quarta-feira, 19 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6431: Depois da Guiné, à procura de mim (J. Mexia Alves) (3): Sem título I




1. Mensagem de Joaquim Mexia Alves*, ex-Alf Mil Op Esp/RANGER da CART 3492, (Xitole/Ponte dos Fulas); Pel Caç Nat 52, (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa), 1971/73, com data de 17 de Maio de 2010:

Meu caros camarigos
Mais um para a série


DEPOIS DA GUINÉ, À PROCURA DE MIM

20 ANOS DEPOIS (3)

SEM TÍTULO 1

Em que luz me banhei
Que tanto brilho deu
Aos meus olhos.
Em que ar puro voei
Que abriu tanto
O meu sorriso.
Em que água me lavei
Que cresceu tanto
O meu abraço.
Em que rio mergulhei
Que soa mais limpo
O meu riso.
Porque é agora tão fácil
Definir a letra
O traço.
Porque é agora tão simples
Caminhar calmo e em paz
Tão prenhe de liberdade
E de um tanto se me faz.
Porque regressou a vontade
De andar sempre em frente
Sem nunca olhar para trás
Sem nunca olhar para a gente
Que vive a gritar saudade
Cheia de amargura e tristeza
Sem nunca ter sentido
Que a saudade é um momento
Que merece ser vivido
Na mais pura das alegrias
Como quem voa c’o vento
Nas asas só da verdade
Por entre jardins de flores
Que renascem todos os dias.
Porque regressou o sorriso
Que faz brilhar o olhar
Que cura todas as dores
E que é um nunca acabar de rir
Sem poder conter o riso.
Onde estão as luzes e vozes
Que vinham não sei de onde
Para me incomodar o sono
E encher os pesadelos.
Que é feito desse fantasma
Que só a mim aparecia
Envolto sempre em novelos
De nuvens cinza douradas
Correndo num céu de chumbo
Uma corrida sem fim.
Onde está essa prisão
De barras grossas e frias
De sonhos nunca acabados
De desejos aprisionados
Em forma de coração.
Eu digo-te se não contares
A ninguém ou coisa nenhuma.
Esqueci-os nos meus cantares
Peguei em todos à uma
E fazendo no céu um furo
Apaguei-lhes os esgares
E rindo de satisfação
Enterrei-os no futuro.


91.11.06

Um abraço do
Joaquim
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 10 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6362: Convívios (151): Tabanca do Centro, dia 26 de Maio de 2010, em Monte Real (Joaquim Mexia Alves)

Vd. último poste da série de 7 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6339: Depois da Guiné, à procura de mim (J. Mexia Alves) (2): Vida

Guiné 63/74 - P6430: Contraponto (Alberto Branquinho) (9): Eutanásia?

1. Mensagem de Alberto Branquinho (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 16 de Maio de 2010:

Caro Carlos Vinhal
Agora que o Papa já regressou e portanto, não há o risco de referir um tema que, também, pode causar "rupturas" no tecido social português, junto vai o texto do CONTRAPONTO (9), que intitulei "EUTANÀSIA ?".

Um abraço e, como sempre se despede o meu Tio que por aí reside, SAÚDE e SORTE.
Alberto Branquinho


CONTRAPONTO (9)

EUTANÁSIA?


Foi no fim da época das chuvas.

O pelotão foi destacado para fazer “psico” em chão balanta, percorrendo duas ou três tabancas próximas da sede do Batalhão, acompanhando os enfermeiros – um furriel e dois cabos.

O pessoal estava instalado discretamente nas entradas da aldeia, acompanhado pelos respectivos furriéis e outros postados em posições de segurança (não fosse surgir alguma surpresa). O alferes circulava por entre as moranças acompanhado de um cabo e de um soldado. Seguiam de perto as movimentações dos enfermeiros.

Chegou-se um homem já idoso, solícito e nervoso, perguntando por “aquele qui na manda”. O alferes perguntou-lhe. “Q’é qui bô misste?"

O homem começou a arengar um palavreado nervoso e confuso, misturando crioulo talvez com balanta, sempre de olhos no chão.

O alferes só entendeu que falava da “mãe” e de “dor”. Passado algum tempo olhou o alferes com uns olhos tímidos e brilhantes e, fazendo repetidas vénias, apontou numa direcção e disse: “Bô bem… bem”. E começou a andar devagar, olhando para o alferes, que fez sinal ao soldado para o seguir e ao cabo para continuar a acompanhar os enfermeiros.

O homem colocou-se ao lado do alferes e dizia repetidas vezes: “Dói perna… dói… dói braço, dói… dói…” e batia com a palma da mão direita na perna direita, na perna esquerda, no outro braço, no pescoço, nos ombros, nas costas e terminava dizendo com expressão triste: “Cá pude… cá pude muri...”.

Chegaram junto de uma palhota isolada. O homem empurrou a porta e entrou. Fez o gesto convidando o alferes a entrar. Este disse para o soldado:

- Fica aqui. Só entras se eu chamar.

- Ó meu alferes, bocê bai lá p’ra dentro?

- Aguenta aí.

Quando entrou ouviu uns gemidos agudos e contínuos, mas nada conseguia ver na penumbra interior. O ambiente estava quente, abafado, húmido. Num repente os gemidos passaram a uns guinchos agudos, penetrantes. Viu, então, que o homem estava debruçado sobre um catre muito baixo, atrás da porta e que nele estava deitada uma velhota de idade muito avançada, que, ao mesmo tempo que emitia aqueles guinchos, tentava levantar os braços para ele. O soldado chegou à soleira:

- Ó meu alferes, que merda é essa?

- Nada. Vai lá para fora.

O alferes pôs a arma em bandoleira, aproximou-se, fixou a mulher, tentando ver melhor. Notou, então que, por baixo da cama, estavam espalhadas brasas ainda bem incandescentes. O homem postou-se entre o alferes e a mulher, que não parava de guinchar e, curvado e choroso, repetia, repetia: ”Dói… dói… dói… dói…”, ao mesmo tempo que, com a mão indicava os pés, os joelhos, braços, cotovelos, ombros e as costas. “Cá pude… cá pude…”.

O alferes chamou o soldado e disse-lhe para chamar o furriel enfermeiro.

- Mim parti mèzinha cum bô. Mèzinha bêm lá.”.

O homem calou-se, agarrou um braço da velhota e falou-lhe ao ouvido. A velhota parou de guinchar, embora soltasse gemidos baixos.

O alferes foi à porta esperar o furriel enfermeiro. Quando chegou explicou-lhe o que se passava. Entraram ambos. O alferes ficou afastado a observar o braseiro debaixo da cama, que se estendia da cabeça ate aos pés. O enfermeiro falou com o homem, tentando fazer-se entender e entregou-lhe uma pequena caixa.

Saíram ambos, entre muitos agradecimentos e vénias do homem.

- Que é que você lhe deu?

- Comprimidos LM. Que é que havia de ser?

O alferes pensou: “Aspirina? Reumatismo ou coisa assim… Pode ser que resulte.”

Nesse mesmo dia, quando contava ao médico o sucedido, alguém interrompeu: “Você sabe que os balantas praticam a eutanásia ?”

Não respondeu e ficou a pensar na conversa do homem e na atitude (desesperada?) da velhota.

Desejou voltar à aldeia e perguntar pelo filho e pela mãe, mas não teve oportunidade, porque, mais uma vez, a Companhia foi transferida para outra zona de intervenção.

Alberto Branquinho
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de19 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6187: Contraponto (Alberto Branquinho) (8): Desertores? - A tertúlia anda pouca activa, porquê?

Guiné 63/74 - P6429: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (21): As CARTs 643 e 730 a olharem para o céu

1. Mais uma Nota solta enviada pelo nosso camarada Rogério Cardoso (ex-Fur Mil, CART 643/BART 645, Bissorã, 1964/66), em mensagem de 16 de Maio de 2010.


NOTAS SOLTAS DA CART 643 (21)

As CARTs 643 e 730 a olharem para o céu


Estávamos em 1964, BISSORÃ tinha na altura duas Companhias operacionais, a CART 643, a "residente" e a CART 730. As operações eram em catadupa, operações em áreas complicadas, como ao célebre Morés e casas de mato circundantes, uma espécie de flôr, Morés a coroa e as pétalas as casas de mato envolventes, tudo muito complicado. Para oeste a dificil casa de mato denominada Biambi, lá para os lados de Bula e Binar, diga-se de passagem com um chefe guerrilheiro de muito respeito, todo o cuidado era pouco, quando havia necessidade de o enfrentar.

O pessoal "maçarico" não podia ser lançado para aquelas zonas sem ser acompanhado de pessoal experiente.

Lembro-me de um 2.º Sargento do QP, açoriano, não querendo receber conselhos dos "velhos", dizendo que tinha vindo de Angola, para ele aquilo era "canja", mas ficou em grandes dificuldades numa emboscada, que durou muito tempo, foi em seu socorro um Pelotão da Cart 643, para os tirar daquela embrulhada.

Os feitos destas Companhias eram deveras considerados pelas chefias militares, tenho ideia de uma operação, salvo erro em Cambaju, em que as NT capturaram uma quantidade apreciável de material de guerra, houve grande ronco no regresso a Bissorã, tendo o ComChefe Gen. Arnaldo Shultz enviado uma mensagem, que pela importância operacional daquele dia, queria a todo o custo, dar um abraço às Cart 643 e 730, e que apareceria a qualquer momento.

Os Capitães, sabendo da visita, ordenaram que todos se apresentassem devidamente ataviados, porque o nosso General iria chegar dentro em pouco.

Eram talvez 14 horas, todos a olhar para o céu, para ver quando despontava o héli. O tempo corria, 15,00 h., 16,00 h., até que o sol começa a desaparecer no horizonte. Houve a chamada desilusão generalizada, todos se interrogavam, esta malta não nos liga nenhuma, aplicando-se o velho slogan "a retaguarda está firme que nem uma rocha" e era verdade.

Nesta altura que tanto se fala da actuação do Gen Spinola, quando ComChefe do CTIG, tenho a certeza, que pelo que contam, não fazia uma acção deste género.

Havia uma grande distância entre os militares do mato, os operacionais, e alguns da cidade de Bissau. A própria PM perseguia por assim dizer, aqueles pobres militares, que às vezes se excediam, quando apanhavam 2 ou 3 dias de folga, como prémio pela sua actuação em combate, portanto não era de admirar a não comparência do ComChefe no mato, ter de se expôr a algum perigo no vôo, a retaguarda era quase sempre assim.

E para terminar, posso contar mais uma cena, esta comigo.

Em Outubro de 1965, mais precisamente a 27, fui ferido, sendo evacuado para o HM241. O meu ferimento, fractura exposta do femur esquerdo e outras complicações, não podia ser tratado ali, como era uma recuperação que demoraria mais de 6o dias, tinha que ser evacuado, o mais rápidamente possível.

Começou a haver complicações, como infecções constantes, de que resultou uma ostaíte crónica de que continuo a padecer.

Não havia lugar no avião militar para Lisboa, sabendo eu que nesses aviões, além dos feridos a embarcar, também seguiam militares de férias, prémios Governador, esposas de oficiais superiores e até acompanhantes, para ajudarem nas suas compras em Lisboa.

Eu sentia-me cada vez pior no meu estado geral de saúde. No dia 16 de Novembro, fui visitado pelo meu Comandante Cor.Braancamp Sobral, para saber do meu estado. Nesse momento perdi a cabeça, disse-lhe o que pensava dos chamados SENHORES DA GUERRA. Sem me dizer nada saiu. Passadas cerca de duas horas, segui para o bloco do hospital, fui engessado e na manhã
do dia seguinte, 17 de Novembro, embarquei para o HMP, onde estive internado 7 meses, 2 nas urgências e o restante no anexo, mais vulgarmente conhecido pelo TEXAS.

Como nota final, tenho a certeza que se fosse evecuado de imediato, talvez não ficasse marcado para sempre.

Rogério Cardoso
Ex-Fur Mil
CART 643 - Águias Negras
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6349: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (20): Bem haja senhor Grilo, maquinista do navio Ana Mafalda

Guine 63/74 - P6428: Estórias cabralianas (60): O manifesto do nosso alfero (Jorge Cabral)

 1. Este texto do ex-Alf Mil Art Jorge Cabral,  comandante do Pel Caç Nat 63 (Fá Mandinga e Missirá, 1969/71) já foi publicado há mais de quatro anos, na I Série do nosso blogue, sob a forma de um carta aberta. Um texto, portanto, desconhecido da maioria dos nossos leitores. Na altura comentei (*):

"Esta carta (aberta), dirigida à minha pessoa, honra-me e sensibiliza-me. Prendem-me, ao Jorge, laços de amizade e de cumplicidade. Orgulha-me tê-lo cá, nesta tertúlia, entre amigos e camaradas. Obrigado, Jorge, pela tua (corrosiva) lucidez e sobretudo pela tua (generosa) abertura de espírito à aventura humana e à descoberta do outro bem como pelo teu arreigado anti-etnocentrismo. Poupa-me as palavras. Por mim, disseste tudo"...

Eu, que gostaria de ver publicadas este ano, em livro, as  Estórias Cabralianas, e estou indigitado como prefaciador-mor das ditas, acho que este naco de prosa (ou de poesia, como queiram) tem de ser recuperado, lido, divulgado, debatido e se possível inserido na mesma publicação como posfácio. É um texto descomplexado, de um homem a corpo inteiro, sem alibis nem subterfúgios, onde muitos de nós reconhecem...  Foi revisto por mim, nesta data, recuperei-lhe o ritmo discursivo. É dirigido, através de mim, às centenas de camaradas que nos lêem, e que em Fevereiro de 2006 ainda eram umas escassas de dezenas. É um texto que eu gostaria de ter conseguido escrever. Vou chamar-lhe simplesmente "O Manifesto do Nosso Alfero". Que o Jorge me perdoe a ousadia,  os atropelos e os abusos.

Caro Luís,
nunca será demais enaltecer o teu blogue,
o qual nos tem permitido, principalmente recordar.

Como tu dizes,
fui um tropa desalinhado,
marginal
e quase sempre provocador,
características que mantive ao longo da vida.

Sempre procurei realçar os aspectos ridículos das pessoas e situações,
gozando e criticando,
às vezes com um humor demasiado ácido…

Sobre a Guerra Colonial na Guiné,
sei que lá estive,
e procurei ver.

Não sinto nem orgulho, nem vergonha.
Não fui herói, nem cobarde,
limitei-me a garantir a minha sobrevivência,
bem como a dos que comigo se encontravam.

Tratava-se obviamente de uma guerra absurda
e previsível,
logo evitável,
para a qual nos mandavam mal preparados,
num estado de absoluta ignorância
sobre o país, sua gente e cultura
(contei-te daquele soldado periquito,
que apresentado em Missirá,
me pediu para ir ver o jogo do Sporting
que dava na televisão naquela noite,
na Tasca da Muda,
ali mesmo à esquina…).

Se alguma qualidade intelectual possuo
é a curiosidade,
que me leva a tentar compreender tudo e todos,
ciente que as diferentes formas de estar e ser
são legítimas e sempre explicáveis.

Assim, na Guiné,
quer em Fá, quer em Missirá,
procurei entender,
e através de longas conversas com Homens e Mulheres Grandes
aprendi alguma coisa.

Dessa forma me inteirei da excisão
(a qual depois presenciei)
e do infanticídio ritual,
dois temas de que, há mais de vinte anos,
falo nas minhas aulas.

Percebi que uma Guiné idílica e pacífica,
de negros portuguesismos,
nunca existira…
Todo o território ao longo dos séculos
foi palco de imensas guerras,
sangrentas repressões
e alguns desastres das nossas tropas.

Perante o meu espanto,
indicaram-me em Fá,
o local onde no tempo, dos avós, dos avós deles,
havia sido aprisionado o Governador,
que teve de pagar resgate aos beafadas (#).

E em Missirá levaram-me a conhecer o campo
onde as forças portuguesas e seus ajudantes
estiveram longo tempo entrincheirados,
preparando a conquista de Madina/Belel,
na luta contra o grande guerreiro Unfali Soncó,
no princípio do século XX (##).

Foram também os velhos que me falaram de Abdul Injai,
régulo do Cuor e do Oio,
companheiro de Teixeira Pinto,
herói tão amado quanto odiado,
caído em desgraça no fim da vida,
e degredado para Cabo Verde.

Chegado a Lisboa,
e desde então tenho tentado estudar,
convicto que é impossível compreender a guerra colonial
e o que se seguiu,
sem reflectir na história do país
e nas múltiplas acções de resistência armada contra os Portugueses.

Claro que o PAIGC,
ao iniciar a Luta Armada,
pretendeu aglutinar todas essas resistências sectoriais,
num projecto global de Libertação,
que simultaneamente edificasse o Estado Nação.
Pelo menos a Libertação foi conseguida…

Tendo estado sempre com tropa africana e milícias,
não fiquei indiferente ao que aconteceu aos meus soldados,
uns obrigados a fugir
 e outros fuzilados.

Alguns ainda hoje lutam por uma pensão,
e há poucos anos,
tive de confirmar,  por escrito,
que um servira no exército português.

Discutir agora quem foi o responsável pelos fuzilamentos,
se foi o Nino ou o Luís Cabral,
parece-me supérfulo.

A responsabilidade cabe por inteiro aos Portugueses,
que não souberam garantir a segurança dos militares africanos.
Procederam como os seus antepassados,
pois o destino dos aliados dos portugueses
foi sempre o mesmo.
Abandonados à sua sorte,
vitimas das represálias dos vencedores…

Ás autoridades negociadoras competia proteger
todos os que lutaram integrados no Exercito Português
e mesmo assegurar,  aos que quisessem,
a nacionalidade portuguesa.

Isso sim, teria sido uma atitude revolucionária.
Foram conservadores.
Contradições características
de uma descolonização tardia e apressada…

Desculpa a seriedade deste arrazoado,
mas considero importante contribuir
para a destruição de certos mitos e equívocos,
naturalmente persistentes numa ex-potência colonial.

Um grande abraço

Jorge

(#) Ocorreu em 1861 no âmbito de uma “campanha” contra os Beafadas de Badora, os quais prenderam o Major Correia Pinto, encarregado da Administração da Província na ausência do Governador. Também nessa altura foram hasteadas bandeiras britânicas, em Bambadinca, Fá e Ganjara.

(##)  Tratou-se de uma das mais importantes "operações" ocorridas antes da Guerra Colonial. Os efectivos das NT eram para a época impressionantes. Estando 50 marinheiros destacados em Bambadinca, a coluna comandada pelo Governador Muzanty, compreendia:

- 7 oficais do estado maior,
- uma companhia da marinha (4 oficiais e 132 marinheiros),
- uma companhia de infantaria metropolitana (5 oficiais e 251 sargentos e soldados),
- uma companhia mista de infantaria (3 oficiais e 101 atiradores),
- uma bateria de artilharia (3 oficiais e 69 sargentos e soldados),
- mais sete oficiais (médicos veterinários e de intendência),
- a que é preciso acrescentar o “exército” de Abdul Injai (2 oficiais, 2 chefes e 100 cavaleiros) e
- ainda a nona companhia indígena de Moçambique.

Pois toda esta tropa  atravessou o rio frente a Bambadinca, tendo conquistado todas as tabancas, até junto de Missirá, onde em Carenquecunda acampou, cavando trincheiras, e preparando a conquista de Madina, que veio a ser tomada em 9 de Abril de 1908, tendo tido papel determinante Abdul Injai e os seus 100 cavaleiros.

Também eu entrei em Madina em 1971, sem cavaleiros, mas à custa de um decisivo apoio aéreo.

P.S. – O desastre do Cheche, tem um antecedente histórico,  ocorrido em 30 de Dezembro de 1878 na Ponta de Bolor, entre os Felupes. Porém deste, em que morreram mais de 50 militares, conhecem-se os que pela sua incompetência, foram responsáveis: o Governador António José Cabral Vieira e o Tenente Calisto ~
dos Santos.

_____________

Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 15 de Fevereiro de 2006 Guiné 63/74 - DXXXVI: Carta (aberta) ao Luís (Jorge Cabral)

Guiné 63/74 - P6427: Notas de leitura (108): Os Resistentes de Nhala, de Manel Mesquita (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Maio de 2010:

Queridos amigos,
Afinal eu não sou a voz que clama no deserto e fica sem resposta.
Já aqui tenho o livro do Rui de Azevedo Teixeira “A Guerra Colonial e o Romance Português”.
O José Brás prometeu-me enviar um livro do madeirense António Loja. Esteve cá o António Estácio e deixou-me a “Nha Carlota”.
E já li 100 páginas do “Rumo a Fulacunda” do Rui Alexandrino Ferreira.

Aproveito para voltar a pedir ajuda de todos sobre os livros que foram publicados nos anos 90.
Li cheio de comoção este livro do Manel Mesquita. Não venham agora dizer que os soldados não escrevem livros.

Um abraço do
Mário


O soldado que guardou toda a vida Nhala no coração

por Beja Santos

O que surpreende no belíssimo relato do Manel Mesquita é o acordo que ele, mesmo antes de chegar ao teatro de guerra, estabeleceu com a vida, a sua pauta de heroísmo é o convívio sadio, a solicitude permanente, a não resignação, o profundo respeito pela condição humana. 

Deixará uma galeria de depoimentos no seu livrinho “Os Resistentes de Nhala”, são pessoas que podíamos ter conhecido, com quem seguramente convivemos ou, de quem ouvimos falar: aquele que se afundou no álcool, incapaz de cerrar os dentes e dar a volta à corrediça da vida; o capitão miliciano que organizou um torneio de futebol lá em Nhala e que levantou o moral da malta; os ocasos da vida que impediram o Manel de desertar quando veio de férias à metrópole, em meados de 1970, mas há também o Rosa, o Carinhas, o Victor, o Maiato...

Vamos por partes, o Manel volta de férias, uma LDM larga-o no areal de Buba. Trouxe comida para todos. Foi procurar o Carinhas para se juntar ao banquete, encontrou-o a cantar o fado. Segue-se uma rajada de tiros, são rajadas de costureirinhas e roquetadas. É uma grande flagelação, há gritos, a noite transformou-se momentaneamente em dia. Depois, o silêncio. Descobre-se que há um morto, era o faxina conhecido pelo Foda-se, tem vários buracos na frente do corpo. O grupo atacante chegara a abrir o portão para entrar em Nhala. Logo que descoberto, atacou à morteirada, morreram civis e também o chefe da milícia, o sargento Marcelino. Alguém recorda que durante as emboscadas e as flagelações na estrada nova de Uane os guerrilheiros gritavam que um dia iriam entrar e arrasar Nhala. O Manel aproveita para falar com Deus, pede-Lhe que não o abandone, não os abandone. Segue-se o enterramento dos civis:

“Estava a tomar o pequeno-almoço quando recebo ordens do furriel para tratarmos dos cadáveres. Três colegas vão abrir as covas ali fora dos arames, por coincidência onde horas antes estiveram os inimigos a atacar-nos. A mim calha-me fazer guarda de honra ao militar da milícia. Vou vestir-me com farda completa e limpa. Os defuntos civis são embrulhados em lençóis brancos e lavados, e assim baixam à terra. Dois colegas cobrem com pés e arrasam o terreno. Reparei que todos guardámos respeito e dignidade ao acto.

Por fim trazem o corpo do sargento numa maca embrulhado num lençol, mas coberto com a bandeira nacional. Morreu em combate. Tudo fez para defender Nhala... É uma cerimónia digna, mas arrepiante. Qualquer combatente ou caído ao serviço da Pátria merece-a”.

Segue-se uma operação ao Saltinho. Descobrem duas canoas. A força fica de atalaia, há um soldado africano que conta ao Manel que naquele local, poucos anos antes, se tinha voltado uma jangada com cerca de vinte soldados que foram abocanhados pelos crocodilos. O inimigo não apareceu, melhor o inimigo foi em enxame de abelhas que provocou inúmero sofrimento. 

O Manel passa em revista pessoas, situações e locais que permanecem indeléveis na sua memória. Primeiro o Bento. Numa operação levou um tiro no pulso esquerdo. O guerrilheiro estava numa frondosa árvore, foi abatido. A força inimiga foge em debandada. O Bento está sereno, prescinde da evacuação, o enfermeiro faz-lhe um penso, mas entretanto chegou o helicóptero. O Bento estava mais preocupado em que se transportasse o material de guerra capturado. Há ainda pessoas capazes de prescindir da dor. 

Chega o segundo Natal passado na Guiné. O Manel recorda uma conversa com o Deus menino: “E eu, nesta terra, nesta missão, que tenho para dar? Já sei, tenho uma prenda muito valiosa e importante para dar. Vou fazer um negócio invisível com as tropas do PAIGC, eu não irei disparar contra eles. Eu estou aqui a lutar para impedir que eles tenham direito à guerra que é deles, mas não é minha, não a quero. Nós negamos-lhes o direito que eles têm de possuir a sua terra”. O espírito de improvisação musical também vem ao de cima. Em Aldeia Formosa o pessoal, para esquecer a saudade, pegou numa melodia da marcha do Bairro Alto e passou a cantar a toda a hora:

Aldeia e as colunas a seguir
Para Buba com a malta
Sujeitos a ir para não vir
Com aquilo que nos faz falta.

São emboscadas e minas,
Bolanhas e covazinhas
Viaturas rebocadas.
Deitaram-nos isto à sorte
De procurarmos a morte
Nestas tão reles estradas


Refrão:

Viaturas velhas mesmo a cair
E, mesmo assim, a malta tem que seguir
São tristes chaços, em procissão
Andam mecânicos com as chaves de mão em mão.

Há muito mais a dizer sobre estes personagens que marcaram o Manel. Fiquemos com o Mário de Fontelas, seu conterrâneo, que apareceu em Aldeia Formosa. Já tinha cumprido 21 meses em rendição individual na CCaç 2478. A companhia embarcou, o Mário ficou no cais a ver os companheiros. O Mário foi colocado no segundo pelotão da CCaç 2614. 

O Manel convenceu o Mário que deveria apresentar o seu caso ao Spínola quando este viesse despedir-se do batalhão. Spínola discursou e preparava-se para se retirar quando o Mário pediu para falar, explicou-lhe que já levava 24 meses em teatro de operações. O general diz ao seu ajudante de campo para tomar nota do pedido, informando que não irá com a CCaç 2614, mas seguirá para Lisboa no próximo barco. Fizera-se justiça. O Manel nunca mais esqueceu aquele homem que soubera reclamar os seus direitos.

O leitor irá apreciar o João Vasques, o Fugitivo, o Bráulio. Não deixará de se comover com o sonho do Manel na sua última semana de comissão, já em Aldeia Formosa. A povoação já não era quartel, tudo se transformara: as casernas em escolas, infantários e cresces; a cozinha e o refeitório eram locais onde se preparavam refeições as refeições para as criança e jovens; o posto de socorros era agora um centro de saúde; os morteiros eram agora charruas e arados; e os campos de batalha estavam todos transformados em arrozais.

Manel nunca mais esqueceu Nhala, os abrigos que construiu, as aulas que deu, as lições de camaradagem. É impensável que alguém possa ficar indiferente a este depoimento tão singelo. Convido-vos a telefonar ao Manel (22 762 07 36 / 96 35 25 912) mais não seja para ter acesso a este livrinho maravilhoso, verdadeiro, corajoso. O Manel é um homem de fé e transmite-a. A pretexto de uma guerra de onde ele regressou há cerca de 40 anos.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6419: Notas de leitura (107): Os Resistentes de Nhala, de Manel Mesquita (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P6426: Convívios (241): 3º Encontro da Companhia de Caçadores 1589, 15 de Maio de 2010 (Armandino Alves)


1. O nosso Camarada Armandino Alves (ex-1º Cabo Auxiliar de Enfermagem na CCAÇ 1589 - Beli, Fá Mandinga e Madina do Boé -, 1966/68), enviou-nos uma mensagem, em 17 de Maio, sobre a confraternização anual da sua Companhia que a seguir publicamos:

Foto de família tendo o Comandante ao centro

Camaradas,

Realizou-se no passado dia 15 de Maio, o 3º Convívio da Companhia de Caçadores 1589, que contou pela 1º vez com a presença do seu Comandante, hoje Coronel Reformado do QP, Henrique Victor Guimarães Perez Brandão, o qual nos muito nos honrou com a sua presença.

Informou-nos o mesmo que não lhe foi possível comparecer às 2 anteriores festas devido aos deveres inerentes do seu cargo e à sua sobrecarregada agenda para os dias em que elas se realizaram.

Cada ano vai comparecendo mais malta e as respectivas famílias, o que nos vai dando alento para continuarmos a fomentar estes eventos.

O nosso Comandante fez um discurso deveras comovente, notando-se que este convívio e a maneira efusiva com que todos o receberam, caiu bem fundo no seu coração.

No seu discurso referiu-se a uma entrevista que deu ao Joaquim Furtado, que esteve a ouvi-lo durante 2 horas e que, posteriormente, só passou no ecrã 10 minutos da gravação (a parte que lhe convinha), descontextualizando-a completamente.

A finalizar realçou o nosso espírito de grupo e entreajuda, realçando o sentir do dever cumprido.

Concentração do Pessoal na Alameda das Antas
O Comandante de Companhia discursando antes do almoço
Alf Mil Daniel Velêda (esq.) Coronel Henrique Brandão (centro) e Alf Mil Leitão (dir.)
O meu reencontro com o comandante passados 42 anos
E assim terminou o nosso 3º Convívio. Para o ano haverá mais.

Um Abraço,
Armandino Alves (Dr. Jivago)
1º Cabo Aux Enf CCAÇ 1589
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Nota de M.R.:

terça-feira, 18 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6425: (Ex)citações (73): A tropa e a criançada nas belíssimas crónicas do Cherno Baldé (Alberto Branquinho)

1. Comentário do Alberto Branquinho ao poste de  18 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6417: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (15): Obrigado, Mortágua, salvaste-me a vida!Caro Cherno

Este texto (e outros já aqui publicados) é uma beleza. Neste a análise do meio social nativo - a avó, as velhotas, as mulheres mais novas e até os homens e as suas análises sobre a "abundância" verificada no aquartelamento e a injustiça de Alá na distribiução, são facetas de uma realidade que nós (os militares) não conseguimos aperceber-nos. 



Por outro lado, as relações da criançada com o ambiente militar e com cada um dos militares são, aqui, mais uma vez abordadas com mestria... e do lado e do ponto de vista da criançada.

Cherno, se me leres, queria fazer-te um desafio, que é, afinal, um pedido. É sobre um aspecto que já tentei escrever. É isto: de que modo a presença da tropa, o convívio com a tropa, o conseguimento de uma certa auto-suficiência por parte dos garotos na frequência dos aquartelamentos (alimentação, algum vestuário, etc) pôs em causa a sociedade guineense (autoridade familiar, poder patriarcal,etc.).

Se o que quer que escrevesses fosse ilustrado com duas ou três histórias, seria óptimo.

Um abraço e fico agradecido,

Alberto Branquinho (*)
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Nota de L.G.:

(*) Último poste desta série > 17 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6408: (Ex)citações (57): A dolce vita de Bambadinca: Os lagostins do Zé Maria, pescados pelo barqueiro do Enxalé em "zona vermelha"... (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P6424: E as Nossas Palmas Vão Para... (4): O Município de Vila Nova de Famalicão no Dia Internacional dos Museus, a que se associaram dez museus, públicos e privados, incluindo o Museu da Guerra Colonial

1. Excerto de notícia publicada no Portal do Município de Vila Nova de Famalicão: 

Cultura > Dez museus celebram Dia Internacional com programa diversificado
13-05-2009

Dez espaços museológicos públicos e privados do concelho de Vila Nova de Famalicão uniram-se para celebrar o Dia Internacional dos Museus, que se assinala no próximo dia 18 de Maio, sob o lema “Museus e Turismo”.

“É o programa de comemorações do Dia Internacional dos Museus mais diversificado de sempre e também aquele que regista a maior participação dos museus de Famalicão”, conforme salientou o presidente da Câmara Municipal de Famalicão, Armindo Costa, na apresentação do programa.

As comemorações, que arrancam já no próximo sábado, dia 16, e decorrem até dia 30, incluem diversas iniciativas como visitas guiadas aos espaços em roteiros de autocarro (serviço gratuito assegurado pelo município), peças de teatro, workshops, recitais de poesia, oficinas de escrita criativa e ateliês para crianças, entre outras.
Para Armindo Costa, “a grandeza e a qualidade das iniciativas previstas não acontecem por acaso”. E explicou: “Acontecem porque os museus famalicenses são espaços de memória viva, com actividade permanente, que fazem de Famalicão um exemplo nacional na preservação e dinamização dos seus espaços museológicos”.

Neste âmbito, segundo o autarca, hoje, Famalicão afirma-se no panorama cultural nacional através do trabalho desenvolvido na Casa-Museu de Camilo, que foi eleito “Melhor Museu Português”, em 2006, mas também através das actividades promovidas no Museu Bernardino Machado, dedicado ao antigo Presidente da República, no Museu do Surrealismo, no Museu da Indústria Têxtil e no Museu dos Caminhos-de-Ferro, entre outros.

“Estamos a falar de espaços de memória viva.” “Espaços que fazem de Famalicão uma terra das artes e da cultura” referiu o edil, salientando o “trabalho realizado pela Câmara Municipal, mas também a capacidade de iniciativa dos agentes culturais locais, de que os responsáveis pelos museus particulares são um bom exemplo”. (...)
 
Esta iniciativa  merece o nosso aplauso (*). Os museus do concelho de Famalicão que participam nas comemorações do Dia Internacional são os seguintes: 

Casa-Museu Camilo Castelo Branco; 
Museu Bernardino Machado; 
Museu Ferroviário; 
Museu da Indústria Têxtil; 
Museu da Fundação Cupertino de Miranda; 
Museu de Cerâmica da Fundação Castro Alves; 
Museu de Arte Sacra de S. Tiago de Antas; 
Museu de Arte Sacra da Capela da Lapa; 
Museu do Automóvel Antigo; 
Casa-Museu Soledade Malvar; 
Museu Cívico, Cultural e Religioso de Mouquim.

2. Museu Guerra Colonial > Delegação local da ADFA

A história deste museu remonta ao ano lectivo de 1989/90, quando três dezenas de alunos,  oriundos de várias freguesias dos concelhos de Vila Nova de Famalicão, Barcelos e Braga,  participaram no projecto pedagógico-didáctico  "Guerra Colonial, uma história por contar". 

Através da metodologia da história de vida oral,  os alunos recolheram o espólio dos combatentes das suas áreas de residência. Surgiram então vários documentos como processos por morte e ferimentos em combate,  correspondência (cartas e aerogramas), histórias de unidades, diários pessoais, diários de acção social e psicológica, relatos e processos confidenciais, objectos de arte, fotografias, bibliografias, objectos religiosos, fardamento, armamento, etc. enfim todo um rico e diversificado manancial de fontes que permitiu, entre outras coisas, organizar uma exposição e nela reconstruir as "peugadas" do combatente português na guerra colonial (1961/74)

Em 1992, iniciou-se um trabalho de colaboração com a Delegação da Associação dos Deficientes das Forças Armadas (ADFA) de Vila Nova de Famalicão.Foram efectuados novos estudos regionais com base nos arquivos e membros desta organização. Foi ampliada a exposição com a integração de nova documentação e  materiais.   A exposição integrou diversos eventos culturais e percorreu várias localidades.
Por fim,  em Maio de 1998, foi celebrado um protocolo de colaboração entre a Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, Delegação da ADFA de Famalicão e Externato D. Henrique de Ruilhe de Braga, formalizando a criação do Museu da Guerra Colonial.

"O Museu rege-se pela recolha, preservação e divulgação de fontes e estudos, reformulação técnica da exposição permanente, constituição de um centro documental e o alargamento de novos estudos na região".

Localização: 
Centro Coordenador de Transportes, 
Sala 1, 
Rua Henriques Nogueira, 
4760-038 Vila Nova de Famalicão

Ingresso: Entrada Livre 
Horário: De 2ª a 6ª feira,  09h30 - 12h00 e 14h00 - 19h00
(Sábado, só com marcação prévia)
Contactos: Tel. 252 322848 e 252 376323
E-mail: info@adfa-famalicao.rcts.pt 
Sítio: Delegação local da ADFA 

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Nota de L.G.:

(*) Último poste desta série > 24 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 – P5005: E as Nossas Palmas Vão Para... (3): Medalha de Prata de Serviços Distintos, com Palma (José Martins)

Guiné 63/74 – P6423: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (21): Zumbidos em noite de Verão

1. Mais uma Estória de Mansambo, enviada pelo nosso camarada Torcato Mendonça* (ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69) em mensagem datada de 11 de maio de 2010.


ESTÓRIAS DE MANSAMBO II - 21

ZUMBIDOS em NOITE de VERÃO



Vista para Poente. O abrigo com a entrada pela falta do bidão. Em Junho não havia espaldão do 10,5


O clarão, o som, a força bruta a atirá-lo de encontro ao fundo da vala.

Cabeça à roda, ouvidos a estalarem, olhos a nada verem, só, só aquela mancha de cor forte, entre o amarelo dourado e o esverdeado.

Tudo à volta roda. Sente que o puxam e deixa-se arrastar. Não sabe o que sente. Não sabe nada do que aconteceu. Parece que tudo desabou.

Molham-lhe a cabeça e a água escorre pelo tronco nu, vai activando o cérebro e aos poucos sente que regressa.

Regresso de onde? Quer falar e nenhum som sai ou se saírem, talvez, sejam sons de confusão.

Tocam-lhe e sente. Está confuso, nada ouve, nada vê. Tem vontade de ir para o fundo, vontade de descer.

Quanto tempo se passou, segundos, minutos? Quantos?

Lentamente, aos poucos, começa a passar as mãos pelos olhos, pela boca, pelos ouvidos. Tenta levantar-se e ajudam-no. O calor de uma chama qualquer vem até ele, só que não vê. Metem-lhe um cigarro na boca e suga-o sofregamente.

Aos poucos sente um ruído, um zumbido diferente, um som que não consegue definir. Sente somente que os pensamentos voltam lentamente e a confusão se vai. Os zumbidos vão-se transformando e o pensamento voltando.

Começa a saber onde se encontra, a sentir o que o rodeia, a tocar objectos e a virem sons mais perceptíveis. A mancha que lhe turva a visão continua, mais suave, mas ainda lá está.

- Apanharam-me. Lixaram-me, espera, espera um pouco mais.

Sente aos pés o morteiro sessenta e uma caixa de granadas. Agarra-os e sai.

Apanharam-me sacanas… e sai uma e outra e mais outra granada… começa a ter noção do espaço, da situação. Do abrigo o guarda-costas grita, chama-lhe doido e, dizem-lhe depois, nomes piores. Ouve som que não consegue definir e de repente vê a chama da saída da granada pela boca do morteiro.

Vê. Vê e talvez tenha sorrido. Rebola para a vala e o abrigo dos dilagramas e dos sessenta. O morteiro está a ferver. As mãos estão queimadas e agora sente o ferrete da dor no peito. Que importa se já vai vendo, difuso, enevoado mas vê e começa a ouvir, a sentir as palavras do Serra e ali ficam naquele buraco a dar resposta ao inimigo que veio sem ser convidado. Veio para arrasar tudo. Quantas horas já se passaram? Não sabe e isso que interessa.

Amanhece e ainda se digladiam.

Entra no abrigo grande e tudo está bem. Parece que por ali passou um ciclone.

- Os cabrões não partem porque querem levar os mortos e feridos.

As munições começam a escassear, as dores e o cansaço a vir. Parece que tudo, na parte dele, da parte dos militares a que pertence está bem.

Vieram caçar-nos e foram caçados.

Aos poucos tudo começa a acalmar, lentamente os tiros soam espaçadamente e as armas pesadas já não se ouvem.

Estendem-lhe uns calções e tapa a nudez. Os abrigos comunicam entre eles e tudo está bem. Felizmente e da tabanca vêm sons igualmente animadores.

Tenta calçar as botas mas tem os pés lixados e sai de chinelos.

Apontam-lhe o buraco da morteirada junto à vala. Encolhe os ombros e sobe-lhe a raiva pelo que lhe aconteceu.

Voltam a chamá-lo. Vai um pouco mais à frente, junto da segunda fiada de arame, está enorme poça de sangue, metade de um cinturão e uma Ceska num coldre. Vêem-se sinais de arrastarem o corpo do dono dos despojos. Graduado de certeza, melhor ainda. Levanta os braços ao alto e ri, ri alarvemente em hino à morte ou à falta de sorte e lança ao ar palavras de ofensa. Tempos loucos.

Doem-lhe os ouvidos, os pés, as mãos. Dói-lhe tudo e ainda ri, riso alarve.

Que noite de merda, diz e afasta-se….

Ainda a sente. Basta com ele falarem.

Mansambo, 28 de Junho de 1968


Rescaldo do ataque de 28 de Junho


Mansambo > Bonito, agradável e saudável

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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 17 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6410: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (9): O saco do Zé Paz D'Almas

Vd. último poste da série de 13 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 – P6381: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (20): Choro na noite

Guiné 63/74 – P6422: Memórias de outros tempos (5): O Básico que queria fazer um ronco (Jorge Teixeira / Portojo)

1. Mensagem de Jorge Teixeira (Portojo)* (ex-Fur Mil do Pelotão de Canhões S/R 2054, Catió, 1968/70), com data de 17 de Maio de 2010:

Caros amigos e camaradas.
Primeiro, um abraço para vocês.
Segundo, se der para post, siga e anda.
Não é preciso aprovação prévia.

Jorge Teixeira


MEMÓRIAS DE OUTROS TEMPOS

5 - Especialidades militares

Ao ler a mensagem do Alcides - Post 6394 - lembrei-me de uma Especialidade, que não o era: a de Básico. Que me lembre encontrei em Catió 2 rapazes com essa não Especialidade. Que afinal era a que todos queríamos, porque assim não iríamos dar com os costados em África. Dizia-se. Mas puro engano.

Quando regressei a Catió depois das férias no HM 241 de Bissau em 4 de Dezembro de 1969, após os 5 dias de convalescença obrigatório por lei, foi-me dado um mini Pelotão, digamos com 2 Secções de 10 homens cada, formados por rapazes da CCS do BART 2865, das mais diversas Especialidades, que, com excepção de um deles, atirador de metralhadora ligeira, (não sei onde foi desencantado, mas era bom mesmo com aquela coisa), os outros eram Padeiros e de outras Especialidades das quais já não me lembro minimamente, com excepção da de Básico. Durante os 9 ou 10 meses de comissão que já levavam, nunca tinham saído do Quartel, a não ser para ir jogar à bola, beber uma cerveja no Libanês ou ao Taras-Buba, ou ir partir catota lá numa tabanca. A nossa missão era (para além de outras brincadeiras) o patrulhamento e segurança nocturnas mais ou menos junto às populações. Esse serviço era feito diariamente, melhor, nocturnamente, normalmente entre as 5 da tarde e as 5 da madrugada. Cada dita Secção saía dia sim dia não, eu saía dois dias e descansava um.

Quer dizer, não saía, mas estava de segurança. Quando flagelados, teria que ir reforçar um dos "postos" exteriores, com a Secção que estava em descanso. Mas para o caso não interessa nada e voltemos ao tema das Especialidades.

Ora um Básico, em princípio era um faz tudo. Colher para toda a obra. Até atirador.

Na foto, o "Básico" é o segundo, com camuflado, a partir da direita

Um dos rapazes "básico" era de estatura pequenina e nunca tinha dado um tiro. Ficou feliz da vida quando lhe disseram que iria fazer parte de um Grupo de Combate. A primeira coisa que me disse foi: quero fazer um ronco. E comigo. E logo eu, que a primeira coisa que fiz com esse grupo, foi ensinar-lhes a correr muito e o caminho para "casa" a partir dos vários locais exteriores a Catió.

Certo dia tivemos uma flagelação e em grande, cerca das 2 horas da manhã. Toca a levantar, ir para o ponto de encontro e sair com o pessoal que estivesse pronto para reforçar o exterior que nesse dia era logo a seguir a Catió Fula.

Lembro-me dos pormenores dessa noite/madrugada. Estava luar, e arranquei com o pessoal, cheio de cagaço, muito encostado e o mais metido possível para dentro do arvoredo junto à picada. Fui olhando para trás e de repente vejo um pequeno vulto quási encostado a mim. Quando distingui quem era, vi o Básico, todo contente com a G3 ao ombro. Diz-me ele: Furriel é hoje o ronco, vamos a eles.

Além dele, trazia mais de 25 às costas e tremi todo pensando como iria aguentar e esconder aquela gente toda. Os homens do meu Pelotão oficial, que nunca me largavam nessas ocasiões, sabia que estavam atrás de mim e que orientavam a coisa, mas os outros não faço a mínima ideia quem eram nem a quem pertenciam: Se à CCS, se à Companhia de intervenção, se ao Pelotão de Morteiros. Sei que parte deles, que também não pertenciam ao mini-pelotão da CCS, foram arrastados pelo Básico.

A rapaziada começou a dizer que ouvia barulhos. Sem transmissões e mesmo sem ordem do comando - em Catió só se fazia fogo à ordem - autorizei a dar uns tiritos com o canhão. Não adiantava nada, porque as nossas granadas eram incendiárias e já com o prazo de validade expirado há manga de chuvas. Mas pelo menos se andasse por ali alguém sempre assustava. E parece que andou mesmo, pois segundo me disseram no outro dia, havia rastos de sangue. E a rapaziada ficou contente. Manga di ronco, pessoal.

Conclusão: O meu Básico, homem cheio de coragem, levava mesmo a G3 que embora com carregador, não tinha munições. Os camaradas preveniam-se contra os heróis...

Portanto a guerra também se fez com os incógnitos Básicos. E o meu Básico andou feliz da vida a contar a aventura por muito tempo. E lá teve direito à cervejinha da ordem para comemorar aquela noite de ronco.

Notem: Básico não é pejorativo. Muito menos para este rapaz que não tinha nome. Quer dizer, ter tinha, mas era o Básico e pronto, todos sabíamos quem era. A alcunha já lhe vinha desde a "Especialidade".

Um abraço
Jorge (Portojo)
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 25 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6250: O 6º aniversário do nosso blogue (30): Eu, a Tabanca Grande e o 25 de Abril (Jorge Portojo)

Guiné 63/74 - P6421: Do meu álbum fotográfico (Arménio Estorninho) (2): Bissau - Um olhar de turista

1. Recordando a mensagem de Arménio Estorninho* (ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas, CCAÇ 2381, Ingoré, Aldeia Formosa, Buba e Empada, 1968/70), com data de 15 de Abril de 2010:

[...]
Recordando com saudade, com um bloco de imagens de referências sobre a cidade de Bissau que achei interessantes, obtidas de Janeiro a Março/70.

Bissau, como a conheci, era uma cidade pequena, em que a parte urbana (casario de alvenaria) seria idêntica à da minha Lagoa (hoje tembém cidade). Era suficientemente perceptível que a grande maioria dos que se apresentavam como civis eram militares “camuflados à paisana” e/ou seus familiares e parecendo uma cidade cheia de movimento.

Aquando do aproximar do regresso à Metrópole dos militares em fim de comissão de serviço, era ver um movimento inusitado nos estabelecimentos comerciais. Pela minha parte e bem informado, fui comprando muito antes da chegada do navio para o embarque, regateando aqui e além, o que me favorecia obter preços mais acessíveis.

Na baixa de Bissau, tanto de noite como de dia, era ver em grupos os “camuflados à paisana” nos diversos estabelecimentos similares e de restauração, de uma forma geral tudo se movimentava com os militares. Lembrando entre outros: O Noé (dos pombos verdes e ostras), O Solar dos 10 (Restaurante), O Pelicano (na cave, as francesinhas e as inglesinhas), Cervejaria Império, Cervejaria Sol Mar e Esplanada do Bento (locais onde não faltavam as cervejas e os mariscos)


Do meu álbum fotográfico, recordando com um olhar sobre Bissau (2)


Foto 9 – Bissau> Pilão (Cupelon de Cima, Av. da Cintura)> 1970> Pôr-do-Sol, com grande esplendor e beleza

Foto 10 – Bissau> Pilão> Cupelon de cima> 1970> Tabanca isolada e protegida sob a árvore sagrada o poilão

Foto 11 – Bissau> Sé Catedral> Casamento de casal com relevância> 1970> Cerimónia pública de noivado católico, com a curiosidade de muito povo anónimo.

Foto 12 > Bissau> Sé Catedral> Populares em extra-cerimónia> 1970> Povo anónimo fazendo festa no casamento, executando danças e cantares tradicionais.

Foto 13 > Bissau> Av. da Rádio Bissau> (Av. da Unidade Africana)> 1970> Parte da avenida, que se estendia desde a Sacor, até ao jardim do Palácio.

Foto 14 > Bissau> Av. da Rádio Bissau> (Praça Combatente Desconhecido)> 1970>Pequeno Jardim, numa bifurcação que derivava para a Pensão Regional.

Foto 15 > Bissau> Liceu Honório Barreto> 1970> Na Guiné, no Liceu e na Escola Técnica, é que se obtinham os Cursos Secundários.

Foto 16 > Bissau> Avenida da República> (Av. Amílcar Cabral)> 1970>
Vendo-se ao fundo o Monumento e o Palácio do Governador.



Era assim ao tempo e quando virá a ser, são os tempos que terão que ser recuperados a bem do povo guineense, que tardam em decidir-se, e que também necessitam de apoio. Mas avancemos com aquele provérbio chinês, “não me dês o peixe para comer, mas ensina-me a pescar.”

Com cordiais saudações e um grade abração para todos os Tertulianos
Arménio Estorninho
Ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas
CCaç 2381 “Um Maioral”
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Nota de CV:

Vd. poste da série de 16 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6405: Do meu álbum fotográfico (Arménio Estorninho) (1): Bissau - Um olhar de turista

Guiné 63/74 - P6420: Memória dos lugares (80): Bambadinca, Abril de 2010 (Jaime Machado / Beja Santos)












Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bambadinca > Abril de 2010 > Por aqui passou (e fotografou) o nosso amigo e camarada Jaime Machado, outrora comandante do Pel Rec Daimler 2046 (Bambadinca, 1968/70). 


Fotos:   © Jaime Machado (2010). Direitos reservados


1. Mensagem do Mário Beja Santos (*):

Luis,


A  escola onde a Dª Violete namorava comigo! (**)...


O cemitério de Bambadinca,  reduzido a lixeira,  com as sepulturas dos nossos camaradas!...


Uma lousa onde se aprende a língua comum!...


Foi o Jaime Machado que me enviou, anda por estes olhos uma água fina a boiar de saudade...


Um abraço do Mário


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Notas de L.G.:

(*) Vd. útimo poste da série >  11 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6369: Memória dos lugares (74): Bissau, cidadezinha colonial (Parte II) (Agostinho Gaspar / Luís Graça)

(**) Vd. poste de 11 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2431: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (15): Oficial e cavalheiro em Bambadinca, às ordens de Dona Violete

Guiné 63/74 - P6419: Notas de leitura (107): Os Resistentes de Nhala, de Manel Mesquita (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Maio de 2010:

Queridos amigos,
Conhecer o testemunho do Manel Mesquita vale todos os pequenos enfados eventualmente sofridos.

Que agradável surpresa! É indispensável que uma editora o estimule a reformular este seu espelho de alma, não conheço melhor cântico de soldado.

Um abraço do
Mário


O admirável soldado Manel Mesquita

por Beja Santos

É uma edição de autor, dá pelo título “Os Resistentes de Nhala, 1969 – 1971”. É um documento impressionante pela bondade e solicitude. O ofício de escrever empurra-nos para uma composição sempre comprometida entre a cultura, valores como o pudor, o voo imaginativo e o charme discreto pelo dever cumprido.

 Quem escreve sobre a guerra colonial são fundamentalmente oficiais e alguns sargentos. Não é um problema de classe, tudo passa pelas regras da comunicação, há bloqueios que muitos não se sentem afoitos a transpor. 

Começamos a ler o livrinho, apercebemo-nos que é alguém que tem um diário de campanha para nos comunicar. Ficamos logo a saber que o Manel Mesquita fez parte da companhia CCaç 2614, detentora da divisa “Poucos Quanto Fortes”. É um homem que se comove com o seu amor a Nhala, pelas amizades feitas, pela solidariedade construída. É um homem que constantemente procura rezar, para aliviar a sua solidão ou dissipar os seus sofrimentos.

Acima de tudo, de tudo quanto já li sobre o teatro de operações da Guiné, ninguém como ele anuncia o encantamento dos discursos, das falas do quotidiano, a métrica dos sentimentos. Li e reli, e empurrado pela emoção, telefonei para os contactos que ele estampa no seu livrinho de 300 exemplares: 22 762 07 36 / 96 35 25 912. 

Encontrei-o a caminho de Fátima, já ia perto de Pombal. Rendi-lhe homenagem e admiração, pedi-lhe encarecidamente que tivesse em conta a magnitude do seu testemunho: falei-lhe em certas imprecisões, muitos erros ortográficos, eventos que mereciam desenvolvimento, aliciei-o para uma edição comercial, este documento é de uma humanidade tal que não pode circunscrever-se às mãos de uns tantos. Disse que vai pensar, ofereceu-se para ser mediador meu nas suas orações. Aí comovi-me até às lágrimas. Adiante, vamos ao tutano da questão.

Na Rocha do Conde de Óbidos, o Manel sobe para o Uige e lembra-se do que lhe disse a irmã mais velha: “Entra com o pé direito”. Entrou e perguntou ao marinheiro para onde devia seguir. Resposta pronta: “Desenrasca-te, a tropa ainda não te ensinou a desenrascar?”. Indigna-se com o porão do navio, aquelas zonas frias, húmidas, sem luz natural, uma lâmpada envergonhada e triste. Há quem fume apressadamente, as garrafas de vinho andam de mão em mão. O Manel começa a conversar com o Zé Lourenço, falam da família, de gente desaparecida, do trabalho na vida civil. A tensão, a expectativa, as incógnitas da guerra, atravessam todas as conversas. 

E assim se chega a Bissau, dias depois embarcam numa LDG para Buba. O Manel regista: “Passámos o resto da noite a bordo. O orvalho molhava-nos as fardas e todos os nossos haveres. A noite parecia gelada. Das margens vinham árvores e arbustos de uma vegetação muito densa e fechada, nada deixando ver para além. Algumas dessas árvores vergavam-se até à água, parecia que nos queriam homenagear com cortesias. Águas pareciam de prata, brilhavam com o luar, bem cedo se começou a notar que o sol espreitava com os seus bonitos rigores coloridos por entre algumas árvores. Há um brilho cristalino ao encontro do sol com o orvalho e resíduos de luar. Parece pintura de artista. A água do rio, essa, estava ali à altura do nosso braço, ia ficando para trás. A natureza é bela! É pena que nem sempre o espírito nos dá a tranquilidade necessária para a deleitarmos como merece. É bonito ver o nascer do sol durante esta viagem neste rio”. E assim chegam ao Buba, onde cai chuva com muita intensidade. Há pelotões que ficarão em Buba, outros irão para Nhala, outra tropa seguirá para a Aldeia Formosa.

Começa a viagem. O Manel deslumbra-se com aquelas árvores talvez centenárias, observa que há locais onde o sol nunca secará as águas que escorrem junto das estradas. Há um sinistro na viagem, uma arma que se disparou imprevistamente, o ferido grita pela mulher e pela filha, quem cometeu o imprevisto ameaça suicidar-se, contristados chegam a Nhala. Novo registo: “Há um soldado sentinela num posto de vigia. Tem as roupas velhas. Os olhos e a arma voltados para nós. As palhotas estão velhas e desalinhadas. A palha que serve de cobertura vem quase até ao chão foi feita sem ordem. À frente há uma tenda de tecido muito velho, será provavelmente para as tropas”. Começa a adaptação. Para tomar banho vão armados, é uma poça com dois metros de diâmetro e dois palmos de profundidade, tinha pedras de lavadouro, estavam lá algumas africanas a lavar a roupa. Invadido pelo pudor, o Manel sente que não pode despir-se naquelas circunstâncias, seria desrespeito pelos outros. Mas o bom senso imperou, despiu-se, fez a sua higiene, no regresso é informado que às seis da tarde irá para o posto de vigia. Sente-se revoltado com a comida que lhe dão ao jantar, em grupo comem o resto de um naco de presunto.

O Manel relembra tudo, como veio lá do Norte até RI 16 em Évora, nunca esqueceu a cidade quando regressaram das marchas finais e os saudaram, vinham cansados e sujos, o povo saúda-os. Em Évora recebeu 500 escudos em dinheiro e guia de marcha, nunca o número 120156/69 fora tantas vezes pronunciado e escrito.

Tinham um pouco mais de uma semana de comissão quando descobrem, dentro da tenda, a primeira hostilidade da natureza: estavam a ser atacados por formigas, houve que regar toda a zona com gasóleo. Aquele primeiro Natal foi muito duro de passar. Depois chegou o alferes Giesteira, vinha tapar uma falta desde o embarque. E começam os patrulhamentos na estrada nova de Uane. Houve logo contacto. O que resta da estrada é espectral: esqueletos das máquinas queimadas ou enferrujadas, até niveladoras e camionetas. Agora o capim cresce por todos os lados.

O Manel é católico praticante, esteve no seminário, é contra a violência, há mesmo que insinue que ele é comunista. Foi castigado por ter dito que não aceitava pegar numa G 3 para matar pretos, chegou mesmo a ser interrogado por vários oficiais, proibiram-lhe que frequentasse a escola de cabos. O Manel explica aos seus camaradas que vem ali procurar ser útil às populações, não o move qualquer hostilidade a quem quer ser independente. É tocante o modo como ele nos conta o seu dia-a-dia, desde a manutenção e faxina ao aquartelamento, o apoio à construção de moranças, os patrulhamentos. Na sua casa, o Manel construiu uma lápide onde está escrito: “Qui venit in nomine Dei focare placet bene (Quem vem em nome de Deus será bem aceite)”. No carreiro de Uane, os pelotões da CCaç 2614 continuam a ser emboscados, por vezes consegue-se reagir energicamente, outras vezes o factor surpresa joga a favor das tropas do PAIGC. Em todo o sofrimento, o Manel procura a aceitação: “Tenho que reconstruir-me e tudo recomeçar. Tentaremos que recomece melhor e de maneira mais perfeita. Tentarei distinguir a amargura da vida diária. Nhala tem que continuar a evoluir. Nós queremos melhorar as condições de permanência e habitualidade em Nhala”.

Este testemunho deixa-me emudecido, o Manel é um coração pacífico, nunca mais esquecerá Nhala. E o que ele vai registar de tipos humanos, camaradas que encontrou, gente inesquecível, é surpreendente.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 17 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6409: Notas de leitura (106): Bissau Em Chamas, de Alexandre Reis Rodrigues e Américo Silva Santos (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P6418: Álbum fotográfico de Daniel Matos - II parte

Segunda parte do Álbum fotográfico de Daniel Matos, ex-Fur Mil da CCaç 3518, Gadamael, 1971/74.


Foto 30 > Reagirmos às emboscadas ou dispararmos enfiados nas valas, não era tarefa fácil...

Foto 32 > Pormenor de Gadamael.

Foto 33 > Crianças de tenra idade na Guiné. São sempre as crianças quem mais sofre durante uma guerra e estas não foram excepção.

Foto 41 > Os momentos de lazer não eram muitos, mas havia que os aproveitar quando se proporcionavam. Aqui, um momento de repouso, sentado sobre uma das imaginosas obras dos nossos soldados: uma cadeira de balouço construída com velhas aduelas (tábuas redondas de barris).

Foto 44 > Cais de Gadamael, num momento de descarga do batelão (BM3), que nos abastecia e que ali deixava os produtos que transportaríamos nas colunas para Guileje

Foto 52 > Passeio de Sintex: eu, o Soldado Condutor Albino Caldas, o saudoso 1.º Cabo Telo, o Fur Mil Lopes Silva e o Alf Mil António Monteiro. A cabeça que se vê na água é do Capitão Manuel de Sousa.

Foto 53 > Equipa de Voleibol dos Marados

Foto 55 > Machado

Foto 58 > Caixa de Correio

Foto 65 > Secretaria

Foto 66 > Pindjiguiti > 31 de Maio de 1973

Foto 67 > Bafatá > Janeiro de 1974

Foto 67a > Gadamael > Fevereiro de 1973 > Messe

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Nota de CV:

Vd. primeiro poste da série de 16 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6407: Álbum fotográfico de Daniel Matos - I