sexta-feira, 16 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6747: Notas de leitura (131): Cambança Guiné Morte e vida em maré baixa, de Alberto Braquinho (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Julho de 2010:

Queridos amigos,
Li com indisfarçável prazer estes frescos e instantâneos que qualquer um de nós viu, soube da existência ou até teve inveja de não lhe ter acontecido.
É de bitola larga esta cambança do Alberto Branquinho, no fundo trechos das cambanças que acabámos por viver.

Um abraço do
Mário


Peripécias, choque cultural, bizarrias em tempo de guerra

por Beja Santos

O nosso confrade Alberto Branquinho* teve a feliz iniciativa de arregimentar histórias curtas (todas elas admissíveis, como o leitor irá comprovar) numa atmosfera de guerra em que o traço comum é a cambança. Para o Alberto Branquinho esta cambança tem um cunho filosófico, etnográfico, antropológico e, quiçá, militar em toda a sua latitude e longitude. Por isso define tal cambança como: é passagem para o outro lado, por vezes uma fuga ou uma mudança, pode ser uma partida ou um regresso, quase sempre com a vida em maré baixa. Temos logo na definição, e por arrasto, a dimensão de uma viagem que a todos transforma no ir e voltar, em que a atmosfera é mais deprimente que exaltante, cabendo ao militar saber-lhe «dar a volta». Aliás, de um escrito entre guerrilheiros que o Branquinho reproduz está lá uma frase que ainda hoje é matéria para pensar: “Não te preocupes da vinda ou da tua retirada é-lhe o momento mais decisivo da nossa luta”. No cambar é que está o ganho, ali nos reunimos todos. Esta a lição universal, o resto é treta. Por isso, como consta das advertências, as personagens das histórias do Branquinho podem ter semelhanças com pessoas que tenham vivido acontecimentos idênticos. Por outras palavras, se quiséssemos alardear erudição, temos aqui antonomásia ou figura metonímica, umas coisas significam outras, todas as peripécias em tempo de guerra poderiam ter tido lugar. Vamos agora à substância dos escritos.

Numa emboscada, há sempre a tentação de ver corpos em movimento, todos os sons ou estalidos na floresta levam a redobrar a vigilância. Ora o barulho da água podem ser crocodilos. Quando se descobre que é este o motivo da inquietação, assobia-se para o lado, que ninguém saiba que somos ignorantes quanto às forças da natureza...

O que vem na carta geográfica não é propriamente o terreno em que assentam os nossos pés e na Guiné a disparidade ainda é mais gritante. Aqui também se atravessam rios que serpenteiam o território para onde se vai, rios com centenas de metros de largura, com tarrafo na maré baixa, atravessa-se de uma lado ao outro numa canoa, quem dirige a operação é o remador, mas também se pode recorrer à autoridade suprema como aquele furriel que temendo que a canoa se virasse puxou a culatra atrás e sentenciou à tropa presente e irreverente: “Eu não sei nadar. Quero toda a gente com o cu sentado no fundo. Se esta merda vira, varo-vos a todos”.

Todas as unidades militares têm os seus palradores, e o território da guerra de guerrilha não é excepção. Chegou à sede do batalhão um jornalista e o alferes que o recebeu era todo um portento de lábia e prosápia. O jornalista vinha em missão de reportagem sobre a guerra da Guiné, o alferes respondeu que o que havia ali era uma insurreição armada, vinda e alimentada do exterior. O jornalista pede sugestões para sair para o mato, quer autenticidade na reportagem, e o palrador responde:
“Sabe, essas coisas não dependem de irmos para Norte ou para Sul. Depende mais das fases da lua, da orientação do vento ou da humidade do ar... com sorte ou com azar, pode alcançar a verdade e a vida a pouco mais 4/5 quilómetros. Sempre será melhor que estar para aí a filmar a mata ou meia dúzia de figurantes de armas na mão, tendo o homem da câmara encostado ao arame farpado”. Inevitavelmente, o comandante deu ordens para que o alferes tivesse tento na língua.

Nem sempre o que se escreve numa carta em teatro de guerra é entendido de igual modo. O marido escreve à mulher que saía para batidas, patrulhas, operações ou emboscadas. A mulher, na resposta, desabafa e recrimina: “Ainda dás uns passeios. Eu para aqui estou e é só de casa para o trabalho e do trabalho para casa. Passear, passear é só à missa nos domingos e...”. Há incompreensões em que é muito difícil clarificar que as idas e vindas no mato não são turismo ao ar livre.

“Cambança” é uma colectânea de encontros e desencontros: frases mal interpretadas, tensões dialécticas entre oficiais; o linguajar remendado do crioulo; as bebedeiras que, de tanta inconsciência, podem saldar-se numa morte estúpida debaixo de fogo; os barulhos da mata que avançam para nós e que podem significar uma chacina de porcos do mato; aquele cabo que, depois de um ror de tempo isolado lá nos confins do mato, pensa que está a fazer boa figura recorrendo ao crioulo para o piropo em Bissau, recebendo da moça alvo das suas atenções o seguinte chiste: “Porque é que você não fala comigo português direito?”; a solidão infindável que pode culminar no álcool e numa vida destroçada... encontros imprevistos, situações imprevistas como ver formigas a devorarem restos de corpos de camaradas, o medo transformado em acto heróico, macacos que revolvem a picada pondo minas a descoberto, contribuindo assim para salvar vidas...

“O regional é universal”, não há máxima mais demonstrada pelo saber de experiência feito. Tudo leva a crer que o nosso confrade Alberto Branquinho forjou o rio Chibari, as povoações de Catafá e Fatilá, o rio Bandiel, e os nomes de oficiais, sargentos e praças são suficientemente inócuos e inconclusivos para que possamos imaginar que aquelas peripécias, aquele choque cultural, aquela bizarria sempre a destilar humor (casos há em que o humor tem o condão de caracterizar melhor a repulsa pelos horrores da guerra) aconteceram ali ao lado de nós, vivemo-las, conhecemo-las, no todo ou em parte.

Ficamos todos com uma enorme dívida de gratidão com o Alberto Branquinho: o picaresco dos desastres dos afazeres da guerra tem aqui uma galeria memorável de fotografias tipo passe que nunca mais esqueceremos
__________

Notas de CV:

(*) Alberto Branquinho foi Alf Mil de Op Esp da CART 1689, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69.

Vd. último poste da série de 15 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6741: Notas de leitura (130): Seminário 25 de Abril 10 Anos Depois (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P6746: Tabanca Grande (230): Felismina Costa, madrinha de guerra de Hélder Martins de Matos, ex-1.º Cabo Escriturário, Bafatá, 1963/64

1. Mensagem da nossa tertuliana Felismina Costa com data de 15 de Julho de 2010:

Amigo Carlos Vinhal, muito boa-noite.
Eu sei que a regra é enviar foto para identificação no blogue, mas o motivo porque não o fiz até hoje, prende-se unicamente, com o não dominar totalmente a tecnologia: São os filhos que me ajudam nos pormenores, mas raramente se encontram quando escrevo e o tempo vai passando. Contudo, hoje, consegui passar para o Word a minha foto do tempo da guerra, (que também por lá andou na companhia dum afilhado e grande amigo de infância, que prestou serviço militar em Angola entre 1966/1968), e de quem não tinha notícias desde o seu regresso, até ao passado mês de Junho.

Depois de 46 anos de desencontros, encontramo-nos finalmente, e temos uma história linda para vos contar. Os meus filhos querem que escrevamos um livro, porque a história tem requintes, de quanto vale a amizade.

Estamos a viver a euforia do reencontro na maior das alegrias, e a conhecer a família que cada um de nós formou.

Porque a amizade tem para mim um valor insubstituível, eu aprecio e sinto a alegria que sentem, quando vós, camaradas e amigos se reúnem.

Obrigada pela vossa amizade também.
Eu que entrei no blogue, procurando um afilhado, que ainda hoje não conheço*, fui surpreendida, pela persistência e determinação do meu amigo Joaquim.

As surpresas da vida!
Ainda não acredito.

Um abraço da amiga
Felismina Costa


2. Comentário de CV:

Amiga Felismina
Não lhe dou as boas-vindas, porque há já algum tempo se instalou na nossa caserna virtual, onde é notório, se sente bem.

A sua colaboração tem sido excelente, a ponto de ter um poema seu na nossa página, dedicado por si ao nosso Blogue, a propósito do 6.º aniversário, e que me permito reproduzir aqui:

Parabéns, Srs Editores!
Parabéns a todos os participantes,
A todos os denunciantes
Do medo, do horror, do degredo...
Em terra linda, que vos encantou.


Parabéns, porque sois capazes de denunciar!
De gritar a vossa revolta.
A vossa digna revolta.


Parabéns, porque sois vós, a voz com razão
Que não teme a repressão,
Que não bajula, que não pactua,
Que não se acobarda.


Parabéns, porque... sobrevivesteis!
Porque fizesteis questão de contar, de relatar,
De registar os horrores, que presenciasteis,
quando ainda meninos, vos mandaram matar...


Terrível realidade, que em vossos peitos se instalou
e que, em muitos, deixou marcas físicas, psíquicas,
continuamente revividas...
Mas ditas!
Mas... que eles não apagam.


Haja ao menos o blogue, o vosso amado blogue,
onde despejam alegrias e tristezas.
Onde contam, como ninguém, as vossas certezas
e incertezas.


Comungo convosco desta festa, desta festa, onde celebram a vossa...
Sobrevivência!



Tem a porta aberta para continuar a intervir sempre que queira, porque a sua acção como madrinha de guerra de um camarada, ainda por cima ex-combatente da Guiné, lhe dá direito a ser um(a) de nós.

Muito obrigado por estar connosco.

Receba o habitual abraço colectivo da tertúlia, uma vez que esta é a sua apresentação formal.

Pelos editores
Carlos Vinhal
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 27 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5894: Em busca de... (119): Afilhado de guerra, Hélder Martins de Matos, ex-1.º Cabo Escriturário, Bafatá, 1963/64 (Felismina Costa)

Vd. último poste da série de 11 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6714: Tabanca Grande (229): Artur José Miranda Ferreira (ex-1º Cabo Enfº da CCAÇ 6 – Bedanda -, 1968/70

Guiné 63/74 – P6745: O Nosso Livro de Visitas (93): É ele o Mexia Alves que eu conheci! (António Brandão, Alf Mil Op Esp/RANGER da CCAÇ 2336, Angola, 1968/70)


1. O nosso amigo e Camarada-de-armas António Brandão, que há muito tempo segue atentamente o evoluir deste blogue, foi Alferes Miliciano OpEsp/RANGER da CCAÇ 2336 (Angola 1968/70) e enviou-nos a seguinte mensagem em 13 de Julho de 2010:


Camaradas,

Soube de uma pequena estória que não posso omitir aos leitores deste cativante e interessante blogue do Luís Graça.

Os intervenientes são o famoso Mexia Alves e um primo meu - Duarte Nuno -, que já trocaram e-mails entre si, pelo que já se encontram apresentados.

Também os contactei dando-lhes conhecimento de que me propunha pedir a publicação desta estória, que se resume em meia dúzia de linhas, e ambos concordaram em que o fizesse.
É ele o Mexia Alves que eu conheci!
Há dias recebi uma resposta a um e-mail que tinha reencaminhado, entre outros, a um primo meu.

Ele aproveitou a “boleia”, já que os selos estão caros e, além de comentar o e-mail, mandava-me um link que me remetia para uma publicação no jornal Correio da Manhã.

Há pessoas que se cruzam connosco cuja forma de estar na vida, de enfrentar os problemas e no modo como se relacionam com os outros seres humanos, se perpetuam na nossa memória.

Foi este o caso que se deparou ao meu primo ao ler o artigo, pois recordou-se de imediato do antigo camarada que, com as malas já feitas, se preparava para partir para a Guiné.

Para aqueles que não viveram aqueles tempos, era assim, nos vários quartéis do nosso país, os militares andavam numa roda viva, saíam uns e entravam outros, e quantas vezes se sobrepunham por algum tempo na mesma instalação, até à hora da movimentação.

Os quartéis eram uma espécie de cama quente dos submarinos.

Por vezes, nestas circunstâncias, os primeiros a chegar ainda tinham direito aos melhores alojamentos no quartel e os últimos eram remetidos para instalações mais precárias, sem condições, longe do ambiente das messes. As sobrelotações aconteciam, por exemplo, quando um quartel mobilizador tinha que albergar, ao mesmo tempo, um Batalhão e uma Companhia Independente.
Foi numa situação de sobrelotação como o referido, que o meu primo conheceu o Mexia Alves e agora me contou assim:

“O Bart3881, que integrei, formou-se no RASP2. Na altura (finais de 1971), estava em fase final de apronte um outro batalhão. O pessoal era fixe. Pressentia-se a tensão decorrente dessa uma unidade que partiria para a Guiné, mas éramos novos e eles revertiam-na com pequenas e grandes loucuras que acabávamos por partilhar com gosto. De todos o mais "louco" era o Mexia Alves. Fora de série no que ao relacionamento castrense respeitava e no que demais se adivinhava

Uma noite em que entrei no quartel de madrugada, passei na messe para tomar o habitual "chá" nocturno e vi este grande castiço, que na ocasião já devia ter na conta, dois ou mais bules do dito “chá”, de pé em cima de uma mesa, a pregar uma… missa.

Nunca mais na vida encontrei "padre" mais etilizado; porém lúcido q.b. para não descambar na "lengua-lengua latinória", tal como na altura eu ainda tinha no ouvido.

De quando em vez lembrava-me do Mexia, e outras tantas tentava imaginar por onde andaria este Homem.

Finalmente descobri uma pista, na afirmação do seu melhor de um verdadeiro “Ranger”, no endereço cibertnético: http://www.cmjornal.xl.pt/detalhe/noticias/outros/domingo/portugal-desprezou-soldados-africanos, uma crónica “A minha guerra” na revista do Correio da Manhã de 27JUN2010.

Nem mais!

Um abraço,
Duarte Nuno”

Claro que esta estória tão real denuncia (imagino eu) um nervoso que só quem por lá passou, chafurdando nas matas e bolanhas, pode facilmente testemunhar e cujo controle nem com vários bules se conseguia.

Todos conhecemos o protagonista principal deste “filme” e olhando para uma fotografia sua actual, duvida-se… não pode ser ele, não é possível.

Mas, olhando para aquela fotografia em que ele se encontra fardado com (segundo a nova nomenclatura (?) do actual ministro da defesa “traços” de Alferes Miliciano), arranca-nos um sorriso e um “humm… é bem possível… É ele o Mexia Alves que eu conheci!

Um abraço,
António Brandão
Alf Mil Op Esp/RANGER da CCAÇ 2336, Angola
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

14 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6732: O Nosso Livro de Visitas (93): José Caetano, um português da diáspora (EUA), antigo tripulante do N/M António Carlos, da SG/CUF, que em 1964 levou de volta a casa cerca de meia centena de presos políticos guineenses, detidos no Tarrafal

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6744: (Ex)citações (85): Fomos muito mais bandos de pardais à solta do que colónias de abutres e aves de rapina (António Graça de Abreu)

1. Comentário ao poste P6679, de 6 do corrente, assinado por António Graça de Abreu Abreu (poeta e escritor, sínico mas não cínico, autor de Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura Lisboa, Guerra e Paz, 2007; aqui, na foto à esquerda, de camuflado, no aeroporto de Cufar, em Janeiro de 1974, com Miguel Champalimaud; recorde-se que o nosso camarada António Graça de Abreu foi Alf Mil, CAOP 1,Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74 ):

O Joaquim Mexia Alves vem colocar no seu próprio terreno questões fundamentais do nosso estar na guerra da Guiné: Quem éramos, o que fizemos, o que fomos, o que somos?

Infelizmente os portugueses adoram os tiros no pé, mesmo quando os pés são poucos e os tiros quase sempre de pólvora seca. É o nosso nosso fado. Isto tem alguma coisa a ver com o Mário Cláudio. Leiam Miguel Torga, outro escritor premiado,  nos seus Diários III e VII:

"Enchi com frequência uma página de lamúrias quando na verdade estava cheio de força e alegria."

E "Sou uma espécie de ruminante do sofrimento, encho-me primeiro dele e depois é que o saboreio."

Eu tenho um poema intitulado Nosso Fado, no meu livro Cálice de Neblinas e Silêncios, Lisboa, Vega Ed. 2008, pag. 75. Assim:

Sufocar a alegria,
enredá-la em cintilantes roupagens de pranto
na viagem pelo logro aberto das palavras,
carpir no disfarce extremado da tristeza.
Ai, este gosto de fingir tantas penas,
de tão fingidas e falsas, verdadeiras!...
Ai, este fado tão magoado,
esta malfadada lamúria lusitana,
mesmo num tempo sereno,
com céu azul nos olhos
e girassóis na alma!


Denegrir o esforço quase sobre humano das nossas tropas na Guiné? Acho que não.

Branquear as atrocidades e os sofrimentos de uma guerra em que todos participámos? Acho que não.

Exaltar as virtudes da excelsa pátria lusitana? Acho que não.

Então, como é?

Por terras da Guiné, fomos todos muito mais bandos e bandos de pardais à solta, do que colónias de abutres e aves de rapina pairando gulosos sobre a carne dos nossos irmãos negros.

No complexo tecido de etnias na Guiné Bissau, porque somos hoje bem recebidos por aqueles tão pobres mas dignos povos? Porque andámos por lá a cortar orelhas? Ou porque, apesar de vivermos e fazermos uma guerra, 99,9% de nós saímos de lá em paz com aqueles povos, em paz connosco próprios?
Forte abraço,

António Graça de Abreu

[ Fixação de texto / bold a cor / título: L.G.]
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Nota de L.G.:

Último poste desta série > 8 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6691: (Ex)citações (67): Um comentário aos....comentários sobre a ficção de Mário Cláudio...Um comentário cool que vem do frio (José Belo)

Guiné 63/74 - P6743: Recortes de imprensa (26): A morte do africanista Basil Davidson (1914-2010), amigo e admirador de Amílcar Cabral (Nelson Herbert / Luís Graça)




Basil Davidson visitou as "regiões libertadas" da Guiné-Bissau, por três ou quatro vezes, a primeira vez em 1967, acompanhado por Amílcar Cabral de quem se tornaria amigo pessoal e grande admirador... A segunda vez (ou terceira ?) seria em 1972 e a última em 1974... A imagem que aqui se reproduz, foi publicada no PAIGC Actualités, nº 48, Décembre 1972, o tal número dedicado às "regiões libertados no sul". 

Recorde-se que esse número (fotos incluídas) já foi aqui reproduzido integralmente: "Tradução do nº 48 da revista PAIGC Actualités, um orgão de propaganda política do PAIGC, publicado mensalmente, em francês. Subtítulo: 'A vida e a luta na Guiné e Cabo Verde'. O nº 48 tem 6 páginas e é datado de Dezembro de 1972. Tradução de Vasco da Gama, a partir de cópia digitalizada fornecida pelo co-editor Eduardo Magalhães Ribeiro". (*).

Esta foto (que o jornal Público vai reproduzir numa peça a publicar na "Pública", de domingo, se não me engano, com a autorização expressa do nosso blogue, dada à jornalista Andreia Sanches), tem a seguinte legenda, no exemplar, raro, que faz parte da colecção pessoal do nosso co-editor Eduardo Magalhães Ribeiro:

" O escritor inglês Basil Davidson conversa com a responsável da organização dos Pioneiros do Partido no sul do país,  Teodora Gomes. O escritor e africanista inglês Basil Davidson visita pela terceira vez as zonas libertadas do nosso país. Acompanhado pelo camarada Vasco Cabral, do Comité Executivo, visita o Sul e de seguida o Leste. Nesta última frente reuniu demoradamente com o Secretário Geral do Partido, Amílcar Cabral, que se encontrava na região em visita de inspecção.

"Basil Davidson, que foi o primeiro escritor da Europa Ocidental a denunciar os crimes dos colonialistas portugueses, é um amigo do nosso povo, tendo publicado inúmeros escritos sobre a nossa luta, tendo o seu livro Revolução em África sido prefaciado pelo Amílcar Cabral" (..
.) (Fonte: PAIGC Actualités, nº 48, Décembre 1972, p. 2)



1. O Nelson Herbert foi o primeiro dos nossos amigos e camaradas da Guiné a sinalizar a morte do inglês Basil Davidson (1914-2010), ocorrida no passado dia 9. Como guineense e filho de caboverdiano, admirador de Amílcar Cabral, o Nelson Herbert, jornalista da Voz da América, não quis deixar passar em claro a notícia. Mandou-nos em anexo uma declaração, pública, do Presidente da República de Cabo Verde, Pedro Pires, que se reproduz a seguir, bem como um recorte de imprensa.

Recorde-se que o antigo major dos serviços secretos ingleses, na II Guerra Mundial, foi condecorado em Portugal, em 2002, pelo Presidente Jorge Sampaio como Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique. Tem diversos livros pulicados em português (nomeadamente em Portugal e Cabo Verde):

 "Os Camponeses Africanos e a Revolução" (Sá da Costa, 1975); "Mãe Negra. África: Os Anos de Provação" (Sá da Costa, 1978); "A Política da Luta Armada: Libertação Nacional nas Colónias Africanas de Portugal" (Caminho, 1979); "À Descoberta do Passado de África" (Sá da Costa, 1981); "Os Africanos. Uma Introdução à sua História Cultural" (Edições 70, 1981); "As Ilhas Afortunadas. Um estudo sobre a África em transformação" (Instituto Caboverdiano do Livro e do Disco, 1988); "O Fardo do Homem Negro" (Campo das Letras, 2000). (LG)

 Homenagem a Basil Davidson

Faleceu, no passado dia 9 de Julho, na Inglaterra, o proeminente intelectual, jornalista, historiador, combatente pela liberdade e pela justiça, o saudoso BASIL DAVIDSON, que, de forma determinada, solidária e apaixonada, ajudou a transmitir ao mundo a justeza da luta dos povos africanos pela sua emancipação e independência.

O desaparecimento físico desse soldado da luta contra a opressão constitui deveras uma perda irreparável e deixa um profundo vazio no seio daqueles que continuam a pugnar pelos ideais humanistas e de liberdade. No caso de Cabo Verde, BASIL DAVIDSON foi merecedor de um justo reconhecimento da Nação, pelo seu contributo inestimável na denúncia da política colonialista do regime de então e na divulgação ao mundo da justeza da luta de Libertação Nacional, tendo sido por mim condecorado com o Primeiro Grau da Ordem Amilcar Cabral, em 2003. Este país, que ele tanto admirava, tudo tem feito para justificar o título da sua obra "AS ILHAS AFORTUNADAS."

Nesta hora de pesar, inclino-me respeitosamente perante a memória de BASIL DAVIDSON, e em meu nome pessoal e no do Povo Cabo-verdiano, expresso à viúva, aos filhos e a toda a família, as mais sentidas condolências, muita simpatia e solidariedade, compartilhando da dor que nos entristece a todos pela irreparável perda de um Amigo de quem guardo gratas recordações.

Praia, 12 de Julho de 2010.

PEDRO PIRES
Presidente da República de Cabo Verde



2. Notícia da morte de Basil Davidson, no primeiro semanário, em linha, caboverdiano,
A Semana (que reproduzimos aqui, com a devida vénia) (**)

12 de Julho de 2010 > Morreu o jornalista e historiador Basil Davidson


O jornalista e historiador britânico Basil Davidson, 96 anos, morreu na sexta-feira última. Amigo de Amilcar Cabral e outros dirigentes africanos, Davidson foi um grande activista da justiça e da liberdade para os povos oprimidos do mundo, principalmente de África, tendo divulgado a luta contra o colonialismo, principalmente na Guiné-Bissau, Angola e Moçambique. Em Cabo Verde, onde a sua obra é conhecida e apreciada, o seu amigo Olívio Pires considera que a África e a própria Inglaterra perderam um grande homem.

Basil Davidson, que nos últimos anos encontrava-se doente, teve uma vida cheia. Jovem, combateu na Segunda Guerra Mundial, ajudou a guerrilha de Broz Tito, na Jugoslávia, e mais tarde, como jornalista, trabalhou para vários jornais do seu país. Foi a partir dos anos de 1950 que se tornou num destacado africanista, quando começou a publicar trabalhos como "África na História", "Mãe Negra", "A Descoberta da Velha África", entre vários outros.

Foi também nessa altura que conheceu vários lideres africanos, dentre eles Nelson Mandela e Amílcar Cabral, ajudando este último na divulgação do documento "Factos sobre o colonialismo português", que marca a primeira denúncia internacional da política ultramarina de António de Oliveira Salazar. Foi a partir dessa denúncia, em Londres, que Cabral partiu definitivamente para o exílio, rompendo de vez com o colonialismo português.

Entre 1969 a 1985, Basil Davidson foi vice-presidente do Movimento Anti-Apartheid na Grã-Bretanha, escreveu um livro sobre os crimes do apartheid o que lhe valeu o lugar de destaque na "lista negra" do governo de Pretória. E quando lhe foi oferecido um emprego como editor na Unesco, o governo britânico vetou a sua nomeação.

Também por essa altura publicou vários livros sobre a luta em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, a partir de viagens às zonas libertadas desses territórios. Sobre Cabo Verde, já depois da independência, publicou nos anos oitenta o livro "As ilhas afortunadas".



Um amigo de Cabo Verde

Olívio Pires, histórico do PAIGC, considera uma "grande perda" a morte de Basil Davidson, com quem se relacionava muito bem. "Ele esteve algumas vezes em Cabo Verde, um país que ele apreciava. De um modo geral, Cabo Verde perdeu um grande amigo, a África e o seu próprio país também, já que se trata de uma pessoa que fez história com o seu trabalho. Guardo dele as melhores recordações".

O Estado de Cabo Verde, através do presidente Pedro Pires, condecorou em 2003 Basil Davidson com uma das suas medalhas. Dados os seus problemas de saúde, foi Olívio Pires, por coincidência, que entregou a distinção ao visado. "A cerimónia foi simples, aconteceu na Embaixada de Angola, já que não temos representação em Londres. Para todos os efeitos, tratava-se de um grande amigo, que nos deu uma grande contribuição para a nossa luta de libertação, por isso é essa a recordação que vou ficar dele".

Em declarações ao jornal "Notícias", de Moçambique, o veterano Marcelino dos Santos recorda Basil Davidson como um homem "solidário" com todos os povos que lutavam pela liberdade em todo o mundo. "No caso das antigas colónias portuguesas, sobretudo nós e os nossos irmãos de Angola e da Guiné (Bissau), foi um grande amigo e camarada", comentou dos Santos, que conheceu o falecido historiador na casa deste em Londres, antes do início da luta armada que a FRELIMO haveria de desencadear à semelhança do MPLA em Angola e do PAIGC na Guiné.


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Notas de L.G.:

(*) 20 de Maio de 2009 > Guiné 64/74 - P4384: PAIGC Actualités (Magalhães Ribeiro) (5): O nº 48, Dezembro de 1972, dedicado à 'visita da OUA às regiões libertadas no sul


Guiné 63/74 - P6742: Depois da Guiné, à procura de mim (J. Mexia Alves) (8): Foi-se a Paz

1. Mensagem do nosso camarada Joaquim Mexia Alves*, ex-Alf Mil Op Esp/RANGER da CART 3492, (Xitole/Ponte dos Fulas); Pel Caç Nat 52, (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa), 1971/73, com data de 15 de Julho de 2010:

Meus caros camarigos
Prossigo, correndo para o fim, a série...


DEPOIS DA GUINÉ, À PROCURA DE MIM

20 ANOS DEPOIS (8)

FOI-SE A PAZ!

Estou em paz!
Os meus ouvidos fecharam-se
aos sons da guerra longínqua
e já não me incomodam os gritos
do medo do meu viver.
Estou em paz!
Não sinto cheiros da terra quente
por lavrar,
por semear,
apenas cheia de capim,
daquele que esconde a gente,
que espera outra gente.
Estou em paz!
Cerram-se os olhos
a tentar ver por entre as árvores,
para apenas se abrirem
para as cores da natureza,
que me alentam e acalmam.
Estou em paz!
Bate compassado o coração,
calmo, sensível, aberto,
afastada que foi a frieza,
dos sentimentos escondidos.
Estou em paz!
Os meus passos são seguros,
nada têm de hesitante,
porque a estrada que percorro,
não tem nada escondido,
nem a morte num instante.
Estou em paz!
As minhas mãos não seguram,
nem uma arma, nem pica,
estão abertas, ansiosas,
que nelas caiba uma vida.
Estou em paz!
Os que por lá ficaram
são grata recordação,
os que comigo vieram,
moram no meu coração.
Estou em paz!
E no entanto,
algo me incomoda,
e não me deixa dormir.
Olho em volta,
e vejo todos,
todos os que vieram da guerra!
Só não vejo entre eles
aqueles filhos da terra,
da terra que os viu nascer,
que ao meu lado estiveram,
que não me deixaram morrer.
Procuro-os,
quero-os ver,
quero com eles falar,
quero-lhes agradecer,
mas só me responde o silêncio,
um silêncio frio,
tão frio como o vento Norte,
que me causa um arrepio,
e me sussurra ao ouvido:
morte, morte, morte.
Foi-se a paz!
Ficou a descrença,
a revolta,
a indignação.
Uma morte não tem volta,
a vida é que é presença,
não basta a recordação.
Uma só palavra
martela todo o meu ser:
abandonados!
Como são fortes os cravos
que me rasgam o coração,
são feitos de liga dura,
revestida de traição!
Atraiçoados!
Pobre bandeira a minha,
onde só vejo encarnado,
porque o verde da esperança,
foi tingido,
foi lavado,
pelo sangue derramado,
daqueles que acreditaram,
que tinham uma pátria,
um lugar,
mas que abandonados à sorte,
ficaram na terra mãe,
num longo estertor de morte.

91.12.07

Um abraço forte, apertado e camarigo do
Joaquim
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 9 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6703: V Convívio da Tabanca Grande (12): A Guiné em Monte Real ou um Encontro de camarigos (Joaquim Mexia Alves)

Vd. último poste da série de 8 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6697: Depois da Guiné, à procura de mim (J. Mexia Alves) (7): Eu sei quem sou

Guiné 63/74 - P6741: Notas de leitura (130): Seminário 25 de Abril 10 Anos Depois (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Julho de 2010:

Queridos amigos,
Foi pena o coronel Carlos Fabião não nos ter deixado o acervo das suas memórias, ele que fez quatro comissões na Guiné, conhecia a região em todas as direcções, estava lá aquando do massacre do Pidjiquiti, participou na africanização da guerra, nas negociações com Senghor, foi o último governador da Guiné.
Deixou alguns documentos, sobressai esta comunicação que proferiu dez anos depois do 25 de Abril.

Um abraço do
Mário



A descolonização na Guiné-Bissau
Spínola: a figura marcante da guerra na Guiné


por Beja Santos

O Seminário “25 de Abril, 10 Anos Depois”, promovido pela Associação 25 de Abril na Fundação Calouste Gulbenkian, e que se realizou de 2 a 4 de Maio de 1984, possibilitou uma panorâmica sobre os 3D (Democratizar, Desenvolver e Descolonizar) a que se propusera o MFA. 

Em torno destes 3D participaram figuras prestigiadas como Piteira Santos, Boaventura de Sousa Santos, Hélder Macedo, João Ferreira do Amaral, Manuela Silva, Luís Moita, Carlos Fabião, Manuel Braga da Cruz, Medeiros Ferreira e Maria de Lurdes Pintasilgo. Com significado de inventário para o nosso blogue tem certamente a comunicação do coronel Carlos Fabião intitulada “A Descolonização da Guiné-Bissau”. Carlos Fabião (1930 – 2006) fez quatro comissões na Guiné (1955 – 1961, 1965 – 1967, 1968 – 1970 e 1971 – 1973), terá sido o militar com maiores conhecimentos dos diferentes teatros de operações. Foi membro da equipa de Spínola que negociou com Senghor no Cabo Skiring (1972), foi o último Governador da Guiné e Chefe do Estado-Maior do Exército (1974 – 1975).

Na sua comunicação, Carlos Fabião considerou Spínola a figura central da guerra da Guiné, observando que fora o único Chefe Civil e Militar que apresentara um conjunto de respostas capazes de se oporem ao bem estruturado plano de acção concebido e posto em prática por Amílcar Cabral. E escreve:

 “Spínola divide e define três períodos bem distintos da guerra na Guiné. Logo nos primeiros tempos das hostilidades, Portugal perdeu o controlo do Sul e do Centro – Oeste da colónia. Conservou o domínio da região Leste graças ao facto da etnia fula se ter mantido fiel à soberania portuguesa; do “chão manjaco” não se ter afirmado por nenhuma das partes em confronto e da ilha de Bissau. Todas as tentativas sérias, levadas a efeito ao longo dos anos de 1964 até 1967, para recuperar o controlo do Sul da colónia, resultaram em derrotas, quando não em desastres militares, como aconteceu no Como, no Cantanhez, no Quitafine; no estrangulamento do corredor de Guileje a partir da ocupação de Mejo, Guileje e Gandembel e em tantas outras acções e operações de certo vulto”. 

Um conjunto de áreas críticas ficou sobre o controlo dos guerrilheiros: Morés, Sará-Sarauol, Boé, Cantanhez, Quitafine, entre outros. Em conclusão: “Não se queriam desastres, nem insucessos, a guerra era para se ir fazendo a horários e percentagens. Quando António Spínola chegou à Guiné a situação militar na colónia era bastante crítica.

Spínola é um chefe militar que tem a plena consciência de que uma guerra subversiva não é susceptível de ser vencida militarmente. A sua estratégia consistiu numa acelerada promoção socioeconómica e cultural, introduziu eventos de participação do povo guineense (os Congressos do Povo da Guiné) para travar a ofensiva militar do PAIGC deu prioridade ao chão manjaco, procedeu à concentração das populações, promoveu a regionalização de quadros e africanizou a guerra da Guiné. Tentou uma vitória militar e política com a operação “Mar Verde” e procurou estabelecer o diálogo com o opositor através do Presidente Senghor do Senegal, a quem apresentou um plano de paz em três etapas: cessar-fogo, período de autonomia interna na Guiné e independência a ser concedida numa perspectiva de uma comunidade luso-africana.

Como é do domínio público, Marcelo Caetano proibiu a Spínola a continuação dos contactos e negociações com o argumento de que na Guiné se aceitava um desastre militar mas nunca a negociação. A proclamação unilateral de independência da Guiné (24 de Setembro de 1973) debilitou em definitivo a política externa portuguesa: num curto prazo de tempo, 86 países, mais do que aqueles com quem Portugal mantinha, na época, relações diplomáticas, reconheceram o novo Estado. O PAIGC, a partir de 1973, passa a estar iniludivelmente melhor equipado que as tropas portuguesas. A resposta política foi a de aguentar (“resistir até à exaustão dos meios”), encontrou-se um mecanismo de recuo, prevendo o abandono de um conjunto de posições que seriam doravante insustentáveis face ao armamento bissau-guineense. Spínola entretanto demite-se e é substituído. O novo Comandante-Chefe não traz nenhum projecto além de resistir. Escreve Carlos Fabião: “Só o 25 de Abril conseguiu evitar um completo desastre militar”.

Neste mesmo painel sobre a descolonização interveio Jorge Sales Golias sobre o MFA na Guiné-Bissau, tendo logo declarado que a história do MFA na Guiné se confunde com a criação do próprio MFA. Referiu a chegada do Tenente-Coronel Banazol em Dezembro de 1973 que se passou a reunir com os oficiais revoltosos. Deve-se a Banazol a ideia, em Fevereiro de 1974, de tomar o poder na Guiné prendendo o Comandante-Chefe na Amura, ideia que não recebeu os suficientes apoios. Banazol tentou depois lançar o Movimento de Resistência das Forças Armadas através de um panfleto que fez circular no teatro de operações. Nesse panfleto marcava um prazo de três meses para o governo entrar em negociações com o PAIGC, e caso houvesse negativa todas as tropas deviam concentrar-se à volta de Bissau em 1 de Junho. Na madrugada de 26 de Abril os militares revoltosos passaram à acção e no dia 27 na cidade de Bissau já havia manifestações vitoriando o MFA, a Junta de Salvação Nacional e o PAIGC. Jorge Sales Golias descreve a institucionalização do MFA-Guiné e as actividades que levou a cabo, considerando que foi na Guiné que o MFA ensaiou as suas formas estruturais e os seus próprios órgãos de informação.
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 13 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6727: Bibliografia de uma guerra (57): Estranha Noiva de Guerra, de Armor Pires Mota, a publicar em Setembro de 2010 (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 11 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6715: Notas de leitura (129): Sobre a Unidade no Pensamento de Amílcar Cabral, de Sérgio Ribeiro (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P6740: Em busca de... (138): Augusto Martins, de alcunha o Caboiana, o menino que teria 3 ou 4 anos em 1972, e que ajudámos a criar, em Bachile, na CCAÇ 16, a companhia manjaca (Bernardino Parreira / António Branco)

1. Comentário, com data de 14 do corrente,  de Bernardino Parreira ao Poste P6726 (*)

Caro amigo Branco:

Venho felicitar-te pelo teu post sobre o Bachile. Passei agora por aqui e vi as tuas primeiras memórias. Gostei do que li, e acho que tens boa memória e talento para a escrita. Concordo com tudo o que escreveste. O convívio entre todos os militares desta Companhia era excelente. Ainda hoje sinto saudades dos amigos manjacos que lá deixei, militares e civis.

Foi com grande emoção e saudade que vi as fotografias do nosso amiguinho Augusto Caboiana. Podemos dizer que aquele menino era tratado como um filho, por todos nós, embora uns tivessem mais disponibilidade do que outros. Mas, daquilo que conheço, tu foste, sem dúvida, aquele que lhe dedicou mais tempo, dadas as funções que desempenhavas. Julgo que as primeiras letras lhe foram ensinadas por ti, e posso garantir que fazias um excelente papel de pai, de amigo e de educador.

Ainda gostava de ver o Augusto, ou de saber notícias suas. Aquele menino que, segundo ouvíamos dizer, tinha sido "apanhado na mata da Caboiana", em circunstâncias que desconheço, foi sempre muito bem tratado, e era uma criança muito feliz. O Augusto corria alegremente atrás de nós, quando estávamos no Quartel , e conhecia a quase todos pelo nome, era muito extrovertido e brincalhão.

Amigo Branco, fico a aguardar mais memórias tuas. Eu cá vou desafiando as minhas lembranças. Um abraço para todos os camaradas e amigos.

B. Parreira

2. Comentário de L.G.:

Antes de mais, queria aqui reforçar o pedido do António Branco, no poste P6726, no sentido de se apurar o paradeiro (**)  do Augusto, o menino do Bachile, ao tempo da CCAÇ 12 (1972/74):

"O Augusto Martins Caboiana, um menino que todos ajudámos a criar, e do qual gostava de saber o seu paradeiro, foi estou em crer um ponto marcante para todos que passaram pelo Bachile. Em anexo,  algumas fotos do Augusto que camaradas de outras companhias, enfermeiras pára-quedistas e camaradas da Força Aérea concerteza recordarão".

A seguir quero saudar o nosso camarada Bernardino Parreira, ex-Fur Mil da CCAÇ 16, e convidá-lo a continuar a partilhar connosco as suas memórias da Guiné, em geral, e do chão manjaco, em particular. E a melhor forma de o fazer é juntar-se a esta já vasta comunidade virtual, que se reune todos os dias debaixo do poilão da Tabanca Grande. O ingresso não pode ser mais barato: duas fotos + 1 história, e já está!

Aproveito a manifestação do desejo dos nossos dois camaradas da CCAÇ 16, o Branco e o Parreira, para daqui lançar um apelo no sentido de se localizar o Augusto Martins, de alcunha o Caboiana, por ter sido apanhado pelas NT justamente na região de Caboiana [ vd. carta de S. Domingos].]. (***)

A estar vivo, e nós esperamos bem que sim, é homem para ter hoje um pouco mais de 40 anos... Será que ainda vive no chão manjaco (Canchungo / Teixeira Pinto) ? Será que vive em Bissau ? Será que vive na diáspora guineense, quem sabe, até em Portugal ?

Quem tiver alguma pista, que nos contacte, através dos nosso endereço de correio electrónico: luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com ou  do mail do António Branco: asdbranco@gmail.com _________________

Notas de L.G.:

(*) 13 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6726: Memórias do Bachile, chão manjaco (1): O que será feito do menino Augusto Martins Caboiana ? (António Branco, ex-1º Cabo Reab Mat, CCAÇ 16, 1972/74)

Vd. também o blogue do António Branco > Conversas ao caso

(**) Último poste desta série > 30 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6664: Em busca de... (137): Procuro informações sobre Fernando Labaredas Torrão, Alf Mil da CCAÇ 461

(***) Referências no nosso blogue a Caboiana (ou Caboiana-Churo), que pertencia,  no tempo da CCAÇ 16, à zona de acção do CAOP1 (onde esteve colocado, como alferes, o nosso camarada, amigo e escritor António Graça de Abreu):

15 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1280: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (7): Um tiro de misericórdia em Caboiana

Guiné 63/74 – P6739: Estórias do Tomás Carneiro (3): O meu 1º whisky

Guiné 63/74 – P6294: Estórias do Tomás Carneiro (2): De Binta a Jugudul

1. O nosso Camarada Tomás Carneiro, ex-1.º Cabo Condutor da CCAÇ 4745/73 - Águias de Binta, Binta, Cumeré e Farim – 1973/74, enviou-nos dos Açores, onde nasceu e vive, uma mensagem com data de 13 de Julho de 2010: Olá meus queridos e saudosos Amigos,
Antes de entrar na historinha que vos quero contar hoje, só vos digo que saudades é mesmo isso… saudades. É o que eu sinto neste e noutros momentos, a saudade aqui no meio do atlântico, que é diferente da vossa aí no continente e porquê (perguntar-me-ão vocês).
Enquanto no continente vocês se podem deslocar de carro, comboio, ou outro transporte qualquer, aqui é mais difícil. Na época de verão ainda há transportes marítimos inter-ilhas, mas no inverno só nos movimentamos pelo ar e, de esta última via, já eu gostei mais.
Então não é que eu arranjei mais uma “corisca” de uma saudade, que não é, nem mais nem menos, do que lembrar-me desta boa gente tertuliana que se encontrou e conviveu, como poucos o sabem fazer, há poucos dias atrás em Monte Real – Leiria -, e onde eu também convivi, deslocando-me expressamente para esse fim daqui dos Açores.
O que me está a acontecer agora é que ando para aqui a pensar que ainda falta tanto tempo para o próximo encontro… chiça tantas saudades que eu já arranjei daí.
Coisa mesmo de um ilhéu… mas o tempo voa não é?
Eu, no meu ressort em jugudul
O meu 1º whisky
De whisky eu já tinha lido muita coisa porque quando acabei a minha 4ª classe, com 12 anos e qualquer coisa, fui logo trabalhar para uma britadeira.
Acartar pedra às costas para um lado e brita para o outro, isto até aos 18/19 anos. Depois do trabalho quando, chegava a casa, gostava muito de ler aqueles livrinhos de figurinhas, tão na moda, da colecção “Seis balas”, a que vulgarmente chamávamos “coboiadas”.
No meio dos duelos e das perseguições aos infindáveis bandidos e salteadores de bancos, os “cowboys” passavam os seus tempos livres nos “Saloons” a jogar às cartas e a emborcar whisky atrás de whisky.
Portanto, eu tinha uma ideia dos efeitos do referido líquido altamente alcoólico, sem no entanto jamais o ter provado.
Um dia qualquer na Guiné, nas instalações do quartel, esperávamos o novo furriel para a secção auto e o Alferes Miliciano Louro chamou por mim, dizendo-me: “Sousa, hoje não vais para Jugudul, vamos fazer uma brincadeira para receber o teu novo furriel. Vais arrear-te bem e vais fazer de oficial dia.”
Eu comecei por recusar, mas os oficiais e sargentos com quem me dava muito bem tanto insistiram, que acabei por aceder aos seus pedidos.
Foi bonito, vesti-me a preceito, com um pingalim na mão e óculos escuros, e, antes do Furriel Miliciano Salema (assim se chamava o periquito) chegar, eu aproveitei-me da situação e comecei logo a esvaziar umas bazucas por “conta da casa”.
Quando o Salema chegou apresentou-se-me (ao oficial de dia) e eu a seguir apresentei-o aos outros camaradas.
Começamos a forçá-lo a pagar as bebidas da praxe e, então, vi alguém a beber um whisky.
Pensei cá para mim, é hoje que vou provar o tal líquido americano e toca a beber não sei quantos (sempre por conta da casa), ou do Salema, não vi quem pagou a conta final.
Sei que a coisa correu bem e no dia seguinte fiquei com receio de me encontrar com o meu novo furriel, que quando soube da “marosca” aceitou bem a brincadeira e daí para a frente demo-nos muito bem, enquanto estive com a minha CCAÇ 4745.
É esta a historinha que tinha para vos contar sobre o meu 1º whisky depois de lhe tomar o gosto… já se seguiram mais uns tantos.
E daqui do meio do Atlântico,
Um abraço com saudade e até qualquer dia.
Tomás Carneiro
1º Cabo Cond CCAÇ 4745
Fotos: © Tomás Carneiro (2009). Direitos reservados.

____________
Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
2 de Maio de 2010 >

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6738: Da Suécia com saudade (26): A difícil procura da unidade dos antigos combatentes (José Belo)


1. Mensagem do José Belo (*), o tuga mais lapão do mundo:

Data: 13 de Julho de 2010 20:32
Assunto: A procura de organizar os ex-combatentes

Caro Camarada e Amigo:

A propósito do post "É tempo de dizer Basta!" de António Martins de Matos, creio ser interessante para os Camaradas algumas "ajudas de memória" quanto a interessantes documentos relacionados com a anterior procura de organizar os Combatentes em Junho de 1973 na cidade do Porto, aquando do Primeiro Congresso dos Combatentes do Ultramar (1/2/3 de Junho). 

Logo no início, no próprio dia 1, após a declaração  de abertura do Congresso, foi pelo presidente da comissão executiva proferido um discurso inaugural, indicando os objectivos do Congresso,que se podiam resumir a dois pontos principais: 

(1) Reatar e manter os laços de camaradagem criados ao serviço da Nação no ultramar;

 (2) Celebrar os serviÇos prestados pelos que responderam à chamada da Pátria e exaltar a honra da missÃo cumprida, bem como o seu valor e significado na História Nacional. 

Num outro manifesto assinado por "Os Combatentes Participantes no Congresso " e dirigido aos "Nossos Camaradas e ao País" se declarava que os combatentes só tinham um partido: Portugal. A única política que conheciam era a da defesa da Pátria, acima dos partidos, das divisões e das manobras dos grupos e dos interesses. Nestes termos e porque só havia uma Política nacional, a política da Pátria, não estavam os combatentes dispostos a deixarem-se enredar em jogos político-eleitorais. Não o permitia o patriotismo,não o toleraria a unidade nacional, não o consentiria a dignidade. 

Telegrama enviado ao Congresso dos Combatentes.

Cerca de quatro centenas de militares dos quadro permanentes e combatentes do ultramar com várias comissões de serviço, certos que interpretam o sentir de outras centenas de camaradas que, por motivos de circunstâncias múltiplas, ignoram verdadeiramente o Congresso, desejam informar V.Exas, e esclarecer a Nacao do seguinte: 

(1) Nao aceitam outros valores nem defendem outros interesses que não sejam os da Nação; 

(2) Não reconhecem aos organizadores do Primeiro Congresso dos Combatentes do Ultramar e, portanto, ao próprio Congresso, a necessária representatividade; 

(3) Não participando nos trabalhos do Congresso, não admitem que pela sua não participação sejam definidas posições ou atitudes que possam ser imputadas à generalidade dos combatentes;

 (4) Por todas as razões formuladas se consideram e declaram totalmente alheios às conclusões do Congresso, independentemente do seu conteúdo ou da sua expressão. Subscrevem o presente telegrama, em representação simbólica das quatro centenas de militares referidos, dois militares que publicamente e por diversas vezes a Nação Portuguesa consagrou: Capitão-Tenente Alberto Rebordão de Brito (oficial da Ordem Militar da Torre e Espada, de Valor Lealdade e Mérito; Medalha de Prata de Valor Militar com palma; Cruz de Guerra de 1 classe); e 1º Sargento graduado em Alferes Marcelino da Mata (cavaleiro da Ordem Militar da Torre e Espada, de Valor, Lealdade e Mérito; Cruz de Guerra de 1ª classe; Cruz de Guerra de 2ª classe). 

(Observ.: embora não conste do texto, o telegrama também tem a representatividade de um oficial da Força Aérea, igualmente galardoado com a Torre e Espada.) 

Então, como hoje, a organização de Combatentes não é, nem será fácil. 

Um abraço amigo do J. Belo. 

Estocolmo, 13 de Julho de 2010 

_________________

Nota de L.G.:



Guiné 63/74 - P6737: Blogpoesia (74): Saudades daquele tempo, ou Quisera eu... (1) (Manuel Maia)

1. Mensagem de Manuel Maia (ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine, 1972/74), com data de 4 de Julho de 2010:

Caro Carlos,
Aqui seguem algumas sextilhas que sintetizam as saudades que tantos de nós, senão todos evidenciam...
Se entenderes que são publicáveis, força...

Abraço
manuelmaia




QUISERA EU... (1)

Quisera eu ter na vida amplos suportes
p`ra ver terra à partida "ganha em sortes"
Bissum, no norte, tida de "buraco"...
Mais "vozes do que nozes", felizmente,
o grau de risco dado àquela frente,
perigosa sim por "venerarmos Baco"...

Quisera eu lá voltar antes do fim

da areia da ampulheta que de mim
se escoa em movimento acelerado.
Sentar no baga-baga, protector,
sentir da terra o cheiro e o calor,
fruir tempo de paz agora achado...

Quisera um periquito a vir à mão,
depenicar na fruta, comer grão,
e passeá-lo ao ombro, sem atilho.
Quisera ao Cumbidjã lançar granada,
pescar o que der jeito à caldeirada,
sem medo de hipotético sarilho...

Falar-vos do Morés, do Cantanhez,
correr de lés a lés, tudo outra vez,
Por verdes matos, terra ocre/amarela...
Cruzar o Cumbidjã, o Armada em botes,
palpar bajuda sã, fruir seus dotes,
de um corpo escultural de moça bela...

Quisera eu ter de volta os tempos idos,
calcorrear espaços percorridos,
bolanha, lama, lodo pestilento...
Quisera os vinte anos da loucura
perdidos nesses matos da lonjura,
que evoco de memória, em pensamento...

Quisera ser de novo o furriel,
anti, mas cumpridor do seu papel,
e firme na vontade e no querer...
No palco desta vida atribulada,
tão prenhe de ilusões, cheia de nada,
os anos pesam muito, podem crer...

Descer o Cumbidjã rumo a Cufar,
bem cedo p`la manhã e experimentar,
satisfação, prazer, risco, aventura.
Sentir a brisa fresca ante o "voar",
do barco em lençol d´agua, a chapinar,
num ziguezaguear toda a largura...

Comer um peixe frito com casqueiro,
jogar um king a seco ou a dinheiro,
marcar um golo em jogo de emoção...
Ganhar "subbuteo" em rifa terminal,
testemunhar "fanado", algo "irreal",
e choro/ronco, mesmo ali à mão...
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 30 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6660: Parabéns a você (127): Manuel Maia, ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610 (Os Editores)

Vd. último poste da série de 10 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6571: Blogpoesia (73): Viva Portugal! (Felismina Costa)

Guiné 63/74 - P6736: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (2): Sexualmente falando, tudo continua normal

1. Mensagem do nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 30 de Junho de 2010:


Camarada Vinhal
Antes do mais, um especial agradecimento, pela forma como me apoiou.
E, registando as "Memórias boas da minha guerra", cá estou a enviar a segunda história: - "Sexualmente falando, tudo continua normal".


Junto uma foto do cais de Cufar. Uma mulher semeando cereal, indiferente ao movimento militar integrado na Op Diabo Negro (23.02.68). Publique, se julgar oportuno.


Espero que o meu tipo de linguagem (básica/popular/nortenha) não agrida ninguém, porque desejo exactamente o contrário.


Um abraço do
Silva da Cart 1689




Memórias boas da minha guerra (2)

Sexualmente falando, tudo continua normal

Cufar é no sul da Guiné, perto do rio Tombali, e fica a uns 12Km de Catió. Apesar de se encontrar assim perto, estava isolado e a ligação entre Cufar e Catió, fazia-se só em colunas militares, com periodicidade mais ou menos mensal, para seu abastecimento.

De vez em quando servia de base de operações, sempre com muita tropa, por ser zona perigosa. Só para montarmos a segurança às colunas, nuns 8Km, até ao cruzamento de Camaiupa, gastava-se um dia, desde o amanhecer até ao anoitecer. Os que lá estavam aquartelados eram poucos para as necessidades operacionais e de defesa (não passavam de uns 170 homens, incluídos os africanos da milícia) e a sua actividade limitava-se praticamente ao movimento diário no espaço do aquartelamento e à defesa de violentos ataques nocturnos.

Sempre que por lá passávamos, era festa e bebedeira certa. Estavam lá aquartelados desde o início de Maio de 67 os militares da Companhia 1687, que pertencia ao nosso Batalhão 1913, sediado em Catió e de onde saíram só 2 anos depois.

Entre militares, falar de actividade sexual naquela zona era uma utopia, aliás como na maioria da Guiné, porque os guerrilheiros levavam as mulheres logo na sua baixa adolescência (Bajuda com cabaço). As poucas mulheres que lá ficavam eram velhas (mulher grande) e parte delas eram companheiras dos milícias que também viviam dentro do arame farpado, mas com vida independente.

As necessidades sexuais (tesão, rebarba, apetite ou lá o que lhe queiram chamar), eram o dia a dia dos militares e não só em Cufar. Recordo que era vulgar verem-se alguns militares dirigirem-se para o chuveiro improvisado, feitos pavões, com a toalha pendurada no pénis.

Mas em Cufar, havia uma solução curiosa. A Fati, que era mulher do milícia Jaramba, satisfazia toda a gente, graças às suas capacidades manuais. E então, quando a tropa recebia o seu pré, aquilo era um movimento contínuo, fazendo bicha, para a palhota (tabanca) da Fati.

Ao contrário dos outros indígenas ligados à nossa tropa, este casal pertencia a uma etnia diferente, visto que o Jaramba bebia álcool e os outros não. E era grande o interesse deste africano em seguir o modelo português. Frequentava o Bar, falava razoavelmente o português crioulo, e gostava de saber coisas de Lisboa, do Salazar e de Portugal (afinal éramos todos portugueses).

São mais de 11 horas da manhã, o sol é abrasador, e não há árvores junto da tabanca da Fati, que se situa na orla da parada. A fila dos militares estende-se pela parada dentro. Do outro lado, mesmo de frente, é o Bar e lá de dentro, avista-se a fila dos que fazem bicha de mãos nos bolsos, a assar ao sol. O Jaramba bebe cerveja. Parece um homem orgulhoso e feliz. A tropa vai sendo (patrioticamente) aliviada, ganhando a mulher do Jaramba algum dinheirito e com ele lá vai o Jaramba governando a sua vida e bebendo mais alguma cerveja.

Entretanto, o Furriel Belarmino, um católico fervoroso e bastante militante, não via com bons olhos a actividade constante da mulher do Jaramba e tratou de catequisá-lo. E, ao deparar-se com mais uma fila (militar) para a palhota do Jaramba, entrou pelo Bar adentro e com ar zangado e modos menos amistosos, atirou-lhe:
– Jaramba, não tens vergonha deste espectáculo? – E continuava: – Não sabes que Deus não quer estas vergonhas e que um dia serás castigado? Tu que até pareces evoluído, não vês que os brancos não fazem coisas destas? Como podes dizer que somos todos iguais?  Mulher branca que faz isto é prostituta e está condenada pela Igreja e pela sociedade.
 – Ma Furiel, mim mulher inhcá puta, inhcá parte catota, és bom pessoal  – dizia o Jaramba que acrescentava:
– Fati faz bom no tropa, és brincadera, tudo ficar contente e Fati vai ganha patacão.

O Furriel, que bebia um sumo, ofereceu-lhe mais uma cerveja e lá insistiu de novo nos seus conselhos cristãos e modos europeus.

No dia seguinte, mais ou menos à mesma hora, o Bar estava mais movimentado. A fila dos carentes fora desmobilizada, porque a Fati não estava a trabalhar e a porta da tabanca fechada.

Interrogavam-se uns, preocupavam-se outros.
 – Que se terá passado?

Ninguém sabia. Apareceu, então, o Cabo Enfermeiro Alijó que informou o pessoal que o Jaramba partiu o braço direito à Fati, depois de uma grande discussão. Tinha estado a ligar-lhe o braço e não podia fazer esforços com ele.
– Ora foda-se lá a taça, logo hoje que estava com os colhões cheios – observou o Gondomar.

Ao que prontamente lhe respondeu o Matosinhos:
– E os outros, não?
– E o Jaramba, onde está?  – perguntou o Nogueira.
– Estava ali há bocado com o beato do Furriel Belarmino, junto ao embondeiro grande – testemunhou o Costa de Vila Real.
– Então foi-se confessar, o filho da puta – observou logo o Guimarães.

Os dias passavam, o fim do mês ainda vinha longe, e o Jaramba foi rareando as suas visitas ao Bar. E agora, quando se aproximava não havia ninguém que lhe oferecesse uma cerveja. Por seu turno, o Belarmino, o guia espiritual, que não era homem de Bar, também não via necessidade de passar por lá, para compensá-lo da sua nobre atitude.

Mais uns dias depois, o Jaramba atravessa a parada, com o filhito pela mão. Entra no Bar, pede uma cerveja e um Sumol. O Cantineiro admira-se, olha para a parada e volta a ver os militares a formar fila. Pergunta, então, ao Jaramba:
– Tua mulher já está bem?
E ele:
– Sim, tudo bem na mão squerda.

Silva da Cart 1689





Guiné > Postais ilustrados da "Guiné Portuguesa" > "2A. Bajuda balanta no arrozal, Mansoa" >  Edição Casa Mendes, Bissau > Execução Foto Lisboa > Feito em Portugal...  Cortesia do Agostinho Gaspar
(ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas, 3.ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72, Mansoa, 1972/74), natural do concelho de Leiria... Ainda não descobri o making of, a história da produção desta série de beldades guineenses, em poses usadas para a época, e que fazia as delícias dos tugas... Quem não tinha (e não trouxe para a metrópole) a colecçãozinha completa ?... Um pormenor curioso é que alguns dos modelos (belíssimos, a pedir meças às louras suecas que afixávamos nas paredes dos bunkers...) que se deixaram fotografar em trajes muito reduzidos, trazem ao peito fios com crucifixos, sugerindo serem raparigas cristãs... 

Qualquer semelhança com a genial, divertida e pícara história contada pelo Silva, tendo como heroína a Fati e o azeiteiro (termo do calão nortenho) do Jaramba, fica por aqui, até por que não queremos ferir as susceptibilidades de ninguém, nem muito menos ofender os seus valores morais... O texto do Silva vai já para  a futura antologia do blogue, para a secção do... humor em tempo de guerra. Anima-te, Jorge Cabral, que já não estás sozinho!

 Só um reparo sócio-linguístico: "Partir punho" era uma expressão que faz(ia) parte do nosso calão de caserna, pelo menos no "chão fula", na zona leste... Aparentemente, não se usava em Cufar, o termo, claro, não a prática...  (LG)


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Nota de CV:

Vd. primeira história da série no poste de 8 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6696: Tabanca Grande (227): José Ferreira da Silva, ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913 (Guiné, 1967/69)

Guiné 63/74 - P6735: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (17): A desertificação da nossa terra: até os macacos pára-quedistas nos estão a deixar


Guiné-Bissau > AD - Acção para o Desenvolvimento > Foto da semana > Título: "Não nos incomodem que estamos a almoçar"… > Data de publicação > 10/6/2010 > Data da fotografia > 24/4/2010> Legenda:

"Cada vez mais habituados à vida calma do Parque Nacional de Cantanhez, os macacos fatango (pelo avermelhado) e fidalgo (rabo comprido branco), preparam-se para comer a sua refeição preferida: folhas e flores novas que desabrocham neste período do ano na maior parte das árvores da floresta. Com o aproximar da época das chuvas, a humidade ambiental aumenta e começam a surgir folhas tenras que deliciam os macacos e que os fazem permanecer mais tempo nos mesmos locais, sem precisar de se deslocarem com maior frequência. Sabendo que há uma convivência amiga entre eles e os habitantes de partes de Cantanhez, os macacos deixam-se embalar pela tranquilidade do ambiente, aproveitando para conviver entre espécies diferentes"

Fotos: AD - Acção para o Desenvolvimento (2010). Editada por L.G. (com a devida vénia...)



Guiné-Bissau > AD - Acção para o Desenvolvimento > Foto da semana > Título: "Aventuras na Mata de Cantanhez "… > Data de publicação > 30/5/2010 > Data da fotografia > 24/4/2010> Legenda:

"Estamos na véspera do início da época das chuvas e, em Cantanhez, os ventos já provocam a queda de árvores nas estradas, bloqueando durante algum tempo (horas ou dias) a passagem de viaturas.

"Um grupo de técnicos do Benin, Senegal e Guiné-Conacri que se deslocou ao sul do país em missão de cooperação e para conhecer o programa de ecoturismo da AD, foi obrigado a meter mãos à obra e de catana em punho, desmatar a árvore que caiu a poucos quilómetros de Iemberem.

"Se para os amigos de Conacri, não houve surpresas de maior, já para as amigas do Senegal, foi uma enorme surpresa conhecerem e defrontarem-se com uma floresta densa, elas que estão mais habituadas a serem confrontadas com areias e ventos do Sahara, em paisagens quase desérticas".

Fotos: AD - Acção para o Desenvolvimento (2010). Editadas por L.G. (com a devida vénia...)




Guiné > Zona Leste > Fajonquito > CCAÇ 674 (21964/66) >  Um bagabaga...Foto tirada  em Fajonquito, no já distante ano de 1964... Na imagem aparece o  Sérgio Neves (ex-Fur Mil Mec Auto), irmão do Tino Neves. (*)

Foto: © Tino Neves (2006). Direitos reservados.

1. Comentário, de 6 do corrente,  do Cherno Baldé ao poste P6661 (**):

Estimados Amigos e irmãos da Tabanca Grande,

Nao tenho palavras para exprimir a minha gratidão para todos os que lêem os meus escritos e me encorajam. Lamento imensamente não ter o tempo necessário para me dirigir, pessoalmente, a todos e, também, discutir sobre diversos aspectos do que se escreve ou escreveu. A todos as minhas sinceras desculpas.

Ao Irmão Luís (já agora informo que o meu filho mais novo chama-se Luís) antes de mais quero agradecer e informar que a minha cabeça está cheia de sombras negras.

Em segundo lugar, a desertificação é uma realidade em toda a região tropical da Africa, em consequência da qual os animais estão a desaparecer e, mais recentemente,  são os macacos que estão a deixar-nos devido à falta de água combinada com o desaparecimento das lagoas.

O macaco pára-quedista não é uma designação científica. Nós,  os miudos de Fajonquito,  designávamos assim aos macacos vermelhos [, fatangos, ] que viviam em cima das árvores e que eram exímios saltadores de uma árvore para outra.

Numa outra ocasião falaremos do Tabaski, do Fiofioli e dos Djiné e Najoré do nosso amigo Renato Monteiro.

Mais uma vez obrigado pelo vosso inestimável trabalho. Esta última cronica foi-me inspirada quando vi no Blogue a imagem da ave pernalta.

Continuem a trabalhar e não se preocupem muito se a lista é feita de Baldéa ou de Graças. Temos que fazer a nossa parte. Temos que deixar rastos, talvez outros nos seguirão no futuro para arrumar as ultimas pedras de Guiledje.

Cherno Baldé (Chico de Fajonquito)

[Revisão / fixação de texto / bold a cor / título: L.G.]
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Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 14 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1367: Concurso O Melhor Bagabaga (3): Fajonquito (1964) (Tino Neves)

(**) Vd. poste de 30 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6661: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (16): Canhámina, 1974: o fim do triângulo da vida e do poder do regulado de Sancorlã

Guiné 63/74 - P6734: Controvérisas (96): No período de 1972/75, a proporção de capitães milicianos, comandantes de companhias combatenntes em África, era de 83 em cada 100 (Jorge Canhão, ex-Fur Mil At Inf Op Esp, 3ª C/BCAÇ 4612/72, Mansoa, 1972/74)



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Pag 10


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Nota de L.G.:



Sobre este tema, vd. ainda os últimos postes da série Controvérsias:

14 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6730: Controvérsias (95): Não me move, nem alimento, qualquer querela QP-Milicianos (José Manuel M. Dinis)

13 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6728: Controvérsias (94): Puros e Espúrios (Mário Gualter Rodrigues Pinto)

7 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6687: Controvérsias (93): Nunca entendi a querela QP-Milicianos... O fim do serviço militar obrigatório foi um desastre nacional (Morais da Silva, Cor Art Ref)

20 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6621: Controvérsias (88): A ruptura do stock de capitães do QP e a milicianização da guerra (A. Teixeira / J. Manuel Matos Dinis / Mário Pinto / Manuel Rebocho)