1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira (JERO), foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/66), enviou-nos mais uma das suas histórias (a 25ª), com data de 15 de Dezembro de 2009:
Honore causa cura milagrosa!
Esta crónica terá que ser contada em três tempos…
A expressão (3 tempos) não quer dizer que tenha sido “tiro e queda”…Vai demorar algum tempo .Principalmente para mim que tenho que a escrever…
Mas para não perder mais tempo vamos ao “primeiro tempo”.
1) Guidage-meados de Abril de 1965.
Na minha qualidade de “Enfermeiro de Guerra” (1) - só há pouco tempo é que soube que o tinha sido – acompanhei um pelotão da CCaç. 675 numa nomadização a Guidage.
Entre as várias peripécias militares de uma “estadia” em cima da fronteira com o Senegal tive que aturar um Furriel Atirador, de nome Luís Moreira, que me ia pondo louco com uma dor de dentes. O Moreira, que era um dos melhores operacionais da Companhia, era um caguinchas no Posto de Socorros. Gemia, chorava, barafustava, agarrava a boca, não conseguia comer nada e carpia que nem uma Madalena.
Passei uma noite praticamente com o gajo ao colo. Gemia, gemia e apesar de comprimidos e injecções o Moreira não conseguia pregar olho de qualquer espécie… Obviamente que eu tinha a “terminação” de todas estas dores e começava a ficar pior que o doente.
Para abreviar… a dor de dentes começou a afectar de tal maneira “a moral das tropas “que o Capitão Tomé Pinto resolveu pedir uma DO para levar o Moreira para o Hospital.
Está claro que nesta decisão pesou o facto de o Luís Moreira ter sido até então um dos militares mais sacrificados em termos operacionais, nunca regateando esforços em quaisquer circunstâncias.
Era dos que “ia a todas” e o Capitão Tomé Pinto tinha-o (merecidamente) em alta conta.
Portantos – como diz o outro – lá veio a Dornier e o Moreira e a sua dor de dentes foram de avião para Bissau.Este registo ficou-me na memória e pouco mais…Uma pouca à margem “da dor de dentes do Moreira” mas em relação a Guidage lembra-me de nessa altura – ou um pouco mais tarde – O Capitão Tomé Pinto ter ido com um pelotão, onde ia por acaso o “Enfermeiro de Guerra” Oliveira, ao Senegal.
É verdade. Passámos a fronteira com o Senegal umas centenas de metros “para o lado de lá” para “mostrar” a quem nos moía o juízo de vez em quando que andávamos “por ali”. A expectativa da “operação relâmpago” ao Senegal excedeu as expectativas do nosso Comandante de Companhia …pois demos de caras com uma patrulha regular da tropa senegalesa.
A aproximação fez-se com alguma cautela e não há que esconder que na altura se viveram alguns momentos de tensão. Recorda-me de se ter chegado à fala com o oficial que comandava a patrulha do “país amigo” – e de o nosso Capitão ter mostrado carregadores de armas muito parecidas com as que os militares senegaleses usavam. E esses carregadores (vazios) tinham sido recolhidos do nosso lado, junto a Guidage, depois de ataque nocturno ao nosso aquartelamento.
Já não sei bem mas julgo que foi em francês que este diálogo ocorreu. A nossa passagem para o lado do Senegal tinha acontecido “por engano” mas que seria bom que as tropas senegaleses estivessem atentas à infiltração de grupos armados que atacavam as nossas posições.
Se não foi em francês que nos entendemos teria sido “meio por meio” em dialecto ético e com a ajuda do nosso guia Malam “Griffon” Sissé. Virá a propósito recordar que no mosaico populacional da Guiné (e Senegal) se falavam cerca de vinte “línguas”!
2) Lisboa- meados de Novembro de 2009
Depois de quase um ano sem ver o Luís Moreira encontrei-o em casa do nosso amigo comum Belmiro Tavares de seu nome, que tinha sido o ex-Alferes Tavares do 3º. Pelotão da CCaç. 675, a que pertencera o ex-Furriel Moreira.
Na almoçarada que se seguiu recordei aos circunstantes a noite das dores de dentes de Guidage. «Não imaginam o que este sacana me fez passar já lá vão mais de 40 anos. Uma noite sem pregar olho com este maricas ao colo a gemer com dores de dentes!».
O Moreira respondeu de imediato. «É pá e não fazes ideia como essa história acabou.».
Não sabia mas percebi que ia saber logo a seguir. E o Moreira contou. À sua maneira: exuberante e bem disposta.
«O sacana do piloto que me foi buscar a Guidage foi o Honório. Mal entrei na avioneta o gajo perguntou-me se eu já tinha andado alguma vez de avião. Disse-lhe que tinha nascido dentro de um.
- É pá, ainda bem que não tens medo pois hoje apetece-me fazer umas piruetas.
E o sacana levantou voo, diz o Moreira. No minuto seguinte senti-me de cabeça virada ao contrário. E depois de cabeça para cima. E depois de cabeça para baixo. Filho da puta. Fez tantas maluqueiras que eu só não me caguei todo porque já não comia há três dias. Grande maluco.
Quando vi Bissau e o gajo aterrou…parecia que tinha nascido outra vez. Pisei o chão e levei as mãos à boca. Não me doía nada. Já não tinha a boca inchada e a dores de dentes tinha passado completamente.
Já não sei como fui para Bissau. Sei que procurei um restaurante que era de um gajo da minha terra (da região de Vila Real). Comi que nem um alarve. E repeti. Tive vergonha de pedir mais comida e saí (depois de pagar). Andei mais uns metros e entrei numa tasca onde comi mais uma travessa de ostras.
E “prontos”. Tinha que ir para o Hospital e fui.
«Então o que é você tem? – perguntou o médico.
O Moreira, embora novo, já a sabia toda e resolveu contar tudo, omitindo apenas o facto de já ter almoçado nesse dia duas vezes.
- O senhor Doutor não vai acreditar mas neste momento não me dói nada. Tive tanto medo na viagem de Guidage para Bissau com o maluco da DO que me trouxe que…já não me dói nada.
- É pá vou ter que lhe arrancar um dente qualquer se não você ainda leva uma porrada. Então é evacuado de urgência e agora diz que não lhe dói nada!?
- Senhor Doutor é a pura das verdades. Se tem que ser, arranque-me aí um dente lá para trás.
E arrancou.
O Moreira ainda esteve mais uns dias em Bissau .Encontrou sem dificuldades o Sargento – aviador Honónio e ainda andaram numas “tainas”.Que eu não vou contar.
Depois desta segunda parte da história fiquei a olhar para o Moreira sem palavras. Este tipo se não é único deve andar lá perto.
Mas “prontos”. Acreditei…mas ainda havia de tirar umas dúvidas que me assaltavam…
3) Alcobaça – princípios de Dezembro de 2009
Numa terra pequena não é difícil encontrar quem quer que seja. E eu sabia bem onde é que havia de encontrar a Drª. Manuela Frois, médica dentista. Tomámos um café no “Forno”, pastelaria do único Centro Comercial da terra, e contei-lhe a história das dores de dentes do Moreira. E do “milagre” que seguiu à viagem atribulada com o Honório.
A Drª. Manuela conhece-me bem e não teve dúvidas em dar-me o seu “parecer”, que escrevi na altura para não me esquecer de nada.
«Com a subida do avião registou-se um aumento da pressão que ajudou a alterar as condições locais da inflamação. O medo das acrobacias do piloto causou também uma natural subida da adrenalina que fez desaparecer a dor.»
E no seu jeito despachado disse-me para terminar a minha consulta: «Juro que acredito».
Ora toma lá ex-Enfermeiro de Guerra. O “Honore” (1) causou mesmo uma cura milagrosa. Foi uma ajuda vinda dos céus!
Termino esta crónica citando (e felicitando) o Alberto Branquinho, pelo brilho e justeza das suas palavras na postagem de 22 de Setembro de 2008 (P 3224):
"… Na Guiné era conhecido (pelo menos pelo seu nome) por toda a tropa rastejante. Sempre que uma coluna era sobrevoada a baixa altitude por um FIAT, desaparecendo imediatamente para além das copas das árvores, os soldados rompiam aos gritos de: “AH HONORE!“ ou de: “- AH HONORO!”, enquanto agitavam os quicos por cima das cabeças."
…
«Quem é que está lá em cima? É o Honório, quem havia de ser! O Honório, naqueles anos, era mais que um piloto, era um símbolo, representava a ajuda vinda dos céus. Não é de estranhar que tudo o que voasse fosse "pilotado" pelo Honório. Camaradas que com ele voaram nos anos 1968/1970 sustentam que, nesses anos, pilotava "apenas" as Dornier-27.»
Esta crónica era para ter sido contada em três tempos.
Não sei se o foi. Se calhar foram quatro.
Foi muito gratificante recordar o Honore. O Honoro. O Honório que ainda hoje recordo quando um pequeno avião me passa por cima da cabeça esteja onde estiver.
Quarenta e tal anos depois… as memórias (citando Manuel Amante da Rosa)… por mais dolorosas que possam ter sido, que não sejam apagadas...
... mas se possam erigir numa teia que envolva ainda mais todos os que nasceram, viveram ou tenham passado pela Guiné .
Nós estivemos lá.
(1) - Recordamos aqui uma corruptela do nome do Honório que encontrámos no nosso blogue graças a uma postagem de Alberto Branquinho (P.3224). Nesta crónica queremos também prestar o nosso humilde contributo em jeito de Homenagem ao mítico piloto aviador cabo-verdiano que tantas missões cumpriu na Guiné, indo a lugares onde mais ninguém ia (ver postagem 5105, de 14 de Outubro de 2009)
Um abraço,
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em: