 (1972/73)

Hoje, dia 21 de Setembro de 2009, faz anos o nosso camarada Coutinho e Lima, Cor Art Ref, a quem vimos desejar muitos anos de vida na companhia dos seus familiares e amigos.

Alexandre da Costa Coutinho e Lima nasceu no lindo Distrito de Viana do Castelo. Militar do Quadro Permanente das Forças Armadas Portuguesas, fez duas comissões de serviço na Guiné, com o posto de Capitão e uma terceira como Major:

A primeira entre 1963 e 1965, como comandante da CART 494, a primeira Companhia que esteve aquartelada em Gadamael (Dez 63/Mai 65); a segunda entre 1968 e 1970, como Adjunto da Repartição de Operações do Comando-Chefe das FA da Guiné (devendo-se a sua colocação ao facto de ser Observador Aéreo de Artilharia, que era Especialidade de Mobilização); a terceira comissão, iniciou-a em Setembro de 1972, tendo sido nomeado por Spínola como comandante do COP 5, com sede em Guileje, em Janeiro de 1973.

Em 22 de Maio de 1973, Coutinho e Lima protagonizou um dos mais controversos acontecimentos da guerra colonial, ao retirar, por sua iniciativa, de Guileje, levando consigo (até Gadamael), não só a tropa à sua responsabilidade (cerca de 200 homens), como também toda a população local (cerca de 600).

Imagem aérea de Guileje.

Foto: © Amaro Samúdio (2008). Direitos reservados


Na difícil hora da retirada, depois de 9 anos de guarnições militares em Guileje, a coluna dirige-se para outro inferno, Gadamael.

Foto de autor desconhecido. E que, com a devida vénia, se reproduz



A história faz-se de factos concretos e não de especulações abstractas, pelo que não podemos dizer o que teria acontecido se Coutinho e Lima se mantivesse firme no seu posto, pondo em risco, do seu ponto de vista, a segurança e a vida dos militares e da população de que era (e se sentia) responsável. (Recorde-se que Guileje foi ocupado pelo PAIGC, três dias depois, em 25 de Maio de 1973).

Muito provavelmente não teria mudado em nada o rumo da história, mas talvez estivéssemos agora a lamentar mais umas mortes escusadas, de um lado e do outro. Ficou a acção que a sua consciência ditou, e que lhe valeu a prisão preventiva (cerca de um ano, de 22 de Maio de 1973 a 12 de Maio de 1974), com instauração de um Auto de Corpo Delito. Em consequência do 25 de Abril de 1974, os crimes que lhe eram imputados, foram amnistiados por Decreto-Lei da Junta de Salvação Nacional, sendo o processo arquivado.

O caso Coutinho e Lima foi por demais analisado, escalpelizado e discutido neste Blogue e, se o trago de novo aqui, é porque não podemos deixar de lembrar o seu livro A Retirada de Guileje, 22 de Maio 1973: A Verdade dos Factos (edição de autor, 2008), onde o nosso camarada conta todos (ou quase todos) os pormenores daquelas horas difíceis culminando numa resolução, reflectida mas temerária, por parte de um Oficial do Quadro Permanente, que sabia de antemão estar sujeito ao pior castigo, a prisão e a mais que provável expulsão do Exército Português.

Independentemente da opinião de cada um de nós sobre a decisão tomada no já longínquo 22 de Maio de 1973, o que importa sublinhar é que hoje é o dia de Coutinho e Lima, o dia em que completa mais um ano na vida. É um dia de festa e ninguém vai estragá-lo...

Como acontece com todos os camaradas que fazem anos de vida, estamos aqui para nos congratularmos por mais este aniversário e manifestarmo-lhe o nosso apreço e amizade como ex-combatente da Guiné, em igualdade de circunstâncias com todos os demais. A dádiva da vida deve sobrepor-se, sempre, aos pontos de vista, circunstanciais, de cada um de nós, relativamente aos acontecimentos de que o Coutinho e Lima foi protagonista. Como é timbre do nosso blogue, não somos juízes de ninguém. E hoje vamos poupar o nosso aniversariante às polémicas de que foi alvo. Noutro dia, publicaremos mais um texto que ele nos mandou, ainda a propósito da sua decisão de retirada...

Da esquerda para a direita: José Rocha, ex-Alf Mil, CART 2410, Os Dráculas, e Alexandre Coutinho e Lima, antigo Comandante do COP 5 (1973).

Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Simpósio Internacional de Guiledje > 1 de Março de 2008 > Coutinho e Lima, depois de ser homenageado pela antiga população de Guileje (que hoje vive em Mero), deixa-se fotografar no recinto do antigo aquartelamento, com o traje de home sábio, a chabadora, que lhe impuseram...

Foto e legenda: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.


Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real, Leiria > 17 de Maio de 2008 > III Encontro Nacional da Nossa Tertúlia > Dois homens de Guileje: à direita, o Cor Art Ref Coutinho e Lima, e à sua esquerda, o ex-Fur Mil Op Esp José Casimiro Carvalho, da CCAV 8350

O Cor Coutinho e Lima fala aos presentes no III Encontro Nacional da Tertúlia. Acompanha-o o nosso Editor Luís Graça

Fotos: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2008). Direitos reservados.


Coutinho e Lima na Biblioteca-Museu República e Resistência, Espaço Grandela, aquando da apresentação do livro "A Retirada de Guileje" integrado no 2.º Ciclo de Conferências "Memórias Literárias da Guerra Colonial", no dia 14 de Maio de 2009.

Foto: © José Martins (2009). Direitos reservados

[Texto e selecção de fotos: C.V.]
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Notas de CV:

Vd. postes sobre o dossiê Retirada de Guileje:

OBS: - É imensa a publicação de postes no nosso Blogue sobre este assunto. Para não tornar a lista exaustiva, deixo ao acaso estes postes. A partir deles terão acesso aos demais. Ressalvo a minha posição de não ter escolhido este ou aquele, em função da opinião expressa ou do autor.

27 de Novembro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3527: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (1): Lançamento do livro, 13/12/08, 17h, na Academia Militar, Amadora

14 de Dezembro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3618: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (2): A festa ... e a solidão de há 35 anos (Luís Graça)

15 de Dezembro de 2008:

Guiné 63/74 - P3626: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (3): Tardia a nossa percepção do nosso próprio Vietname (Eduardo Dâmaso)

Guiné 63/74 - P3627: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (4): Apresentação do livro, 5ª F, 18, na Casa da Guiné-Bissau em Coimbra
e
Guiné 63/74 - P3628: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (5): O sentido de uma sondagem (Joaquim Mexia Alves / Luís Graça)

18 de Fevereiro de 2009 >
Guiné 63/74 - P3910: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (22): Resposta do autor do livro a António Martins de Matos (Parte I)

24 de Fevereiro de 2009 >
Guiné 63/74 - P3932: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (23): Resposta do autor do livro a António Martins de Matos (Parte II)

10 de Março de 2009 >
Guiné 63/74 - P4007: Blogoterapia (95): Há mais vida no alfabeto da guerra, para lá dos G: Guileje, Gadamael, Gandembel, Guidaje... (António Matos)

5 de Maio de 2009 >
Guiné 63/74 - P4282: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (11): Heróis... (Constantino Costa, Sold CCav 8350, 1972/74)

14 de Maio de 2009 >
Guiné 63/74 - P4344: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (12): Homenagem dos Homens Grandes de Guiledje a Coutinho e Lima (Camisa Mara / TV Klelé)

27 de Maio de 2009 >
Guiné 63/74 - P4422: Bibliografia de uma guerra (47): Coutinho e Lima fala do seu livro "A Retirada de Guileje" (José Martins)

3 de Julho de 2009 >
Guiné 63/74 - P4634: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (13): A desonra da CCAV 8350 ou o direito a contar a minha versão... (Constantino Costa)

7 de Julho de 2009 >
Guiné 63/74 - P4649: Blogoterapia (114): A Honra da Companhia, os fantasmas de Guileje, os limites da tolerância (José Brás / António Matos)

24 de Julho de 2009 >
Guiné 63/74 - P4736: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (14): Na minha opinião pessoal, o Major Coutinho Lima foi um Herói! (Amílcar Ventura)

Vd. último poste da série de 15 de Setembro de 2009 >
Guiné 63/74 - P4951: Parabéns a você (26): Manuel José Ribeiro Agostinho, Escriturário no QG/CTIG, 1968/70 (Os Editores)

domingo, 20 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4985: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (15): Convívios e o Hino Nacional



1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira (JERO), foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/65), enviou-nos a sua 15ª história do seu livro "Golpes de Mao's - Memórias de Guerra", com data de 10 de Setembro de 2009, que mais uma vez muito agradecemos.

Camaradas e Amigos,



Esta é a minha história nº. 15 - CONVÍVIOS E O HINO, que pretende ser uma sátira aos jogadores da nossa Selecção Nacional de Futebol, que nem cantar o Hino Nacional sabem.

CONVÍVIOS E O HINO

1 - CONVÍVIOS

Se não é caso único... deve andar por lá perto!

Desde Maio de 1967 até aos dias de hoje os ex-combatentes da C.Caç. 675 reuniram-se todos os anos, o que quer dizer que já estão atingidas e ultrapassadas mais de 40 reuniões.

Repetimos... Se não é caso único... andará por lá perto!

Guardamos ainda a convocatória para a 1ª. Reunião de 7 de Maio de 1967. Uma comissão de 3 elementos – que então viviam e trabalhavam em Lisboa (António Duarte Santos, José Eduardo Reis Oliveira e Belmiro Tavares) convocava (por escrito) os camaradas de armas da Guiné para uma reunião que «constará de uma missa por alma dos companheiros falecidos, seguida de um almoço de confraternização».

A concentração era marcada para as 10h00 do dia 7 de Maio junto ao monumento da Praça dos Restauradores.

Na primeira reunião –por falta de moradas – só estiveram presentes 17 componentes da «gloriosa 675» .

Depois foi-se passando a palavra e de ano para ano mais gente foi aparecendo.

Nos primeiros tempos só com as mulheres, depois com os filhos... até se chegar à época dos netos!

A primeira “comissão” desfez-se – o Santos foi para Portimão e o Oliveira foi para Alcobaça – e ficou em Lisboa o Tavares.

O ex-Alferes Tavares conseguiu uma autêntica base de dados sobre todos os elementos da “675”.

E ao longo dos anos Belmiro Tavares foi tratando de toda a logística necessária à organização dos convívios. Que aconteceram em Lisboa, em Évora, no Porto Alto, em Pombal, em Alcobaça, em Almeirim, etc., etc.

Guarda correspondência, convocatórias, ementas, recortes de jornais e... muitas, muitas fotografias.

Ultimamente registou-se alguma «descentralização». Alcobaça e Almeirim foram os exemplos recentes. E bons exemplos.

Por motivos óbvios não podemos deixar de referir Alcobaça, que foi um “marco” importante na história dos convívios da gloriosa “675”.
...
2 - O Hino...

Vem a propósito dizer que recordámos esta história por causa do futebol. Passamos a explicar melhor.

Nos recentes jogos da selecção de Portugal com a Dinamarca e com a Hungria a contar para a fase de apuramento do Campeonato do Mundo de 2010,a realizar na África do Sul, lá vimos, mais uma vez a dificuldade com que alguns “naturalizados” –e não só – cantam o Hino Nacional. Uns nem abrem a boca. Outros arranham timidamente algumas estrofes do Hino.

Sinceramente este “hino” do Carlos Queiroz faz-nos ter algumas saudades do “hino” do espertalhão do Luiz Scolari ,que de “burro” não tinha mesmo nada.

Chega agora o tempo de recordar o “convívio” de Alcobaça a que atrás já aludimos .

Recordamos um episódio marcante .Aconteceu no dia 13 de Maio de 2007… mas continua muito actual.

O hino a que nos vamos referir é aquele que há pouco tempo o Mister Scolari transformou em imagem de marca da nossa Selecção Nacional de Futebol. Aquele que começa por... «Heróis do Mar, Nobre Povo, Nação Valente e Imortal...».

Esse mesmo.

Era cerca de uma hora da tarde e chegava ao fim uma missa celebrada pelo Rev.º Padre Artur na bonita e acolhedora Igreja da Maiorga, nos arredores de Alcobaça.

Na assistência estavam ex-combatentes da C.Caç. 675 que tinham cumprido serviço militar na Guiné em 1964-1966.

Estavam ex-combatentes e suas famílias. Eram cerca de 100 pessoas que se tinham deslocado à região de Alcobaça para uma festa de convívio. Comemoravam o 41º.aniversário do seu regresso à Metrópole em Maio de 1966.

As palavras cordiais do Padre Artur, com 23 anos de África no seu curriculum, tinham encerrado da melhor maneira uma cerimónia religiosa tocante em que tinham sido evocados os mortos da Companhia.

Cada nome referido ao microfone pelo ex-Alferes Tavares – nesta fase da vida já são mais de 30 – era saudado em coro pelos antigos combatentes.

Trinta e tal vezes foi gritado «Presente». E... por breves momentos muitos de nós viram... em imagens esfumadas... na memória do tempo... o Soldado Gonçalves, o Furriel Mesquita, o Sargento Marques, o cabo-enfermeiro Martins, o «Campo de Ourique», etc., etc.

Presente! Presente!

Presentes...

Ide em paz e o Senhor vos acompanhe.

Quando nos levantávamos para sair da Igreja... inesperadamente o organista começa a tocar algumas notas que nos fizeram estacar. Os sons eram-nos familiares...

Mas... era o Hino Nacional.

«Heróis do Mar, Nobre Povo, Nação Valente e Imortal... ».

Com as vozes embargadas e os olhos marejados de lágrimas "os velhotes" da 675 cantaram o hino e viveram emocionados um dos momentos mais bonitos de... 41 anos de «regressos».

Espontaneamente uma salva de palmas encheu a capela .

O sorriso discreto do organista selou o momento mágico.

Os homens da 675 não mais vão esquecer o organista da Maiorga.

Depois... o resto da tarde com o almoço, os sorrisos, as piadas, a música do «Soão», os discursos do nosso Capitão de Binta, as histórias da guerra... as memórias.

Especialmente... as memórias.

Daqui para à frente vai haver mais um momento especial para recordar.

O Hino Nacional na Igreja da Maiorga, a 3 Kms. de Alcobaça.

Não o do seleccionador sr. Luiz Felipe Scolari – nem o do Prof. Carlos Queiroz -mas o do organista Sr.António Rosa.

Maior de 60 anos, nascido e residente na Maiorga, perto de Alcobaça, que se orgulha de ser português, e, graciosamente, acompanha os serviços religiosos na Igreja da sua terra. E honrou de forma sublime e espontânea ex-combatentes.

«Heróis do Mar, Nobre Povo, Nação Valente e Imortal... ».

Com as vozes embargadas e os olhos marejados de lágrimas "os velhotes" da 675 cantarem emocionadamente o Hino Nacional porque sabem a letra e..a sentem .

Um abraço,
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675

C/c para a Federação Portuguesa de Futebol, à esp. atenção do Dr. Madail.

Fotos: José Eduardo Oliveira (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:


Guiné 63/74 - P4984: Estórias do Mário Pinto (Mário Gualter Rodrigues Pinto) (18): O Coimbra

1. Mais uma mensagem do nosso Camarada Mário Gualter Rodrigues Pinto, ex-Fur Mil At Art da CART 2519 - "Os morcegos de Mampatá" (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá - 1969/71), com um texto das suas memórias:

Camaradas,

Como sempre é do meu baú de memórias que retiro as recordações dos tempos da minha juventude, nomeadamente as vividas em terras da Guiné.

A esta intitulei-a de:

O COIMBRA

Quem no meu tempo esteve no Sector de Mampatá, Buba e Aldeia Formosa, sabia quem era este personagem, não querida das NT, que, quer se queira quer não, era uma pessoa eficaz e eficiente, para o desenrolar das Informações Operacionais.

Refiro-me ao agente Coimbra da DGC (posterior DGS), vulgo P.I.D.E., que se encontrava em Aldeia Formosa (Quebo).

Frequentava com assiduidade a Messe de Sargentos, escutando as conversas e disparates que nós, na nossa juventude e ingenuidade, dizíamos sobre a política e os políticos de então.

Deambulando de mesa em mesa, passando pelo balcão, procurava insistentemente com alguma provocação à mistura, inteirar-se dos resultados, ou saber pistas, daqueles que regressados dos patrulhamentos, colunas e operações, lhe pudessem prestar algum tipo de informação útil (para ele como é óbvio).

Nós, em Mampatá, não estávamos muito expostos a este manhoso “assédio”, mas como tínhamos que nos deslocar diariamente a Aldeia Formosa, onde funcionava a Secretaria, bem como abastecer-nos de água, pão e frescos que eram transportados a partir de Bissau num Dakota, também nos sujeitávamos ao “assalto pesquisador” do homenzinho.

Era inevitável que o nosso “amigo” Coimbra, nos chateasse com várias perguntas, mais ou menos “espertas”, de todo o tipo de matérias.

Numa das minhas idas nessas missões a Aldeia Formosa, parei na Messe de Sargentos gesto obrigatório, habitual e indispensável para confraternizar com o pessoal amigo local, tendo-me deparado com o Coimbra, que logo me foi fazendo perguntas sobre aspectos militares da nossa ZA.

Virei-me para o mesmo e disse-lhe, que os meus relatórios tinham sido entregues ao Comando da Companhia e que se tivesse interesse em saber o seu conteúdo, os pedisse ao meu capitão.

O Homem passou-se e ameaçou-me, tentando levar-me com ele para o seu Posto de Serviço.

Teve azar, pois eu chamei o oficial de dia de Aldeia Formosa e contei-lhe o que estava acontecer.

O mesmo achou por bem chamar o Major Operacional, que na altura era o bem conhecido Pezarat Correia, que interviu dizendo que eu tinha procedido segundo os regulamentos e mais disse, que se ele estivesse interessado em informações, que fosse pedi-las ao Comando.

A partir desse dia fiquei ali com um amigo para o resto da comissão. Cada vez que ia a Aldeia Formosa, tinha que “levar” com o Coimbra.

Um dia já farto da conversa da “treta” dele, à entrada da Messe, num momento em que ele se encontrava a sós comigo, virei-me para o tipo e disse-lhe:

- Eh pá larga-me a braguilha que eu não gosto de homens. Vens sempre com a mesma conversa até parece que és bicha.

Não é que o Coimbra nunca mais me chateou.

Ainda hoje vivo com sérias dúvidas pessoais sobre a sua sexualidade... (???).

Um abraço,
Mário Pinto
Fur Mil At Art

Imagem: Wikipédia (2009). Direitos reservados.
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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

Guiné 63/74 - P4983: (Ex)citações (47): Sexo e amor em tempo de guerra (Juvenal Amado / S.N.)

Guiné > Zona Leste > Galomaro > CCS/ BCAÇ 3872 (1972/74) > O Juvenal Amado, 1º Cabo Condutor, segurando ao colo o irmãozinho da sua lavadeira.

Foto: © Juvenal Amado (2009). Direitos reservados.


1. Dois textos enviados recentemente por dois camaradas nossos sobre o (e)terno tema do amor e sexo em tempo de guerra... O pré-texto é o último poste do Vitor Junqueira (*)... O primeiro texto que publicamos é da autoria do Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74, autor da série Estórias do Juvenal Amado. O outro é de um camarada que conheceu o TO da Guiné mas também de Angola e Moçambique... Não faz parte da nossa Tabanca Grande, é um leitor assíduo do nosso blogue. Vamos apenas identificá-lo pelas iniciais S.N.


(i) O que fica para além do amor
por Juvenal Amado


A desproporção das imagens que temos em relação ao que descrevemos, deixa-nos órfãos de um sabor a pouco.

Ao contrário do acto, o amor não é negociável. Na Guiné vários foram os amores, que duraram para além da relação ocasional.

Pelo o que li sobre a Fanta (*), ela transformou o que seria uma relação fugaz e sem futuro, numa belíssima estória de amor.

Sim, ela deu o primeiro passo, escolheu o seu homem e resolveu como seria a sua vida enquanto amante daquele soldado jovem, que a iria deixar mais tarde ou mais cedo, só com a recordação.

Como quem nada tem a perder deu o que tinha, as marcas deixadas no soldado, emoção com que escreve, extravasa quando lemos o seu relato daquele amor.

O amor transborda em cada parágrafo, facilmente visualizamos as imagens, vale o amor em que tudo é dado nada se troca, nem o tempo.

Outras também escolheram a felicidade fugaz, limitada no tempo que duravam as comissões.

Foram poucos os Valenças.

A Jarulema, a Mariama, a Fátima são a recordações que mantenho desses amores não ocasionais, que militares da minha companhia lá deixaram.

Um caso houve que uma menina nasceu fruto de um desses amores. O pai, sendo militar da minha companhia, logo fez planos para perfilhar o bebé, tendo informado a família na Metrópole do facto. Quis o azar que o bebé não sobrevivesse ao parto, pois a mãe, não sendo de Galomaro, só recorreu aos serviços de saúde do quartel muito tarde.

Quem lá não esteve dirá como foi possível abandonar-se depois essas mulheres. Como esquecer o doce, morno e terno abraço. Na verdade a solução passou por cada um regressar ao seu Mundo, já que o soldado não escolhia o dela muito menos ela, podia escolher o dele.

Admiram-se os nossos familiares e amigos, que não conheceram aquela terra pobre sofrida da nossa permanente recordação. Não sabem como ela se agarrou a nós, num misto do amor e ódio, de onde só ficou o amor e a saudade.

E o amor nunca é negociável.

Juvenal Amado

(ii) Uma namorada chamada Halima
por S.N.

Amigo Luís, e quiseres publicar um excerto truncado + imagem do meu 'Caderno de Jornalista' (podes omitir a autoria), em abono da tentativa de reconciliação que o Junqueiro faz e a favor de uma ideia que se pode insinuar de que nem todas as putas eram vistas como puta-objecto-barato ou que nem todas as relações com as miúdas 'de lá' eram sumárias relações de poder brutal e intempestivo... aqui tens.


em áfrica, tive uma namorada chamada halima. que linda!
morava numa casa de adobe, com capim por cima; não é como cá!
era perto da praia e a meio da noite, íamos nadar, trilho abaixo, de pano enrolado à cintura, para o mar; e o leopardo por ali, a rondar...
depois vínhamos para cima enlaçados, devagar, para a cama de paus ondulados, dormir e lá dentro chovia, na terra preta do chão, de áfrica.
não é como cá. é mais empolgante, lá!

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Nota de L.G.:

(*) Vd. postes de:

18 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4975: (Ex)citações (46): Se eu fosse mulher sentir-me-ia duplamente envergonhada... (Vitor Junqueira)

31 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1475: Histórias de Vitor Junqueira (7): A chacun, sa putain... Ou Fanta Baldé, a minha puta de estimação