quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5260: Memória dos lugares (54): Uma ponte mágica, a do Saltinho, sobre o Rio Corubal (Mário Beja Santos)

Guiné > Zona Leste > Saltinho > Uma belíssima foto da antiga ponte Carveiro Lopes (não ideia se foi rebaptizada, a seguir à independência), vista da margem direita do Rio Corubal, a jusante... O Beja Santos não me disse de quem são os créditos fotográficos... Parabéns, de qualquer modo, ao artisa... (LG)

Foto: Cortesia de Beja Santos. Autor desconhecido

1. Mensagem de Beja Santos:

Malta,

Li com imensa satisfação a informação sobre as três pontes do Corubal. A ponte General Craveiro Lopes, inaugurado pelo governador Silva Tavares, era, ao tempo a maior ponte construída na Guiné.

Segundo o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, número 51, Julho de 1958, no acto inaugural, o Eng Abel Aires referiu-se a vários aspectos da construção iniciada em Abril de 1955.

Trata-se de uma ponte constituída por quatro tramos de 35,5 metros entre eixos. Os tramos assentam sobre três pilares centrais construídos em betão ciclópico. O comprimento da ponte entre os seus eixos extremos é de 146 metros, com uma largura da faixa de rodagem de 6 metros.


Guiné-Bissau > Saltinho > Ponte General Craveiro Lopes > Lápide, em bronze, evocativa da "visita, durante a construção" (sic) do então Chefe do Estado Português, general Francisco Higino Craveiro Lopes (, acompanhado do Ministro do Ultramar, Capitão de Mar e Guerra Sarmento Rodrigues, em 8 de Maio de 1955. A ponte só iria ser inaugurada em 1958, ao tempo Governador (1957/58) Álvaro Rodrigues da Silva Tavares (n. 1915) e depois Alto Comissário e Governador de Angola (Janeiro de 1960 / Junho de 1961).

Foto: © Albano M. Costa (2006). Direitos reservados


Referia-se expressamente que a ponte, para além destas dimensões impressionantes, iria substituir satisfatoriamente a ponte Marechal Carmona (*), o administrador de Fulacunda disse expressamente no acto inaugural de 1958 que a ponte Marechal Carmona já não servia os interesses da população, não fiquei a perceber porquê.

É para mim uma ponte mágica, passei por lá sempre deslumbrado, quando ia levar abastecimentos ao Xitole, algumas vezes com o Luís Graça. (**)

Esta fotografia [inserida acima] grava-se-me pela saudade e pela elegância das linhas da construção dentro da paisagem. Faço votos para lá voltar muito em breve.
Um abraço do Mário

___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores:

8 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5237: Memória dos lugares (53): Rio Corubal: As três pontes... (C. Silva / P. Santiago / M. Dias / Luís Graça)

7 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5228: Memória dos lugares (52): Rio Corubal: afinal, havia... 3 pontes !? (C. Silva / D. Guimarães / M. Dias / Luís Graça)

7 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5227: Memória dos lugares (51): Ponte Carmona sobre o Rio Corubal (Carlos Silva)

Vd. também postes de:

9 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2621: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (3): Pequeno-almoço no Saltinho, a caminho do Cantanhez

26 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXVI: As pontes sobre o Rio Corubal (Mário Dias)

26 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXIX: As pontes sobre o Rio Corubal: rectificação (Mário Dias

(**) Vd. poste da I Série > 20 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXII: O inferno das colunas logísticas na estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole-Saltinho).

(...) Desde Novembro de 1968 que o itinerário Mansambo-Xitole estava interdito. Nessa altura, uma coluna logística do BCAÇ 2852, no regresso a Bambadinca, sofrera duas emboscadas (uma das quais, a primeira, com mina comandada), a cerca de 2km da Ponte dos Fulas, na zona de acção da unidade de quadrícula aquartelada no Xitole (CART 2413). A coluna prosseguiu com apoio aéreo.

Nove meses depois, fez-se a abertura desse itinerário, mais exactamente a 4 de Agosto de 1969. Na Op Belo Dia, participou o 2º Gr Comb da CCAÇ 12 com forças da CART 2339 (Mansambo), formando o Destacamento A. Nessa operação, não foram encontradas minas nem abatizes mas o IN emboscou 1 Gr Com do Dest B, constituído por forças da CART 2413 do Xitole, na Ponte dos Fulas, quando as NT estavam a reabastecer-se de água.

(..) Para dar uma ideia do carácter quase pioneiro das primeiras colunas que a CCAÇ 12 efectuou na estrada Mansambo-Xitole-Saltinho, com viaturas exclusivamente militares e num itinerário em muitos troços intransitável, esburacado pelas minas e pela erosão das chuvas, invadido pelo capim e pelos arbustos, em que se tornava necessário fazer a picagem de mais de 3O Km, e sempre com o fantasma do IN a acompanhar as NT, vale a pena transcrever aqui um trecho do relatório da Op Belo Dia III, em que participaram o 2º e o 4º Gr Comb da CCAÇ 12, juntamente com forças da CART 2339 (Mansambo), formando o Dest A (A distância de Bambadinca, a Mansambo, Ponte dos Fulas, Xitole e Saltinho era, respectivamente, 18, 33, 35 e 55 quilómetros, segundo informação do Humberto Reis, que dispõe dos 73 mapas cartográficos da Guiné-Bissau à escala de 1/50000):

"A coluna de reabastecimento atingiu Mansambo, proveniente de Bambadinca, às 17.30h do dia 7 de Novembro de 1969, tendo 1 Gr Comb da CART 2339 patrulhado e picado o itinerário até ao limite N da sua ZA [Na prática, percorreu a distância de 18 km., entre Bambadinca e Mansambo à velocidade de 1 quilómetro e meio por hora].

"O Dest A [CART 2339 e CCAÇ 12] partiu de Mansambo às 5.00h do dia seguinte para cumprimento da sua missão [ou seja, prosseguir com a coluna até ao Xitole]. A escassas dezenas de metros a sul da ponte do Rio Bissari foram detectadas e levantadas 2 minas A/P [antipessoal], tendo-se verificado pela sua análise que se encontravam montadas há muito tempo (fazendo parte provavelmente do campo de minas implantadas pelo IN e detectadas no decurso da Op Nada Consta, [em 18 e 19 de Agosto]).

"Entretanto fora tentada por várias vezes a montagem de guardas de flanco, sem contudo se ter conseguido devido à densa arborização do terreno, o mesmo se verificando a partir do Rio Bissari por a natureza do terreno, bolanha com muita altura de água, capim bastante alto com densas manchas de lianas entrançadas, impossibilitar a progressão.

"Num troço de 3 Km, compreendido entre 1 Km após a ponte do Rio Bissari e 1 Km antes da ponte do Rio Jagarajá, a coluna ia sofrendo atascamentos sucessivos conjugados com avarias [mecânicas] que impossibilitavam uma progressão normal.

"Entretanto verificou-se o atascamento da 7ª viatura que ficou completamente enterrada no lodaçal do itinerário, e de mais algumas viaturas que se Ihe seguiam e que foi impossível desatascar.

"Foi decidido então fraccionar o Destacamento A [CART 2339 e CCAÇ 12] deixando 2 Gr Comb no local a tentar desatascar as viaturas e mandar prosseguir o resto da coluna até ao encontro do Dest B [CART 2413, Xitole], o que se verificou pelas 15.30h.

"Feito o transbordo, foi decidido pelo PCV [posto de comando aéreo] que o Dest B regrasse ao Xitole, vindo no dia seguinte transportar a restante carga. Entretanto deixaria um Gr Com (-) a reforçar o Dest A que pernoitou junto das viaturas, montando segurança próxima à estrada.

"Às 5 da manhã do dia 9 [dois dias depois do início da operação], iniciou-se o transbordo da carga para as viaturas que estavam à frente da viatura imobilizada e que entretanto fora desatascada, embora continuasse avariada. Pelas 8h, contactou-se com o Dest B que entretanto se aproximara, fez-se o transbordo da carga, reorganizou-se a coluna e empreendeu-se o regresso a Mansambo que foi atingido pelas 11.45, não sem ter havido mais alguns atascamentos".

(...) A próxima coluna logística realizar-se-ia a 30 de Novembro de 1969, segundo um novo conceito de execução (Op Alabarda Comprida). Foram constituídos 3 Destacamentos:

"(i) Ao Dest A (2 Gr Comb da CCAC 12) coube a missão de escoltar a coluna até ao Xitole, formando três fracções (na testa, no meio e na rectaguarda) e reagindo pelo fogo e pela manobra a toda e qualquer acção IN;

"(ii) Os Dest B e C (6 Gr Comb, das CART 2339 e 2413) constituíam uma força de segurança descontínua ao longo do itinerário Bambadinca-Mansambo-Xitole (cerca de 35 km), patrulhando e montando emboscadas nos locais de mais provável utilização pelo IN para uma eventual acção contra as NT.

"A coluna decorreu normalmente, tendo chegado ao Xitole por volta das 11h da manhã e regressado nesse mesmo dia, contrariamente ao que se estava previsto (e se temia), uma vez que o estado do itinerário era péssimo. Pelo Dest C (CART 2413, Xitole) foram detectados vestígios recentes dum grupo IN, estimado em 20/50 elementos, que teria vindo do Galo Corubal em acção de reconhecimento".

(...) A 14 de Novembro, a CCAÇ 12 efectuaria a última coluna logística para Xitole/Saltinho, integrada numa operação. Após o regresso, os Gr Com das unidades em quadrícula na área, empenhados na segurança da estrada Mansambo-Xitole, executariam um patrulhamento ofensivo entre os Rios Timinco e Buba, não tendo sido detectados quaisquer vestígios IN (Op Corça Encarnada).

A partir de então, estas colunas de reabastecimento das NT em unidades de quadrícula, aquarteladas em Mansambo, Xitole e Saltinho, tomariam um carácter de quase rotina, passando a realizar-se periodicamente (duas vezes por mês, em média), e com viaturas civis, escoltadas por forças da CCAÇ 12.

A segurança ao longo do itinerário continuava, no entanto, a movimentar seis Gr Comb das unidades em quadrícula de Mansambo, Xitole e Saltinho. Na prática, isto significava que o abastecimento das NT nestas tês unidades implicava a mobilização de forças equivalentes a um batalhão (3 companhias).

O Saltinho, embora passasse a depender operacionalmente do Sector L5 (Galomaro), a partir da data em que as NT evacuaram Quirafo, continuava no entanto ligada ao Sector L1 para efeitos logísticos, uma vez que a estrada Galomaro-Saltinho se mantinha parcialmente interdita desde o início das chuvas devido à actividade do IN na região. (...)

Guiné 63/74 - P5259: Ser solidário (45): Falando do apoio americano aos seus Veteranos de Guerra (José da Câmara)

1. Mensagem do nosso camarada José da Câmara*, ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73, radicado nos Estados Unidos da América, com data de 12 de Novembro de 2009:

Caro Carlos,
Junto encontrarás a minha resposta ao nosso camarada Alberto Branquinho.
Foi um prazer ler aquilo que ele escreveu.
Demonstrou ser um homem atento ao que se passa na sociedade americana. Isso apraz-me registar.

Com votos de muita saúde e um abraço amigo,
José Câmara


2. Caros camaradas,
Quando escrevi o P5222*, fi-lo com a convicção de que, ao escrever sobre o que se fazia em outras paragens, isso poderia contribuir como estímulo para as lutas de direitos (quero acreditar que também de deveres) que muitos de vós se vêm envolvidos ou gostariam de verem resolvidas pelo governo português, independentemente da sua cor política

O nosso camarada Alberto Branquinho respondeu, dissertando sobre o que escrevi, como ainda pondo algumas questões bastante pertinentes. Agradeço!

O Alberto Branquinho na sua mensagem P5247** desenvolveu um episódio que teve a oportunidade de presenciar em 1984 quando, ao serviço da empresa que o empregava, visitou os EUA. O acontecimento teve lugar em Washington deduzindo, e bem, que estava na presença de uma manifestação a nível nacional.
A manifestação era protagonizada por ex-combatentes da guerra do Vietname. Aqueles, por formas várias, entregavam-se à luta reivindicativa de direitos que julgavam merecer.

Apraz-me registar a argúcia das observações feitas pelo autor não sou sobre o causa/efeito da manifestação, e também da forma de estar do povo americano Eu, vivendo neste país americano, não teria conseguido dizê-lo melhor nem tão bem.
O grande fenómeno americano assenta nestes princípios básicos: liberdade, justiça, e o direito de questionar (pedir) o congresso na resolução dos problemas inerentes ao povo.

É naqueles princípios que a família aparece como factor principal do associativismo americano. Quando essas famílias são emanadas dos mesmos desejos transformam as suas causas e as suas comunidades em factor de pressão, o tal loby, sem o qual nada ou pouco se consegue.

As associações de veteranos locais fazem parte desse associativismo que, no seu conjunto a nível nacional, têm uma força política descomunal neste grande país americano.
Stoughton, MA., é uma pequena comunidade, inserida na área metropolitana de Boston.

Câmara Municipal de Stoughton, MA

A Câmara Municipal de Stoughton é dirigida por um Administrador contratado pelos Vereadores da Vila, e sua forma de governo é o Town Meeting (Assembleia Municipal). Entre os serviços da Administração Municipal está o Departamento de Veteranos, que é dirigido por um Agente contratado pela Vereação da Câmara Municipal.

O Agente não tem que ser necessariamente um veterano, mas não magoa se o for. O importante é que o Agente seja competente no desenvolvimento do trabalho que lhe é confiado.

No momento actual o Agente é um veterano da guerra do Vietname. Os anteriores, que conheci, também eram veteranos.
O Departamento de Veteranos é um serviço público e gere fundos públicos. O Estado Federal contribui com 75% do Orçamento do Departamento, e a vila de Stoughton contribui com os restantes 25%.

Na lei não existe nada que proíba o Agente de Veteranos de angariar e dirigir fundos provenientes de empresas, serviços e particulares. Não pode é misturar os dinheiros públicos com os dinheiros privados.

Na colheita dos fundos particulares o Agente conta sempre com voluntários que o ajudam nesse processo, e não são necessariamente empregados da Câmara Municipal. Pelo contrário são pessoas que, fazendo parte de outras organizações se solidarizam com a (s) causa(s) em questão. No caso da nossa história coube às Girl Scouts (Grupo de Escuteiras) a tarefa de recolherem donativos vendendo bolachas, para ajudarem um veterano da guerra do Iraque.

A distribuição de dinheiros públicos é feita de acordo com as leis e regulamentos em vigor. Os dinheiros privados são um suplemento, e são entregues, de uma maneira geral, no fim da recolha, e vão na sua totalidade para a (s) causa (s) para que foram anunciados.

O Exército Americano é hoje, todo ele, baseado no voluntariado. Para além das suas Forças Regulares o Exército precisa, em situações de emergência, dos seus Reservistas. São estes civis que, na sua vida normal do dia a dia, contraíram obrigações de toda a espécie para o normal funcionamento das suas vidas. Muitas dessas obrigações têm que ser satisfeitas, mesmo quando os obrigatoriantes são chamados a cumprir os seus deveres com o Exército e com a nação.

Nós sabemos que o Exército paga, normalmente, menos que aquilo que esses militares auferem na sua vida particular. Perante isso a nossa ajuda para os veteranos, por pequena ou grande que seja, não é nem pode nunca ser constituída como esmola.

Para nós, cidadãos americanos (tenho dupla nacionalidade), é motivo de orgulho nacional e satisfação moral ajudar todos aqueles que, ao serviço da nação põem em risco a sua vida e o bem estar da família, para que todos nós possamos manter a nossa liberdade.

Isto é a América!
José Câmara
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 6 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5222: Efemérides (27): O Dia dos Veteranos, 11 de Novembro na Vila de Stoughton (USA) (José da Câmara)

(**) Vd. poste de 10 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5247: Ser solidário (44): A propósito do Dia dos Veteranos em Stoughton - Estados Unidos da América (Alberto Branquinho)

Guiné 63/74 - P5258: A tragédia de Cufar, sábado, dia do Diabo, 2 de Março de 1974 (António Graça de Abreu)







Guiné > Região de Tombali > Cufar > Fotos obtidas de slides do António Graça de Abreu, autor de Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura (2007)... São fotos, carregadas de horror, impotência e luto.

Nas páginas 200-2003 do citado livro, pode ler-se o seguinte (resumo):
Foi no dia 2 de Março de 1974, sábado, um "dia do diabo" (sic)... Entre Cufar e o porto do rio Manterunga, numa picada que não teria mais de cem metros, batida milhares de vezes pelos jipes e demais viaturas militares, os guerrilheiros do PAIGC lembraram-se de lá deixar uma brinquedo de morte: uma vulgar mina anti-carro, reforçada por uma bomba de um Fiat (!) que não tinha explodido... Um jipe do pelotão da Intendência, o PINT 9288, comandado pelo Alf Mil João Lourenço (membro da nossa Tabanca Grande) (*), accionou o engenho. Os cinco ocupantes, dois militares, brancos (o Fur Mil Pita e o Sold Santos, o Jeová), e três civis, estivadores, guineenses, encontraram aqui a morte...

Mais à frente, outra mina, enterrada no lodo do rio, provocou a explosão, em cadeia, de batelões atracados ao cais e carregados de bidões de gasolina... Cerca de duas dezenas de estivadores perderam a vida, num cenário dantesco..."Vi coisas nunca vistas e que nunca mais quero ver", escreveu o António...

Fotos: © António Graça de Abreu (2009). Direitos reservados.


1. Mensagem de 5 do corrente, remetida pelo António Graça de Abreu :

Meus caros Luís, Vinhal e Magalhães Ribeiro:

Peço-vos que publiquem este texto que está no meu Diário da Guiné, nas paginas 200-203. Creio ser valioso porque agora o posso acompanhar com os slides que fiz na altura e só a semana passada consegui digitalizar. É um documento importante a mês e meio do fim da guerra na Guiné [, a duas semanas do 16 de Março de 1974, nas Caldas da Raínha]. Estas duas minas, na picada e no lodo, provocaram 19 mortos, em Cufar. Algumas fotografias são cruéis, mas não há muitas imagens como estas. Deixo ao vosso arbítrio a sua publicação.

Um abraço forte do

António Graça de Abreu


Cufar, 3 de Março de 1974

Hoje é domingo, dia do Senhor, o nosso Deus salvador do mundo. Ontem foi dia do Diabo, Santanás andou por aqui à solta. Ignoro se o Céu existe, mas sei que ontem viajei pelos caminhos do Inferno.

Tudo começou às quatro da tarde com um rebentamento fortíssimo a quatrocentos metros do quarto onde eu dormia uma sossegada sesta. Acordei sobressaltado, vesti-me rapidamente. Lá fora já havia gente a correr e a gritar.

O rio Cumbijã passa a dois quilómetros de Cufar, mas existe o rio Manterunga, um pequeno afluente, melhor um braço de rio que chega quase até à nossa povoação. A quinhentos metros daqui construiu-se um pequeno pontão, um cais de abicagem no
Manterunga.

É aquilo a que chamamos o “porto interior”, utilizado por barcos de pouco calado que chegam carregados de Bissau e descarregam neste porto. Quando a maré está cheia, os batelões sobem o rio e ficam ancorados lá em baixo. A maré desce e os barcos pousam em cima do lodo do leito do rio que é mole e não lhes danifica o casco. Voltam a aproveitar uma maré-cheia para regressar a Bissau. São batelões pequenos, uma espécie de barcaças com motor que trazem para aqui muitos produtos de que necessitamos todos os dias, sobretudo gasolina para abastecer os aviões e helicópteros.

Entre Cufar e o porto do rio Manterunga existe uma picada de terra batida com umas centenas de metros. Até ontem circulava-se nessa estradinha com o maior à vontade, considerava-se a estrada como fazendo parte dos caminhos de Cufar. Já passei por lá dezenas de vezes conduzindo os jipes e é um dos trajectos que costumo utilizar nos meus crosses.

Os guerrilheiros não andam longe e conhecem bem estes lugares, estão em casa. Na picada, a cinquenta metros do porto interior resolveram colocar uma mina anti-carro reforçada por uma bomba dos nossos Fiats que não havia explodido. A mina foi accionada pelo jipe do pelotão de Intendência, até há uns tempos atrás comandado pelo [João] Lourenço (*), meu ex-companheiro de quarto. Foi o estouro monumental, o rebentamento desta mina que me acordou. Iam cinco homens no jipe, dois brancos, um furriel da Intendência[, o Pita e] o Santos, Jeová, mais três negros estivadores dos batelões de Bissau. Quatro deles morrerem logo, os corpos voaram e caíram desfeitos a mais de cinquenta metros do local da mina, o jipe também voou e poisou de rodado para o ar, completamente destruído a vinte metros da estrada. Sobreviveu o furriel Pita, mas dizem-me agora que morreu no hospital de Bissau.

Às sete e meia da tarde, já noite escura, ouviu-se novo rebentamento. Ataque?!... Houve logo gente a saltar para as valas. Eu estava no meu gabinete e percebi que não se tratava de um ataque. Para os lados do porto interior cresciam chamas enormes. Peguei num jipe e avancei pela picada a grande velocidade em direcção ao porto. Um soldado quis vir comigo mas quando me viu a acelerar por ali abaixo, saltou do jipe e deixou-me sozinho. Em menos de um minuto estava junto do buracão feito pela mina anti-carro da tarde e não podia avançar mais. Logo ali, diante de mim ardiam os batelões com labaredas que subiam a mais de quinze metros. Iluminei o caminho com os faróis do meu jipe. Na minha direcção corriam meia dúzia de homens com o corpo em chamas, e gritos atrozes, lancinantes.

Os batelões transportavam umas dezenas largas de bidões de gasolina. Ora os guerrilheiros haviam deixado outra mina anti-carro enterrada no lodo do rio Manterunga. Quando a maré desceu, o fundo de um dos barcos tocou na mina que rebentou perfurando-lhe o casco. De imediato, a gasolina pegou fogo. Começaram a rebentar bidões e num ápice os três batelões que estavam juntos começaram a arder, um incêndio colossal. Os homens da tripulação e os estivadores que jantavam dentro dos barcos foram regados com gasolina, alguns deles, com os rebentamentos, foram projectados em todas as direcções.

Os homens ardiam como tochas, gritavam, vinham direitos a mim. O inferno deve se um lugar bem mais agradável do que aquelas dezenas de metros de picada com pessoas a serem consumidas pelas chamas, o ar, o escuro da noite empestado por um horrível, um nauseabundo cheiro a carne humana queimada. Despi a minha camisa e com ela tentei apagar restos do fogo que cobria aqueles homens. Meti quatro negros no carro, dei a volta com o jipe e subi, acelerando em direcção a Cufar. Uma viatura blindada Fox descia a picada com os faróis e as metralhadoras apontadas para nós.

Eram os primeiros militares que acorriam à explosão dos barcos. Gritei-lhes para pararem. Ficaram espantadíssimos por encontrarem ali o alferes Abreu em tronco nu com homens todos queimados dentro do jipe. Rodeei a Fox com dificuldade – ocupava quase toda a picada, – e em segundos cheguei com os desgraçados à enfermaria de Cufar. Foram deitados em macas e regados com água. Dois grupos de combate da 4740, bem armados, desciam entretanto para o porto interior e havia mais pessoas atingidas pela gasolina a arder, a caminho. Não era mais comigo.

Hora e meia mais tarde, com a pista iluminada pelas garrafinhas com petróleo veio o Nordatlas que transportou quase uma dezena de homens horrorosamente queimados para o hospital de Bissau. O Bastos, o médico, disse-me que apenas três tinham hipóteses de sobreviver.

Faltava alguma tripulação e estivadores. Hoje, de manhã cedo, o espectáculo era ainda tenebroso, dantesco. Os batelões continuavam em chamas e no lodo do rio Manterunga havia sete corpos carbonizados, espalhados em volta dos barcos. Os homens a arder saltaram para o lodo e morreram ali, meio enterrados na lama cinzenta. Faltavam corpos que não foram encontrados, caíram ao rio e quando a maré subiu devem ter sido levados pela corrente. Apareceu um último cadáver todo esventrado, comido pelos abutres.

Vi coisas nunca vistas e que nunca mais quero ver.

Os homens que morreram queimados ou desapareceram eram todos africanos, o que provocou algum alívio entre a tropa branca. Apenas o Jeová e o furriel Pita da Intendência eram nossos, nossos amigos.[1]

*************

[1] O soldado Rodrigo Oliveira Santos, Jeová, era natural da freguesia de Romariz, Vila da Feira; o furriel miliciano Pita da Silva nasceu no Funchal, Madeira.

[ Revisão / fixação de texto / legenda / bold a cor / título: L.G.]
__________________

Nota de L.G.:

(*) Vd. postes de:
17 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4366: Tabanca Grande (144): João Lourenço, ex-Alf Mil, PINT 9288, Cufar (1973/74)

16 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1284: A Intendência também foi à guerra (Fernando Franco / António Baia)

Guiné 63/74 - P5257: Convívios (175): Almoço da CCAÇ 557, 7 de Novembro de 2009 - Almeirim (José Colaço)


1. Texto do José Colaço, ex-Sold Trms, CCAÇ 557 (Cachil,Bissau e Bafatá, 1963/65), membro da nossa Tabanca Grande desde Junho de 2008 (*).


Almoço da CCAÇ 557, realizado em 7 de Novembro de 2009

Almeirim - Santarém


O nosso ex-capitão, hoje é coronel, só que no dia do nosso almoço leva não sei quantas “porradas” e é despromovido, voltando a ser o nosso capitão. Por um dia, com muito gosto e alegria, tanto da parte dele como dos seus então subordinados.

Foi um dia muito bem passado entre todos os presentes, só lamentamos aqueles que, pelo rodar da roda inexorável da vidam deixam de poder estar presentes fisicamente.

Para nós, eles continuam a marcar presença na nossa memória.Este ano notamos as faltas do nosso estimado Furriel Victor, bem como mais cinco ou seis elementos, segundo soubemos por problemas de saúde.A eles dedico aqui um voto, para a sua rápida e total recuperação.

Resistentes da família da C.Caç.557 (eu sou o primeiro a contar da esquerda e o nosso coronel é o 12º a contar da direita). O operador da fotografia foi a minha cara metade.

















Vista da sala do restaurante "Moinho de Vento", com o pessoal da companhia muito concentrado no serviço para o qual tinha sido convocado (comer e beber). À direita, o nosso capitão em amena conversa cavaqueira com o Valadas (ex-1º Cabo Operador Cripto), que irá organizador o nosso 23º almoço, em 2010 - Évora.















Um dos pares elegantes (vestido de escuro) o nosso capitão e a sua esposa, a fazerem o gostinho ao pé. À direita: O nosso capitão parte o bolo deste aniversário, acompanhado do Armando Alves (organizador do almoço de 2009).

As nossas "resistentes" que nos têm acompanhado ao longo da vida.

Envio também um poema, da autoria do nosso poeta e camarada Francisco dos Santos, que todos os anos nos dedica um diferente:


07/11/2009
Convívio da C.Caç. 557


Armando Alves na frente
Deste grupo pertencente,
À quinhentos e cinquenta e sete,
É hoje o realizador
Este ex-condutor,
O mil duzentos e dezassete.

Este almoço anual
Muda sempre de local,
É sempre mais um evento,
Este ano foi assim,
Reunimos em Almeirim
E no Moinho de Vento.

Eu já falei muitas vezes
Da Guiné e duros meses
Que pareciam não findar,
Com sorte e muito suor
Não fomos desta p`ra melhor
Onde outros tiveram azar.

A Guiné foi nosso fado,
Demos conta do recado
Com a união e esperança,
Beliscamos a juventude,
Com vontade e a virtude
De um grupo de confiança.

Com muitos ingredientes
Não fomos só combatentes
Num clima arrepiante.
Tivemos que aprender
Também a sobreviver,
Num ambiente escaldante.

Para a África os militares
Foram levados aos milhares
E entregues à sua sorte,
Naquela guerra viril
Foram mais de nove mil
Que encontraram a morte.

Amigos e já veteranos
Foi há quarenta e quatro anos
Que voltámos à nossa terra,
Ficou da vida de então
A amizade e recordação
Daquela longínqua guerra.

Mas esquecemos as bolanhas
Formigas e matacanhas
E esse mau estar constante,
Porque hoje a nossa G3
É a ementa que fez
Este simpático Restaurante.

(Francisco dos Santos)

Para todos um abraço,
José Colaço.
Sold Trms da CCAÇ 557


Fotos: José Colaço (2009). Direitos reservados.
____________
Nota de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em:

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5256: Tabanca Grande (186): João Bonifácio regressa em Janeiro de 2010 ao solo pátrio (Os Editores)

1. Mensagem de João Bonifácio*, ex-Fur Mil SAM (vulgo vagomestre), na CCAÇ 2402 (, Mansabá e Olossato, 1968/70), com data de 10 de Novembro de 2009:

Caro Luis.
Os meus melhores votos de saude.

Desejo comunicar a toda a Tabanca que a partir de 13 de Dezembro do corrente ano, não mais terei o sistema de internete no Canadá.
Penso regressar a Portugal depois de 35 invernos, mais frios que quentes, o que penso fazer em Janeiro.

Após a minha chegada e depois de me estabelecer e familiarizar com o ambiente, tentarei voltar ao convívio de todos. Para os que não sabem, esta é uma mudanca radical, mas penso que para o bem pois nunca pensei ficar aqui congelado para sempre.
Ficam assim todos informados, por teu intermédio Luis, o que muito agradeço.

Do mesmo modo desejo a todos um Bom Natal em companhia de todos os vossos familiares e amigos e que, como sempre dizemos, que 2010 seja o Ano Bom e cheio de saúde e amor.
Fiquem Bem.

João Gomes Bonifácio
ex-Fur Mil SAM
BCAÇ 2402/BCAÇ 2851
Guiné, 1968/70

Obrigado Luís e um Abraço de Boas Festas


2. Comentário de CV:

Caro João Bonifácio
Registamos a boa notícia do teu regresso definitivo a Portugal. Vais deixar para trás uma boa parte da tua vida, mas terás pela frente, nesta terra bem mais quente, ainda uns bons anos para gozar o devido descanso após uma vida de trabalho.

Esperamos que nos indiques na devida altura o teu novo endereço, pois não te queremos perder de vista.

Toda a tabanca te deseja um bom regresso e uma fácil integração na nova vida que vais empreender.

Retribuímos e agradecemos os teus votos de Boas Festas.

Em nome da tertúlia deixo-te um abraço
Carlos Vinhal
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 17 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4698: Depois da guerra, o stresse... da paz (2): Não foi o melhor tempo da minha vida... (João Bonifácio)

Vd. último poste da série de 5 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5216: Tabanca Grande (185): Arménio Santos, ex-Fur Mil de Rec Inf, Aldeia Formosa, 1968/70

Guiné 63/74 - P5255: A tragédia do Saltinho: o Canhão s/r 82 B10, russo, que provocou a morte do 2º Srgt A. Duarte Parente (J. Narciso / P. Santiago)

Guiné > Zona Leste > Sector L5 (Galomaro) > Saltinho > Contabane > Pel Caç Nat 53 (1970/72) > O Paulo Santiago com o canhão sem recuo 82 B-10, de origem, que esteve na origem do acidente que provocaria a morte do 2º Sargento Parente. O Paulo revisitou o Saltinho e Contane em 2005, na "viagem de todas as emoções" (*)

Foto: © Paulo Santiago (2006). Direitos reservados.

1. Comentário de Jorge Narciso ao Poste P5248 (**):

Olá, António!

Não tem este o fim de comentar o teu post (eu até nem fui nem vim de barco, pois era da FAP), antes e verificando que terás estado no Saltinho por 69/70, procurar uma eventual ajuda tua para precisar na memória um facto lamentável, que muito me marcou e do qual não fiquei com registo preciso.

Eu fui mecânico da linha da frente dos helicópteros (exactamente entre Abril de 1969 e Dezembro de 1970) e muitas vezes fui ao Saltinho (cruzámo-nos concerteza), nomeadamente na época das chuvas, para proceder a abastecimento de víveres.

Aliás, ali "festejei" os meus 20 anos, facto que, denunciado pelo piloto, "nos obrigou" a só dali sair depois dum copo (penso que de espumoso).

Com essas diversas viagens estabeleceram-se alguns laços de amizade, nomeadamente com um sargento (de quem não me recordo o nome) que é, esse sim, o motivo deste comentário.

Sei que numa determinada altura foi substituída a guarnição do Saltinho(fim de comissão ?), mas que o citado sargento, por ser de rendição individual, ali permaneceu com a nova guarnição. [ Substituição da CCAÇ 2406 pela CCAÇ 2701, em Maio de 1970].

Um dia (que também não consigo precisar) parti numa evacuação para o Saltinho (que, diga-se, não era habitual) e qual não foi a minha surpresa (e choque) quando verifico que ela se destinava exactamente ao citado sargento.

Explicaram-nos, rapidamente, ter sido ele atingido pela gravilha projectada pelo escape do canhão sem recuo, montado num dos muros do aquartelamento, que tinha sido extemporaneamente disparado por terceiro, num tiro de experiência e demonstração.

Foi, talvez, a evacuação mais penosa das incontáveis que realizei na Guiné.
Desde logo pelo seu gravíssimo estado físico (completamente crivado), pelo emocional, com a sua lúcida compreensão desse mesmo estado, finalmente porque era alguém com quem mantinha uma relação, diria de quase amizade, o que exponencia largamente o nossas próprias emoções.

Desembarcado, com as palavras de encorajamento possíveis, procurei num dos dias seguintes visitá-lo, tendo-me sido informado que tinha sido imediatamente evacuado para Lisboa.

Tendo mantido o interesse , soube muito mais tarde que não tinha resistido aos ferimentos, vindo a falecer.

Recordas ou de alguma forma tiveste algum contacto testemunhal com este caso ?

Um abraço

Jorge Narciso

2. Comentário de L.G.:

Acabei de mandar, logo a seguir, ao Humberto Reis (CCAÇ 12, Bambadinca, Julho de 1969/Março de 1971), com conhecimento do Paulo Santiago (Saltinho, 1970/72), um mail a perguntar se ele confirmava este acidente e se se lembrava do nome do sargento, com quem privámos em Bambadinca, ainda uns tempos, antes de ele ir para o Saltinho, onde estava a CCAC 2406 (1968/70)...

Lembrava-me bem dessa trágica história... e do penoso relato das circunstâncias da sua morte (no local ou mais tarde, no hospital), depois de ter sido apanhado pelo "cone de fogo" do canhão s/r disparado inadvertidamente por alguém...

Recordava-me bem de uma célebre frase que esse sargento operacional de armas pesadas (se não me engano) costumava proferir no nosso bar, em Bambadinca:
- Quando vou na rua, só paro em dois lugares: numa taberna ou numa livraria...

Aliás, tinha ideia de o Paulo Santiago já ter falado, aqui, no blogue, deste horrível acidente. Isto terá ocorrido em 1970, já no tempo da CCAÇ 2701.


3. Resposta do Paulo Santiago, ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 53 (Saltinho e Contabane, 1970/72), ao Jorge Narciso (ex-1º Cabo Especialista MMA, Bissalanca, BA 12, 1969/70, se não me engano):

Caro Jorge Narciso:

Vou tentar contar o episódio de que falas (**) , que aconteceu já depois da saída, do Saltinho, da CCAÇ 2406, a que pertenceu o António Dias [. O CCAÇ 2406, Os Tigres do Saltinho, 1978/70, pertencia ao BCAÇ 2852, com sede em Bambadinca).

A tragédia, confirmei agora a data com um camarada, deu-se no dia 13/05/70, quando já se encontrava naquele quartel a CCAÇ 2701. O 2º Sarg Parente, o militar de que falas, não pertencia a nenhuma daquelas companhias, era um dos graduados do Pel Caç Nat 53, comandado naquela data pelo Alf Mil António Mota que eu fui substituir em Outubro de 1970.

O trágico acidente resultou de um disparo ocasional do canhão S/R 82 B10, naquele dia instalado no Saltinho, mais tarde foi comigo para o Reordenamento de Contabane.

Ninguém tem uma explicação cabal para o sucedido. Havia ordens expressas para a arma estar sempre com a culatra aberta, e sem granada introduzida, parece que naquele dia havia uma granada introduzida,e a culatra estava fechada.

Como aconteceu? Junto da arma encontravam-se vários militares, Cap Clemente, Alf Mil Julião, Sarg Demba da Milícia, 2ºSarg Parente e ainda mais dois ou três militares. A arma para disparar, granada na câmara e culatra fechada, accionava-se o armador, premia-se o gatilho,acontecia o disparo. Diziam que alguém tocara com o joelho no armador e dera-se o disparo...

O 2º Sarg Parente estava logo atrás do canhão S/R, foi parar a vários metros de distância, e tu, Jorge Narciso, sabes como ele ía. Ficaram também feridos o Cap Clemente, queimaduras numa mão e virilha, e o Demba, queimaduras numa perna. Foram também evacuados para o HM.

Como dizes,o Parente morreu passado um mês. Já como comandante do Pel Caç Nat 53,recebi uma carta da viúva, pedindo-me ajuda na resolução de um qualquer problema que agora não recordo.

Foi um dia trágico no Saltinho.Isto é, muito dramático, o Parente tinha recebido naquele dia um telegrama, via rádio, informando-o que fora pai de uma miúda...e andara na tabanca a comprar uns frangos para fazer um jantar comemorativo do nascimento...

O Alf Mil Fernando Mota, da CCAÇ 2701, recebeu uma carta com a notícia que o irmão fora morto com um tiro da GF. O Sarg Demba da Milícia foi morrer no Quirafo em Abril/72 (***)... Será que o Parente ainda viu a filha antes de morrer? (****)

Apesar de não o ter conhecido, é-me penoso falar desta tragédia.

Abraço

P.Santiago

____________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 30 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P926: As emoções de um regresso (Paulo Santiago, Pel Caç Nat 53) (3): Saltinho e Contabane

Sobre o canhão s/r 82 B10, vd. também o poste de 13 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1170: Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (2) : nhac nhac nhac nhac ou um teste de liderança

(...) Também nestes primeiros dias de Novembro [ de 1970] foi um heli ao Saltinho buscar, por ordem do Com-Chefe, o canhão s/r 82-B10. Voltaram a entregá-lo em Dezembro. Tinha ido na invasão de Conacri, soubemos à posteriori.

(**) Vd. poste de 10 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5248: O cruzeiro das nossas vidas (14): Queremos o Uíge (António Dias)

(***) Vd. postes de:

18 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4046: Ainda a atroz dúvida da Cidália, 37 anos depois: O meu marido morreu mesmo na emboscada do Quirafo ? (Paulo Santiago)

12 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P955: As emoções de um regresso (Paulo Santiago, Pel Caç Nat 53) (5): O pesadelo da terrível emboscada de 17 de Abril de 1972

(****) Consta na lista dos mortos do Ultramar da Liga dos Combatentes, com o nome completo de Antóno Duarte Parente, 2º Sargento do Exército. Data de falecimento: 12/06/1970. Causa: Acidente.

Segundo a página do nosso amigo e camarada António Pires, Guerra do Ultramar: Angola, Guiné e Moçambique, lista dos mortos do Ultramar, o Parente era natural de Vale de Prazeres, Concelho do Fundão, pertencia de facto ao Pel Caç Nat 53, fora mobilizado, pelo RI 14, e está sepultado na Covilhã.

Guiné 63/74 - P5254: Memórias de Mansabá (10): Uma história de passarinhos (Carlos Vinhal)

1. Uma história de passarinhos
Por Carlos Vinhal*

Não sendo propriamente um menino da mamã, era um super protegido ou não fosse filho único, tesouro de seus pais. Tinha no entanto permissão de brincar no parque infantil que era a nossa rua. Brincava-se à vontade porque o trânsito automóvel se limitava à passagem esporádica do senhor Artur, conceituado merceeiro da zona, que tinha um belíssimo automóvel preto.

Tudo era motivo de brincadeira, o arco e a gancheta, o pião, os cabazinhos ou sameirinhas (cápsulas dos refrigerantes), a bola, uma casca de fruta ressequida para com ela jogar à casquinha, uma bola feita com meias supostamente velhas surripiadas em casa, etc, etc.

Na minha rua, no meio das brincadeiras e do alarido dos rapazes, passavam em graciosos, rasantes e velozes voos, as andorinhas-dos-beirais. Tinham, como o seu nome indica, os seus ninhos nos beirais das nossas casas que invariavelmente reutilizavam em cada Primavera. Já nos deviam reconhecer dos anos anteriores, embora notassem aqui e ali a falta de algum que já não fazia parte das brincadeiras por ter crescido. Outros que tinham vindo de novo para aquele parque infantil que na rua montávamos diariamente.

Ainda se podiam ver os pardais, pássaros menos graciosos, mais barulhentos e desajeitados que nascem, crescem e morrem em Portugal, mas que não andam em Portugal. E esta?

Havia ainda umas avezinhas muito elegantes, graciosas que se assemelhavam às andorinhas, mas mais claras na sua penugem, as lavandiscas ou chirinas, chirininhas como lhes chamávamos.

Havia ainda os pombos correios que alguns vizinhos reproduziam em cativeiro. Ao fim da tarde eram soltos dos pombais para darem umas voltas pelas redondezas para manterem a sua forma de modo a poderem competir nos fins de semana que se aproximavam.

Em matéria de aves, limita-se a estas o meu conhecimento. Nunca fui de andar aos ninhos por achar um atentado mexer nos ovinhos, uma vez que depois as mães os rejeitavam. Ir assustar as indefesas crias no cantinho do seu ninho também estava fora de causa para mim.

Esqueci-me de referir uma aves enormes que por aqui voavam, e ainda voam felizmente, dada a proximidade do mar, as gaivotas.

Deixo aqui um parênteses para dizer que as andorinhas desapareceram definitivamente desta zona. Nunca mais voltaram. Será que morreram todas e acabou a Primavera sem o sabermos?

Quem, dum meio relativamente urbano, se encontra de repente no meio dos matos de África, fica extasiado com a profusão de bicharada e de aves, particularmente. Todas as cores, tamanhos e sons. Lindo mesmo.

Nos fins de dia, quando havia oportunidade para tal, gostava de me sentar sozinho na esplanada da Messe a apreciar a passarada que ao pôr-do-sol voava por aqueles céus. Quem não se lembra da elegância do voo do jagudi lá muito no alto, aproveitando a força de sustentação do ar quente?

De entre as muitas árvores que havia no interior do quartel de Mansabá, uma se destacava pelo seu porte, com uma copa enorme, muitos metros de perímetro seguramente. Estava no enfiamento da nossa messe e situava-se junto do Posto do Administrador. Era lindo de ver a passarada em enormes bandos que dela emanava ao fim do dia. Com o cair da noite saiam em voos rápidos em direcção ao horizonte. Espectáculo que ainda hoje recordo. Que tipo de passarinhos eram aqueles que, aos milhares, voavam de noite? Não conhecia nenhuma espécie que se dedicasse ao voo nocturno, mas que os havia, havia, porque eu estava a vê-los.

Só muito tarde vim a saber, sem perguntar, que os ditos passarinhos eram, nem mais, nem menos, que bandos de morcegos que iam à sua labuta nocturna, lutar pela sobrevivência.

Os passarinhos, lá como cá, à noite refugiam-se nas árvores, os morcegos desprendem-se delas.

Mansabá, 28NOV71 > Fim da tarde de domingo, na esplanada da messe

Carlos Vinhal
Ex-Fur Mil Art.ª MA
CART 2732
Mansabá
1970/72
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 26 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4079: O trauma da notícia da mobilização (3): Calma rapaz, nem tudo há-de ser mau (Carlos Vinhal)

Vd. último poste da série de 11 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5252: Estórias avulsas (57): Funeral na Guiné – Refeição melhorada

Guiné 63/74 - P5253: Gavetas da memória (Carlos Geraldes) (11): A Enfermeira Josefina

1. Mensagem de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66, com data de 10 de Novembro de 2009:

Caro amigo:
Volto novamente ao vosso convívio com mais um conto em que misturo realidade e ficção. Não digo que os factos terão ocorrido tal e qual são narrados, mas também não digo que não tenham ocorrido em parte. A pairar deixo uma capa de ironia e benevolência para amenizar um pouco o ambiente da nossa Tabanca, por vezes tão cru e sanguinolento.

Um grande abraço do
Carlos A. G.


A Enfermeira Josefina

Protegido do sol dentro da tasca do velho Paiva, comerciante ranhoso com quem, de vez em quando, metia conversa só para que ele não pensasse que eu tinha a mania da grandeza por causa dos galões de alferes que trazia nos ombros, reparei que pelo outro lado da rua passava alguém estranho, que não me parecia ter ainda visto por estas bandas.

- Quem é aquela tipa? - Falei, eu, para o lado sem deixar de fitar a estranha aparição.

- Quem, aquela gorda? Não conhece? É a enfermeira que veio do Gabu para trabalhar no Posto, com o Chefe Barbosa. Coitado, agora que já não pode com uma gata pelo rabo, como se costuma dizer, é que lhe aparece isto - casquinou o depravado do Paiva que em tudo metia patifarias e sexo.

- Mas porquê, aquilo dá?

- Ai, isso não sei, meu alferes, antigamente diziam que sim, agora não sei. Parece que o marido a deixou. Vive só com a mãe. Para falar verdade, já está um bocado fora de prazo não está? Agora é mais banhas que outra coisa. Mas com a carestia que por aí há…, não sei se me entende. Não é de desperdiçar, pois não? - riu-se o Paiva que também se julgava um tipo cheio de piada.

Acabei de beber o whisky, desencostei-me preguiçosamente do balcão e vim até à porta, apreciar a nova habitante da aldeia que sem se dar conta da curiosidade que despertava nos basbaques, continuou imperturbável a caminhada em direcção à parte de cima da aldeia. A curiosidade era impossível de refrear e, para me certificar melhor, resolvi ir perguntar a quem deveria estar mais ao corrente do que se passava: o M. Soares gerente de uma das quatro casas comerciais que para ali estavam desterradas sem se saber porquê e para quê, tão perdidas como agulhas em palheiro.

Atravessei a rua afugentando dois ou três cães que me impediam a passagem e entrei pela outra loja, toda pintada de vermelho e branco. M. Soares acabava de atender um velho gila seu conhecido que lhe tinha trazido notícias e molhos de folhas de tabaco para mascar, vindo do Senegal. Pelo tom do discurso do matreiro comerciante e pelo resignado sorriso do velho contrabandista, pareceu-me que mais uma vez o Soares acabava de fazer um habitual acto de caridade com que costumava alimentar a sua já enorme popularidade entre a população local.

Depois de arrumar a mercadoria que tinha acabado de comprar, virou-se para mim com um enorme jarro de vidro na mão, cheio de água com rodelas de limão e cubos de gelo, que pousou no balcão.

- Sirva-se nosso alferes. O Demba acabou agora mesmo de fazer limonada. É o melhor que há para acabar com este calor dos diabos! – e enquanto dizia isto, alinhou logo dois copos limpos na nossa frente.

- Obrigado, não digo que não, mas você já sabe da novidade? Parece que temos por aí gente nova. Uma tal enfermeira que veio do Gabu. Não a viu passar?

- Ah! A enfermeira Josefina? Sim, já é habitual aparecer por aqui. Dantes vinha mais vezes, agora é que a não via há muito tempo. Vinha mesmo a calhar, não? Cuidado! Aquilo é gente difícil, por qualquer coisa de nada arranja sarilhos. Manga deles!

- Não, não! - disse eu logo muito depressa. - Foi só por mera curiosidade. Mas, diga-me, a que propósito é que a Administração a mandaria agora para aqui? Será porque, com a chegada da tropa, agora que a aldeia já tem médico, não querem deixar de marcar presença também?

- Se calhar foi por isso mesmo, alferes. Bem pensado. Aquilo lá em baixo, no Gabu é uma seita de manhosos. Têm medo que vocês lhes tirem os fregueses - respondeu o Soares com uma ampla gargalhada que se espalhou até ao outro lado da praça. E embrenhou-se numa emaranhada explicação dos meandros da Administração Civil aos quais não consegui dar muita atenção, convencido como estava que, de agora em diante, o futuro daquela gente e daqueles lugares estava, irremediavelmente, entregue ao poder da tropa, das nossas armas. Nesta guerra a autoridade civil estava condenada a passar para segundo plano. Tinha perdido o poder por completo.

Mas para não nos esquecermos da realidade social e política em que estávamos inseridos, convinha, de vez em quando, procurar entender e estar a par do quotidiano local. Um pouco de bisbilhotice faz sempre bem. Além de servir de distracção ajuda de certo modo a manter a segurança.

Aqui, neste caso particular, ninguém sabia dizer, ao certo, o porquê de ela ter vindo aqui parar. Apenas se sabia que era cabo-verdiana, enfermeira auxiliar e parece que, divorciada de facto. De pele cor de café com leite, roliça, denunciando propensão para a obesidade, resultado de uma juventude já muito vivida, sabia, no entanto, rebolar as ancas com uma sensualidade tão natural que até fazia ferver, em banho-maria, o sangue dos homens sedentos de fêmeas há longo tempo.

Quando soube que havia uma nova força militar estacionada no quartel da tropa em Pirada, não demorou muito a conseguir ocupar o lugar vago no posto médico da povoação, tornando-se desde logo unha e carne com o alferes médico, insinuando-se com aquela vozinha suave, quase inaudível, sempre disponível para o auxiliar em tudo o que fosse necessário. Daniel, o nosso alferes médico, ficou radiante pois, além de ter agora uma maior ajuda, a presença de uma enfermeira no posto médico era essencial para atender com mais facilidade e segurança as mulheres e as crianças que constituíam a maioria dos pacientes.

Agora, isso quase lhe permitia pôr a funcionar em pleno o mísero consultório médico anexo ao Posto do Chefe Barbosa, ali no meio do mato profundo da Guiné, onde nunca chegavam os progressos da ciência, quanto mais os da medicina. Sentia-se um verdadeiro Dr. Schweitzer salvando os pobres indígenas das garras das doenças que os afligiam há séculos. Para a soldadesca então, era uma verdadeira bênção celestial, tão desprovidos andavam eles de visões femininas que até pareciam vir a dar em malucos, no meio de tanto fula, com aqueles costumes fundamentalistas que os árabes têm de esconderem constantemente as mulheres de qualquer olho cobiçoso vindo de fora do clã familiar.

Sempre que a Josefina passava diante do portão da caserna, os que por ali se encontravam, até se esqueciam do que estavam a fazer, deixando geralmente o colega a falar sozinho. Comiam-na, literalmente, com os olhos.

Mas ela não dava qualquer hipótese. Apenas falava ao furriel enfermeiro, num tom o mais profissional possível, sem lhe proporcionar grandes intimidades e, claro está, com o alferes médico. Com este, desfazia-se em sorrisos e atenções.

Por mais que os soldados pusessem a correr os mais escandalosos e escabrosos boatos sobre a conduta moral dela, ansiosos por uma escandaleira bem cabeluda, nunca chegaram a provar nada de palpável e as más-línguas foram obrigadas a meter a viola no saco.

Foi então que, num desses dias, sem mais nem menos, o Antunes, o furriel enfermeiro, aproveitando o ensejo de poder falar comigo a sós, veio dizer-me que a Josefina queria falar comigo. Eu que fosse ter à casa onde ela morava com a mãe, ao fim da tarde, rematou misteriosamente.

- Mas para quê? - Respondi intrigado.

- Meu alferes, parece que ela, amanhã, se vai embora e quer fazer uma festa de despedida. Convidou o doutor é claro, e a mim, porque lhe vou providenciar umas garrafas de cerveja e whisky da messe. Queria convidar também o alferes Carvalho, mas como ele foi para Bissau, por causa daqueles problemas com as gasolinas, lembrou-se de si, talvez, não sei… Venha que não se vai arrepender, de certeza. Até vai haver baile!

Um bocado a medo lá concordei, embora naturalmente desconfiado com o inesperado do convite. O que quereria de mim? Teria engraçado comigo? Sei lá!
Quando ao fim da tarde, depois de ter arranjado uma desculpa qualquer para não aparecer ao jantar na messe, dirigi-me à casa que o Antunes me tinha indicado, mesmo ao pé do poço, à entrada da tabanca. Era uma casa rectangular coberta de folhas de zinco que se diferenciava bem das outras, tradicionais, redondas e cobertas de colmo.

O alferes médico e o furriel Antunes já lá estavam em amena cavaqueira, bebericando whiskies e cervejas. Josefina assim que me viu, com um ar meio envergonhado, tratou logo de me arranjar uma ampla cadeira de encosto dizendo-me que estivesse à vontade, que não reparasse na modéstia da casa e outras banalidades mais ou menos em crioulo ou num português atrapalhado para se fazer entender melhor.

- Meu alferes, aqui a senhora enfermeira parece que nos preparou uma caldeirada de cabrito de estalo! - Começou logo por me elucidar o Antunes, no meio de alguns trejeitos maliciosos com a boca.

- O que quer beber, alferes Geraldes, vinho, cerveja ou whisky? - Acudia de lado a cabo-verdiana, inclinando-se oferecida sobre a mesa, posta com pratos, copos e talheres, demonstrando que, pelo menos, já sabia pronunciar o meu nome.

- Cerveja, cerveja! O que estiver mais fresco, claro - balbuciei procurando parecer o mais descontraído possível, como se aquela cena fosse mais um dos habituais acontecimentos do nosso dia-a-dia. Mas o que estava a acontecer? Isto seria mesmo verdade? Não estaríamos a viver uma cena de algum universo paralelo? Só nos filmes de Hollywood é que se viam coisas assim: …intrépidos aventureiros brancos esfalfados com a sede, a serem apaparicados por gentis donzelas nativas, todas derretidas, debaixo de um providencial alpendre decorado com flores exóticas, papagaios e candeeiros de luz mortiça a proporcionar um inesquecível ambiente de sonho e romance, ao som de um mavioso ukelélé, com um belo pôr-do-sol lá ao longe

Mas neste caso, os bravos aventureiros brancos eram apenas três soldaditos de um exército ferozmente dominador, apavorados com medo até da própria sombra e a donzela era uma anafada e sorridente mulata cor de café com leite que, com a aflição de ter tudo em ordem para agradar às visitas, se esfalfava correndo de um lado para o outro, balançando os fartos seios que se adivinhavam macios sob a bata branca do seu uniforme de enfermeira.

Lá fora a noite caíra de repente e nada se distinguia além da cerca do quintal. Mesmo sem querer comecei a indagar-me sobre o que, de facto, estaríamos a fazer ali. E até porque, pensando melhor, como nos ensinaram nos manuais da anti-guerrilha, afinal estávamos em território inimigo! Em plena noite escura, mais escura que alcatrão derretido, fora das instalações do quartel sem sequer termos trazido uma única arma! Se o inimigo quisesse, poderia acabar connosco, ali mesmo, num abrir e fechar de olhos. E ninguém ficaria a saber. Será que poderíamos confiar naquela mulher? Não estaríamos a ser observados? Não teríamos caído no meio em alguma armadilha?

Mas, enquanto me embrenhava nestas e noutras angustiantes conjecturas, já o médico tinha emborcado uma série de whiskys e galhofava eufórico com o furriel Antunes. Pela cabeça dele é claro que nada de suspeito se poderia passar, o que lhe interessava mesmo, era uma boa farra!

E o furriel alinhava descaradamente! O que poderia eu fazer? Ser um desmancha-prazeres? Não, isso também não! Por isso, desta vez, façamos por esquecer todas as regras, pensei. Mergulhemos de cabeça no abismo! Que se lixasse a segurança!

E assim a noite foi passando. A caldeirada de cabrito estava de facto esplêndida. Picante como mandava a lei gastronómica do país. As bebidas sucediam-se numa velocidade estonteante. As garrafas vazias já rebolavam pelo chão fugindo à decência e ao decoro. Josefina ria-se cada vez mais solta e descomprometida, aligeirando a roupa a pouco e pouco. O calor começava a ser demais…

Sem darmos por isso, quase de repente, estávamos todos bêbados, arrastando as palavras, sussurrando confidências que não se contam a mais ninguém a não ser aos mais íntimos amigos em momentos de grande entusiasmo, quando julgamos estar numa daquelas noites especiais. Daí a pouco já nem sabíamos conversar direito. Berrávamos, e cantávamos a plenos pulmões, alarmando a impávida vizinhança que, na tabanca, se mantinha num significativo silêncio.

Queríamos era gozar, experimentar até ao máximo todas as emoções há muito imaginadas e desejadas, alcançar o esquecimento total, adormecer profundamente para depois acordarmos livres de um pesadelo que nos mantinha como que enfeitiçados.

Foi então que surgiu aquela velha, a suposta mãe talvez, que até ali se tinha mantido escondida lá para dentro, na cozinha. Gritando qualquer coisa num dialecto esganiçado que não se entendia muito bem, começou a invectivar a filha para que nos mandasse embora, que acabássemos com aquela algazarra. E teimava, ralhando cada vez mais alto, abanando-a, puxando-lhe pelo braço para a fazer levantar. Josefina, sentada de pernas abertas numa cadeira, já nitidamente alcoolizada, continuava a encher copos de cerveja uns atrás dos outros sem lhe ligar importância. Mas perante a insistência da velha, que não dava mostras de desistir, levantou-se num repelão e, violentamente, enxotou a megera atirando-a lá para dentro, com dois berros malcriados. Depois virando-se para nós balbuciou com a voz já muito pastosa:

- Pronto, acaba tudo! Ir embora. Agora cá tem mais vianda, cá tem mais bibida! Vai dormir. Vai embora, vai! Nós fica, disculpa, nosso alfero, disculpa… - repetia misturando crioulo e português, enquanto se agarrava indecorosamente ao alferes médico.

Perante uma cena destas, só podíamos concluir que as coisas estavam mesmo a descarrilar. O melhor era dar o fora antes que se fizesse tarde de mais. Fiz sinal ao Antunes dando-lhe a entender que estava na “hora di bai”, na hora da partida.

Mas e o médico? Como de costume, o nosso homem, já não se podia aguentar de pé agarrando-se sem vergonha à anfitriã que, voltando sempre para junto dele, se desfazia em sorrisos e lânguidos olhares como uma qualquer adolescente apaixonada. Era bom de se ver que aquilo não iria ficar por ali. Nem sequer se aperceberam do que se estava a passar quando nós, muito sorrateiramente, começámos a sair à francesa. Batendo cobardemente em retirada, o Antunes e eu deixámos o doutor a curar, sozinho, mais uma das suas valentes carraspanas. A enfermeira que tratasse dele!

Na atrapalhação da saída, conseguimos ainda vislumbrar a Josefina a arrastar o nosso médico para dentro de um mosquiteiro montado numa tosca cama arrumada num dos cantos da sala. Abraçados e muito bêbados, caíram um por cima do outro, arrastando o mosquiteiro na confusão.

Cá fora na placidez total do Universo, terna era noite, como diria o poeta. Para lá do círculo de luz projectado pelo Petromax pendurado na parte de fora da casa, o mundo desaparecia tragado por um enorme manto de veludo negro. Tão negro que nem os nossos próprios pés conseguíamos vislumbrar. Era impossível que assim houvesse uma guerra, com os homens tacteando no escuro, procurando apenas a paz, o descanso e a tranquilidade. Como alegres participantes num jogo de cabra-cega, lá conseguimos chegar às nossas instalações e, num silêncio comprometido, despedimo-nos um do outro.

No dia seguinte, piscando os olhos perante a luz ofuscante do sol da manhã, não pude deixar de ser interpelado pelo M. Soares, o nosso vizinho que, nitidamente à minha espera, como uma verdadeira ave de rapina, não queria perder pitada de uma novidade ou hipotética escandaleira. Do outro lado da rua disparou logo à queima-roupa:

- Ó nosso alferes, então, ontem à noite, hein? Aquilo é que foi uma pândega! Tirou o dente de misérias, seu malandro!

- Quem, eu? Olhe que está enganado, não aconteceu nada, não! Hei! Não se ponha para aí a inventar coisas! Pergunte ao Antunes se não é verdade! -apressei-me a responder-lhe enquanto me escapulia para o quartel, procurando evitar, a todo o custo, mais perguntas sarcásticas. Mas nas minhas costas, a verdade e a ficção fundiam-se já numa onda enorme avançando em todas as direcções, como um furioso macaréu ao subir o rio da foz até à nascente. Não tardou, é claro que, a invencionice e a imaginação fértil de todos nós, originasse todos aqueles mitos e delirantes fantasias que saborosamente ficaram a ilustrar mais um episódio marcante da nossa passagem por estas paupérrimas terras africanas. As grandes façanhas nasceram sempre assim.

Da apaixonada Josefina não soube mais nada, nem nunca mais a vi. Quanto ao alferes médico, esse, continuou alegremente a embebedar-se sem se lembrar de nada.

Inesperadamente, na semana seguinte, fui destacado com o meu Grupo de Combate para Paúnca e por lá fiquei até ao fim da comissão.

Carlos Geraldes,
Viana do Castelo
Nov.2009

Pirada, AGO65 > Cap Barão da Cunha, Cap Tadeu, Alf Médico Duarte e Alf Mil Geraldes
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5078: Gavetas da memória (Carlos Geraldes) (10): Como descobri o jogo do Ôri

Guiné 63/74 - P5252: Histórias de José Marques Ferreira (10): Funeral de 'homem grande', refeição melhorada... da tropa


1. O nosso Camarada José Marques Ferreira, que foi Sold. Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462, Ingoré - 1963/65 -, enviou-nos com data de 7 de Novembro de 2009, a seguinte mensagem:

Funeral na Guiné – Refeição melhorada

É um bocado tétrico, arrepiante até, fazer disto um poste e logo com tal título. Mas a verdade é que vivi os momentos de um funeral na Guiné, de cuja participação tivemos «direito» a… bifes.

Não estou a brincar com coisas sérias. Eu explico melhor, embora com deficiências memoriais provocadas pelos quarenta e tal anos que passaram.

Então vamos aos pormenores.

Já estava há bastante tempo na Guiné, na localidade de Ingoré. Como se sabe, lá como noutros territórios limítrofes, são abundantes as etnias. Cada uma tem os seus princípios, os seus costumes, as suas lendas e crenças, a sua vida…

Na única estrada que atravessava a localidade, na direcção nascente - poente, para os lados de Sedengal, onde estava um pelotão da minha companhia, logo a seguir ao pontão da bolanha que ficava à saída de Ingoré, havia uma tabanca. Já não recordo como se chama, ou chamava.

O que eu sei é que tivemos conhecimento que havia falecido, ali, um «homem grande» daquela tabanca. Penso que foi a um domingo.

Como naquela guerra o domingo era respeitado, como dizia o saudoso Raul Solnado paravam-se as hostilidades, um grupo de camaradas nos quais eu me incluía, resolvemos ir ao funeral… do morto (que raio de redacção esta!).

Não fomos munidos de G3, porque era muito perto e, como eu já disse, a guerra estava fechada, levávamos apenas algumas facas de mato. Mais tarde concluímos que foi o que fizemos de melhor.

Chegados à tabanca, havia muita algazarra, como era próprio nestas alturas e nestes acontecimentos (e não só), quando fomos confrontados com a oferta de enormes e bem apetecíveis peças de carne.

Não houve meias hesitações. Facas metidas na tenra carne, já não me lembro bem, se de bovino, se de vitela (que raio de confusão) e toca de carregar com elas até ao aquartelamento. Um surpreendente pitéu que iria fazer as delícias de um bom almoço, ou jantar, de bifinhos.

Recordo-me que uma das peças era a pá, parte das pernas (de vitela ou de vaca, bolas, seria de boi? Isto hoje está muito mau… era carne e pronto!)




Estava a brincar, para vos explicar que realmente fomos ao funeral e que não viemos de mãos a abanar, fazendo-me recordar alguns hábitos ainda correntes nalgumas regiões do nosso país, onde as famílias dos falecidos oferecem comida e bebida aos acompanhantes dos actos fúnebres.


Naquela etnia, que já não sei qual é, mas se houver alguém que saiba, pedia-lhe o favor de intervir, todos os bens do falecido devem ser distribuídos, sejam galinhas, porcos (algumas etnias não comiam carne de porco, por exemplo, os Mandingas), gado bovino e tudo o resto, segundo creio.


Porque a riqueza daquela gente é medida, não pela quantidade de dinheiro que detém, mas pelo número de cabeças de gado que possui!


Penso que será de frisar, por que nem sequer o sabíamos, que não fomos visitar a família do falecido por causa de obtermos a carne. Mas que ela veio mesmo a calhar, porque a abundância não reinava para aquelas bandas, disso jamais me esqueci.


Pena foi que ninguém tenha tirado uma fotografia da oferenda, para agora confirmar, por imagem, o que acabo de vos contar. Bolas…


Para todos um abraço,
J.M. Ferreira
Sold Ap Armas Pes


Foto: José M. Ferreira (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em:

10 de Novembro de 2009 >
Guiné 63/74 - P5249: Estórias avulsas (56): Um tiro que tapou o sol na Ponte Marechal Carmona (Joaquim Mexia Alves)