terça-feira, 23 de março de 2010

Guiné 63/74 - P6039: (Ex)citações (61): O desvario de um capitão de cavalaria, que matou a tiro um militar e um civil, no Senegal, e que apanhou 12 meses de presídio militar (Carlos Cordeiro)

1. Comentário, de 21 do corrente,  do nosso camarada Carlos Cordeiro (*), ao poste P6022 (**)

Caro Luís,

Sobre o infeliz acontecimento, há um testemunho no "Correio da Manhã" [, reproduzido no blogue Leste de Angola]:

http://lestedeangola.weblog.com.pt/arquivo/264295.html (***)

Além disso, veja-se a sentença do Supremo Tribunal Administrativo relativamente a um recurso apresentado pelo Cap Botelho contra o facto de não ter sido promovido a Major (o despacho é de 12/1/93 - na caixa find, ao colocar-se Botelho, surge logo a sentença).

Este acto (e outros) por ele cometido teve gravíssimas repercussões na sua carreira militar (****). Depois de submetido a Junta Médica, passou à reserva, em 1974. É muito importante a leitura da sentença para se compreender o seu comportamento militar.

www.dre.pt/pdfgratisac/1993/32110.pdf

Abraço,

Carlos Cordeiro

[ Revisão / fixação de texto / selecção de excertos / título: L.G.]
______________

Notas de L.G.:

(*) Foi Fur Mil Inf no Centro de Instrução de Comandos, em Angola, nos anos de 1969/71; irmão do infortunado Cap  Pára José Costa Cordeiro, morto em acidente em 1973 (CCP 123/BCP 12); é Professor de História Contemporânea na Universidade dos Açores, Ponta Delgada, Ilha de S. Miguel,

(**) Vd. poste de 19 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6022: Fajonquito do meu tempo (José Cortes, CCAÇ 3549, 1972/74) (4): Ainda o caso do Cap Patrício que foi, por castigo, para a CCAÇ 15, Mansoa, e do comandante do Esq Rec Fox de Bafatá que invadiu o Senegal com as chaimites

Vd. também poste de 20 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6028: A propósito do Dia do Pai... e da história do Esq Rec Fox 3431 (Bafatá, 1971/73)

(***) Trata-se de um depoimento de um militar do Esq Rec Fox 3431 (Bafatá, Setembro de 1971/ Junho de 1973), Sérgio Marques dos Santos, hoje motorista de táxis no Porto, e um dos organizadores habituais do convívio anual da unidade... Não consegui apurar a data, ao certo, em que este depoimento foi publicado, na revista "Domingo", do jornal "Correio da Manhã", na série "A Minha Guerra"... Muito provavelmente foi publicado no ano de 2008. Também não sei quem foi o jornalista que recolheu e tratou o depoimento do Sérigo Marques dos Santos.  Tomo a liberdade de reproduzir alguns excertos, com a devida vénia:

 (...) Foi uma tarde louca, aquela de Outubro de 1972, em Pirada, no Leste da Guiné, na fronteira com o Senegal. Eu integrava um pelotão de reconhecimento composto por duas viaturas blindadas, uma ‘White’ e uma ‘Chaimite’, que fazia escolta ao comandante do Batalhão de Caçadores (BCAÇ) 3884, a Uacaba, Mafanco, Sonaco, Paúnca e Pirada. A certa altura, no intervalo de uma reunião de oficiais, o nosso comandante, o capitão de Cavalaria Manuel Eduardo Alves Botelho, diz: 'Venham comigo, vamos dar uma volta!' Fomos, éramos uma dezena de homens.


"Passámos a fronteira e penetrámos quatro ou cinco quilómetros no Senegal. Nenhum de nós adivinhava a intenção do capitão, que continuava entusiasmado a conduzir-nos por território estrangeiro adentro. A certa altura, avistámos um acampamento militar de senegaleses. A ‘White’ foi obrigada a interromper a marcha, por causa das valas feitas pelos militares estrangeiros, mas a ‘Chaimite’, que tudo passa, entrou no acampamento.


"Os senegaleses ficaram surpreendidos, mas não esboçaram qualquer atitude hostil. Pelo contrário, entraram num convívio estreito com os nossos camaradas de Pirada, onde frequentemente iam buscar cerveja. Estavam a saudar-nos com acenos, aos quais nós correspondíamos, quando, subitamente, o capitão, que empunhava uma pistola, desatou aos tiros em direcção aos pretos senegaleses.


"As tropas senegalesas, apanhadas completamente de surpresa, correram em todas as direcções, tentando abrigar-se do fogo do nosso comandante. Um tenente do exército senegalês, que se aproximara um pouco mais, caiu morto e um soldado ficou ferido. Antes que pudessem recuperar e ripostar, o capitão Alves Botelho ordenou a nossa retirada.


"No caminho de regresso à Guiné, quando passávamos por dois camponeses senegaleses, que seguiam de bicicleta e que também nos saudaram, o nosso capitão, que estava definitivamente de cabeça perdida, disparou a sua pistola contra eles. Um morreu e o outro ficou ferido. 'Eram terroristas?', alguém perguntou ao capitão Alves Botelho. O oficial apenas ordenou que continuássemos até Pirada.


"Estes actos foram uma loucura que ninguém compreendeu. Em Pirada, os oficiais e comandantes ficaram ‘loucos’ quando souberam, pois os senegaleses eram nossos amigos e confiavam em nós. O comandante da unidade ordenou o regresso imediato do pelotão de reconhecimento envolvido no tiroteio a Bafatá. O capitão foi enviado sob detenção para Bissau, por helicóptero, na manhã seguinte. Três dias depois, o capitão Alves Botelho reuniu o Esquadrão e fez um discurso de despedida. Foi enviado para a Metrópole, para os serviços de Psiquiatria de um hospital militar e, mais tarde, abatido ao efectivo. Nunca mais soube dele, sei apenas que faleceu há quatro anos.


"Este episódio foi dos piores e mais gratuitos que vivi durante a guerra, mas houve outros igualmente trágicos. A nossa tarefa consistia em fazer a segurança às colunas de abastecimento aos nossos aquartelamentos. Eu conduzia a ‘Chaimite’ ou, eventualmente, a ‘White’. Em alternativa, era atirador numa das viaturas. E foram inúmeras as ocasiões em que estivemos debaixo de fogo. Era impressionante como os ‘turras’ tinham conhecimento das nossas saídas. Muitas vezes, só sabíamos à meia-noite do dia anterior, mas eles sabiam antes e emboscavam-nos. As nossas colunas reagiam, o pessoal dos ‘Unimog’ e das ‘Berliet’ atirava-se para as bermas e eu andava às voltas na ‘Chaimite’ a fazer fogo indiscriminadamente" (...)

Fonte: Leste de Angola > 5 de Outubro de 2008 > "Abatemos um um militar e um civil sem razão"

 (****) Entre outras punições, registe-se a condenação do Cap Cav Alves Botelho em 12 meses de presídio militar, pelo Tribunal Militar Territorial da Guiné, em Junho de 1973, conforme se pode ler, a pp, 45, da  setença do STA, documento citado pelo Carlos Cordeiro

Guiné 63/74 - P6038: Da Suécia com saudade (23): A Tabanca da Lapónia em mudanças para a... Flórida! (José Belo)

1. Mensagem do José Belo, com data de 22 do corrente

Assunto: A Tabanca da Lapónia em mudanças.

Caríssimo Amigo e Camarada:

Lamento informar que a Tabanca da Lapónia irá estar encerrada por uns tempos a partir de meios de Abril. A nova geração cresceu, acabou os seus cursos e decidiu ir trabalhar nas sucursais da empresa familiar nos Estados Unidos.  Um muito [grande], e oportuno, alibi para arranjarmos uma casa extra na Flórida, aproveitando proximidade com ambos os filhos.

Finalmente,este Lusitano há tantas décadas a viver entre renas e outras alimárias-frias.....(.que não as Suecas!) vai até ao calor, luz, sol, palmeiras, areias brancas e mar verde! Sem esquecer Whisky-Whiskey-Bourbon-Rum...mas SEM GELO!!!!! Tanto dentro do copo, como e principalmente......à volta dele!

É mudanca grande, pois a ideia é por lá ficarmos durante os longos nove meses dos Invernos escandinavos. Muita coisa a arrumar em contentor, organizar e preparar. (Não menos, o devido empacotamento de algumas renas e hui-huis de estimação!).

A minha participação em Tabancas, com alegria e entusiasmo, no fantástico convívio, camaradagem e amizade que elas proporcionam,voltará por certo, pois como se sabe, até na Lapónia,... O MUNDO É PEQUENO E A NOSSA TABANCA É GRANDE!

Um grande abraço amigo do José Belo.

2. Em 18 do corrente, o José mandou-me outra mensagem, com referências a Belmonte, e dando assim continuidade a uma conversa, entre nós dois, que ficou a meio:

Caro Amigo e Camarada:


Durante o tao curto tempo em que tivemos oportunidade de conversar em Monte Real, falou-se de Belmonte. Se tiveres tempo e paciência,dá uma saltada à Tabanca da Lapónia,onde se fala do tal Belmonte. Um grande abraço do José Belo.

2. Comentário de L.G.:

Camarado e amigo lusitano (na diáspora):

Permite-nos que as tuas alegrias sejam também as nossas alegrias, e que as tuas tristezas sejam também as nossas... Se vais estar ao pé dos que amas e te amam, a  tua mulher, os teus filhos, vais estar bem e feliz. Nós estaremos também felizes, por teres luz, e sol, do outro lado do Atlântico,  e estares ao pé dos teus. Basta-nos a  ideia de pensar que em qualquer altura  somos livres de comunicar (= pôr em comum)  uns com os outros... Aparece sempre que te der na real gana... Sabemos, em contrapartida, que a partir de agora vai ser mais difícil concretizar, num futuro próximo,  a ideia de irmos, alguns de nós,  em romaria,  à tua Lapónia de adopção... Até já me ensinaste o caminho para lá chegar... Mas, enfim, há mais marés do que marinheiros, diz-se na minha terra, à beira-mar (a escassos 15 km do Baleal onde chegaste a pensar casa de verão...).

Boa sorte e sobretudo muita saúde lá nas tuas novas terras de Miami. Nada te impede, por outro lado,  de abrires, em Miami, uma nova Tabanca. Ficavas com duas,  a da Lapónia e a de Miami, a usar conforme as estações, as conveniências e os amigos... Em Miami vais apanhar seguramente algum cubano que também a fez guerra da Guiné... LG

PS - Cadê o tal poste sobre Belmonte, terra de teu avô (paterno), se bem percebi ? Não localizo o texto no teu blogue... Deve ser por nabice minha.

___________________

Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 23 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5871: Da Suécia com saudade (20): As portas que Abril me abriu e as que me fechou (José Belo)

Sobre o José Belo, há mais de 3 dezenas de referências ou marcadores... Vd.em:

José (ou Joseph) Belo (20)
José Belo (13)

segunda-feira, 22 de março de 2010

Guiné 63/74 - P6037: Blogpoesia (69): O Dia Mundial da Poesia, da Falagueira a Buruntuma (Luís Graça)



Da Falagueira a Buruntuma, no dia mundial da poesia


por Luís Graça




Celebrou-se ontem, 21 de Março,
o Dia Mundial da Poesia.
Eu não o celebrei,como devia.
Gosto de efemérides,
sou rigorosamente circadiano,
respeito o dia e a noite,
a semana, o mês e o ano,
as festas, as feiras, os feriados,
o calendário gregoriano,
o século, o milénio, a nossa era,
o solstício...
Mas já anteontem perdi o equinócio da primavera.
Bolas, que desperdício!


Dizem que Deus proibe o ócio
a quem tem de ganhar o pão
que o diabo amassou.
Não celebrei,o tal Dia Mundial da Poesia.
Nem o equinócio.
Nem eu, nem sequer o senhor ministro
de Estado da Pompa & da Circunstância
que escolheu o dia
para falar do choque tecnológico,
e do nosso portefólio nacional
de competências,
em estrofe triunfal,
plagiando o engenheiro Álvaro de Campos,
talvez o nosso maior futurista do passado.


Eu preferiria falar do risco biológico
que resulta do simples facto  de nós existirmos.
E sobretudo de sermos um corpo,
de intervenção.
E ser pura água potável
mais de 70% do nosso escudo de protecção.

Que admirável!

Confesso, pela minha parte,
que estava demasiado distraído ou cansado.
Por surdez profissional ou por usura,
por pura usura do trabalho acumulado.
De facto, não celebrei o dia como devia,
por fadiga, por pura fadiga física e mental.
Mas também por falta de co-celebrantes do ritual...
E ainda, confesso, pela minha falta  de sentido eclesial.

Por que deveria eu, ao fim e ao cabo,
ter o pesado encargo de celebrar
o Dia Mundial da Poesia,
por minha conta e risco ?


Não, não é nada pessoal,
simplesmente acontece que tenho
um ponto de vista mais esquizofrénico
sobre a relação dos poetas, vivos e mortos,
com o bem e com o mal.

Em Angola, na província do Uíge,
o vírus de Marburgo mata.
Ou matava outrora as palancas negras
e os ursos brancos e as lebres
no fim da pista.
Matava a cólera e a kalash,
na cidade de Bissau,
em lutas fratricidas.
E o sezonismo no Mondego.
Ou nos campos de arroz do Vale do Sado,
no tempo em que os escravos balantas cultivavam as nossas bolanhas.
Agora é proibido apanhar conquilhas.
Bem como montar minas e armadilhas
no troço da ponte Caium
entre Piche e Buruntuma.
E isso não é metafísica nenhuma,
é rigorosamente política,
pura e dura.
Ou é um caso de polícia sanitária.
Todavia não tira o sono a ninguém,
muito menos o sono de má qualidade
dos ex-combatentes da ex-guerra colonial.
Nem é notícia de jornal.
ou se o é, é fait-divers,
à falta de melhor título de caixa alta.

A verdade é que os fluídos do corpo matam,
o sangue, o suor, as lágrimas,
a saliva, a merda, o vomitado,
as secreções gástricas,o sémen,
o sangue, suor e lágrimas de Buruntuma,
em fim de tarde,
em final de filme de guerra a preto e branco.

Já a ministra da arte, exportável,
é mais democrática,
ao proclamar que a poesia quando nasce
é para todos.
Faço que não, com a cabeça,
mas digo: Ámen, muito obrigado.
Como qualquer cidadão, certificado,
acreditado, homologado,
avaliado, testado,
co-penetrado,respeitador,
respeitado,recenseado
vigiado, usado e abusado....
Ah!, com Cartão Único
e as contas da Segurança Social em dia.

Agora que eu faço
o meu exame de consciência,
à hora mortal do deitar,
como qualquer menino bem comportado,
falando com o seu anjo da guarda,
ou o seu director espiritual,
ou o seu personal trainer do fitness center,
ou o seu comandante de pelotão celestial
ou até o inefável capelão do batalhão,
vejo que o Dia Mundial da Poesia
passou ao meu lado,na rua,
a caminho do metro da Falagueira.
Dizia o outdoor:
"Feira da poesia: Saldos.
Apoio:  Junta de Freguesia".

No bairro do meu burgo,
onde os polícias se deixam matar
por balas de aço de calibre de 9 milímetros.
Mortíferas, tão mortíferas,
como as febres hemorrágicas
do Ébola e do Marburgo.
Ou os estilhaços do morteiro 120
em Buruntuma.
Ou o aço outrora bem temperado
da Sorefame e depois da Bombardier,
onde fui Prometeu Agrilhoado.
Pobre corpo, o meu, de intervenção
que não é imune aos vírus
nem às balas, nem aos estilhaços,
nem aos quatro humores dos deuses,
os bons e os maus.
Nem às ordens de despejo.
E ao passar rente ao muro,
de lancheira na mão,
do trabalho para casa,
e de casa para o trabalho
não pude deixar de ler o grafito,
ainda visível, a vermelho,
comido do sol:
"Lembra-te, ó Bófia, da Cova Moura!"

Não me adianta saber, como os doutores
que são pagos para pensar e para saber,
que os maiores poetas do mundo
andam distraídos
com a parte nebulosa do centro do planeta,
donde brota a água, o fogo,
a terra e o ar.
E o ciclone dos Açores.
E quiçá o Ébola e o Marburgo.
E a violência dita urbana.
E os rappers.
E os grafiteiros da minha rua.
E o lobo mau travestido de velhinha
a atravessar a passadeira
da segunda circular.
E o tsunami das entranhas da terra.
Da terra, a ferro e fogo em Buruntuma.
Dos novos ideogramas da ética
confuciana do trabalho.
Espantoso: nada mudou em Buruntuma.
Minto: chegou lá o telemóvel!

Não adianta saber que
os densímetros dos poetas
não captam a essência da coisa
e dos seus pormenores acidentais.
Ou das coisas que estão a acontecer
na subcapa do planeta.
É a própria existência da falta de água
que alimenta a vida
e rega o horto, seco, dos poetas menores,
que constitui o âmago do problema,
não o seu alfa e o seu omega.
Nada mudou em Buruntuma,
continuam a ser as mulheres
as aguadeiras.

É por isso que a poesia, sem âmago,
não se vende
nem chega às esquadras da polícia,
nem à Cova da Moura,
nem às escolas, nem às igrejas,
nem aos locais de trabalho,
nem aos campos de refugiados,
nem aos bares de alterne,
nem à tabancas dos fulas,
nem à fonte de Buruntuma,
nem às casernas dos tugas,
nem às tendas dos beduínos,
nem às tristes putas da minha rua triste
que tem nome de poeta que ninguém leu.
Nem aos oásis aprazíveis
da tua árida civilização,
nem à Casa Branca, nem ao Kremlin,
nem à Cidade Proibida,
nem às crianças do meu país
que são vítimas da violência ideológica
dos manuais escolares,
nem aos agentes patogénicos de Pasteur,
nem às dores do coma induzido...
Nem ao destacamento de Caium
onde matavas peixes à granada.
Nem ao soro a correr aos borbotões
na fronteira entre Buruntuma e o inferno.
É uma segunda pele,
que, por muito que te laves,
não te sai do corpo:
Buruntuma é uma tatuagem,
feita a ferro em brasa.
Ou talvez uma miragem.
Buruntuma ? Nunca mais.

A poesia, mesmo sem âmago nem alma,
mesmo a saldo
na junta de freguesia da Falagueira,
simplesmente não chega a a Buruntuma,
que foi outrora a minha casa.
Tal como a água do Alqueva
não chega ao monte
onde o meu velho se enforcou.
Não chega à boca do corpo
nem à boca de incêndio.
Nem a poesia nem a água nem a carta a Garcia chegam ao seu destinatário.
Ou se calhar ficam apenas nas mãos
do seu fiel depositário.
Do quarteleiro.
Do porteiro.
Do escriturário.
Do básico.
Do trolha.
Do relé parasita.
Do comutador.
Do canalizador do intestino.
Entre a angústia e o esófago
e o aperto mitral.
Do vago vago-mestre
que nos enfartava de bianda
e cavalas de conserva.
Ou chegam e eu não conheço o aqueduto
das Águas Livres
nestes tempos da poesia e da água
a conta-gotas.
A poesia e a água não chegam, juntas,
através dos canais de irrigação,
das condutas do gás,
das grandes cloacas,
dos cabos de fibra óptica,
ou até das correntes submarinas.
Não chegam nem por ar nem por mar.
Nem por meio do SPAM do terror.
em Buruntuma.

Quem leva a carta a Garcia
a dizer que a poesia caiu na rua
ou foi apanhada à unha?
Ou que o pombo-correio
foi abatido por um Strela.
Inútil Álvaro de Campos,
inútil Ode Triunfal,
pobre Fernando Pessoa,
menino de sua mãe,
pobre camarada de Crestuma,
morto no tabuleiro da ponte de Caium,
entre Piche e Buruntuma.

Há a poesia da punição, da inanição,
da oração, da expiação,
da desidratação, dos espamos,
dos orgasmos, da masturbação.
Há a poesia da baixa pressão diastólica
que nos entra pelos vasos sanguíneos
da fábrica do corpo humano
desde os tempos mais recuados
da Santa Inquisição.
Há a poesia mais terrorista,
a de conquista da Terra Santa,
a das Palavras Cruzadas,
a da paz e da guerra.
E aquela que é mais hedonista,
a existencialista
e a essencialista.
E há, enfim, a poesia-poesia,
sem adjectivos.

Para mim,
a poesia quer-se livre, de liberdade,
sem maiúscula,sem cinto de castidade
sem algemas, sem gemas de ovos
por causa das salmonelas.
A solução é desalfandegá-la,
desembrulhá-la,
descongelá-la,
pô-la viva,
esquartejá-la,
comprá-la,
cozê-la viva como a lagosta,
metralhá-la com o helicanhão,
comê-la,
violá-la,
canibalizá-la,
digeri-la,
degluti-la,
arrotá-la.
E proclamá-la artigo de primeira necessidade,
isenta de IVA
e de qualquer outra alcavala.
Mas, por favor, sirvam-na
com as tripas... à mostra!

A verdade é que
a poesia não se vende,
nem se trapaceia,
nem se come,
nem se defeca,
nos bairros ditos problemáticos
onde homicidas e suicidários
se acoitam na anomia do Durkheim.
Poesia é homicídio,
é droga,
é suicídio,
é para-suicídio,
é etnocídio,
é logocídio,
é blogocídio,
é crime contra a ordem pública,
é golpe de misericórdia,
é tiro atrás da nuca
da vil humanidade.
Ao poeta, ao boi e ao doido,
dêem-lhe o curro!
Diz o comissário.
Político ?
Ou de cabo de esquadra ?

Confesso que não dei por nada,
por ser Dia,
Mundial,
e para mais da Poesia.
Não dei por nada.
Não houve rancho melhorado.
Nem alvoroço do povo.
Nem fogo de artifício à beira rio.
Nem uivei à lua como um cão com cio.
Ou com raiva.
Que a raiva de cão também pode matar.
Tal como o cio.
E a xenofobia.
E as balas de borracha da polícia
na secção J do bairro de Chelas.
E o morteiro 120 em Buruntuma.
E a anomia do Durkheim.
E o HIV/Sida.
E a overdose.
E as febres hemorrágicas.

E a falta de fé, esperança e caridade.
E as dores menstruais do PIB
do nosso descontentamento.
E as águas barrentas
Do Rio Geba que escondem a bilharziose.

Ia caminho, dizia, da Falagueira,
deitando contas à vida
e ao passe social
do metro de Lisboa, da CP, da Carris e do Barraqueiro.
E ao que me resta, do mês,
do subsídio do desemprego,
do orçamento para o ano inteiro,
do deve-e-haver do cidadão,
mais que imperfeito,
periférico,
marginal-secante da lei e da ordem,
chutado do comboio em andamento.

Ironia:
com louvor na caderneta militar,
que te há de ser de algum proveito
em tu passando à peluda,
dizia o meu primeiro.
- Meu rapaz, Deus manda ser bom,
mas não manda ser parvo...

Não sou homem de pôr os pontos nos is,
nem as vírgulas entre o sujeito passivo
e o predicado pró-activo.
Nem muito menos os libertar os resíduos reactivos da Pátria.
Não sei poesia,
nem fazê-la
nem dizê-la,
nem cozinhá-la,
nem prová-la.
Não sei conjugar o verbo existir
quanto mais soletrar o difícil verbo
sobre-viver.

Em tempos, em Buruntuma, sabia de cor
alguns duros versos do Aleixo,
poeta maior,
popular,
marafado,
algarvio,
cauteleiro,
analfabeto,
guardador de rebannhos
como Alberto Caeiro,
cantor ambulante de feira em feira
como o didjiu do Gabu,
o Aleixo lírico,
irónico,
às vezes cáustico,
sarcástico.
Hoje seguramente info-excluído,
por que não teria email
nem registo na rede social do Facebook.
Ajudou-me a sonhar e a sobreviver em Buruntuma:
O homem sonha acordado,
Sonhando a vida percorre,
E desse sonho dourado
Só acorda, quando morre!

E aqui estou eu,
de vigília,
à massa falida da fábrica
à espera do camartelo camarário.
Desempregado,
supranumerário,
ex-soldado
da guerra do ultramar.
Ex-soldador,
miseravelmente despedido
por um robô.
Ou trocado.
Posto a um canto,
na lixeira social da Falagueira.
Por estar fora da validade.

O meu currículo ?
Uma merda,
com a sua licença,
de operário,
ou ex-operário industrial.
Alentejano de nascença.
Por sinal, pouco esperto.
Corre, espermatozóide, corre,
que a cegonha ainda te confunde
com um lagostim americano
da barragem do Alqueva!

Estado civil ?
Casado,
mal encarado.
Situação no trabalho ?
Trabalhador, descartável,
sem lugar
na Eurolândia da excelência prometida.
Qualificações ?
Soube em tempos matar & morrer.
E desmontar e montar a G3
em tempo recorde.
Expectativas ?
Pensava que me restava o punho,
erguido,
à espera da luta,
à espera que a luta continue,
mesmo devagar,
sem esmorecer.
Da luta por causas perdidas.

Prognóstico?
Reservado...

Se ontem foi Dia Mundial da Poesia,
devo dizer que o dia foi mal escolhido.
Digo-o aos senhores do mundo e do tempo
ou aos catedráticos das letras por protestar no banco.
Digo-o com pena e com mágoa,
mas sem raiva nenhuma,
acrescento, em jeito de adenda,
que me resta o dia de hoje,
o qual, para não voltar a esquecer-me,
apontei ontem na agenda:
22 de Março,
"Dia Mundial da Água.
Que tempo fará em Buruntuma" ?

Guiné 63/74 - P6036: José Corceiro na CCAÇ 5 (7): Canjadude debaixo de ameaça

1. Mensagem de José Corceiro* (ex-1.º Cabo TRMS, CCaç 5 - Gatos Pretos -, Canjadude, 1969/71), com data de 19 de Março de 2010:

Caros camaradas Luís Graça, Carlos Vinhal, J. Magalhães
Venho com estima relatar um pouco da actividade operacional da CCAÇ 5, no condado de Canjadude, Guiné.
Deixo ao vosso critério a publicação, ou não, da mesma, assim como a inclusão das fotos.
Um Abraço
José Corceiro


José Corceiro na CCAÇ 5 (7)

CANJADUDE DEBAIXO DE AMEAÇA


Não sei quais as fontes, mas há apreensão e é voz corrente que o IN vai flagelar de novo a CCAÇ 5 brevemente. Tem havido por aqui muita actividade operacional, desde que Canjadude foi flagelado pela primeira vez, em 11 de Julho 1969. Comenta-se que o IN estará a estruturar e preparar uma base operacional no Bormeleu, perto do Cheche, junto ao rio Corubal para nos atacar.

No dia 19 de Julho, a CCAÇ 5, juntamente com outras forças, realizaram uma operação no mato durante três dias, para os lados do Bormeleu, que dista de Canjadude cerca de 20 a 25km, eu fui integrado como responsável pelas comunicações do AN/PRC-10, junto do Comando.

O AN/PRC-10 é um emissor/receptor móvel, de frequência modelada, praticamente impune às interferências de ruídos parasitas nas suas comunicações, destaca-se a qualidade sonora comparativamente com aparelhos de amplitude modelada. Foi concebido essencialmente para comunicações de terra para meios aéreos e vice-versa, tem uma boa qualidade sonora e as ondas de difusão neste meio, terra/ar, não têm praticamente obstáculos físicos, aos quais as ondas de frequência modelada são sensíveis. Para comunicar em terra neste teatro operacional, plano e com arvoredo, o seu alcance é limitado, não só pela potência do equipamento emissor que é fraco em watts (0,9W), mas também devido às características das suas ondas, frequência modelada, cuja propagação é prejudicada por obstáculos físicos; para obstar a esta característica negativa, nos Aquartelamentos, há necessidade de montar um suporte físico, mastro, com altura razoável, com uma antena vertical instalada no topo do mastro, que optimiza a recepção e emissão do AN/PRC-10. Tem ainda um outro inconveniente nas comunicações, o chamado efeito de captura, isto é, perante dois equipamentos a emitir na mesma frequência para um terceiro equipamento receptor, (central) este selecciona o sinal de maior potência ignorando o mais fraco.

Foto 1 > AN/PRC-10 deitado > Vista do painel de comandos e respectiva legendagem.

Foto 2 > Canjadude > Corceiro no mastro onde estava instalada a antena do PRC-10

Os equipamentos mais utilizados nas comunicações terrestres são: (desprezando o AVP-1 de fraco alcance) AN-GRC-9 e RACAL-TR-28, este último já transistorizado, (menos consumo de energia e outras performances tais como, a maleabilidade e maneiro) e tem comutador de canais com posições de frequências definidas, associado a cada posição um cristal específico com frequência pré-estabelecida, facilita a sintonia e torna-o mais versátil e preciso, tem ainda a vantagem de ter terminal de antena dipolo, que se pode montar entre duas árvores, beneficiando consideravelmente as comunicações com esta antena instalada na horizontal, tão alto quanto possível. No AN/PRC-10 para tirar o máximo de partido das suas emissões/recepções com outra antena que não a segmentada, a antena tem que ser montada na vertical e acima dos obstáculos, o que no mato por vezes se torna improvável ou até impossível. Não podemos desprezar as interferências atmosféricas, para a propagação das ondas hertzianas de emissão e recepção, visto haver influência com adversidades e vantagens.

Como comecei por explanar, o dia 19 de Julho saí para uma operação no mato, em que a progressão foi muito difícil, pois tivemos que andar quase todo o dia dentro de água, algumas vezes até à cintura, as bolhanhas estão todas alagadas e a chuva durante o percurso caiu a potes. Acampamos para passar a noite, todos encharcados e exaustos, e para nos atiçar as amarguras e sacrificar ainda mais as nossas mazelas, durante a noite choveu torrencialmente. Ao despontar da aurora levantamo-nos do chão que estava ensopado e enlameado, todos emporcalhados a contorcermo-nos com dores lombares e actividade muscular entorpecida, além de estarmos arreganhados pois de noite com a chuva refrescou. Não sei como os nossos corpos suportam tamanhas adversidades? Progredimos operacionalmente, neste segundo dia, em trilhos menos alagadiços, o tempo com abertas e alguns aguaceiros, passamos bem melhor que ontem.

Entretanto, as forças operacionais separaram-se em dois grupos, seguindo trajectos distintos. Durante estes dois dias não detectamos vestígios alguns, que denunciassem a presença de humanos por aqui. O grupo no qual eu estava integrado avançou em direcção a um morro, que escalamos com muito esforço, tinha acessos dificultados, não só pela vegetação que nos enleava, mas também devido às vertentes do terreno muito declivosas, com um trilho muito íngreme e escorregadio e com frequência o pessoal estatelava-se no chão e rebolava. Foi com imensa labuta, que trepamos até ao topo do morro tão escarpado era o trajecto, que mais parecia ser escalada de alpinista. Instalámo-nos no topo do monte para comer a ração de combate. Ainda não tínhamos acabado de comer, desencadeou-se tamanha berraria provocada pela agitação e algazarra dos macacos-cão, no sopé do morro, que segundo os entendidos que bem conheciam estes sinais de alarme, era revelador que algo de muito estranho por ali acontecia. Todos, apressadamente, nos preparámos para abandonar o local e começar a descer. Foi neste momento que avistámos um pouco para lá da base do morro, pessoal IN a fugir em debandada. Eu pessoalmente vi uma ou duas pessoas, houve quem dissesse que viu mais de meia dúzia de elementos com armamento. Descemos apressadamente, por trilho muito acidentado, ladeiroso e inclinado, onde os tombos do pessoal eram constantes e alguns caiam e deslizavam no chão 2 e 3 metros, pela acção das forças da inércia e gravidade, tal era a inclinação da encosta. Afigurava-se que a todo o momento, houvesse algum acidentado o que felizmente não aconteceu (atenda-se que estávamos para os lados do Bormeleu e Cheche, onde havia algumas montanhas que tinham continuidade atravessando o rio Corubal em direcção a Madina de Boé). Havia necessidade de descer rapidamente, por se recear que estivesse em curso a montagem de uma emboscada às NT, e não nos podíamos expor a essa fragilidade de dar vantagem e oportunidade ao IN.

Foto 3 > Pequena amostra de obstáculos a vencer para subir o morro

Foto 4 > Corceiro no topo do morro a comer a ração de combate

Chegados à base do morro já o IN se tinha escapulido, pois não se descobriu nem proveniência nem refúgio do grupo, que se evaporou nos meandros emaranhados da floresta, sem que ninguém mais o visse. Ao que parece o IN vinha em fuga do outro grupo das NT, que não se apercebeu absolutamente de nada.
É surpreendente o comportamento do IN em virtude da localização da CCAÇ 5, estarmos tão próximo de redutos inimigos e não sermos atacados com outra assiduidade, pois somos o último Aquartelamento e o mais periférico aqui da zona, para além de Canjadude está o Cheche já abandonado, na margem direita do rio Corubal, atravessando o rio é zona de Madina de Boé. Está provado que há por aqui actividade IN. No espaço de oito dias o inimigo é visto duas vezes nestas bandas e Canjadude sofreu uma flagelação cujo itinerário utilizado pelo IN foi nesta direcção!

Será que nos poupam por sermos uma Companhia com nativos, ou será que estão a preparar alguma orquestração com maestria, ou terão receio de se envolver com a CCAÇ 5?!

Fisicamente todo o pessoal está muito stressado, pelo esforço despendido no dia de ontem a caminhar grande parte da progressão dentro de água que foi deveras extenuante, a noite foi chuvosa muito desconfortável e tão sofredora, hoje a subida e descida do morro tão desgastante, esta tarde de Domingo tem sido bem mais tranquila, e acampamos já os dois grupos juntos, para passar a noite, sem que tenha havido acontecimentos dignos de registo, e mais, sem necessidade de evacuações.

A noite passada não choveu. Hoje progredimos no terreno sem termos encontrado o mínimo vestígio de presença IN. Ao meio da tarde fomos ao encontro das viaturas, onde chegamos já com alguns homens a arrastarem-se, no limite das suas forças, tudo exaurido. Chegamos ao Aquartelamento exaustos fisicamente e alguns a precisarem de tratamento clínico, com bolhas nos pés e “impinges” a nível das virilhas, devido ao demasiado tempo que se caminhou dentro de água, que é propício ao desenvolvimento de dermatofitose (micose cutânea provocada por fungos).

O dia 22 de Julho, deram-nos a informação que neste dia Canjadude ia ser flagelado, o pessoal ficou todo de prevenção, praticamente ninguém dormiu à espera do ataque, com tudo às escuras, pois desligou-se o gerador da energia eléctrica do destacamento. Não houve ataque.

Tem continuado a actividade operacional intensa, saídas para o mato quase diárias, mas nada de vulto há a registar, a não ser a dificuldade na progressão do pessoal, devido ao alagamento das bolanhas que tornam muito difícil caminhar dentro de água, muitas das vezes até à cintura e mais.

Dia 27 houve mais uma operação para o mato, mas a meio da tarde tivemos que ir buscar o pessoal com as viaturas, pois cinco ou seis militares ficaram incapacitados de progredir devido a doença.

Dia 1 de Agosto, fui com um grupo para garantir segurança e assegurar comunicações a um Furriel e um Cabo, “Radiolocalizadores”, na picada do Cheche, próximo do começo da pista aérea de Canjadude, para referenciar coordenadas de emissão de rádio, que já tinham sido registadas em mais dois lados.

Dia 8 sai para o mato às 06.00h em operação de dois dias com dois pelotões. Saimos em direcção ao Cheche e depois flectimos para a esquerda e entrámos em zonas alagadas onde caminhamos grande parte do dia dentro de água, por vezes até à cintura. Fomos pernoitar a Canducuré tendo chovido praticamente toda a noite. Logo ao alvorecer levantamo-nos todos a tiritar e começamos a caminhar dentro de água rumo a Canjadude onde chegámos ao fim da manhã.

A actividade operacional tem continuado muito movimentada, praticamente todos os dias há saída para o mato e há informações consecutivas a dizer que Canjadude vai ser flagelado.

Dia 11 de Agosto, houve evacuação de militar devido a fractura do pé.

Dia 14, operação de dois dias.

Dia 17, tudo no Aquartelamento numa labuta constante a fazer limpeza de higienização e pôr tudo em ordem, pois chegou mensagem a informar que amanhã, dia 18, o Delegado do Governador da Província vem a Canjadude.

Dia 18, tudo devidamente fardado e aprumado, mas o Delegado não apareceu.

Dia 23, os Pára-quedistas, vindos duma operação, aqui na nossa área, chegaram a Canjadude carregados de material de guerra capturado ao IN num assalto a uma base deste. Não houve feridos dignos de registo e segundo disseram muito outro material seguiu de Heli.

Dia 24, mais uma operação de três dias, em que fui eu e o Silva de Transmissões. As bolanhas continuam alagadíssimas e a necessidade impõe que a todo o momento tenhamos que caminhar dentro de água. As noites no mato são agitadas e inquietantes, ora mosquitos, ora chuva, ora dores lombares, não dá para minimamente tonificar e descansar. Fisicamente há muito pessoal a ficar exausto. Regressamos dia 26, com o pessoal a dar sinais de fadiga preocupante, e sem que haja o mínimo de estímulo palpável, que justifique todo este esforço, ainda que o não sermos atacados é por si óptimo. Tenho a percepção que o pessoal da CCAÇ 5, está ansioso e precisa de cintilar, (fazer ronco) como brilharam os Pára-quedistas, que apanharam tanto material de guerra aqui na nossa área de intervenção!

Foto 5 > Dia 24 de Agosto > Caminhar dentro de água na bolanha de que não recordo o nome

Foto 6 > Dia 24 de Agosto > Momento de pausa. Da esquerda para a direita: Silva das Transmissões, um camarada de quem não recordo o nome, Fur Mil Cabrita e outro camarada de quem não me ocorre o nome

Foto 7 > Algum do armamento apanhado pelos Pára-quedistas ao IN na zona de Canjadude. Foto que me foi enviada por um Pára

Para baixar mais o moral e desalento no pessoal, já uns tempos que o comer tem sido de péssima qualidade no Aquartelamento, até já aconteceu virem caganitas de ratos no arroz já cozinhado. Um destes dias o comer era dobrada, intragável, pois tinha uma fetidez arrepiante, que ninguém conseguia inalar, quanto mais tragar. Como as desgraças andam sempre aos pares, está a tornar-se habitual passarem mais de oito dias sem recebermos correio, quando era norma haver distribuição duas e três vezes por semana e isto perturba o equilíbrio emocional e desanima os metropolitanos.

Para todos o desejo de muita saúde, um abraço.
José Corceiro
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5996: José Corceiro na CCAÇ 5 (6): Pânico no abrigo norte, crocodilo à vista

domingo, 21 de março de 2010

Guiné 63/74 - P6035: Notas de leitura (81): O Pé na Paisagem, de Filipe Leandro Martins (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Março de 2010:

Queridos amigos,
Não será possível, um dia que se escreva detalhadamente o que foram os nossos preparativos para a guerra, iludir a existência de um relato tão vigoroso, aliás a alavanca de um escritor confirmado. Muitos de nós, lendo-o, regressamos às Caldas da Rainha ou a Mafra, a uma vivência perturbante que desencadeou tantas mudanças na nossa vida.
Peço aos mais virtuosos que não se enfureçam por ele não ter ido para África.
O Filipe Leandro Martins é leitura indispensável na justa medida em que possui um olhar sobre o nosso tempo, na recolha das ideias, de valores e atitudes dos rapazes que fomos. O seu olhar anti-colonialista e anti-militarista. Que também existiu.

Um abraço do
Mário


Os preparativos para a guerra: a caserna, o aparato, o espelho da Nação

Beja Santos

Nunca me fora dado ler um relato tão vincado, minucioso, expressivo da sequência da chegada para a recruta, as suas andanças, a nova vida de relação, a passagem para a especialidade, as dúvidas, as pesadas decisões. Em “O Pé na Paisagem”, (Editorial Caminho, 1981), Filipe Leandro Martins procura dar-nos corajosamente todo esse itinerário, o pulsar da caserna, os encontros e desencontros com a cadeia do comando, a atmosfera da vida promíscua, a preparação física, o discurso ideológico reinante. De algum modo, estamos todos lá enquanto geração das casernas, movendo-nos entre o quartel e o fim-de-semana, todo o roteiro que levou a generalidade até ao embarque e outros à deserção. É um relato a vários títulos poderoso, combina o realismo com o expressionismo, deixa as entranhas da engrenagem militar, obriga-nos a rever corredores, instrução, novas amizades, a carreira de tiro, a expectativa de partir para uma frente da guerra, lá longe, no completo desconhecido.

O arranque do romance é quase cinematográfico: “O comboio deixou-nos na cidade com mais ou menos vinte anos. Saímos aos trambolhões, entre malas e saquinhos, berrando uns pelos outros com a solidariedade de bairro, de vila ou de escola. Eu vinha só com a mala pesadíssima que trazia de casa para a caserna que nos esperava, velhaca. Arrastávamo-nos com pressa, desancados pela viagem, pelas bagagens, pelo sol provinciano à uma da tarde no largo amarelo da estação e ouvi alguém gritar o meu nome uma porrada de vezes antes de me voltar”. Segue-se o cerimonial da entrega dos materiais e a chegada à caserna, tudo em tropel, o pessoal deslumbrado pela novidade, intimidados: “Sombras chinesas falavam aos berros, contraditórias e desmoralizantes – já não davam mais lençóis ou só havia botas das pequenas, ou não distribuíam mais fardas nessa noite e amanhã estás lixado que tens de aparecer fardado, despacha-te que o quarteleiro está a dar a roupa da cama... Deram-me duas mantas castanhas e esburacadas, um par de lençóis duros e molhados. Quando voltei ao boliche já a minha cama estava feita e ocupada por uma feroz sombra a ressonar. A caserna ia abrigar cerca de duzentos instruendos, uma companhia de instrução dividida por muros até meia altura e um corredor lateral percorria todo o casarão até aos lavabos e às cagadeiras. Em cada compartimento duas filas de camas em beliches de ferro, assentes no ladrilho encardido, o ferro pintado a descascar-se nas camas e nos cacifos, os colchões de palha endurecidos por gerações de guerreiros que ali tinham cultivado o sono.

São rostos cansados, insones, gente que grita, há quem ande à procura de receber ordens, há gente com fome, há gente que conta histórias, algumas delas horripilantes sobre o que se passa em África. Tocam clarim e alguém grita: “Esta é que é a puta da segunda companhia?” Da desorganização aparece a ordem de um quartel inteiro: “Depois começou a chamada, milhões de nomes a acertar com números, e a fome a roer. Depois firme. Sentido. Os braços esticados, dedos juntos, olhar em frente. Não mexe. O furriel deu um passo em direcção a nós, perna estendida, patada no chão. Deu meia volta, muito teso. Fez a continência a um homem franzino, enquanto a malta bichanava que era um alferes. O alferes fez um gesto mole em resposta, virámo-nos para a direita e lá fomos a caminho do refeitório, a toque de caixa”.

Surgem as novas relações, aprende-se a importância de engraxar as botas, revelam-se as manigâncias de quem quer uma cunha para fugir a África.

Começam as aulas teóricas e práticas, aprende-se a limpar a arma, a correr e a saltar, os ensinamentos da táctica são muito importantes. A permanente obsessão das botas engraxadas. Vai ser assim até ao juramento de bandeira. De quando em vez, o autor pontua a vivacidade da descrição introduzindo monólogos: Norberto, o fura-vidas, sempre a procurar desenrascar-se, o seu sonho é ser amanuense; o tenente Estêvão que meteu o chico porque gostava da tropa, era ali que estava a juventude do país e que se maravilha com as qualidades da raça. Na especialidade, a qualidade da comida é degradante. Os instruendos combinam, encenam um protesto colectivo: “Sentámo-nos no refeitório, veio a sopa, uns três ou quatro cabos milicianos mandavam aos soldados fazer a distribuição, a malta comia calada. Começaram depois a distribuição da segunda terrina, o pivete anunciava a desgraça. Era mesmo a papa de peixe. O meu pescoço passou de gelado a arder. O Marcelino levantou-se e berrou:

“Não pode ser! Não como isto, catano!”

Outro gajo, quatro meses adiante deu também um berro: “Isto está mas é podre. Olha-me pra este cheiro!”

Na minha mesa um tipo com ar sabido puxou a terrina e estendeu o prato, agarrou na concha. Ia começar a servir-se. O Marcelino agarrou-lhe um pulso: “Ninguém come. O primeiro a comer desfaço-o, meu cabrão!”
Havia de repente seis mesas a recusarem-se... A porta abriu-se. O tenente Estêvão entrou. A malta calou-se.

“Que é isto? Um levantamento de rancho? Ora vamos lá a ver. É um levantamento de rancho?”

O tenente Estêvão avançou para nós, para as mesas do pelotão que ele comandava, para a malta dele. O Lourenço pisou a bota do Marcelino e falou, apontando a terrina: “O meu tenente, cheire lá isto aqui. É de mais. Já não é a primeira vez que nos fazem uma destas. Isto está podre, meu tenente.”

O tenente acercou-se. Virou-se rapidamente: “Tudo sentado. Se a comida estiver boa estão lixados comigo!” Pegou numa colher, revolveu a papa, cheirou. Provou.

“Vá chamar o cozinheiro”, disse para um cabo miliciano. A malta ficou a esperar em silêncio, alguns desfaziam o pão com as mãos desocupadas. O cozinheiro chegou a escorregar nas botas oleosas.

“Você quer que eu lhe meta a cabeça aí dentro? Anda cá, anda cá, queres que te obrigue a comer esta merda? Vai chamar o sargento!”

“O nosso sargento vai abrir umas latas de atum, vai cozer umas batatas. Quero isso rápido”, disse o tenente ao sargento que vinha vermelho da corrida... [O tenente] virou-se para a gente, levantou a voz:

“Vocês, cuidadinho! Não quero ouvir falar em levantamentos de rancho. Se eu sonho que queriam fazer um levantamento, já sabem: apanham uma porrada que nunca mais têm vontade de reguilar. Não quero cá reguila nem gandulos. Mas se houver algum problema venham ter comigo. A minha tropa não come merda. Ninguém sai daqui até acabar o almoço!”

Tinha-nos lixado tudo. Em vez de um levantamento de rancho apenas conseguíramos que a malta ficasse devotada ao tenente Estêvão.

Filipe Leandro Martins é escritor e jornalista. Nasceu em Lisboa em 1945, fez o curso de sargentos nas Caldas da Rainha e foi destinado à especialidade de atirador. Mobilizado para a Guiné, escolheram-no para o curso especial de minas e armadilhas. De Santa Margarida, aproveitando as férias que antecedem o embarque, desertou em Outubro de 1968, exilou-se na Bélgica. É jornalista profissional desde 1976 (chefe de redacção do jornal Avante!).

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6017: Notas de leitura (80): Abalada do Pidjiguiti, de Manuel Viana (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P6034: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (13): Perigo, mina na estrada Bissorã-Olossato

1. Outra nota solta do nosso camarada Rogério Cardoso (ex-Fur Mil, CART 643/BART 645, Bissorã, 1964/66), enviada em mensagem do dia 16 de Março de 2010.


NOTAS SOLTAS DA CART 643 (13)

Atenção, mina na estrada Bissorã-Olossato


Estávamos nos primeiros meses de 1965, o quotidiano da Cart 643 era sempre igual para os não operacionais, mas no final de um destes dias, o comandante de companhia, Cap Ricardo Silveira mobilizou extraordináriamente o condutor Benjamim Salgado, Substiken de alcunha, e o seu Unimog, viatura que servia habitualmente a cozinha no transporte de géneros, à ordem do Furriel Vaguemestre Massano (falecido).

Pelo fim da noite sairam para o Olossato dois pelotões, como reforço da guarnição local por alguns dias, e no meio da coluna ia o citado Unimog carregado com géneros alimentícios para esse período.

Eram cerca de 21,00 horas, passados uns 3 quilómetros, deflagrou uma mina anticarro, precisamente na terceira viatura conduzida pelo Benjamim Salgado, onde o Fur Massano ocupava o lugar ao lado do condutor.

Por sua vez a mina fez explodir os dois depósitos de gasolina, o Fur Massano é cuspido com a explosão e sofre queimaduras ligeiras nas mãos e rosto, mas o condutor sai da viatura bastante queimado, em virtude de ter de sair pelo lado contrário. O Unimog por não ser operacional usava as portas de origem e a do lado dele não abriu, pelo que ele saiu a arder pela do lado contrário numa verdadeira tocha humana.

Com uma cena desta natureza, a coluna não seguiu o trajecto inicialmente previsto, voltando para Bissorã para socorro dos feridos.
O Substiken apresentava queimaduras extensas no peito e pescoço, braços e mãos, com certa gravidade. Foi socorrido pelo médico da companhia Dr Lourenço, Furriel Enfermeiro Peixoto (falecido), Cabos Enfermeiros e alguns voluntários, entre os quais eu mesmo.

Durou até de manhã o nosso acompanhamento, até que chegou o heli para o transportar para o HM241, donde por sua vez, devido à gravidade do seu estado, foi transferido para o HMP de Lisboa.

Unimog destruido pela mina. A viatura incendiou do que resultaram 2 feridos, o condutor (natural de Barcelos), que tinha a alcunha de Substikem, (grave), e o Fur Mil Vaguemestre Massano, (ligeiro). Este último já faleceu.

Nunca mais soubemos dele, até que há dois anos apareceu no 28.º Encontro Anual da Associação de Amizade do Bart 645 - Aguias Negras, isto passados 43 anos, sendo uma grande alegria para todos nós, uma vez ele era um moço extraordinário no convívio diário e muito bem formado.

Mas voltando à saida frustrada, como é que o IN soube da nossa saída e quem colocou a mina, se a ordem foi-nos comunicada muito pouco tempo antes?

A incógnita e o pensamento não nos largava, tínhamos de "vingar" o nosso amigo. Até que um dia num interrogatório a um comerciante dono de uma "tasca", o célebre Papa, suspeito de ser informador do PAIGC, o que se veio a confirmar, contou como foi.

O posto de socorros militar era composto por uma sala que fazia parte do edifício que era também enfermaria civil. Essa sala tinha uma pequena janela interior, chamada janela de bandeira, ou basculante, que estava sempre aberta, assim quem estava do lado civil ouvia todas as nossas conversas, uma falta nossa. Nesse dia o enfermeiro civil, natural da Guiné, escutou a ordem com pormenores, dada a um cabo enfermeiro para se preparar.

Saiu, foi a casa, pegou na bicicleta e num saco de pano com a mina, indo colocá-la na estrada pouco tempo antes da nossa saída.

Claro que levou meses a ser descoberto o enigma, mas se o Sargento Miliciano Hipólito ainda fosse vivo, iria contar para nós o que aconteceu depois.

Todos os elementos da Cart 643 respiraram de alívio, o nosso amigo Substiken estava vingado.

RC
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5995: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (12): Galinhas bem temperadas

Guiné 63/74 – P6033: O meu álbum de fotos (2) (Alfredo Dinis)

1. O nosso Camarada Alfredo Dinis, que foi 1.º Cabo Enf da CCS da CART 6523 - Nova Lamego -, 1973/74, dando continuidade à publicação das suas fotos (poste P5369), enviou-nos em 21 de Março de 2010, mais as seguintes fotografias:
Camaradas,
Hoje envio mais algumas fotos, todas elas das minhas "férias" passadas em Nova Lamego.
Brevemente enviarei algumas fotos de rara oportunidade, obtidas após uma mortífera emboscada que nos preparou o PAIGC, onde sofremos 7 mortos e 2 feridos com gravidade.


O navio Niassa que nos transportou para a Guiné em 6 de Julho de 1973
Nova Lamego: Eu à entrada de uma moradia
Nova Lamego: Passeando entre a população local
Nova Lamego: Uma das inúmeras progressões no Rio Corubal
Nova Lamego: As lavadeiras na famosa Fonte do Alecrim
Nova Lamego: Um Fiat G86 pronto para arrancar carregado de "ameixas"
Nova Lamego: Um DC3 (vulgo Dakota) em operação de rotina
Nova Lamego: Uma DO 27 que levava e trazia pessoal e o indispensável correio

Nova Lamego: Um Alouette III cruzando os céus
Nova Lamego: Eu junto da célebre ambulância capturada pelo grupo do lendário operacional Marcelino da Mata ao PAIGC
Um abraço para todos,
Alfredo Dinis
1º Cabo Enf CCS do BART 6523

Fotos: Alfredo Dinis (2009). Direitos reservados.
Emblema de colecção: © Carlos Coutinho (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

15 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5994: Estórias avulsas (77): A minha viagem à Guiné-Bissau (José Casimiro Carvalho, Fur Mil Op Esp/RANGER da CCAV 8350)

Guiné 63/74 - P6032: Os nossos seres, saberes e lazeres (18): Conversa com o meu neto (Jaime Machado)




1. Do nosso camarada, Jaime Machado*, ex-Alf Mil Cav, Pel Rec Daimler 2046, Bambadinca, 1968/70, que pintou nas telas motivos da Guiné, que agora virou poeta, graças à força do amor por uma coisinha delicada, frágil, motivo de canseira e desvêlo de toda a família, o seu neto, recebemos este poema:





Conversa com o meu neto

Quando tudo já parecia uma rotina
Com a noite igual ao dia
Disseram que no ventre havia uma semente
Que grande alegria!

E depois, esperando sempre,
Dia após dia
O ventre crescia
Crescia a alegria!

Já chegava de mortes e desnortes!

E agora que vens a caminho
Chorando baixinho, sem grande pranto,
Já te amo tanto.
Dou-te todo o meu carinho de noite e de dia,
Que grande alegria!

E um dia disseram que vais ser rapaz
E se não fosses? Que importaria?
De qualquer forma e em qualquer momento
Haveria alegria e contentamento.

E um dia vou ver-te a correr pelo pátio
De bicicleta ou de trotineta
De um lado para o outro,
Espero estar cá!

E no outro dia
Vou ver-te cavalgar
No meu dorso vergado, em deslumbramento,
Sem qualquer lamento
Espero estar cá!

E agora que vais descansar
Vou acabar
Esta espécie de versejar.

Até amanhã
Pela manhã
É já outro dia
Que grande alegria!

Agudela, 22 de março de 2009
Avô Mito
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 17 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6008: O 6º aniversário do nosso blogue (10): 40 anos depois do meu regresso, a 9 de Abril de 1968, volto à Guiné, a Bambadinca... E tudo isto, por culpa do nosso blogue (Jaime Machado)

Vd. último poste da série de 21 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6031: Os nossos seres, saberes e lazeres (17): Cruzes, Canhoto: O novo CD da caixa de música do Bilocas e dos seus amigos... (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P6031: Os nossos seres, saberes e lazeres (17): Cruzes, Canhoto: O novo CD da caixa de música do Bilocas e dos seus amigos... (Luís Graça)



Toque de Caixa. Ao Vivo. Lisboa, FNAC, Colombo, 12 de Março de 2010. Apresentação do novo CD do grupo, Cruzes Canhoto. Edição: Ocarina. Porta-voz (e co-fundador) do grupo: Abílio Machado  (que esteve connosco em Bambadinca, entre Maio de 1970 e Março de 1971;  ex-Alf Mil, CCS / BART 2917, Bambadinca, 1970/72; fizemos lá uma bela amizade: ele, um periquito, um alferes de secretaria da CCS, e nós, operacionais, pretos de 1ª classe, da CCAÇ 12, uma companhia de intervenção africana, ao serviço dos senhores da guerra de Bambadinca e de Bafatá; nós, eu, o Humberto Reis, o Tony Levezinho, o Zé da Ilha, o GG - Gabriel Gonçalves e outros, noctívagos, que gostávamos de cantar, beber, conviver, de preferência, pelas altas horas da noite...

Vídeo: 2' 20''.   ©  Luís Graça (2010). Alojado no You Tube > Nhabijoes. Reprodução com a devida autorização do grupo.


 


Toque de Caixa. Novo CD: Cruzes,  Canhoto. Tema 4: Em Tarde Ser (Miguel Teixeira / Albertina Canastra)... Um dos temas mais bonitos do novo CD. Primeiro estranha-se, e depois entranha-se...

Vídeo: 5' 25''. © Luís Graça (2010). Alojado no You Tube > Nhabijoes. Reprodução com a devida autorização do grupo.



Elementos do grupo: Miguel Teixeira: Cordas;  Horácio Marques: Cordas;  Albertina Canastra: Acordeão, Concertina;  Fernando Figueiredo: Baixo;  Emanuel Sousa: Violino, Bandolim;  Teresa Paiva: Gaita de Foles, Flautas;  Tiago Soares : Percussões;  Pedro Cunha: Piano;  Abilio Machado : Voz e Percussões.


No sítio oficial da banda pode ler-se o seguinte sobre a sua história:

(i) O Toque de Caixa nasceu, na cidade da Maia,  com os cantares de janeiras, no natal de 1985.

(ii) O gosto comum pela música tradicional fez com que os seus músicos, um grupo de amigos, prosseguissem a recriação de novos ambientes sonoros.

(iii) O moderno e o antigo são elementos de fusão para uma "nova música tradicional".

(iv) Entre Julho e Setembro de 1993 grava com a editora Numérica o disco histórias do som (**) que faz a sua edição em Novembro em colaboração com a Cooperativa Cultural Etnia.

(v) Este disco foi considerado, nesse ano, o melhor trabalho de música popular portuguesa, pela principal crítica especializada nacional.

(vi) Ao longo anos da sua existência, o grupo participou em vários festivais e encontros musicais de grande renome e importância a nível europeu. Actuou em França, Espanha, Alemanha e Grã-Bretanha.

(vii) Neste último país fez duas digressões participando entre outros, em prestigiados festivais como os de Lincoln, Llangollen, Pontardawe, Garden Festival e European Arts Festival, Eurofolkus Festival, juntamente com Maddy Prior, Dave Swarbrick, Kathryn Tikell, etc…

(viii) Está, também a nível discográfico, representado internacionalmente na editora Elipsis Arts, de Nova Iorque, em duas colectâneas com distribuição mundial.

(ix) Acabou de editar o novo disco Cruzes Canhoto, fim do ano de 2009.

(x) Em Lisboa, o disco foi apresentado na FNAC Colombo, no dia 12 do corrente.

Com a simplicidade que o caracteriza e a magia que ele tem para descobrir talentos e juntar pessoas à volta de projectos ou simples afinidades (neste caso, o gosto da e pela música), o Abílio disse tudo isto por outras palavras (**):

"O Toque de Caixa surge em 85/86, quando, tendo mudado a minha morada para a Maia, encontrei um grupo de jovens com potencialidades que me pareceu de aproveitar. Criou-se um grupo base, no início ainda demasiado numeroso, que se foi depurando ao longo dos meses de elementos com menos qualidades. Os inevitáveis contactos com outros grupos da zona do Porto permitiram que, por alturas de 90, se desse uma espécie de fusão com outro grupo em desagregação.


"Um outro processo de decantação ao longo do tempo permitiu que rapidamente o Toque de Caixa adquirisse uma qualidade que manifestamente não tinha nos seus primeiros tempos. Era a altura do director musical (era eu) ceder o lugar a quem mais sabia da marinhagem em tais ondas. Em boa hora o fiz, pois corríamos o risco de afogamento por cansaço ou inanição" (...).

Alguns dos nossos amigos e camaradas da Guiné, e sobretudo alguns leitores mais distraídos, poderão perguntar: Mas o que é estes gajos têm a ver connosco ? Não andará para aqui publicidade encapotada para ajudar os amiguinhos, à boa (ou má) maneira portuguesa  ?... Rejeito redendondamente essa malévola insinuação...

Esta série chama-se Os Nossos Seres, Saberes e Lazeres, e pretende divulgar os diversos talentos dos membros da Tabanca Grande, os nossos saberes, incluindo o saber-ser e saber-estar... Sem esquecer os nossos lazeres... Por aqui já passaram referências a diversas actividades artísticas ou criativas, ou simplesmente culturais (incluindo as gastronómicas). 

É uma série que serve para a gente se dar a conhecer melhor uns aos outros, divulgar as coisas boas e lindas do nosso Portugal (ou da nossa Guiné...).

Pois é, se me permitem uma sugestão: comprem o CD  na loja de música mais próxima (na FNAC foi lançado a menos de 14 €), e ponham-no a tocar no vosso carro... Aqui só nos posso dar um cheirinho... Na página do grupo, poderão encontrar mais alguns registos áudio: 3. Fado da Gaita; 14. Janson; 15. Senhora dos Remédios... Um dos meus temas de eleição é o 11. Fiadouro (Tradicional Miranda do Douro)...

E como hoje Dia Internacional da Poesia, aqui fica a letra (popular) do tema Fiadouro:

Qu' estrigas tenho na roca,
que maçaroca eu farei,
que amores tão lindos tenho,
sem os buscar, os achei.

Minha mãe não quer q'eu baia
onde gostam de me ber,
quantas boltinhas eu dou
sem minha mãe o saber.

Prendi o sol c'uma fita,
as estrelas com um cordão,
a lua c'um cadeado
e a ti no meu coração.

(Recolha do Toque de Caixa)

Seguramente que os dias, as manhãs e as tardes,  que vocês passam  nas filas de trânsito das nossas engarrafadas cidades, custarão menos a passar. A caixa de música do Bilocas (sem ofensa para o resto do grupo...), isto é, o Toque de Caixa que ele ajudou a criar e a crescer como se fosse um filho, é mesmo uma fonte de alegria contagiante, uma lição de talento, um produto de sucesso em cuja composição vamos encontrar inspiração, sem  dúvida (10/20%) e sobretudo, muita, muita transpiração (80/90%)... E acima, acima de tudo, 1000%, de puro prazer, paixão, amizade, solidariedade,  team-building, liderança, persistência, trabalho sério... 

O Toque de Caixa é uma festa! Antes de mais, uma festa de amigos para amigos!... O problema é que eles já se tornaram imprescindíveis... Venha, pois, o 3º CD, mesmo que não seja já para o ano, que o Toque de Caixa é como o vinho do Porto:  precisa de tempo para libertar os sons, os seres, os saberes, os sabores... E sem isso não há fruição, não há lazer(es)... LG

PS - Ontem, dia 20, começou a Primavera. Exactamente às 11h44... E a 28 vamos mudar a hora... O Toque de Caixa vem anunciar-nos a Primavera... Que falta nos estava a fazer, a Primavera, e a caixinnha de música do nosso Bilocas e dos seus amigos...

______________

Notas de L.G.:

Guiné 63/74 - P6030: O Cap Patrocínio, eu e a CCAÇ 15, Mansoa, 1973 (Joaquim Mexia Alves)

1. Comentário do Joaquim Mexia Alves, com data de 11 do corrente, ao poste P5972 (*):

E eu respondi assim a este mail do José Cortes:

Caro camarigo José Cortes

Claro que tens toda a razão! Foi em 1973 e não 72 como por erro referi! Disso lembro-me bem!

Significa que o Patrocínio esteve pouco mais de um ano no Fajonquito e que também não se fez velho na CCaç 15, pois eu devo ter chegado em Julho de 1973 e ele já estava fora da 15.

Não percebi o sentido desta tua frase «CCAÇ 15,  as tropas africanas da companhia.» mas julgo que queres apenas dizer que a 15 eram tropas africanas.  Era uma Companhia de Balantas.

O Patrocínio tinha mesmo a especialidade de Comando, isso já me foi confimado.

Lembro-me também, o que também já me foi confirmado pelo Matos Gomes, que nessa conversa que tive com o Patrocínio, não me lembro onde ele me ter referido que saía da CCaç 15 por causa de uma punição, da qual desconheço a razão.

Mas este tempo da 15 continua a dar-me a volta à cabeça e não sou capaz de me situar nos meses. Sei que quando cheguei,  comandei a 15, quase de certeza, na ausência de um Capitão, que este chegou e foi embora, e que depois veio outro que seria, digo eu, Miliciano.

Sei também, sem aminima dúvida claro, que me vim embora para Portugal em Dezembro de 1973.

Mas aos poucos talvez recomponha a memória.

Abraço camarigo e agradecido para todos

Joaquim Mexia Alves (**)
______________


Notas de L.G.:
(**)  Para a além do Joaquim, só temos mais um camarada - se não me engano - que passou pela CCAÇ 15 (como alferes):
(...) Como súmula de todo o tempo, este amigo foi para a Guiné em Outubro 1973, fazer o CCC. Saiu-lhe na rifa a CCAÇ 15. Passou Abril e os primeiros dias de Maio no continente e seguiu novamente para o CTIG, até ao fim da nossa presença. (..ram uns valentes que conseguiram resistir à Guiné, ao IN e também às outras adversidades, que provavelmente não foram as menos importantes e de quem guardo grandes e boas recordações.

(...) [A CCAÇ 4942/72,] era um grupo heterogéneo, soldados Madeirenses com um número significativo de refractários e alguns desertores (O Mosca era um deles salvo erro), com graduados e também alguns especialistas do continente. Guardo deles uma imensa saudade e para isso nada melhor que recordar.

O nosso encontro foi completamente casual. Tinha acabado de chegar a Bissau, onde como é sabido, por norma se passavam alguns dias a gozar a messe e a piscina). (....)


sábado, 20 de março de 2010

Guiné 63/74 - P6029: Memória dos lugares (76): Prestei o meu serviço na Guiné (Albino Silva)

Sou o Albino Silva, Soldado Maqueiro N.º 011004/67, CCS/BCAÇ 2845, Teixeira Pinto, 1968/70), com a Caderneta limpa

PRESTEI MEU SERVIÇO NA GUINÉ

Prestei meu Serviço na Guiné, desde Maio de 1968 a Abril de 1970, e pertenci ao BCaç 2845, sediado em Teixeira Pinto. Pertenci à CCS, Armados para a Paz.

As restantes Companhias Operacionais eram: CCaç 2366, Periquito Atrevido; CCaç 2367 Vampiros, e CCaç 2368 Feras.

Considero bastante positivo o meu desempenho como Soldado Maqueiro, exercendo o meu serviço na Enfermaria em Teixeira Pinto, juntamente com mais elementos do Serviço de Saúde, então comandados pelo Dr. Maymon Martins, que era Alferes Miliciano.

Raramente tínhamos descanso já que havia muita tropa, pois além da CCS, havia ainda um Pelotão da CCaç 2313, um Pelotão de Panhards, Caop, Páras, Fuzas e Comandos, e outros que por lá passavam quando iam e vinham de Bissau ou outros destinos.

Por isso mesmo havia consultas diárias para o Médico, de segunda a sexta-feira que começavam sempre às 9 horas da manhã e terminavam só quando toda a tropa estivesse atendida. Consultava-se ainda os civis do Canchungo pelo que acabávamos o nosso trabalho entre as 12 e as 13 horas.

Depois do almoço, a partir das 14 horas, faziam-se os tratamentos, servíamos as receitas médicas que não tivessem sido despachadadas na parte da manhã, e havia ainda o controlo dos doentes internados na Enfermaria. Levava-se assim o dia inteiro com intenso trabalho, basta que em média eram aplicadas 300 injecções por dia.

O Médico, militar aplicado, era incansável não só pelo atendimento aos militares, mas também à população civil, já que da parte da tarde e diariamente, consultava no Hospital Civil, onde executava pequenas cirurgias. Estava sempre disponível e operacional quando havia feridos e outros doentes na nossa tropa, porque de imediato se juntava a nós, e foram algumas as vezes que se socorreram militares feridos que lá davam entrada. Alguns chegavam mortos como aconteceu infelizmente algumas vezes.

Teixeira Pinto> Enfermaria e Maternidade

Mas o 011004/67 continuava sendo útil, porque sempre que algum trabalho baseado em pinturas surgisse, lá vinha o Capitão Queiroz ter comigo, ora para pintar a Cantina da CCS, a Messe de Sargentos e Comando, o que diga-se em abono da verdade, era difícil, pelas altas temperaturas que se faziam sentir, mas eu lá estava obedecendo ao Capitão Queiroz, e até caprichava no trabalho que ia fazendo, pintando os símbolos das Companhias do Batalhão, mapas, e ainda de outras companhias. Assim também ia bebendo umas bazucas por conta da Cantina e do Capitão.

Juntamente comigo arrastei o carpinteiro da Companhia, para com os barris fazer mesas e cadeiras, e ainda tabuleiros de damas e jogos de dominós. Tudo ia resolvendo extra Especialidade, mas com grande sacrifício.

Fui um bom militar para o meu Comandante de Batalhão, Ten. Coronel Aristides Pinheiro, bem como para o Capitão Queiroz, Dr. Maymon Martins, porque também na casa onde ele morava e pertencente ao Serviço de Saúde, eu executei trabalhos.

Continuava sendo um militar exemplar, embora os louvores fossem para quem nada fazia, porque para além destes serviços ainda fazia, a pedido do Furriel Enfermeiro, requisições de medicamentos a Bissau, que depois tinha de conferir.
Ainda me recordo do truque que usava, ao querer ter um determinado medicamento, tinha de pedir 10 iguais.

O tempo ia passando e o 011004/67 tinha que fazer ainda guardas e reforços ao Quartel, que confesso me fazia sentir algum receio, especialmente quando estava de reforço ao Fortim situado na rotunda de Teixeira Pinto, que era muito perigoso. Nessa rotunda havia a estrada para o Pelundo, Jolmete, Ponte Alferes Nunes, Bachile, e ainda para Có ou Cacheu, e por isso durante a noite se ouviam movimentos, até porque sabia que ali tão perto das tabancas havia inimigos que se preparavam para uns assaltos a casas comerciais, como chegou a acontecer, mas também para roubarem gado e haveres da própria população.

Teixeira Pinto> Fortim no Centro da Vila

O mesmo receio tive nas inúmeras vezes que fiz guardas à Central Eléctrica, esta bem junto à Igreja de Teixeira Pinto, já que nas traseiras era a tabanca, com bastante movimento até altas horas da noite, havendo ainda para piorar a situação pouca iluminação, sendo mesmo escuro a uma distância de 50 metros.
Valia a concentração e ser jovem para aguentar toda a noite sem descansar e com dores no pescoço de tanto olhar para todas as direcções, sempre de G3 nas mãos, porque com o barulho dos motores, que eram dois de marca Lister, não se ouvia mais nenhum ruído.

Esses serviços eram duros de se fazer mas tive de os suportar, por mais que uma vez, felizmente sem haver estragos.

Passados treze meses de Guiné comecei a alinhar com os Sapadores da Companhia, na guarda à Ponte Alferes Nunes entre Teixeira Pinto e o Bachile, sobre o Rio Costa.
Havia no lado esquerdo da Ponte um Fortim com 6 metros de altura, com cobertura com chapas zincadas onduladas, como se aquilo protegesse alguma coisa em caso de ataque.
A Ponte, de madeira, tinha sido reconstruída porque a primeira, também em madeira, tinha sido destruída.
Nesse serviço nunca tive qualquer receio porque também estávamos bem armados e nunca tinha havido nada de anormal.

Ponte Alferes Nunes entre Teixeira Pinto e Bachile

Sei que após o Batalhão deixar a Guiné, algum tempo depois, a Ponte foi reconstruída novamente, desta feita em ferro, como aliás já a vi em fotos de outros camaradas.
Entre a Ponte Alferes Nunes e o Bachile participei em picagens de estrada com um Pelotão da CCaç 2313, quando se faziam escoltas de reabastecimento ao Bachile, onde estava um Pelotão da Companhia 2368 do meu Batalhão.

Na mesma estrada, com a CCaç 2313 do Capitão Penim, andei na capinagem, quando o General Spínola assim o exigiu, pois era uma estrada onde havia muitas emboscadas, a partir do Bachile e até ao Cacheu. Nalgumas delas estive envolvido, durante os reabastecimentos ao Cacheu, quando se chegavam a fazer duas escoltas por dia.

Lembro que cheguei à Guiné no dia 6 de Maio de 1968 e o General Spínola no dia 12 do mesmo mês. Mais que uma vez estive junto a ele em Teixeira Pinto, e numa delas com os malogrados Majores Pereira da Silva, Passos Ramos e Magalhães Osório, que também eram meus amigos. Cheguei a beber algumas bazucas pagas por eles, quando à Enfermaria se dirigiam em busca de mésinho para levarem à tabanca para os (amigos) que mais tarde os viriam a assassinar, em 20 de Abril de 1970, à saída do Pelundo em direcção a Jolmete, estava já eu a chegar a casa de regresso.

Continuava eu sendo um bom militar pois com um Pelotão da CCaç 2368 e da 2313 saía em missões e a ração de combate, levando comigo o repelente já que em três dias tínhamos que suportar tantos mosquitos vindo das águas podres das bolanhas, as quais muitas vezes as atravessei debaixo de intenso calor e com o cantil vazio.

Era doloroso para quem não estava habituado, mas nunca senti receio, porque sabia que andava com camaradas que estavam habituados a andar no mato e enfrentarem situações difíceis como chegaram a ter.
Com eles sentia-me bem e todos me ajudavam, porque indo eu armado como eles, ainda levava a Bolsa de Enfermeiro carregada com medicamentos mais algumas garrafas de soro penduradas em mim mesmo, pois tudo poderia acontecer e tudo seria útil.

Pernoitei algumas vezes entre as matas perto de tabancas, ouvindo os nativos na conversa até altas horas da madrugada. Cheguei a ver em picadas, em direcção às tabancas, inimigos com armas nas mãos, passando a escassos metros de nós. Nem sinal dávamos de nossa presença pelo facto de ser tarde e nunca sabermos quantos elementos eram e o armamento que usavam. Assim se juntavam com a restante população.

Fui útil e cumpri meu dever, até na acção psicológica, protegido pelos camaradas daquelas Companhias, prestava assistência à população que vivia nas tabancas, não só aqueles que vinham ao meu encontro, (ali era Doutor) mas também ia eu às tabancas consultar mulher grande, homem grande, incapacitados de andar com a velhice e bajudas.

Era mais um dos trabalhos que desempenhava sempre com a mesma aplicação e esforço, mas sentia-me compensado por aquela gente, que me oferecia uns frangos e, quando mais não tinham, laranjas, que põe vezes eram boas para matar a sede, quando mais nada havia.

Eu sabia que nem todos os nativos eram contra nós, pois mesmo no Quartel em Teixeira Pinto, não havia vez nenhuma que aquelas mulheres e bajudas quando fossem para a bolanha ao peixe, ostras, camarão, etc, não passassem pela Enfermaria e lá deixassem alguma coisa para mim, tudo pela forma como eu os tratava.

Lembro que em toda a minha comissão, nunca da minha G3 saiu um tiro, porque felizmente para mim nunca necessitei. Recordo-me de uma vez que fui ajudar os básicos da cozinha a recolher lenha em viaturas lá para os lados de Calequisse e Caió, perto de uma tabanca, de vir alguém ao meu encontro porque me conhecia, não só para me cumprimentar, mas também para pedir mésinho.

Cumpri meu dever e terminei a comissão com o orgulho de ter servido minha Pátria.

Durante aquela guerra ganhei muitos amigos que ainda hoje conservo, e recordamos ano após ano as peripécias vividas. Fico sempre triste quando sei que de um ano para o outro houve uma alguma baixa.
Desde sempre e ainda hoje procuro camaradas quer do Batalhão quer de outras Companhias, em especial da CCaç 2313.

Sinto o orgulho do meu dever cumprido.

Para a nossa Tabanca Grande,
Albino Silva
CCS/BCaç 2845
Teixeira Pinto
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 2 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5918: Blogpoesia (66): Querida Pátria (Albino Silva)

Vd. último poste da série de 19 de Março de 2010 > Guiné 63/74 – P6021: Memória dos lugares (71): Recordações de Bambadinca (Armandino Alves, 1º Cabo Aux Enf, CCAÇ 1589 (Beli, Fá Mandinga, Madina do Boé, 1966/68)