quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5831: Patronos e Padroeiros (José Martins) (8): Portugal - Santo António - Tenente-Coronel Taveira Azevedo



1. Mensagem de José Marcelino Martins (ex-Fur Mil, Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), com data de 15 de Fevereiro de 2010:

Boa tarde
Mais um texto sobre santos e militares.

Um abraço
José Martins



Patronos e Padroeiros - VIII

Tenente-Coronel Taveira Azevedo


Fernando Martim de Bulhões e Taveira Azevedo, nasceu em Lisboa – presume-se que na zona da Sé – filho de Martim de Bulhões e Maria Teresa Taveira Azevedo, no dia 15 de Agosto de 1195 (data oficialmente reconhecida).

Em Portugal reinava D. Sancho I (o Povoador - 2.º Monarca Português – 1185/1211), e o país preparava-se para entrar no século XIII. Estávamos na Baixa Idade Média. Lisboa expandia-se para fora dos muros, começava a surgir uma nova classe social formada pelos burgueses, e ainda se sentia o Espírito das Cruzadas.
Começou a estudar nas aulas ministradas na Igreja de Santa Maria Maior, hoje Sé Catedral de Lisboa.

Cerca do ano de 1210 ou 1211, pela mão do prior D. Estêvão, ingressa como noviço na Ordem dos Cónegos Regrantes de Santa Cruz de Coimbra, que tinham uma das suas casas instalada no Mosteiro de S. Vicente de Fora, em Lisboa, um dos centros mais importante de cultura medieval, à época, onde realizou os estudos de Direito Canónico, Filosofia e Teologia.

Mais tarde, em 1220, com a chegada a Portugal dos corpos de cinco mártires franciscanos, que tinham sido decapitados em Marrocos, decide transferir-se para a Ordem de São Francisco, recolhe-se no Eremitério dos Olivais, em Coimbra, e muda o seu nome para António.

A seguir segue para Marrocos onde, devido a doença grave, os Superiores da Ordem decidem repatriá-lo. Na viagem de regresso, por força de uma tempestade, o barco é arrastado para as costas da Sicília, onde acaba por ficar.

Continuando a sua vocação evangelizadora, percorre várias localidades, destacando-se Bolonha, Toulouse, Ferrara, Florença, Varene, Bréscia, Milão, Verona e Nântua. Entretanto, durante algum tempo, foi-lhe confiada a guarda do Convento de Puy-e-Velay, da Província de Limoges e da Província da Romanha, mas deixou, para se dedicar, em exclusivo, à pregação. Pregou, em 1228, na Basílica de São João de Latrão, em Roma, perante o Papa Gregório IX (de seu nome Ugolino di Anagni, nasceu cerca do ano 1160 em Agnini e faleceu em Roma e 22 de Agosto de 1241 – o seu Pontificado, o 179.º, decorreu entre 1227 e 1241), volta para Pádua onde, bastante doente, veio a falecer a 13 de Junho de 1231, tendo sido sepultado na Basílica de Pádua.

O Papa Gregório IX, antes de decorrido um ano após a sua morte, eleva-o à honra dos altares, canonizando-o na Catedral de Espoleto em Itália, no dia 30 de Maio de 1932, ficando conhecido por Santo António de Pádua, por ter sido esta cidade que acolheu as suas relíquias. Como nasceu em Lisboa, por tradição, também é conhecido por Santo António de Lisboa, sendo venerado não só na capital, mas em todo o país e em quase todas as regiões do globo.

Em 1946, o Papa Pio XII (de seu nome Eugénio Maria Giuseppe Giovani Paceli, nasceu em Roma em 2 de Março de 1876 em Agnini e faleceu em Roma e 9 de Outubro de 1958 – o seu Pontificado, o 261.º, decorreu entre 1939 e 1958), pela Carta Apostólica “Exulta Lusitanis Fidelis” proclama-o Doutor da Igreja, considerando-o “exímio teólogo e insigne mestre em matérias de ascética e mística".
A sua festa religiosa comemora-se no dia 13 de Junho, com liturgia própria.

Santo António de Lisboa
Imagem da colecção de Maria Manuela Martins
Foto © José Martins



Mas, na realidade, depois de muito brevemente ter lembrado o Frade e o Santo, vamos lembrar o militar.

Passou a fazer parte do Exército Português, em 1665, a partir do momento que é incorporado, por iniciativa de D. Afonso VI (o Vitorioso - 23.º Monarca Português – 1656/1683) que o mandou “assentar praça” no 2.º Regimento de Infantaria de Lagos, sendo integrado nas Forças que, comandadas pelo Marquês de Marialva, davam combate ao exército espanhol comandado pelo Marquês de Caracena. A iniciativa deu resultado, tendo as tropas portuguesas vencido os seus opositores.

O facto curioso é que, quase quatrocentos e trinta e cinco anos após a sua morte, é incorporado como soldado combatente e não como capelão ou “assistente espiritual”, dada a religiosidade do Santo e a veneração dos fieis.
No reinado de D. Pedro II (o Pacífico - 24.º Monarca Português – 1683/1706) é promovido a Capitão e no reinado de D. Maria I (a Piedosa - 27.º Monarca Português – 1777/1816), promovido a Tenente-Coronel e condecorado com a Medalha Cruz da Guerra Peninsular (*), a título de recompensa pela vitória alcançada pelas tropas luso-britânicas, na Batalha do Buçaco, travada em 27 de Setembro de 1810, contra as tropas francesas de Napoleão, sob o comando de André Massena. O soldo vencido como militar, servia para ajudar os soldados doentes.

Paralelamente no Brasil, ainda colónia portuguesa, José de Souto Maior, Governador da Capitania de Pernambuco, faz o Santo assentar praça nas milícias luso-brasileiras, durante as lutas contra o Quilombo dos Palmares (**).

Por carta régia de 21 de Março de 1711, D. João V (o Magnânimo - 25.º Monarca Português – 1706/1750), promove-o a Capitão pelos relevantes serviços prestados sob o comando de Francisco de Castro Morais, Governador da Capitania do Rio de Janeiro, contra a invasão dos piratas de Jean-François Duclerc.

O Príncipe-regente D. João, já na Bahia, confere-lhe a patente de Tenente-Coronel, com o soldo correspondente ao posto 80$000 (oitenta mil reis), até que em 1911, durante a presidência do Marechal Hermes Rodrigues da Fonseca (8.º Presidente do Brasil – 1910/1914), este deu indicação ao General Emídio Dantas Barreto (ministro da Guerra entre Novembro/1910 e Setembro/1911), para suspender o pagamento do soldo ao Santo.

O Tenente-Coronel Santo António entra, com toda a certeza, em outras guerras, batalhas e combates transportado, não só no coração mas na mente de muitos combatentes que, devotadamente, transportavam pequenas imagens no seu espólio pessoal, em pagelas com orações votivas ou em medalhas, presas no interior da sua farda, e benzidas pelo pároco da freguesia.

José Marcelino Martins
15 de Fevereiro de 2010

(*) Medalha Cruz da Guerra Peninsular

A Cruz da Guerra Peninsular foi uma condecoração criada em 28 de Junho de 1816, pelo rei D. João VI, para distinguir os participantes nas campanhas da Guerra Peninsular entre 1809 e 1814. As campanhas eram contadas por anos, bastando ter participado numa batalha ou combate, para contar como um ano,

Para oficiais:
Ouro – para os Oficiais que participaram em quatro ou mais campanhas,
Prata – para Oficiais que participaram até três campanhas.

Para Sargentos e Praças:
Prata, sendo limitada a sua atribuição por cada unidade:
200 por cada Regimento de Infantaria de Linha;
100 por cada Regimento de Milícia;
120 por cada Batalhão de Caçadores;
25 por cada Esquadrão de Cavalaria;
30 por cada Brigada de Artilharia;
25 por cada Companhia de Artífices Engenheiros.

Em 18 de Maio de 1825, foi criada a Cruz da Guerra Peninsular para os empregados civis. Em prata para até 2 campanhas, ou Ouro, para 3 ou mais.

(**) Quilombo - Esconderijo no mato onde se refugiavam os escravos..
__________

Nota de CV:

Vd. último poste de José Martins com data de 6 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5775: Efemérides (44): O desastre de Cheche, 41 anos depois(José Martins)

Vd. último poste da série de 8 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5423: Patronos e Padroeiros (José Martins) (7): Transmissões - Arcanjo S. Gabriel

Guiné 63/74 - P5830: Controvérsias (66): A questão colonial (II): Colonização portuguesa - Particularidades (Descolonização e Conclusão) (José Brás)

1. Segunda e última parte do trabalho do nosso camarada José Brás*, iniciado no poste 5826**, sobre o tema "A questão colonial".


A Questão Colonial (II)
Colonização portuguesa - Particularidades

José Brás

DESCOLONIZAÇÃO


- descolonização se chama com frequência à passagem da soberania portuguesa para as mãos dos movimentos de libertação que nesses territórios se bateram durante anos de armas na mão, perante a falência das suas tentativas de negociação e à intransigência de Lisboa para organizar uma saída equitativa e digna.

- e desde logo nos aparece como realidade que não pode ser escamoteada, o facto aqui assinalado das específicas condições, tempo e formas da colonização portuguesa e as diferenças que demonstra no cotejo do que foi o colonialismo de outras potências europeias.

- abusando um pouco da imagem, pode mesmo assumir-se com algum cuidado, que, afinal, portugueses em Angola, nem colonialistas foram, antes, sem prejuízo da existência de excepções, gente pobre e de fraca formação que buscava em outras terras o que na sua lhe era negado há séculos, remetidos, cá e lá, a vidas muito duras e sem horizontes, despejados em território imenso e rico mas sem preparação nem meios de explorar os seu recursos e assistindo à sua própria exploração por empresas cujas sedes se encontravam fora de Angola, algumas em grandes grupos económicos nacionais, e muitas mesmo, fora das fronteiras portuguesas.

- colonialistas seriam, portanto, outras potências que ocuparam macivamente outros territórios na América, na África e na Austrália, e aí, usando a sua superior capacidade económica e técnica, delapidaram recursos e os exportaram para as sua metrópoles, deixando tais territórios exauridos, ainda que a população local com preparação suficiente para governar.

- é um facto conhecido que… em Angola circulavam crescentemente capitais estrangeiros que iam deitando mão dos principais recursos do território, ainda que a par de algumas empresas nacionais, todas, salvo erro, com sedes em Lisboa;
na guerra que era sustentada à custa de sacrifícios extremos do povo português, jogavam papel importante potência estrangeiras com interesses locais, uns na exploração de recursos, outras pensando deitar a mão a bom bocado, outras ainda na luta por hegemonias e domínio global, estratégicos do ponto de vista político, militar e económico, algumas delas jogando papel duplo, apoiando os dois lados da contenda, às claras ou mais dissimuladamente, transformando o território num palco de operações subterrâneas pelo domínio, onde jogavam principalmente russos e americanos, bem como suecos, franceses, italianos, entre outros menores.

- Portugal que havia sido escasso colonizador, ficou no meio desse jogo, participante menor e sem a mínima capacidade de influenciar, sobretudo em Angola, jóia da coroa, dividida em três movimentos de libertação com origens e programas (ou a ausência deles) diferentes e opostos, e mesmo esses movimentos, profundamente divididos e enfraquecidos dentro de si próprios, presas fáceis desse jogo internacional que já se jogava antes de 74 e que passou a ocupar o pano todo da mesa do casino e das cartas marcadas.

- em 74, éramos em Lisboa, um país devastado pelo esforço da guerra em três frentes, crescentemente exigente em meios materiais e humanos, à beira dos limites, e em África quase só gastadores dos recursos do orçamento metropolitano, com milhares de militares do quadro cansados da guerra em comissões sucessivas, sempre afastados das famílias; muitos mais milhares de oficiais e sargentos milicianos, muitos absolutamente contrários à guerra e fazendo-a em nome dos restos da consciência de Pátria, outros recusando-a, pura e simplesmente, centenas de milhares de soldados jovens arrancados às famílias e à produção de riqueza possível no território metropolitano, e um regime despótico já com marcas claras de divisão dentro de si próprio e sustentado apenas em uns tantos ultras e na polícia política.

- é este quadro que marca cá dentro, o mesmo tipo de acção que os movimentos de libertação haviam seguido antes, igualmente sem qualquer tipo de saída política para os problemas internos do País e para a solução da questão colonial, e é neste quadro que parece legítimo ler e entender o caos que se gerou em Lisboa e o outro muito maior que envolveu os portugueses residentes nas colónias.

- a chamada descolonização não aconteceu nunca porque descolonização tem que ser entendida como um processo em que as partes acordam entre si um estatuto de preparação de quadros e regras e de transferência progressiva do poder para novas formas de organização política dos locais em descolonização.

- e o que aconteceu de facto, está muito longe de configurar processo aproximado a esse ideal. Destapou-se apenas a caixa de Pandôra e de todos os malefícios nela acumulados durante séculos, aqui e lá, no simulacro de negociações só possíveis porque os movimentos de libertação tinham pressa de tomar o poder e ajustar as suas contas, e os responsáveis portugueses tinham pressa de descascar a batata quente.

- no centro de tudo isto, sem esquecer a sacrificada população local, coloquem-se aqui os portugueses, gente engajada na vida local de uma terra que consideravam sua porque nela tinham projectado o seu futuro, gerado e feito crescer os seus filhos, amealhado o que a sua capacidade permitia em bem-estar e meios, e que de um momento para o outro, sem compreender as razões de um povo que acabava de libertar-se de 50 anos de repressão e atraso, se vê expulsa dessa terra pela ameaça suprema sobre a sua vida e a dos seus, encaixotada em aviões e barcos grandes e pequenos, e caindo quase apenas com a roupa que trazia vestida numa terra a que já não se sentia ligada.

- e a verdade de cada um é a que cada um apreendeu do quotidiano e se consolidou no hábito prolongado e não contestado, adquirindo um estatuto perene e, aparentemente, imutável.

- a verdade destes portugueses é a que lhe aparece como traição dos militares e dos políticos de Lisboa que os abandonaram sem capacidade de se defenderem das ameaças nem organização própria que suportasse uma participação em pé de igualdade com as organizações da população local, na construção dos destinos daquela terra.

- a alegada descolonização não passa, neste quadro, por parte dos colonos brancos e de muitos negros que estavam do nosso lado, de uma fuga atribulada e massiva perante a completa impotência de se opor ou de participar no crescer da realidade nova e sem esperança de reversão da situação, sobretudo a partir da derrota do exército da África do Sul e de mercenários internacionais, entre eles, alguns proeminentes portugueses, e da constatação segura de que os Acordos de Alvor, assinados pelos três movimentos angolanos com discursos de exaltação da unidade, não passavam para nenhum deles de simples compasso de espera para se prepararem e ajustar contas com o passado e com o futuro.

- em relação aos militares portugueses ainda presentes no terreno até ao dia da independência, ainda que não seja de esquecer que poderiam com um pouco de habilidade, coragem e predisposição, ter feito bem melhor, a realidade ficou muito claramente expressa a partir do momento em que se assumiu que a guerra acabara e que a volta a casa se faria quanto mais depressa melhor e que para isso era necessário entregar o poder ou os poderes, fosse a quem fosse, e é seguro que as simpatias quase generalizadas e almirantizadas, seguiam na direcção do MPLA.

- como diz João Paulo Guerra no seu livro “O Regresso das Caravelas”, fomos o primeiro Império Colonial em África e também o último.


Sintetizando…

- a colonização e a descolonização dos territórios encontrados e ocupados a partir do século XV, têm uma relação muito claramente correspondentes nas formas, nos tempos, nas densidades da ocupação e nas características culturais dos colonizadores;

- as terras mais rápida e densamente povoadas; por grupos de cidadãos entre os quais abundavam técnicos e quadros com formação mais elevada, depressa se encontraram contrastados nos seus interesses individuais e de grupo pelas exigências metropolitanas, mais rápida e eficazmente se organizaram, reclamaram e obtiveram independência total sob poder branco e, quase sempre, no massacre das populações locais;

- as terras de ocupação posterior, em zonas de África mais temperadas, obtiveram uma autonomia progressiva e negociada sob a direcção de governos dos colonos mas com tomada do poder mais tarde pelas populações locais;

- as terras da África do norte e central, como a Argélia, Angola, Quénia, Moçambique, etc., tiveram ocupação mais tardia e menos densa e por populações brancas de menor preparação e aptidão técnica que ficaram sempre numa grande dependência militar e administrativa das respectivas metrópoles, não foram nunca capazes de se organizar como força reivindicativa credível para receber a transferência de poderes, e acabaram sem influência nas acções que levaram à independência e sem lugar nos respectivos aparelhos de Estado. Exceptua-se a esta regra, o caso do Zimbabwe, que teve um governo branco num pequeno período e logo desalojado pela acção das populações negras.


CONCLUSÃO

Como facilmente se constata, Portugal está incluído no terceiro grupo, isto é, no caso em que os colonos não foram capazes ou não quiseram organizar-se atempadamente para reivindicar a sua autonomia política e se viu confrontado com o nascimento de movimentos emancipalistas dos colonizados e sem a participação dos europeus ou dos seus descendentes, ainda por cima, recusando a negociação e preferindo a guerra prolongada e, no caso de guerras deste tipo, sem esperanças de vitórias definitivas, e geradoras de sofrimentos e de ódios crescentes e do consequente bloqueio das saídas para o problema.

É simplista a argumentação de que não houve nem racismo nem colonialismo português, baseada apenas na circunstância de condições específicas da colonização portuguesa e dos seus agentes directos, os colonos.

É igualmente simplista o argumento de que a culpa foi do 25 de Abril em Lisboa, dos militares cobardes e dos políticos que negociaram a transferência do poder.
O 25 de Abril era inevitável, necessário e só pecou por tardio face a um poder despótico, prolongado e constrangedor da modernização do País;

Os militares portugueses contabilizaram 13 anos de guerra, 820.000 jovens mobilizados, 8.831 mortos, 30.000 feridos, 15.000 deficientes e mutilados, e uma multidão de cidadãos que ainda hoje sofrem sequelas da sua participação no conflito.

Os políticos que negociaram a transferência do poder, fizeram-no no centro de um turbilhão que envolvia os interesses internacionais em jogo, a pressão popular gerada na metrópole contra a continuação da guerra e na iminência do paradoxo que era a conquista da liberdade e da democracia em Lisboa e a manutenção da guerra contra os movimentos de libertação que, previsivelmente, iriam aumentar a sua oposição armada contra a presença portuguesa, agora ainda mais legitimamente e mais apoiada internacionalmente.

De facto, o verdadeiro culpado do drama da descolonização nas suas formas e consequências particulares e globais, na destruição de milhares de vidas organizadas em África, do prejuízo de todas as partes envolvidas e do seu futuro civilizacional, foi o regime que cegamente se fechou ao movimento da história, ao exemplo dado por outras potência coloniais e a uma visão de alcance e de futuro, desencadeando uma guerra de 13 anos e, em muito boa parte, as guerras que se seguiram nos antigos territórios coloniais.

Pretender ignorar isto e buscar bodes expiatórios naqueles que, com maior ou menor grau, foram também vítimas, não parece razoável, nem pronuncia, nesta parte, o futuro de harmonia e de calma indispensáveis a este País.

Nota:
Os quadros apresentados, bem como a motivação e alguns considerandos, são colhidos no trabalho Ideologia Nacional dos Brancos Angolanos, de Fernando Pimenta, apresentado no VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, realizado em Coimbra em Setembro de 2004, com propósitos mais detalhados sobre uma leitura do fenómeno indiciado no título desse trabalho, propósitos, como é evidente, diferentes dos que dão forma a este texto.

Aconselham-se os leitores deste trabalho a consultarem tal documento que pode ser encontrado no site http://www.blogger.com/www.ces.uc.pt/lab2004/inscricao/pdfs, ou enviado a partir do meu endereço electrónico a quem manifestar desejo de o ler.

Aconselha-se ainda a leitura do livro "Angola, os Brancos e a Independência", igualmente de Fernando Pimenta, Edições Afrontamento, “O Regresso das Caravelas” de João Paulo Guerra, Oficina do Livro, “Passagens para África”, "O Povoamento de Angola e Moçambique com Naturais da Metrópole", de Cláudia Castelo, Edições Afrontamento, e outras obras de investigação independente sobre o fenómeno aqui abordado.

JB
__________

Notas de CV:

(*) José Brás foi Fur Mil na CCAÇ 1622 que esteve em Aldeia Formosa e Mejo nos anos de 1966/68, autor do romance "Vindimas no Capim", Prémio de Revelação de Ficção de 1986, da Associação Portuguesa de Escritores e do Instituto Português do Livro e da Leitura.

(**) Vd. poste de 16 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5826: Controvérsias (65): A questão colonial (I): Colonização portuguesa - Particularidades (Introdução, Colonização e Ocupação) (José Brás)

Guiné 63/74 - P5829: Da Suécia com saudade (21): O privilégio de ter a Tabanca Grande... em comum (José Belo)

1. Texto do José Belo, solitário (por enquanto...) habitante da Tabanca da Lapónia, com data de 16 do corrente


Assunto: O aniversário do nosso blogue (*)

Depois de décadas sem visitar o nosso querido Portugal..., atrevi-me a aparecer no primeiro encontro da Tabanca do Centro. (**)

Fui recebido por todos, não como um amigo, mas como um IRMÃO. Sem nunca nos termos encontrado, conversado, ou sequer visto... TÍNHAMOS EM COMUM A TABANCA GRANDE!

De diferentes idades,de diferentes zonas do País, de diferentes origens e experiências sociais, com interesses e referências diferentes, por certo situados em campos políticos não iguais... TÍNHAMOS EM COMUM A TABANCA GRANDE!

Para mim, chegado do outro extremo da Europa, tão mais "longe em tudo" do que gostamos de admitir, e sem as mesmas maturações de mais de três décadas de acontecimentos em casa como as que teriam tido a maioria dos presentes, mesmo assim, neste reencontro, sentí-me em família. Porquê?... TÍNHAMOS EM COMUM A TABANCA GRANDE!

Já por muitos de nós foi referido o papel único de união que este blogue tem tido, para além de ser um incrível repositório de acontecimentos, documentos e experiências pessoais, ser também único, ao oferecer referências a locais e situações que foram compartilhadas em diferentes períodos, por diferentes observadores, com origens sociais e geográficas diferentes, com diferentes níveis educacionais, e com sensibilidades, também, obviamente, diferentes.

O TER EM COMUM A TABANCA GRANDE também tem servido para mostrar a cada um de nós, não estarmos sós nas nossas memórias e experiências traumatisantes da guerra. A mina que matou o meu Camarada e Amigo, repetiu-se em centenas de outras minas que rebentaram junto a outros Camaradas de outros Amigos. Locais onde desesperei. Locais de angústias e isolamentos... foram também compartilhados por outros... antes e depois de mim.

Este sentimento, este reconhecimento de que afinal... não estávamos sós (nem hoje o estamos!), nas nossas recordações, nos nossos pesadelos, nas nossas frustraçoes por tantos sacrifícios inúteis... veio ajudar a grande maioria a fazer as pazes com a Guiné... com a guerra... e principalmente com nós próprios.

por isso, o BLOGUE, o seu criador, os colaboradores, e nós todos, irmanados na Guiné, estamos de parabéns... por TERMOS EM COMUM A TABANCA GRANDE!

Kíruna
16 Fev 2010

José Belo (***)
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Notas de L.G.:

(*) Vd. postes de:

15 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5819: O 6º aniversário do nosso Blogue (3): No início de Maio de 2006, tínhamos 100 tertulianos, 735 postes publicados e 3 mil páginas visitadas por mês (Luís Graça)

14 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5815: O 6.º aniversário do nosso Blogue (2): Homenagem ao Fundador Luís Graça e a toda a tertúlia (Joaquim Mexia Alves)


13 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5807: O 6.º aniversário do nosso Blogue (1): Homenagem ao Fundador Luís Graça e a toda a tertúlia (Jorge Félix / Carlos Vinhal)


(**) Vd. poste de 30 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5728: Convívios (177): 1.º Encontro da Tertúlia do Centro, aconteceu no dia 27 de Janeiro de 2010 em Monte Real

(***)´Vd. último poste da série: 23 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5693: Da Suécia com saudade (18): Um Lusitano entre as...renas (José Belo)

Guiné 63/74 - P5828: Memória dos lugares (70): Pensão Central ou Pensão da Dona Berta: Faço parte da mobília, almoço lá há 25 anos sempre que estou em Bissau (Patrício Ribeiro)

1. Mensagem do nosso amigo Patrício Ribeiro (foto à direita, quando grumete fuzileiro, em 1969, em Angola)(*), com data de 9 do corrente:


Olá,  Luis!

Agradeço o envio para comentário, P5788 do Beja Santos (Não sei como se faz )

Tendo lido o P5788 do Beja Santos, informo que a D. Berta embarcou para Bissau, no início de 2010, após ter estado uns meses em Lisboa, a fazer tratamentos hospitalares e felizmente tudo correu bem.

Ela no aeroporto estava muito contente, mas cheia de saudades de Bissau, dos seus amigos e da sua casa, a Pensão Central.

A Pensão Central continua a ser um local de encontro de amigos, com ambiente familiar; tem as paredes cobertas de Condecorações, tal como do Presidente Mário Soares, do Presidente Pedro Pires, etc. Com fotos de quem por lá passou e gostou, gente importante e outros só amigos.

As netinhas, cooperantres das ONG, com muito carinho, vão ajudando na gestão da Pensão. Fotos minhas não há nas paredes, como dizem as netinhas; faço parte da mobília, só porque almoço lá sempre que estou em Bissau há 25 anos…
Um abraço a todos.

Patricio Ribeiro

________________

Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 12 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5099: História de vida (16): Patrício Ribeiro, 62 anos, ex-fuzileiro, empresário, apanhado do clima...

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5827: Convívios (187): Ex-militares do BCAÇ 2845, no dia 1 de Maio de 2010 em Buarcos (Albino Silva)

1. Mensagem de Albino Silva* (ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845, Teixeira Pinto, 1968/70), com data de 15 de Fevereiro de 2010:

Caro Camarada Carlos Vinhal
Aqui vou de novo dar-te mais trabalho, mas sei que adoras trabalhar para todos os Tertulianos como eu.

Assim gostaria que adicionasses na nossa Tabanca Grande, a data de mais um Convívio a realizar este ano, e do qual faço parte da Organização.

Como embarcámos para a Guiné no dia 1 de Maio de 1968, decidimos organizar nosso Encontro deste ano, no dia 1 de Maio já que comemoramos 40 Anos do nosso regresso.

O Convívio vai ser realizado em Buarcos, no Restaurante Tamargueira.

Irão estar presentes três Companhias do Batalhão de Caçadores 2845:

CCS, "Armados para a Paz", que esteve em Teixeira Pinto

CCaç 2366, "Periquito Atrevido", que esteve em Jolmete

CCaç 2367, "Vampiros", que esteve no Olossato


Lembramos que a CCaç 2368 não estará presente por terem marcado desde o ano passado o seu próprio Convívio.

Iremos pois estar todos presentes e juntos na mesma sala.
O bolo de aniversário será único com os Emblemas das 3 Companhias.

A Organização para este grande ronco é a seguinte:

Albino Silva e Mário Guerra, da C.C.S.
Jorge Costa da 2366 e
Antero Simões da 2367


Ficha de inscrição - Clicar para ampliar

Brevemente enviaremos cartas a toda a malta, e os que tiverem acesso aqui à nossa Tabanca Grande, desde já podem ir informando outros desta data e Encontro.

Desde já obrigado pela atenção, um grande abraço para toda a equipa, e ainda para todos os Tertulianos.

Albino Silva
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 14 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5646: Bibliografia de uma guerra (55): Armados Para a Paz, de Albino Silva

Vd. último post da série de 10 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5800: Convívios (101): IV Encontro dos ex-combatentes da Guiné do Concelho de Matosinhos, dia 6 de Março de 2010 (Carlos Vinhal)

Guiné 63/74 - P5826: Controvérsias (65): A questão colonial (I): Colonização portuguesa - Particularidades (Introdução, Colonização e Ocupação) (José Brás)

A Questão Colonial (I)
Colonização portuguesa - Particularidades

José Brás*


INTRODUÇÃO


Este texto não pretende construir-se como abordagem científica ao grande tema da colonização portuguesa em África, trabalho, evidentemente, afastado das possibilidades académicas do seu autor, do método e dos meios de que está armado e só à disposição de investigadores na área da história, da sociologia e da antropologia, dispondo de tempo, de vontade e de um projecto adequado.
Portanto, qualquer tentativa de cotejo com estudos e trabalhos existentes ou sentidos como necessários, será dispensável por perda de oportunidade, razão e lógica.

A sua organização e apresentação aparece como consequência de uma intervenção prolongada do autor no blogue luisgraçaecamaradasdaguiné, sobre caso da Guiné em particular, e, inevitavelmente, sobre a temática geral da guerra colonial, campo onde se dividem opiniões construídas, não apenas sobre a questão restrita da guerra e das forças em presença, sobre as possibilidades de vitória ou de derrota, mas também sempre que é abordado o tema particular da descolonização, nas suas formas, tempos e consequências para Portugal, para os portugueses desalojados de África e mesmo para os novos países nascidos do desenlace.

Em especial, um comentário proposto por uma participante do blogue, viúva de militar português que esteve presente no campo de guerra da Guiné-Bissau, comentário e resposta cujos textos fazem parte do post 5754** e que por isso não parece necessário que se incluam aqui.
A resposta à questão colocada pela amiga, denota a preocupação por uma realidade presente no caso cultural português, bem como por uma visão sobre a possibilidade da existência de uma verdade e de uma razão múltiplas, construídas segundo experiências diferenciadas de cada protagonista das histórias de que se compõe a história do fenómeno social, económico e politico da colonização e da chamada descolonização.

Para o autor, parece de todo impossível construir-se uma verdade significativa e una sobre a descolonização e as suas sequelas, sobre a honradez de propósitos, o patriotismo e os valores humanos dos intervenientes directos na descolonização, políticos e militares, sem termos uma visão aproximada do processo de colonização desde as descobertas e das primeiras ocupações, do desenvolvimento civilizacional, das estruturas económicas que foram sendo instaladas progressivamente, e sobre o consequente relacionamento dos colonos com a população negra e com a metrópole de onde provinham.

Neste propósito, talvez demasiado alto em relação com os meios disponíveis, o autor avança, em primeiro lugar sobre a sua visão pessoal acerca do assunto, honestamente confessado como indissociável das suas opções sociais e princípios morais, e depois, na recolha de alguns dados e informação genérica em trabalhos de mérito existentes sobre o assunto.


COLONIZAÇÃO E OCUPAÇÃO

- a história ainda não abordou completamente a questão da colonização/descolonização na perspectiva dos papeis da potência colonizadora em geral, nem do colono branco, visto individualmente ou como grupo, quer no relacionamento com os naturais –negros e mestiços, quer dos brancos entre si e no relacionamento social, político e administrativo com Lisboa.

- especialmente, não o fez de forma simplificada e organizada de modo a torná-la clara para a grande massa dos cidadãos que, de uma ou outra forma, sofreram as consequências do fenómeno social nos diversos campos envolvidos.

- um facto a reter como inegável e independente da opinião de cada um, é a existência da colonização em si própria, com todos os ingredientes da prática colonial e da história registada –ocupação e exploração da terra, subalternização da população local, formação de uma estrutura social hierarquizada no que se refere a direitos e acessos aos bens tangíveis e intangíveis, existência de racismo mais ou menos acentuado. Negar tal fenómeno ou as suas partes óbvias e inevitáveis, será sempre um exercício próximo da troca de uma imagem subjectiva pelo real.

- a despeito do início de uma ocupação permanente de Angola por portugueses ter começado relativamente cedo com a fundação de Luanda em 1576, a ocupação do território limitou-se durante os séculos seguintes à orla costeira e próxima dos aglomerados –Luanda e Benguela, só se consolidou em épocas mais avançadas e de modo significativo já no século XX após guerras de grande violência contra a população negra e com a fundação da cidade costeira de Mocâmedes, e de Sá da Bandeira nas terras altas de Huíla, no Sul do território. Só no advento de nova vaga de colonizadores, nasceram outros aglomerados no interior, como Nova Lisboa (Huambo) e Malange.

- a colonização de Angola por portugueses, como a de outras zonas da África Central e do Norte por outras potências coloniais, diferiu significativamente da colonização na América, sobretudo pela relativamente baixa quantidade de colonos em África, comparando com o que se passou na América. Tais diferenças acabaram por determinar variações substanciais no comportamento sócio-político-administrativo dos colonos respectivos, em relação com o Poder e com a soberania dos seus países de origem.

- enquanto na América os colonos cedo fizerem sentir a sua discordância em relação às consequências económicas de uma exploração colonial que os prejudicava, e ao seu próprio desejo de expansão nos territórios e da formação de um poder local adequado aos seus interesses de grupo, interesses cada vez maiores e mais afastados dos interesses da pátria longínqua, em África isso não se fez sentir, nem tão cedo, nem com tanta veemência. Veja-se o caso do Brasil, para ficarmos apenas no âmbito português.

- mesmo em África, registavam-se diferenças importantes de caso para caso e de região para região, sendo muito maior em número e em ocupação, a presença de colonos ingleses na África do Sul do que na Rodésia, e de portugueses em Angola e em Moçambique, como se conclui no quadro seguinte, construído em evolução temporal.




- na ocupação e colonização das terras descobertas, podem também distinguir-se três períodos diferenciados e de cujas diferenças resultaram também diferentes consequências. O primeiro período envolve vagas de colonizadores portugueses, espanhóis e ingleses, na América onde os colonos conseguiram a independência dos respectivos territórios nos finais do século XVIII e início do século XIX. A segunda vaga envolveu terras de domínio britânico como a África do Sul, o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia, onde os colonos obtiveram formas de autonomia progressiva sob o domínio da população branca nos finais do século XIX e o início do século XX. O terceiro período abrange regiões do norte e do centro de África, entre elas Angola e Moçambique, Zimbabwe e Quénia, colonização muito mais reduzido em número de colonos brancos que pela fragilidade do seu número não consegui nunca qualquer forma de poder pela minoria branca, desembocando todos em independências conquistadas por populações locais, de forma mais ou menos violenta, exceptuando o caso especial e curto da Rodésia.

- outra diferença substancial entre as formas e o número de colonos envolvidos, bem com a dimensão das áreas ocupadas inicialmente, sendo uma limitada, como a portuguesa e espanhola na América Latina e na África central, incluindo Angola e Moçambique; outra substancial, como a inglesa na África do Sul e maciça com a eliminação quase total das populações e das culturas locais, como nos Estados Unidos, Canadá e Austrália, países que conquistaram rapidamente autonomia económica e independência política sob o domínio branco.

- outro facto que marca a realidade das colonizações inglesa e portuguesa, diferenciando-as com consequências no relacionamento local branco/negro e no relacionamento de brancos e de negros com a metrópole colonizadora. Enquanto a Inglaterra enviava para as suas colónias um número significativo de técnicos e dirigentes capacitados para tomar conta das questões ligadas à administração, à exploração dos recursos e à formação da mão d’obra local, Portugal retardou quanto pôde a emigração dos seus cidadãos para África, e quando não pôde evitá-la, enviou sobretudo gente de escassa formação técnica, e maioritariamente agricultores iletrados, saídos de vidas muito duras e pobres do nosso interior extremamente atrasado.

- tais diferenças explicam em grande parte, em primeiro lugar a forte consciência sobre a necessidade de autonomia dos colonos brancos ingleses e dos seus descendentes nascidos em África, e em segundo lugar a formação de uma consciência de nação e de reivindicação de autonomia por parte da população negra, enquanto nas colónias portuguesas foi sempre muito frágil esse fenómeno, quer da parte dos colonos brancos agarrados à santa terrinha, quer da população local, carecida dos líderes que a levassem à contestação.

- nas colónias inglesas fortemente ocupadas, a independência total com formação de novos países chegou cedo, tal como no Brasil no caso português; nas colónias inglesas não tão densamente povoadas, a autonomia foi progressiva e liderada por brancos, e nas colónias menos povoadas, foram os movimentos formados no interior da população negra, já mais educada, que reivindicaram e obtiveram a sua independência

- no caso português, é verdade que se ensaiaram alguns movimentos de colonos brancos para contestarem leis e regras da metrópole que consideravam prejudiciais aos seus interesses, e mesmo em direcção à discussão e organização de uma reivindicação mais marcada pelo desejo da autonomia e criação de governo local, porém, sempre esses movimentos demonstraram uma enorme fragilidade de organização e total incapacidade para concretizarem tal desejo em força.

- as sociedades nas colónias portuguesas sempre se mostraram fortemente divididas e hierarquizadas de acordo com conveniências e consciência de grupos distintos e de interesses também diferentes. Essa divisão, tal qual na metrópole, pôde manter o mesmo tipo de atraso e complacência perante um chefe duro, inimigo do desenvolvimento e fortemente ligado a uma religiosidade repressiva das mentes, tudo montado sobre uma ideia que punha Portugal e os portugueses como que destinados por Deus para conservarem a pureza dos costumes e a fidelidade ao céu.

- as sociedades nas colónias portuguesas estavam clara e fortemente divididas entre brancos, mestiços e negros e pela duplicidade das marcas dessa divisão, uma, apropria raça, brancos e negros, e outra, a circunstância da naturalidade que dividia ainda os brancos nascidos em África, chamados de euro-africanos, e os brancos chegados de Lisboa, considerados superiores aos naturais.

- na base dessas sociedades estavam os negros que apenas serviam de mão d’obra barata, e mesmo estes divididos em “assimilados” ou “indígenas”, pelo menos até à extinção do Estatuto do Indigenato, em 1961. Apenas os assimilados, 1% da população total, beneficiavam de cidadania portuguesa, sendo todos os outros apenas mão d’obra forçada.
Entre os negros e os brancos desenvolveu-se uma classe de mestiços que serviam de criados e noutras tarefas administrativas sob a direcção de brancos.

- os brancos superiores (brancos europeus) ficavam pelas cidades costeiras, criavam empresas de import-export, eram construtores civis, funcionários superiores de empresas cujos donos residiam fora de Angola, quadros administrativos enviado pelo governo de Lisboa.

- os “brancos de segunda” (população branca africanizada), viviam no interior, eram agricultores e comerciantes e sentiam com maior rigor a dureza das regras metropolitanas pelo choque dos interesses com os intermediários de Luanda e com o poder económico colocado fora do território.

- coisa que muitos portugueses um pouco mais evoluídos culturalmente mas apertados pelas más condições de vida que o atraso em que o regime mantinha e queria manter o País, frequentemente perguntavam quando pretendiam embarcar para Angola e lhe era negada essa possibilidade, era, porquê Portugal não fazia como Inglaterra e abria a emigração para as colónias a precisarem de desenvolvimento?

- provavelmente não sabiam que estavam com tal pergunta a contestar um dos fundamentos de um regime que se pensava nacionalista, temente a Deus, conservador dos bons e velhos costumes da obediência (manda quem pode, obedece quem deve ou se soubésseis o que custa mandar, preferíeis obedecer toda a vida), inimigo da educação escolar (mandou fechar a Escola do Magistério Público e substituiu a falta de professores por escolarizados com a 4ª classe e apregoava que um cidadão para ser feliz bastava saber fazer as 4 operações – dividir, multiplicar, diminuir e somar), defensor de um bucolismo rural profundo e de uma sociedade conduzida por cabo-chefe, regedor, presidente da junta e da câmara, tudo observado de perto pela polícia política e pelos safanões frequentes.

- não era tal política propícia ao desenvolvimento das colónias quando o não queria na metrópole As colónias seriam apenas as fotografias de um passado glorioso, invocado frequentemente não pelo seu lado mais positivo e brilhante como contributo ao desenvolvimento do mundo, mas como prova dos desígnios de um deus no verso das aspirações e dos direitos humanistas.

- daí que, exceptuando o exemplo do Brasil, envolto em razões idênticas às das colónias inglesas na América, Portugal nunca tivesse aceitado negociar, primeiro com colonos europeus, como fizeram outras potências coloniais, nem depois com os movimentos de libertação nascidos no seio das sociedades africanas negras, recusando o exemplo da criação de novos países e reprimindo com brutalidade qualquer demonstração de protesto, e mais tarde, sob a capa de invasão estrangeira invejosa da nossa grandiosidade, e da afirmação que eram apenas acções de polícia contra bandidos armados, a guerra de guerrilhas desencadeada no extremo das tentativas desses movimentos para negociar.

- de facto, para além de uma ou de outra tentativa de organização de colonos brancos com o objectivo de reivindicar mais autonomia e direitos, tentativas frágeis e esmagadas, nunca os brancos em Angola, de modo eficiente e claro, mostraram qualquer capacidade para organizar a reivindicação de tais propósitos, e menos ainda, a construção de uma qualquer ideologia e estrutura que os unisse contra a metrópole.

- e se não o foram capazes entre si, divididos profundamente e digladiando interesses diversos e diferenciados, que atitude poderiam apresentar perante uma população negra que conservavam iletrada e forçada, senão a da postura de superioridade racial e o tratamento da gente apenas como mão d’obra fácil e subjugada?

- evidentemente, tratando-se de um quadro global, isto não invalida as relações amistosas e humanas de um caso ou outro, individual e isolado, consequência de postura cultural e humana individual e sempre olhada com reprimenda por vizinhos e pelo sistema.

- aliás… que deverá chamar-se ao envio de negros moçambicanos, embarcados como gado em vagões de comboio, para trabalharem nas minas da África do Sul, de onde uma parte nunca voltaria, embora tivessem dado grossos capitais em ouro ao regime e ao Estado na metrópole?
Que deverá chamar-se à utilização de milhares de negros em Angola na exploração algodoeira na baixa do Cassange, reprimidos brutalmente pela aviação portuguesa perante protestos no limite do suportável?

- colonialismo e racismo não poderiam viver um sem o outro e, apesar das aparências de uma observação empírica e directa poderem fazer crer o contrário, não era menos colonialista nem menos racista o colonialismo português, antes pelo contrário, porque imposto por brancos menos preparados do ponto de vista académico e profissional que deixavam ao negro apenas as tarefas mais duras e menos exigentes do ponto de vista do saber.

(Continua)
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Notas de CV:

(*) José Brás foi Fur Mil na CCAÇ 1622 que esteve em Aldeia Formosa e Mejo nos anos de 1966/68, autor do romance "Vindimas no Capim", Prémio de Revelação de Ficção de 1986, da Associação Portuguesa de Escritores e do Instituto Português do Livro e da Leitura.

Vd. último poste de José Brás de 13 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5808: Lembrando um dia duro, obrigado e fortíssimos abraços a todos (José Brás)

(**) Vd. poste > Guiné 63/74 - P5754: (Ex) citações (52): Falando de descolonização com Filomena Sampaio (José Brás) de 13 de Fevereiro de 2010

Vd. último poste da série de 8 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5791: Controvérsias (64): Os efeitos colaterais da guerra (Mário Gualter Rodrigues Pinto, ex-Fur Mil At Art da CART 2519)

Guiné 63/74 - P5825: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (5): São Domingos, 21 de Julho de 1961: É o princípio do fim, Benedita

Guiné > Bolama >  Agosto de 1935 > "Guarda do Palácio do Governador. Foto de Manuel Emídio da Silva, no âmbito do 1º Cruzeiro de Férias às Colónias de Cabo Verde, Guiné, S. Tomé e Princípe e Angola, uma inciativa da revista O Mundo Português,  que juntou cerca de duas centenas de "estudantes, professores, médicos, engenheiros, advogados, artistas, escritores, industriais e comeriantes"... O Director Cultural do Cruzeiro foi o Dr. Marcelo Caetano.  Esta "revista de cultura e propaganda, arte e literatura coloniais", era dirigida pro Augusto Cunha, sendo propriedade da Agência Geral das Colónias e do Secretariado da Propaganda Nacional.




Guiné > Bolama > Agosto de 1935 > A chegada do vapor Moçambique, com os participantes do 1º Cruzeiro dee Férias às Colónias.


Fonte: O Mundo Português, Vol II, nºs 21-22, Setembro-Outubro de 1935 (Exemplar oferecido ao nosso blogue por Mário Beja Santos; fotos digitalizadas e editadas por L.G.; reproduzidas com a devida vénia).



1. Pré-publicação de excertos do próximo livro do nosso amigo e camarada Mário Beja Santos, Mulher Grande. Trata-se da terceira parte do Capº III(*):



Mulher Grande > III > A Guiné em chamas ou o “Tubabo Tiló”
por Mário Beja Santos




[III. 5]  Décimo terceiro solilóquio

Sinto-me um pouco mal com tantas interrupções que introduzo na narrativa da Benedita (**). Caí na asneira de lhe dizer que os poucos relatos que encontrei na Net são discordantes quanto ao número de feridos, até mesmo quanto à natureza dos estragos daquele ataque. Ficou furiosa, como se todos os outros pudessem duvidar da tragédia daquela noite e das suas implicações. Devem ter sido noites horríveis. É nestas descrições que eu mais aprecio o seu fio de memória, como narra os acontecimentos que a mais afectaram, a descrição que faz sobre a luz apagada à noite, o desaparecimento das pessoas, a chegada de uma tropa que vinha pouco convencida da possibilidade de um ataque.

O Albano procurava sacudir a pressão bebendo uísque, fumando e trabalhando naquelas questões da habitação que tanto o interessava. A Benedita também não esqueceu que acabou por ser influenciada pelos interesses do Albano e deu consigo a ler um calhamaço intitulado “A habitação indígena na Guiné Portuguesa” que lhe fora oferecido por um colega do Albano, Amadeu Nogueira. É preciso estar à beira de uma guerra, disse-me ela em tom trocista, para ler atentamente coisas como a casa dos Felupes e Baiotes, considerados em S. Domingos como os melhores construtores de casas em taipa, trabalhando para outras etnias como verdadeiros construtores.

A Benedita mostra-me uns papéis desbotados onde ela transcreveu o que lhe pareceu mais relevante. Leio o seguinte: as casas rectangulares são mais frequentes; a cobertura de todas as casas é feita sempre com palha; todas as casas possuem a sua varanda, cuja largura varia entre 1,50 e 2 metros, mas só na traseira; serve de sala de jantar para a mulher, de cozinha e de depósito de lenha; é aqui que se encontram os cachos de chabéu, cujo óleo há-de condimentar o arroz; a casa de Felupes e Baiotes dura uma vida e é demolida quando o seu proprietário morre; algumas casas apresentam exteriormente pinturas murais, geralmente zoomórficas e a tinta preta.

Estas palhotas têm portas fabricadas de uma só peça, geralmente em madeira de poilão, com 60 cm de largura, sendo sinal de grande desconsideração arrancá-las, indicando que os restantes elementos da povoação pretendem expulsar o proprietário; as janelas, quando as há, são pequenos rectângulos de cerca de 40 cm de cumprimento por 20 cm de largura, defendidos por pau de grossura de uma polegada; a iluminação é dada pela lenha que acendem no chão; o mobiliário reduz-se a uma cama que existe em cada quarto dos adultos, é nestes quartos que se podem encontrar bancos conhecidos por tripeças; as prateleiras são orifícios cavados, de cerca de 60 cm de cumprimento.

É espantoso como o ser humano descarrega a sua tensão transcrevendo num papel as suas impressões sobre as casas dos Felupes e dos Banhuns que ele vê todos os dias!

Interrompo a leitura destas folhas descoloridas para perguntar à Benedita se antes deste tiroteio de madrugada não houvera quaisquer outros sinais de agressão. Ela respondeu-me que sim, tinha havido uma tentativa de incendiar pontões entre S. Domingos e Bissau (havia 18). Tinha-se descoberto uma tentativa de incêndio de 2 pontões só que a chuva apagou o fogo.

Quando olhei, surpreso, a Benedita ela disse-me com a maior das naturalidades: “Não se esqueça que estávamos em Julho, naquela região Norte chove intensamente nesse tempo. Aproveitou para me recordar que havia uma grande lealdade das populações de S. Domingos com o Albano, ele era querido por todos, os seus próprios colaboradores da administração encarregavam-se de divulgar como ele era incorrupto, incapaz de uma maldade ou brutalidade.

Depois da sua vinda de Ziguinchor, onde assistiu à manifestação contra a política colonial portuguesa, o Albano reuniu-se com as famílias dos chamados civilizados, a todos contou que estava iminente um ataque. Reuniu também com a secção da tropa branca que fora mandada apresentar-se em S. Domingos depois do incêndio dos 2 pontões. A Benedita não recorda o nome de ninguém, lembra-se que havia um Alferes, que a tropa dizia muitos palavrões, era muito ruidosa, levantou muitos problemas no contacto com a população civil. Não resisto, peço-lhe todos os pormenores daquela noite do ataque, a noite que anunciou o princípio das hostilidades na Guiné.


Mais recordações da Benedita (décimo terceiro trabalho de casa)

Há 3 meses atrás, o assunto da Guiné era para mim um dossiê completamente arrumado, não me passaria pela cabeça partilhar com quem quer que fosse recordações tão queridas, íntimas e intensas, como o dia do meu casamento, o prazer que tive em viver em Bissorã, a admiração progressiva que fui ganhando ao Albano, ele foi um funcionário colonial exemplar, também considerava que era tabu o que eu vi em brutalidade no tratamento dos nativos.

Aprendi muito quando voltei a Lisboa, em 1963, apercebi-me que as pessoas só me ouviam porque tudo era exótico, mas era-lhes indiferente o modo como os guineenses viviam, a sua cultura, os seus costumes. Nunca me atrevi a contar a ninguém os comentários dos soldados brancos em S. Domingos, referindo-se àquelas gentes como se fossem uns atrasados.

Admiradora que sou da obra de Salazar, naquele tempo comecei a perceber que a revolta que veio depois tinha a ver com a necessidade de justiça e mais bem-estar. Tive o privilégio de conviver com Amílcar Cabral, era um homem de cultura superior, conhecia a literatura portuguesa como eu não conhecia, houve um serão em que falou de José Régio e de Miguel Torga, fiquei impressionada com os seus conhecimentos, a sua estatura moral.

Continuo indecisa acerca da utilidade deste relato. Eu fechei o dossiê da Guiné, é-me indiferente que tenha sido a FLING ou o PAIGC a atacar S. Domingos. Nunca tinha sentido qualquer tensão, qualquer comentário hostil à nossa presença na Guiné. É claro que vi muitos maus-tratos, havia claramente racismo, julguei que fosse tudo uma questão de tempo, a nova geração de brancos viria com outros sentimentos e certamente com muito mais amor cristão. O Albano e tantos outros funcionários exaltavam o trabalho do comandante Sarmento Rodrigues que eles consideravam o grande Governador da Guiné do século XX. Só vim a conhecer o Sarmento Rodrigues quando o Albano teve o primeiro ataque de coração e ele nos veio imprevistamente visitar. Fiquei com a noção de que se tratava de um homem superior, uma alma de eleição e que merecia os elogios do Albano.

Perdi todas as minhas memórias daquele tempo, os cadernos, os livros, as fotografias, tudo desapareceu. É a minha memória que esvoaça numa tremenda escuridão. Aquela noite do ataque alterou tudo, sobretudo o Albano tornou-se noutra pessoa, irei ouvi-lo vezes sem conta: “É o princípio do fim, Benedita, não tenho coragem de mudar de profissão, já me ofereceram lugares em Angola e S. Tomé, cheguei aqui imberbe, aprendi línguas, todos os rudimentos da administração colonial desde a tarimba, conheci homens muito estudiosos da mesma maneira que convivi com exploradores miseráveis, alguma da gente mais sórdida que há ao cimo da Terra. Não sei o que é que vou fazer deste amor que tenho pela Guiné. Talvez o melhor seja refazer a nossa vida na Europa”.

A doença acelerou esta previsão amarga. Em 1963, regressámos de armas e bagagens, o Albano doentíssimo, eu sem saber se não era necessário trabalhar, sabíamos que a pensão dele iria ser baixíssima. De 1961 a 1963, vi todos os dias o Albano, amargurado, a despedir-se da Guiné, a obra da sua vida.

E começa o ataque!
Não sei se já lhe disse, eu recusei partir com os civilizados, pedi mesmo ao Albano que a tropa branca recém-chegada ficasse a viver na administração, ficaram aquartelados em instalações improvisadas e combinou-se que, no caso de um ataque ao edifício da administração, nós iríamos pedir a protecção a esta tropa. Tínhamos 2 pistolas e havia na administração umas armas do tempo da 1ª Guerra, umas armas de repetição que já ninguém utilizava. Penso que foi na tarde de 20 de Julho que chegaram 2 funcionários para fazer o recenseamento, mas que logo ficaram contagiados pela grande tensão que havia entre nós. Mal sabiam eles o que os esperava!

Recordo que cerca de um mês antes do ataque tinha lá estado um dos administradores da Casa Gouveia, um tal engenheiro Norberto Velez, que olhou para as nossas coisas, os nossos haveres na casa e fez o seguinte reparo: “ Vocês não podem ter todos estes objectos à mostra, pode ser mais uma razão para eles vos assaltarem e esquartejarem!”. O Albano replicou que não queria mostrar medo, não aceitava mexer em nada. Mas, tempos depois da partida deste engenheiro Velez, ele reconsiderou e enviou encaixotados muitos dos nossos objectos pessoais para Bissau. Então, senti uma grande angústia. Fiquei despojada de muitos dos meus objectos, que me faziam tanta companhia, sentia-me praticamente uma reclusa.

Bom, vou voltar ao princípio do ataque, escusa de voltar a perguntar quem era o grupo, quem estava por detrás deles, eu não sabia, ninguém me deu informações, em Bissau, como verá mais adiante, ninguém me falou nessa FLING, falavam sempre em terroristas.

O Albano tinha combinado connosco como se iria organizar a defesa, cada um de nós tinha sempre a roupa à mão, a arma ao pé. O Albano não aceitava as instruções dos militares, isto é, de irmos a correr até ao aquartelamento deles, logo que começasse o tiroteio. Dizia-me frequentemente: “Estão doidos, fazem contas de cabeça, julgam que isto é aritmética, imaginam um pequeno grupo de selvagens, mal equipados e armados a dar uns tirinhos, quem sabe se não aparece aí um grupo bem armado que nos vai dizimar ou esquartejar. Não, Benedita, nós iremos a correr para o mato, conheço tudo como as minhas próprias mãos, ali não nos apanham”.

Eu ouvia isto tudo e estremecia, a pensar nas cobras e andar aos tropeções dentro da mata, a imaginar uma perseguição e ser morta à catanada. Mas eu confiava absolutamente no Albano e não me atrevia a pôr objecções. Então, pelas 2 da manhã, mais ou menos ouvi o primeiro tiro, partiu da mata em direcção à nossa casa, o Albano deu o grito: “Eles aqui estão!”, eu sei que isto não tem pés nem cabeça mas senti uma sensação de alívio, fomos todos até à varanda, de pistola em punho, quando digo nós incluo todo o pessoal da administração.

Continuo sem saber os termos militares, só posso contar aquilo que vivi, com os meus conhecimentos. Eles atiravam da mata para casa, senti as balas perfurar as paredes, a partir as telhas, a desfazer os vidros. Eu olhava na varanda a saída do fogo, o Albano ordenou que devíamos ir para a casa da alfândega, ali, como só havia uma varanda à frente, era mais fácil responder ao fogo deles. Um dos funcionários da administração gritou que estava ferido, caiu no chão. Juro-lhe que eu estava muito calma, o homem parecia desmaiado, tirámos-lhe as calças, estava bastante ferido numa das virilhas, fora um puro acidente, a pistola dispara-se quando ele escorregara. Alguém lhe deu uma injecção de morfina, lá o arrastámos para a casa da alfândega. Como não havia fogo sobre a casa da alfândega, procurámos ir até ao aquartelamento e aí disseram-nos que já havia 5 feridos. É nisto que damos conta que as luzes ali estavam todas acesas, foram então apagadas e começámos a transportar os feridos para este edifício onde o enfermeiro tinha mais meios.

Não sei quanto tempo depois voltou o silêncio total, tinham acabado os tiros. O Albano sentou-se a uma secretária e escreveu um relatório e disse-me: “Benedita, não sei se estou a proceder bem, peço-lhe que leve esta carta a Bissau, ao amanhecer tenho que dirigir a evacuação das mulheres e das crianças, vai com uma escolta militar, fico à espera que mandem mais reforços, ninguém pode adivinhar quando será o próximo ataque”.

Sentia-me embrutecida e distante, eu tinha uma outra ferida, muitíssimo profunda, não sei com que coragem lhe vou agora contar o que me atormentava. Durante aquele tempo que precedeu ao ataque, todas as noites ouvíamos a rádio Dakar, era ali que se referia sem nenhuma discrição que em breve as povoações com colonialistas, junto à fronteira com o Senegal, iam ser atacadas.

Uma noite ouvi mesmo dizer que onde o Albano estivesse (nunca referiram S. Domingos, só falaram no nome dele) eles fariam o menor número possível de mortos porque ele tinha sido sempre humano para os africanos. Uma noite fiquei gelada quando eles disseram num francês impecável: “Lembra-te Albano Toscano que já tiveste filhos africanos!”. Não foi uma sensação de traição que eu senti, o Albano tinha-me dito que não havia outra mulher na sua vida, o que eu verdadeiramente senti é que devia ter partilhado aquela informação, não era agora que ia perguntar ao meu marido se ele tinha filhos de outras mulheres, se estavam vivos ou mortos, aquela omissão recebi-a como uma bofetada, não era agora que eu ia perguntar ao meu marido se era verdade ou se era mentira, ele estava ao meu lado a ouvir a rádio Dakar, fez que não ouviu, senti-me maltratada, eu merecia uma explicação.

Sentia-me aturdida, aceitei partir para Bissau, vi à minha volta toda a gente a trabalhar, o Albano a içar a bandeira portuguesa e depois a liderar os preparativos para que todas as mulheres e crianças fossem retiradas de S. Domingos, nem todas aceitaram partir, mas muita gente foi de barco para Cacheu. Da janela do edifício da administração assisti àquela debandada., todos partiam com os olhos postos no chão.

Ao amanhecer, uma avioneta veio-me buscar, parti cheia de sofrimento, deixando ali o Albano, não tenho a menor recordação daquela viagem, só sei que quando cheguei a Bissalanca desmaiei. Lá me recuperei e segui para o Palácio do Governador. Acompanhada pelo comandante militar, fui prontamente recebida pelo Governador (****), leram os dois o relatório do Albano, disse-lhes que ele pedia sacos para fazer barreiras de protecção, tinha extrema necessidade de enfermeiros e, se possível, pedia mais reforços. É nisto que o governador me pergunta: “Onde é que a senhora quer que eu vá arranjar estes sacos?”. Respondi-lhe: “Não tem dificuldade, basta chamar o Turco, aquele comerciante que trabalha com o Pintosinho, ele vai falar com os arrozeiros, é um instante enquanto se arranjam os sacos, depois em S. Domingos é só enchê-los”.

Nesse mesmo dia, as autoridades enviaram para S. Domingos um pelotão para reforço daquele contingente que ficara tão combalido com o ataque da madrugada. Não me recordo bem, já disse várias vezes que todos estes papéis se perderam nas malas que vieram de S. Domingos para Bissau e que desapareceram sem deixar rasto, mas o Albano enviara no seu relatório a informação de que os atacantes só tinham utilizado armas de repetição entre as 2 e as 6.30 da manhã, hora em que tudo acabou.

Ah, espere, temos que voltar aos sacos. Depois de uma grande correria, lá se encontraram sacos, cerca de 600, e o Governador perguntou aos comerciantes como é que eles iam fazer chegar os sacos a S. Domingos. Eu estava com a cabeça tonta, meio adormecida, sedada por um tranquilizante que me tinham dado, olhava para aquilo tudo e perguntava-me qual a capacidade de resposta daqueles políticos perante uma emergência, se não eram capazes de encontrar uma solução apropriada para enviar 600 sacos vazios para S. Domingos.

Fiquei em casa da Ivone Leal, mulher de um advogado, lembro-me que dormi muito mal, foi um sono sobressaltado, sempre a pensar num próximo ataque, e eu longe do Albano., numa atmosfera de segurança. Na manhã seguinte, alugou-se uma avioneta que foi a S. Domingos levar mantimentos e os sacos, o Turco esteve a conversar uma hora com o Albano, as notícias que trouxe eram tranquilizadoras, tinha-lhe chegado informação que as dezenas de atacantes regressaram à região de Kolda.

Nessa noite voltei ao palácio do Governador onde me foi anunciado que este decidira que eu durante um mês não voltaria a S. Domingos, a justificação era que tinha a casa cheia de tropa. Só espero até morrer não voltar a viver um tempo de tanta ansiedade como aquele, a Ivone Leal e marido, os Nobre Lemos e outros casais tudo fizeram para eu me sentir bem, deram-me amparo e carinho, serenaram-me como puderam. Felizmente que o Governador dera ordens para que sempre que uma avioneta fosse a S. Domingos me levasse e trouxesse. Não imagina as peripécias que eu vivi! Oiça algumas.

Houve um piloto aviador que me deu uma palmada nas costas, em pleno aeroporto e à vista de toda a gente, eram um miúdo simpático, tratava-me por mana e bonitona, eu não sabia se me havia de rir ou zangar. Uma vez um outro piloto largou-me no Ingoré, disse-me que tinha de ir levar correio a Camamudo, vim numa carripana velha até S. Domingos, apareceu-me na estrada o Albano, afogueado, com uma escolta militar, o louco do piloto enviara uma mensagem a dizer que vira grupos estranhos à saída de Ingoré, talvez fossem salteadores, o melhor era protegerem-me. Na segunda visita ao Albano apercebi-me de grandes mudanças, as famílias brancas e até as de comerciantes mestiços consideravam o ataque a S. Domingos como o princípio da insurreição, anunciavam que iam partir, não queriam ser mortos à catanada.

Desculpe-me, começo agora a ter consciência que este relato é confuso, estou a misturar coisas, até escrevi aqui no meu caderno: “Dizer ao Mário que ao lado do nosso quarto, em S. Domingos, estavam 10 soldados e o rádio das transmissões. Quando voltei, estive quase um mês sem dormir a ouvir aquele besoiro, era uma gritaria em que o soldado no quarto ao lado usava uma linguagem codificada que me dava vontade de rir”.

Também escrevi no meu caderno: “Na mesma noite que os guerrilheiros atacaram S. Domingos igualmente flagelaram Suzana e o Albano mandou chamar o chefe de posto para S. Domingos, ele ficou aqui mas a mulher foi para Cacheu. Varela foi atacada mais duramente cerca de um mês depois, a bonita estância turística ficou completamente desmantelada, as casas turísticas desapareceram”. Agora peço-lhe que paremos, não pode imaginar a comoção que tive quando voltei a Varela e vi desaparecidos objectos pessoais que tinham para mim elevadíssimo valor estimativo. Quando vemos a nossa casa em derrocada, sentimos uma devassa incontrolável ao nosso património, ao mais nosso íntimo do nosso ser.


Décimo quarto solilóquio


Há qualquer coisa de patético neste funcionário colonial cujos avisos são ignorados em Bissau, impotente e talvez resignado com a incapacidade de resposta dos políticos, indiferentes à insurreição iminente. No último almoço, a Benedita contou-me que o Albano tivera a informação de que Varela iria ser destruída, nessa altura ela já tinha regressado a S. Domingos. Com o zelo de sempre, ele apelara para que houvesse movimentação de tropas para Varela, não houve, aquela linda praia que dispunha de um casario moderno ficou irreconhecível depois da depredação dos assaltantes.

Continuo a entusiasmar-me com os relatos da Benedita. As suas viagens da avioneta de Bissau a S. Domingos tiveram momentos delirantes, aquela história de um piloto que queria que ela visse os crocodilos e que baixou o aparelho até quase à linha de água, foi um dos maiores sustos da sua vida; e também aquela história em que viajou com um leitão destinado a S. Domingos, entretanto foi necessário ir a Cacheu de emergência e o funcionário local mal a viu desatou a chorar, agradeceu-lhe a amabilidade de ter trazido um leitão, ela nem teve coragem de lhe contar a verdade...

Nesse almoço com a Benedita também ficou claro que no círculo íntimo do Governador havia também quem, perversamente, insinuasse que o Albano estava feito com os africanos, seria um pro-independentista. Tomei igualmente nota das peripécias vividas em S. Domingos, com a tropa à volta. Por exemplo, estava a Benedita a dar aulas, rebentou um tiroteio, ela atirou-se para debaixo da secretária, afinal era um exercício na carreira de tiro, ninguém a avisara de nada.

Três semanas depois de estar em Bissau, o Governador autorizou que ela voltasse para o pé do Albano. Quando ela ali chegou já S. Domingos vivia um simulacro de estado de sítio, a tropa a circular permanentemente de Bula para cá e de cá para Bula, as ruas rasgadas por trincheiras, o Albano furioso sabendo que aquelas valas iam ficar cheias de água e inúteis, mal surgisse a época das chuvas. Acho que chegou o momento de registar esta coabitação com a tropa, as questiúnculas entre a tropa brancas e os Felupes, o fim das idas a Ziguinchor, quando o Senegal cortou relações com Portugal.




"Jangada no Rio Geba. Passagem entre Bafatá e Contuboel"... Imagem reproduzida  em O Missionário Católico, Boletim mensal dos Colégios das Missões Religiosas Ultramarinas dos Padres Seculares Portugueses, Ano VIII, nº 81, Abril de 1931, p.  169 (Exemplar oferecido ao nosso blogue por Mário Beja Santos). 

Imagem digitalizada e editada por L.G.


Em S. Domingos, à espera de uma guerra que não veio


Tudo mudou quando cheguei a S. Domingos, sabia perfeitamente que o meu idílio com a região acabara. Cercada pela tropa, a viver com a tropa em casa, a ouvir permanentemente os palavrões, com Varela destruída, com as medidas de segurança que nos obrigavam a circular com todas as cautelas, sem poder ir a Ziguinchor, refugiei-me na escola, nos livros, nos arranjos da casa, às vezes com a cabeça à razão de juros com aquele infortúnio, para mim incompreensível. Desforrei-me na cozinha, o Omaia foi dispensado de muitas actividades (é nesta altura, creio eu, que se descobriu que ele tinha lepra, antes de regressar a Portugal ainda o fui visitar à leprosaria, em Cumura), aprendi a fazer compota de caju e, pasme-se, atirei-me à jardinagem.

Eu nunca experimentara viver rodeada de arame farpado, agora estava a acontecer, tinha a tropa em casa, aquela convivência de caserna, os palavrões e o sargento a pedir-me desculpa pelos palavrões dizendo também mais palavrões...Embora isto pareça desusado, digo com toda a convicção que foi a fé que me valeu, eu escorregava naquela falta de valores, via o Albano triste e sobretudo muito doente, estava a sofrer muito de cálculo renal, houve momentos em que desesperei e, Deus me perdoe, cheguei a desejar um novo ataque para sairmos dali.

Pois bem, em Julho de 1962, depois de pedidos insistentes com relatórios médicos a comprovar o débil estado de saúde do Albano, ele recebeu autorização para irmos a Bissau. É precisamente na viagem de S. Domingos para Bissau que ele teve um aperto, saiu aos tombos do carro, ouviu-o dar um grito medonho dentro da mata, fui a correr em seu auxílio, ele disse-me com uma expressão aliviada, quando me aproximei ofegante: “Ai, Benedita, estou muito melhor, o cálculo renal já saiu!”.

Olhando para trás, posso dizer que vivi um tempo muito acinzentado. Depois de termos saído de S. Domingos, constou-nos que mataram um capitão num ataque àquela estrada e que continuaram de vez em quando a tentar destruir os pontões (havia na região de S. Domingos/Ingoré 18 pontões até Bissau como já lhe disse).

Agora apetece-me sorrir e até ser brincalhona no comentário que vou fazer: assentei praça em S. Domingos com a idade major e nem a cabo fui promovida, a recruta era de 3 meses, a minha excedeu um ano e meio.

Quando me vim embora, os soldados da companhia de S. Domingos colectaram-se para me dar um boné camuflado como presente. Até essa lembrança desapareceu naquelas malditas malas que se extraviaram, foi assim que perdi doces recordações.

O Albano fez tratamentos em Bissau, pela primeira vez senti que ele era um homem com o coração irremediavelmente destroçado e com a saúde arrasada e com cada vez menos sonhos. Quando comparo as fotografias que ele me enviou em solteiro, as que tirámos em Bissorã, em Teixeira Pinto ou no Gabu, com aquelas que guardámos dos últimos meses, em Bissau, que diferença! Ainda voltámos a S. Domingos, o Albano foi fazer a entrega oficial da administração ao seu substituto.

A despedida deixou-me debulhada em lágrimas. O aeroporto de S. Domingos, como em tantas outras pequenas localidades, limitava-se a uma pequena faixa de centenas de metros de terreno saibroso para o aterrar e o levantar voo das avionetas. Tínhamos uma multidão à volta da pista, os nossos criados com a tristeza estampada na cara, não sabiam quando voltariam a ver os seus patrões, vários régulos Felupes, Brames, Manjacos, trouxeram as suas numerosas famílias, o Albano e eu tínhamos um cortejo de afilhados com flores e outros presentes, não houve comerciante que não tivesse comparecido para nos ver partir. Guardo na retina aquela avioneta que deslizava aos roncos e os jovens a correr, com grande sorriso, e a saudar-nos entusiasticamente. Não aguentei, chorei muito.

Quero voltar à minha mágoa das malas desaparecidas. Tínhamos malas de porão, ali guardei a nossa roupa e os nossos haveres mais importantes. E foi graças a esta estúpida classificação que metemos em malas ligeiras as fotografias, os documentos, os livros e os mapas. Pedi ao condutor para entregar tudo (eram aí umas 5 ou 6 malas) em casa da Ivone Leal, dois dias depois de chegarmos a Bissau apurámos que as malas não apareciam, procurámos o condutor, ele garantiu a pés juntos que deixara tudo à entrada, ninguém assaltava as casas, naquele tempo. A verdade é que as malas nunca mais voltaram a aparecer, deve ter sido alguém que supôs que andavam por ali pratas e jóias, eu perdi coisas muito importantes para a minha memória, desapareceu a preciosa escultura dos Nalus, os panos Manjacos, os arcos de caça dos Felupes, lindos panos da Gâmbia, desenhos e aguarelas oferecidos por artistas locais.

Olhe à minha volta, está aqui tudo que testemunha o mundo em que nasci, bisavós, avós, pais e o Toninho, veja-me aqui no dia do casamento, ali com o Albano em cima de um hipopótamo morto, em plena ria de Cacheu (sempre lhe chamei ria, o Teixeira da Mota dizia mesmo que a Guiné só tinha um rio, o Geba). Tenho aqui os álbuns organizados, naquelas caixas de sapatos estão as fotografias que entraram nos livros do Albano ou ilustraram os seus artigos, guardo memórias de quase tudo, pode imaginar a falta que me faz o extravio daquelas malas. Felizmente, que muitos dos livros voltaram a ser comprados ou oferecidos, já lhe disse que nos primeiros tempos não me sentia atraída por todas aquelas histórias e por aquela diversidade cultural. Tudo mudou quando fui para o Gabu, agarrei-me aos livros, procurei compreender.

Num dos nossos próximos encontros até lhe queria falar dos artigos que o Albano escreveu no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, os objectos que ele ofereceu ao museu, este funcionava no edifício do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa onde o Mário esteve tantas vezes, como observei na leitura dos seus livros, estudiosos como o Armando Cortesão, o Teixeira da Mota, o Rogado Quintino pediram ao Albano para comprar artesanato, ele comprava e não foram poucas as vezes que comprou com dinheiro do seu bolso objectos que iam para o Museu. Eu sei que sou muito má «aluna», registo caoticamente as minhas lembranças, ando permanentemente para trás e para a frente, mas tomei ainda nota de duas coisas que ainda lhe queria falar, depois paramos, estou muito cansada.

Tenho aqui escrito: jantar no palácio, em minha honra. Houve um ror de brindes, toda a gente queria discursar, o reitor do liceu comparou-me com a D. Filipa de Vilhena, desta vez ia desmaiando de riso; o Albano era tido por “trouxa” porque não fazia negociatas, punha na rua todos aqueles que lhe vinham propor negócios escuros ou procurar envolvê-lo em corrupção.

Deixe-me contar mais uma história. Nos últimos tempos de S. Domingos, foi lá almoçar um funcionário de Bissau que passava criminosamente cartas de condução. Alguns dos soldados vieram pedir-me para meter uma cunha a este senhor para lhes emitir carta, eles explicaram-me que não tinham dinheiro. Em pouco mais de duas horas ele passou para cima de 30 cartas de condução. No final, voltou-se para mim e perguntou-me se eu também não queria uma carta. É nisto que chega o Albano, tinha ido à povoação de Barro, por cauda das obras da estrada. Vendo-me aflita, perguntou-me o que se estava a passar e eu respondi que me estava a ser oferecida uma carta de condução. Olhou furioso aquele funcionário de Bissau e disse-lhe sem papas na língua: “Já chega de asneiras! Espero que durma mal a pensar nos desastres que vai provocar com a sua irresponsabilidade».

Verá mais adiante que o Albano me trouxe dissabores e grandes desgostos. Eu prefiro exaltar o funcionário incorruptível que tratou sempre correctamente os nativos e cuidou dos interesses da Guiné, nunca pactuando com qualquer tipo de crime. Só casei duas vezes, foram amores distintos, talvez a idade pese no juízo que fazemos dos homens que amamos, mas eu tive muito orgulho neste marido que desde que me conheceu me disse a verdade sobre a Guiné, foi bondoso e carinhoso comigo, tudo fazia para me ver feliz.

Bom, estou quase a sair da Guiné, agora preciso de descansar, ainda há alguns episódios que lhe quero contar, prometa-me que só vai escrever 2 ou 3 histórias se acaso vai publicar algum livro com esta maçadoria, é para mim mistério insondável o Mário encontrar algum encanto ou pitoresco nestes episódios que têm quase 50 anos e que estão definitivamente perdidos no tempo., dispensados pela História. Ou não estão?

(Continua)



[ Revisão / fixação de texto / título: L.G.]

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Notas de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores da série:

31 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5737: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (1): Um Gabu de poucas e fracas recordações

2 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5747: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (2): Da Guerra do Turu-Ban ao Tubabo Tiló, passando pelo deslumbrante Corubal

4 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5758: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (3): Dois anos maravilhosos: S. Domingos, Varela, Ziguinchor, antes da guerra...

9 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5793: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (4): S. Domingos, 21 de Julho de 1961: Benedita, eles já aqui estão!

(**)  Sobre o processo narrativo, explicou o autor:
 
"Queridos amigos, o livro 'Mulher Grande' é uma narrativa ficcionada, um relato de uma vida de memórias (memórias de uma vida). É a Guiné que aproxima a narradora e o seu arquivador/escriba. Benedita Dantas Estevão possui uma memória prodigiosa, viveu as agonias e os êxtases de toda a gente. A estrutura da narrativa baseia-se num processo literário explorado magistralmente por John Dos Passos, limitei-me a seguir-lhe as pisadas: há um episódio inicial em que o narrador descreve acontecimentos, o arquivador/escriba reflecte sobre eles (solilóquio) e o narrador dá uma explicação íntima para o que contou (recordações e trabalho de casa), é um círculo fechado de duas pessoas que falam a três vozes.
 
"O que ofereço ao blogue é matéria que se prende com a essência do nosso blogue: a Guiné em vias de entrar na guerra. O resto, caso venha a entusiasmar os tertulianos, fica para a leitura de cabo a rabo. Sugiro a sua publicação em pequenos episódios de duas ou no máximo três páginas, em consonância com a própria construção dos diálogos. Aguardo a vossa apreciação. Um abraço de amizade, Mário" (...)


(***) Excertos do Cap I:

(...) Vim ao mundo ao nascer do dia 24 de Novembro de 1920, em Lisboa. Nasci na Avenida da República, 70, no rés-do-chão de uma moradia que também tinha 1º andar e mansarda. (...)




(...) A casa fora alugada pela minha avó brasileira, a vovó Januária ou vovó Xanoca. No dia em que vim ao mundo, bateu à porta da nossa casa o capitão Edmundo Barreto, um dos fiéis de Sidónio Pais, e que era muito amigo do meu pai, vinha almoçar, isto era muito comum assim, recebíamos informalmente todos os amigos, eram poucos os que se anunciavam. Sabiam que o meu pai acabava as consultas no Curry Cabral pelas 13 horas, e que vinha imediatamente para casa, quem batia à porta almoçava. O meu pai contou-me que o foi receber à entrada, eufórico, estava todo desalinhado, sem plastrão, e lhe dissera: “Olha, desculpa, hoje não pode ser, nasceu-me uma filha, sou pai pela primeira vez, estou radiante, isto está tudo uma desordem mas estamos felizes. A Estrelinha está de boa saúde!”. A Estrelinha era a minha mãe. (...)


(...) Nasci num meio burguês, filha de um clínico geral que trabalhava no Curry Cabral e no banco de S. José e tinha consultório na Praça José Fontana, e de uma brasileira de Santos, menina prendada. Era um casal que se amava muito. À distância destes anos todos, reconheço que tive o privilégio de nascer num meio excepcional, rodeada de pessoas excepcionais. O pai, a quem meio mundo chamava o Catarinho (Catarino Palma d’Abreu Dantas) viera estropiado da Flandres, era um homem de uma curiosidade insaciável, uma grande alma, um grande carácter. (...)


(...) O Catarinho era monárquico por tradição e convicção, mas era um homem verdadeiramente popular, não aceitava injustiças, falava com toda a gente com a mesma elegância de modos. Uma vez, era eu pequena, ele foi abordado nos Restauradores por alguém, eu, a minha mãe e o meu irmão, não percebíamos o entusiasmo daquela conversa. Despediu-se do senhor e depois disse-nos: ”Era um dos meus doentes lá da Penitenciária, creio que era um grande criminoso que se regenerou. Ainda bem que o voltei a ver”. (...)


(...) O meu pai vivia politicamente na oposição à balbúrdia republicana, veio a aderir à Liga 28 de Maio, admirava profundamente Salazar e a sua obra. Fez sempre campanha a seu favor, tudo à sua custa, nunca quis cargos, o que ele queria era ser médico, viver com a família, estudar genealogia, história de arte, até mineralogia, tudo lhe interessava. Não passava uma semana que não fosse investigar na Torre do Tombo. A minha mãe era adorável, acabou por ser a minha filha. Isto é difícil de compreender até se conhecer a relação que estabelecemos, sobretudo nos últimos anos da sua vida, morreu já nos anos 80. Sempre que falo da minha mãe emprego o termo que usei sempre: a Estrelinha (Maria Augusta dos Santos Pimenta), ela era de facto uma estrela reluzente ao pé de nós, delicada no trato e sempre delicada na sua saúde. (...)


(...) A abundância em que nasci começou a desaparecer quando eu tinha 10 anos. Com a crise de 29, o meu pai perdeu as economias amealhadas que pusera no Banco do Minho e a Estrelinha perdeu muito do que tinha nos negócios de Santos, tudo herança do avô Valentim, que não conheci, ele morreu quando a avó Januária veio com duas filhas até à Europa. É verdade que ele era um nome na medicina mas não era suficiente, houve que cortar nas despesas, desapareceu o chofer e desapareceram criadas. E desapareceram muitas das visitas lá em casa. (...)


(...) Com o desaparecimento do meu pai, tudo mudou, eu ia fazer 21 anos. (...)


(...) Em 1950, soube que havia uma vaga na Embaixada dos Estados Unidos da América, na Duque de Loulé, fiz provas, no Verão, fui aceite. O meu emprego não era propriamente na Embaixada mas sim junto do serviço do adido militar, eu depois explico o que fazia. Por essa altura, o Raimundo pediu à minha tia para ir ter com ele ao Norte. A Ada pediu-me para a acompanhar. E foi assim que fomos para a Póvoa, de 15 a 30 de Agosto. Na primeira noite, fiquei em casa da Luísa Palma. Fui com ela ao Casino (...).


(...) Nisto chegou o meu primo Manuel Dantas Amorim que vinha a falar com um outro senhor e apresentou-me o Albano da Graça Toscano. Pouco depois, fui dançar com este senhor que era funcionário colonial, tinha ido quase adolescente para a Guiné, vivia lá há muitos anos, mais de 16, estava agora de férias. Ia começar o meu romance. No Casino da Póvoa, mal sabia eu, tinha o meu destino traçado para ir para a Guiné, onde vivi momentos tão belos mas também tão dramáticos. Ao longo destes anos, digo-lhe agora sem ironia, eu achava que era exótico falar da Guiné, quando eu falava os outros ouviam com atenção, ninguém sabia onde é que era a Guiné e como é que lá se vivia. Dou comigo agora a pensar que ir contar tudo quanto eu vivi tem aspectos melindrosos, ainda há algumas pessoas vivas, nem sei se vou contar tudo.


(...) E foi assim que ficámos noivos. Mas o Albano tinha que partir em Setembro, tinham acabado as férias, só poderia voltar dentro de 4 anos, encarou-se logo a hipótese de casarmos por procuração. É bom não esquecer que eu ia trabalhar para a Embaixada, em Outubro assinei contrato como operadora telefonista. Eu vivia uma situação de grande dilema, nem ele nem eu tínhamos idade para perdermos mais tempo, naquela época só havia cartas uma vez por semana, não me estava a ver num namoro como se fosse uma adolescente.


Era um dilema: pela primeira vez na vida eu estava a ter um emprego que me interessava, que me entusiasmava verdadeiramente, mas também a Guiné estava no horizonte, eu queria casar com o Albano. (...)


Casei na Igreja do Campo Grande, fui de braço dado com o maninho, fizemos a festa em nossa casa. E naquele mês de Setembro, com a Estrelinha e a Ada a chorar, emocionadas, parti da Portela, de madrugada. Eu saía pela primeira vez de Portugal. (...)

(****) Na altura dos acontecimentos em S. Domingos (21 de Julho de 1961), era governador da província da Guiné  António Augusto Peixoto Correia (1959-1962).  Sarmento Rodrigues tinha sido Governador do pós-guerra (25 de Abril de 1945 a 1950).

Guiné 63/74 - P5824: Notas de leitura (68): Memória, de Álvaro Guerra - A tiros de raiva e metal escaldante (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Fevereiro de 2010:

Queridos amigos,
Aqui vai mais uma recensão sobre o Álvaro Guerra.
Se houver uma alma caridosa que me empreste ou queira fazer a recensão de “Os Mastins” ou “A Lebre”, é só avisar.E se houver uma outra alma caridosa que me queira emprestar os primeiros livros do José Martins Garcia, ou fazer as competentes recensões, much better.

Um abraço do
Mário


A tiros de raiva e metal escaldante

Beja Santos

“Memória”, de Álvaro Guerra (Editorial Estampa, 1971) é um livro deliberadamente niilista, organizado por fragmentos por onde se dispersam as recordações da infância, da guerra, do tecido familiar, dos desacertos da vida. É talvez o último livro onde Álvaro Guerra regressa à Guiné. A obra abre com um discurso torrencial, não há pausas, não há condições para a retoma do fôlego, o leitor é forçado à correria, compete-lhe pontuar para encontrar o sentido das palavras: “no calor morria e nesse medo matava rasgando capim folhas lianas a tiros de raiva e metal escaldante metralha a abrir o caminho para hoje percorrido comigo desde o meu corpo espalmado na terra a beber o suor e o sangue e os olhos fechados invocavam imagens e logo se abriam para a dor real naquele longe de casa que eu era rastejando entre os silvos e explosões...”. E logo a memória vai para a Ameixoeira no canto do pátio, no marçabril de cada ano, o autor recorda a casa da avó e as coisas lúbricas que praticou com a sua prima. Seguem-se textos que rondam episódios históricos, fala-se mesmo do império e depois partimos para a Ponta Tenente, lá no Rio Grande, é um regresso caótico, quase demencial, à Guiné, depois disserta sobre o machismo, o amor, as viagens dentro da Europa, brinca com as mensagens publicitárias, olha-se ao espelho e estabelece uma conversa que podia caber dentro do surrealismo de Dali, revela-se poeta, são fogachos atirados para os céus, vê-se como Álvaro Guerra apreciava o “novo romance”, as obras de Cortazar, os autores do absurdo, é um experimentalismo que vai estonteando o leitor transformado em cobaia de um escritor que parece não querer abrir o jogo. E, abruptamente, Álvaro Guerra volta ao nosso país: “Nasci na pátria do ódio gentil, na pátria da paz e do sono, do idílio de uma seringa cheia de medo com uma veia cheia de velho sangue, uma veia sossegada e antiga, sem dores de me parir. Cresci entre as histórias mentirosas e as mezinhas mitológicas de adiar mortes serenas, milhões de tranquilíssimas mortes conformadas, ao som do fado-hino e da saudade-destino”.

Há nesta viagem de um funâmbulo imagens que nos recordam Alexandre O’Neill e Herberto Helder, o combatente que regressou e foi estudar para Paris desorganiza e entrança as suas memórias entre o burlesco e o grotesco. E nisto chegamos à guerra, a uma verdadeira sinfonia para a guerra, com três andamentos. O primeiro, já aqui foi referido, vem citado por João de Melo na sua antologia “Os anos da guerra”, tem a ver com os preparativos e conta a história de um cadete que rouba o vinho destino à celebração da missa. O segundo andamento chama-se ocupação, é possível que trate a história da unidade a que pertenceu Álvaro Guerra quando chegou à Guiné em 1963: “A companhia recém-desembarcada dos três velhos aviões a hélice foi provisoriamente instalada no Liceu da Cidade que, para o efeito, se encontrava equipado com aquilo que habitualmente equipa um liceu: carteiras, mesas de professores, ponteiros, giz, globos terrestres, animais empalhados, provetas, tubos de ensaio... Quando a soldadesca saltou dos camiões, o capitão ordenou a formatura e disse para terem muita atenção em não escangalhar nada do que estava lá dentro, pois aquilo era Património do Estado e “quem escachaporrar alguma vez tem que s´haver comigo”, após o que se fez a distribuição dos militares pelas várias salas de aula, tendo o gabinete dos professores sido reservado aos oficiais e o laboratório aos sargentos... Apesar do apetite que a pressa claramente demonstrava, não foi a ementa muito apreciada, depois se descobriram mais tarde, nos quadros pretos, inscrições não muito elogiosas traçadas a giz incerto, das quais se dão alguns exemplos: “Oje o rancho foi uma merda”, “O cozinheiro que vai ensebar os cornos do pai com a sopa que fez”, “Grões igual a balas”, etc., tudo isto ilustrado com uma expressiva e assaz numerosa colecção de falus das mais variadas dimensões. Acomodados sobre a palha, entre carteiras, dispuseram-se a passar confortavelmente a sua primeira noite no liceu o que teriam conseguido se não fossem os permanentes e ferozes ataques dos mosquitos o que determinou colectiva manhã mal-humorada e salpicada de queixas aos superiores imediatos: soldado-cabo-sargento-alferes-capitão, com judiciosas quão oportunas observações do tenente-médico”. Tudo parodiado, como se a diversão fosse o óptimo condimento para chegamos ao terceiro andamento, o “massacre”. Prosseguindo o estilo delirante, a companhia anda aos tombos, chegou uma ordem, é o desconchavo total, a tropa vive o drama de um ataque de chatos, o dê-dê-tê, seria da comida? Seria da roupa? Vive numa inquietação geral quando a sinfonia culmina com o tema final: “Estavam nisto quando o ataque começou, choviam granadas e balas, assobiando sobre as cabeças e explodindo mesmo nos postos-chave das defesas tão inteligentemente concebidas, os soldados corriam de um lado para o outro, semi-vestidos, calças na mão e espingarda na outra, dando urros de dor por não sobrarem mãos para se coçarem, alguns tombaram logo na primeira vaga, gritando heroicamente “ai, nha mãezinha!”, outros, depois de alcançarem os abrigos, disparavam com uma das mãos e coçavam-se com a outra... Às três da manhã a companhia fora massacrada. Morreram como heróis, garanto. Morreram todos, menos eu, que escapei para contar a história”.

O burlesco na guerra tem longos e felizes antecedentes, basta pensar em “O bravo soldado Chveik” de Jaroslav Hasek, isto para não esquecer as sempre tão esperadas incursões do nosso Jorge Cabral. Ao deixar as suas memórias na Guiné com esta “Memória” mal sabia Álvaro Guerra que um outro niilista tão dissoluto ia chegar às lides literárias e não com menor talento, José Martins Garcia. Os estudiosos da literatura que procurem interpretar o fenómeno desses anos 70 em que os militares faziam a sua catarse divertindo-se, sabe Deus com que sofrimento a esvair-se da imaginação para os dedos.

O livro “Memória” passará a pertencer ao blogue.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5820: Notas de leitura (67): O Disfarce, de Álvaro Guerra - Mais ou menos tão divertido como o teu exílio (Beja Santos)