sábado, 25 de setembro de 2010

Guiné 63/74 – P7035: FAP (51): A noite mais perigosa da minha guerra (António Martins de Matos)

1. O nosso Camarada António Martins de Matos (ex-Ten Pilav, BA12, Bissalanca, 1972/74, hoje Ten Gen PilAv Res), no seu regresso enviou-nos, em 24 de Setembro último, um interessante e bem disposto texto:

Camaradas,

Férias terminadas, junto vos envio um texto para animar a malta.
E para que não fique alguma dúvida na cabeça das pessoas.

Qualquer semelhança com alguém, facto ou lugar, não é ficção, é mesmo semelhança.



Base Aérea 12 > Bissau

Com a devida vénia à página dos Especialistas da Base Aérea 12, Guiné 65/74, do nosso camarada Victor Barata, Especialista da FAP.
"A noite mais perigosa da minha guerra”
Recordando a minha estadia de aviador por terras da Guiné, as missões preferidas eram as de DO-27, em especial as destinadas a apoiar os vários Batalhões, CAOPs, COPs e correlativos, permitiam-me ver e conviver com o pessoal das “terras do fim do mundo”, ou como disse um escritor com laivos de rambo e de memória baralhada, dos “cus de judas”.


Uma Dornier, DO 27, na pista, de terra batida, do aquartelamento > Foto do saudoso Cap Ref José Neto (1927-2006)

Fazer embarcar os eventuais passageiros e carga, verificar se o peso a transportar estava dentro dos limites, verificar se os sacos do correio estavam na aeronave (a diferença entre ser bem ou mal recebido), descolagem logo pela fresquinha enquanto o calor não apertava, aterragem na sede do Batalhão, apresentação ao “Big Boss”:

“... Bom dia Sr. Major, apresenta-se o Tenente Piloto Aviador M.“.

E continuava:

“... Conforme definido superiormente, o meu Major tem esta aeronave à sua disposição durante as próximas 4 horas ou 7 aterragens, o que se esgotar primeiro, para a utilizar na área do seu Batalhão da maneira que muito bem entender, a 8ª aterragem já será em Bissau, disponha como lhe aprouver...”.


Dependendo da vontade, coragem ou preguiça do Major, umas vezes acabava por ficar as 4 horas sem nada fazer, ler um livrito à sombra de alguma árvore mais frondosa, outras vezes passadas que ainda não eram duas horas já tinha ido e vindo e tornado a ir, e a vir... esgotado as aterragens e “ tenham um bom dia... ”, rumo a Bissau.

O limite das 7 aterragens tinha a ver com o acumular da fadiga do piloto versus a segurança de voo, já que havia pistas que nem ao mais pintado lembraria, alguns metros de largura, uns 200 de comprimento, algumas em curva, por vezes com vacas à mistura, o seu final com uma barreira de arame farpado ou mesmo a porta do quartel em cimento armado, “se não conseguir travar paciência, entro-lhes pela casa adentro, não me perguntem é pelo correio, que afino...”.

E foi assim que conheci Bula, Binar, Biambe, Burutuma, Bigene, Bambadinca, Buba, Bedanda, Bissorã, Bissum, Binta… isto para só falar dos Bês.


Se a maior parte das vezes tudo corria pelo melhor, de vez em quando a coisa complicava-se, umas vezes por julgarem que o DO-27 era algo semelhante a uma Berliet, outras vezes por alguns Majores mais atrevidos não saberem contar de 1 a 7 (ou fingiam?) e em vez de reservarem a 7ª aterragem para o regresso à sua sede do Batalhão resolviam ainda ir aqui ou ali ou acolá; depois puxavam dos galões para que lhes fosse concedida uma aterragem extra:

“ Ó nosso Tenente olhe lá, estou-lhe a dizer, vá-me levar de volta que aqui quem manda sou eu!!!”.

E quando davam por ela já estavam no meio da placa da Base de Bissalanca, a deitar fumo pelas orelhas e a servirem de gozo aos Cabos da Força Aérea (FAP).

A partir Abril de 1973 e devido ao aumento da intensidade do conflito, deixei o DO-27 e passei a voar apenas o Fiat-G91.

Fiat G-91 da FAP > Foto de Soares da Silva, com a devida vénia

E se durante o resto da comissão e por inúmeras vezes lá fui passando por situações mais ou menos arriscadas, a noite de 23 de Junho foi certamente aquela em que o perigo me rondou mais de perto.
Recordemos, há já quase 3 meses que havia mísseis Strela nos céus da Guiné, até já tinha visto alguns a passarem bem perto, o pessoal do Guileje já tinha rompido aquele famoso cerco e executado a tal “retirada estratégica”, os de Guidage lá se tinham aguentado, o Exército já me tinha embrulhado num processo de averiguações por causa de umas Berliets estragadas lá para os lados de Binta, e o pessoal de Gadamael já se tinha espalhado e reagrupado, a calma a reaparecer aos poucos.

Nós, os da Força Aérea, é que andávamos um pouco baralhados da cabeça porque das duas uma, ou a matemática tinha deixado de ser uma ciência exacta, ou então algo não batia certo.

Tudo isto porque apesar de no “Solar do Dez”, “Pelicano”, “Bento” e restantes cafés da má-língua, constar que estávamos apavorados de medo e já não voávamos, no dia-a-dia continuávamos a executar missões atrás de missões, a um ritmo bem mais acelerado que anteriormente.
Uma coisa era certa, estávamos fartos de circular nas vizinhanças de alguns quartéis a abrir clareiras na mata, a partir madeira e fazer barulho, fartos dos que diziam que já não os apoiávamos, (certamente deviam de ser surdos, com tanto rebentamento ali mesmo nas suas barbas) e fartos dos que, sem nos saberem dar informações precisas, exigiam que bombardeássemos todas as matas à volta dos seus quartéis.

Até que não podia ser, cada bomba de 750 libras fazia um buraco no chão onde podia caber à vontade um Unimog, a Guiné arriscava-se a ficar como um “queijo suíço”.

Por outro lado estávamos absolutamente convencidos que as bases de fogo para os ataques a Guidaje, Guileje e Gadamael estavam situadas para lá da fronteira, já no território dos países vizinhos.

A razão era simples, se cada granada de morteiro pesava à volta de uns 15 quilos, cada ataque com 200 granadas (parece que era a medida standard) equivalia a utilizarem 3 toneladas de munições, demasiado peso para andar a ser transportado às costas e ainda por cima por trilhos pelo meio da floresta.

Precisavam de algumas viaturas de carga e uma estrada por onde circular, que gasóleo já o tinham.

Por essas razões e apesar de não termos os passaportes em dia, o Caco Baldé até já nos tinha deixado ido cumprimentar os nossos amigos ao estrangeiro, a Kambera, Kumbamori e Kandiafara.

Os de Kambera não tinham sido muito calorosos a receber-nos, ficaram chateados por lá termos ido logo a seguir ao almoço, o pessoal devia de estar a dormir a sesta, tinham lá alguns cubanos a passar férias que nos devem ter gritado alguns piropos do tipo “gilipollas de mierda... no me toques el coño”...

E até aconteceram umas cenas engraçadas e com uma certa ligação bíblica, um amigo meu ao querer afundar a barcaça que fazia a cambança do rio (que teria uns 90 metros de largura) errou a pontaria e acertou... no rio.

Ainda assim não tinha havido nenhum problema, durante alguns segundos e tal como Moisés quando quis atravessar o Mar Vermelho, a água desapareceu por completo, o fundo lodoso bem à vista.

Depois, quando a água regressou tipo tsunami, foi a vez da barcaça desaparecer.

Em Kumbamori tínhamos participado numa excursão conjunta com o pessoal de terra, sabem como é aquele ditado, meias só para as pernas, uns a trabalhar e outros a ficarem com a fama e o proveito.

Já os de Kandiafara tinham-nos recebido muito bem, com “fogo-de-artifício” e tudo.

Ficaram surpreendidos já que não esperavam que viéssemos de tão longe só para os cumprimentar, grande alegria por nos verem, a foguetada parecia daquelas festas lá para o Minho, no fim até nos agradeceram, tínhamos lá deixado 36 buracos (ainda que um pouco grandes), num futuro próximo bastava-lhes juntar um “Drive Range” e um Bar e tinham ali de imediato dois belos campos de golf, até já estou a imaginar, o “KANDY COUNTRY CLUB (Members Only)”.

Voltando ao sábado 23 de Junho, era necessário fazer diminuir a tensão acumulada nos últimos tempos, o pessoal estava a ficar um pouco “cacimbado” (se fosse hoje dizíamos “com stress pós-traumático”) pelo que, muito em segredo foi planeada uma grande operação envolvendo todo o pessoal do Grupo Operacional, pilotos, mecânicos da linha da frente, pessoal da manutenção, bombeiros e enfermeiras pára-quedistas para o caso de uma eventual evacuação.

Como sabem, toda a operação que se preze tem que ter um nome de código que a identifique, ainda pensámos em “Granito” ou “Basalto”, logo nos disseram que operações com nomes de pedras nem pensar, estavam reservados para algum VIP, optámos por algo mais singelo:

“Guerra é guerra e que ninguém se balde”.

O sinal para o início da movimentação das tropas seria dado com a chegada, tão discreta quanto possível, de um avião NORD-ATLAS vindo de Lisboa.

E ele acabou por aterrar em Bissau ao alvorecer do dia 23 de Junho com a sua carga ultra-secreta, estacionando em local fora do habitual para não dar nas vistas, descarregando de imediato inúmeras caixas de madeira devidamente acondicionadas e tapadas para que ninguém visse com que tipo de munições iríamos atacar o inimigo.

Logo pensaram os mais politizados que devia ser alguma nova arma secreta, provavelmente proibida pela Convenção de Genebra, tinha de ser algo bem pior que o napalm, que, ao contrário do constava nos cafés, até nem era proibido (só o passou a ser a partir de 1983).

E que impropérios diria lá na sua rádio argelina aquele gajo de voz grossa e que agora quer ser vosso “Comandante” (que meu nunca será), quando soubesse da marosca?

Sem preocupações com todos estes pruridos, de imediato a máquina militar se pôs em movimento, ordens e contra-ordens à boa maneira portuguesa, os do QP a mandar, os Milicianos a vergar a mola.

Durante a tarde instalaram-se os assadores típicos da FAP (meio bidon a trabalhar a carvão e a combustível de avião JP4), descascaram-se as batatas, prepararam-se o tinto e as saladas...

Ao inicio da noite e após um very-light para sinalizar o local do objectivo, ouviu-se finalmente o sinal de chamamento para o ataque, “Horrendo, Fero, Ingente e Temeroso”.

Rapidamente manobrámos pelo fogo e pela manobra tal como tínhamos aprendido nos compêndios militares, as sardinhas saltavam das caixas de madeira para os assadores, daí para o pão ou prato conforme o treino do combatente, tiro e queda, limpar a arma e remuniciar de imediato, as “bazucas da Sagres” em disparos sucessivos, os invólucros a espalharem-se por todo o lado, as ordens a ecoarem:

“Ninguém manda alto ao fogo que o inimigo tá bravo”.

A noite correu pelo melhor, comeu-se, bebeu-se e conviveu-se como só se conseguia conviver nas noites africanas.

À volta dos assadores encontrámo-nos quase todos, o Coronel, os Majores (um deles do Exército, sortudo, fazia de oficial de ligação), Tenentes, Furriéis, Cabos e Soldados, que na Força Aérea sempre foi assim, “serviço é serviço e conhaque é conhaque”.

Ausências notadas foram a do nosso Comandante, Tenente-coronel Almeida Brito, o Maj. Mantovani Filipe (nosso oficial de ligação junto do QG), os Furriéis João Baltazar e António Ferreira e o Cabo Cóias, todos eles abatidos por mísseis Strela há menos de dois meses.

Já me esquecia, faltou também o meu amigo Miguel Pessoa, até tínhamos ficado um bocado chateados com o tipo, tinha deixado um avião todo partido lá no meio do mato e com medo de ser admoestado tinha passado uma noite escondido e fora de casa, quando afinal nós até lhe queríamos oferecer umas férias na Metrópole.
E mais, já com o bilhete no bolso e tendo conseguido algures uma garrafa de espumante, nem sequer a tinha bebido com os amigalhaços... avarento, semítico e mal agradecido!

Mas afinal não era de estranhar que volta e meia se notasse uma ou outra ausência a estes eventos, já que na Força Aérea íamos todos à guerra, todos os dias, do Coronel ao Alferes, do Sargento ao Cabo, quer fossemos do QP ou Milicianos, homens ou mulheres.

Já agora e a talhe de foice, porque ultimamente muito se tem falado de associações de antigos combatentes, o que fazem, não fazem mas deviam fazer, deixem-me também referir algo interessante e que demonstra um certo carinho que a Liga dos Combatentes (LC) tem demonstrado pelo pessoal da FAP.

Não obstante um certo número de militares da FAP terem perdido a vida por efeito do fogo inimigo (antiaéreas ou mísseis Strela), a base de dados da Liga ainda hoje não regista os seus nomes, (certamente para que as famílias não fiquem traumatizadas), ou então regista-os como se esses militares tivessem morrido em... “acidentes”.

Grande visão, na lógica e no pragmatismo do raciocínio, estavam no ar, foram alvejados e atingidos, caíram, logo foi um acidente... La Palice no seu melhor.

Se bem que ao pensar melhor, até talvez tenham razão, podemos considerar que houve um primeiro acidente, a colisão da bala ou do míssil com a aeronave e um segundo acidente, o choque com o solo...

Só que então não deve ser considerado acidente mas sim... “um duplo acidente”.

E o caso mais interessante até foi o que ocorreu lá para as bandas de Bigene, um piloto levava como passageiro um Major do Exército, o piloto ainda hoje não consta na lista das baixas do Ultramar enquanto que o Major foi desde logo considerado “morto em combate”.

Não sou dos que acredita num ALÉM DIVINO mas, a haver, estou certo que também os meus amigos Maj. Castelo, Cap. Ventura, Ten. Lourenço e Alf. Manso me estarão a sorrir...

Aguentem rapazes que isto ainda se vai resolver, nem que seja daqui a 100 ou 200 anos!

De qualquer modo e para abreviar o tema, esta malta também não tinha nada que andar no ar, ou não fossem todos eles uns “gandas malucos”.

E por outro lado lá está a matemática outra vez a encravar, se constava que já não voavam como é que tinham acidentes?

Dir-me-ão os mais intolerantes, “ Ó pá, em vez de estares aqui a mandar vir, porque não tentas solucionar o caso junto das autoridades competentes?”

Ou os mais conciliadores, como aquele do “Contra-Informação”, ”Anda, avança, estou contigo...”

Ou os outros, os que se fartam de falar... “Pois...”

Já tentei, e bem mais que uma vez!

“Que escuso de ficar descansado”... “é que se vai já tratar do assunto”...

Deixem-me dizer-vos que penso ser este o nosso grande problema, o nosso grande fado, “tratar dos assuntos sem que os assuntos fiquem tratados”, ou por outras palavras “encanar a perna à rã”.

E se não acreditam recordem-se do Sócrates, ou do Passos Coelho, ou do Queiroz, ou do Madaíl...

Mas com estes apartes vou-me afastando do tema...

Voltando ao combate da Bissalanca, uma verdade indiscutível é que depois de uma sardinhada é sempre necessário uma bebida forte, branca de preferência, sem a qual a digestão se torna lenta e difícil.

Lá para o fim do repasto o 1º Cabo Hélder, um dos meus mecânicos do Fiat G-91, chamou-me a um canto para que provasse a aguardente especial que a família lhe tinha mandado lá da terra.

Apenas saído desta prova e já o nosso amigo e futuro bloguista Victor Barata, não querendo ficar mal visto perante o pessoal das aeronaves de caça (sempre as rivalidades), me apresentou um medronho de primeira.

E depois foi o Miguel e o Mário, e o Correia, igualmente Cabos da Linha da Frente e a quem eu todos os dias confiava a vida ao entrar para um Fiat-G91 por eles devidamente abastecido, municiado e inspeccionado, cada um deles a tentar demonstrar que os bagaços das suas terras eram bem melhores que os restantes.

Por volta da meia-noite a batalha estava terminada, o inimigo completamente destroçado, era tempo de ir dormir, que no dia seguinte e apesar de ser domingo, a outra guerra continuava.

Só que depois de ter passado quase 1 ano a dormir no “Biafra” da Base, a minha cama estava agora a uns bons dez kilómetros de distancia, tinha passado a viver em Bissau, as razões que me levaram a fazer a troca foram duas, o ter constatado que nos últimos seis meses só tinha jantado “francesinhas” e, já que vivia na base, estar permanentemente de serviço, com alvorada às 05:30 (... já que moras na base ficas de alerta!!).

O regresso a casa não tinha qualquer problema, já que tinha como meio de transporte a minha moto, uma bela, potente e roxa Yamaha 200 a 2 tempos, comprada com 16 notas da Metrópole, ali para os lados do que chamávamos a Av. da Liberdade (a que ia do Palácio do Governador ao cais).

Cabe aqui um outro parêntesis para informar que a primeira vez que andei de moto foi no dia que a fui buscar ao stand.

Ao pretender saber como se metiam as mudanças o vendedor tão assustado ficou que não ma queria vender, só as D. Marias entregues ali mesmo e no momento o descansaram.

“Ó homem deixe-se de merdices, abra lá a porta do stand e saia-me da frente”, e assim entrei na confusão do trânsito de Bissau.

Voltando à história, ainda estive uma meia hora recostado naquelas grandes valas que existiam na Base para escoar a água das chuvas, a ver se conseguia contar as estrelas, que a maior parte delas não parava de oscilar.

A ideia era tentar alinhar os gyros e decidir se havia de me meter ao caminho ou não, o problema não era o balão, que nesse tempo não existia, nem as estrelas aos saltos mas sim o estranho caso da estrada estar a ficar ondulada, tipo jibóia (e não me venham cá dizer que não há jibóias na Guiné, que eu até as vi).

Após profunda meditação e analisando os prós e os contras, resolvi meter-me ao caminho.

Lembro-me apenas de sair à porta de armas e de algum tempo mais tarde ter passado junto a um ou dois quartéis que existiam à beira da estrada, poucas referências para o trajecto de cerca de dez quilómetros.

Enquanto circulava de gás à tábua o meu pensamento não parava de me alertar para que ao chegar ao destino tinha que travar, travar... travar.

E assim aconteceu, para além dos mosquitos, moscardos e correlativos a esborracharem-se com fragor no capacete, consegui fazer o percurso sem bater em nada nem em ninguém (ou não fosse eu um piloto de caça).

A terceira referência da viagem foi a porta do meu apartamento onde, a travar, a travar, acabei por vir a bater já muito devagarinho, mas ainda assim com algum estrondo.

E tão contente fiquei de ter chegado (e parado) que nem sequer me lembrei que, como passo seguinte, tinha de pôr os pés no chão, trambolhão da moto abaixo, a 0km/h.

Na manhã seguinte fui voar com um braço todo entrapado e umas pastilhas para as dores, tomadas numa auto-medicação bem à revelia do médico, que um dos ombros estava em mau estado.

Felizmente que foi um dia muito calmo, acabei por só fazer uma missão, 40 minutos de voo, 2 bombas de 750 libras algures na Guiné, mais 2 buracos dos grandes, os que sabiam que os continuávamos a apoiar devem-nas ter ouvido... os outros certamente que não.

Hoje, passados 37 anos o vício das motos ficou, trambolhões só dei mais um, também a 0 km/h.

E ficou a saudade dos bons momentos passados na Base da Bissalanca.

Um Abraço,
António Martins de Matos
Ten PilAv da BA12
____________
Nota de M.R.:
Vd. último poste da série em:
22 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 – P6629: FAP (50): A Associação dos Deficientes das Forças Armadas homenageou Força Aérea Portuguesa (Carlos Vinhal)

Guiné 63/74 - P7034: Carta aberta a... (4): Camarada (de armas) António Lobo Antunes (António Graça de Abreu)



República Popular da China > Agosto de 2010 > O nosso camarada António Graça Abreu em locais facilmente reconhecíveis pelo leitor ocidental  (com  excepção talvez do segundo a contar de cima): (i) a Grande Muralha da China, (ii) o oásis de Dunhuang, no deserto de Gobi, província de Gansu, (iii) a Praça de Tiananmen, em Pequim.

Fotos: António Graça Abreu (2010). Direitos reservados



1.Carta aberta ao Camarada António Lobo Antunes

Areias, Estoril, 5 de Setembro de 2010

Herdei alguma coisa dele (o pai): A solidão feroz, a capacidade de ser horrivelmente desgradável para os outros, (…) a agressividade injusta.

António Lobo Antunes, revista Visão, 2 de Setembro de 2010

António Lobo Antunes: Quando o Benfica jogava, púnhamos os altifalantes virados para a mata, e assim não havia ataques.

Jornalista: Parava a guerra?

António Lobo Antunes: Parava a guerra. Até o MPLA era do Benfica…

(Entrevista à revista Visão, Maio de 2005)



Camarada António Lobo Antunes

Comecemos pois pela bola.

Nós lá em Cufar, no sul da Guiné, 73/74, era mais para o verde, a Companhia de Caçadores 4740 até se denominava “Os Leões de Cufar.”

Quando o Sporting jogava, fazíamos quase o mesmo que vocês no leste de Angola, voltámos os nossos rádios (éramos pobrezinhos, não dispúnhamos de altifalantes!...) para a floresta e era certo, sabido e garantido que os guerrilheiros do PAIGC, todos sportinguistas, não nos atacavam. Vinham até ao arame farpado e por ali se quedavam, do outro lado, entusiasmados, embevecidos, felizes ouvindo os relatos do Nuno Brás e do Artur Agostinho, e os golos do Yazalde.

Mas escrevo-te não por causa do futebol. Questões mais momentosas e importantes têm trazido o teu nome para a ribalta sofrida dos ex-combatentes das guerras de África.

Tu não sabes, -- também como honestamente confessas, não vês televisão, não ouves rádio, não lês jornais, não tens net, enfim vives numa torre de ébano voltada para o lado opaco do quotidiano das gentes --, tu não sabes, dizia eu, mas no último fim de semana de Agosto reuniram-se em Monte Real, Leiria, um tantos ex-combatentes do Ultramar, com o objectivo de tentar entender e explicar as estranhas, as nebulosas afirmações do António Lobo Antunes sobre a sua guerra no leste de Angola, 1971/73.

Como deves recordar, o ano passado, em entrevista ao Céu e Silva, referiste as 150 baixas do teu batalhão e os pontos ganhos pelos teus soldados, conforme iam abatendo inimigos para, infatigáveis matadores, conseguirem ser mudados para regiões de Angola menos flageladas pela guerra.

Não foi fácil para os ex-combatentes chegarem a um consenso definitivo no que às tuas palavras diz respeito. Reunidos na clareira de uma mata junto ao o pinhal de Leiria, gentilmente cedida pelos herdeiros do Lúcio Tomé Féteira, os representantes dos ex-militares portugueses agrupados na ACNMNVAPC (Associação dos Combatentes Nem Mortos, nem Vivos, antes pelo Contrário) acabaram por concluir:

Primeiro:

150 baixas por batalhão não é uma boa média. Os nossos valentes e garbosos soldados gostavam de ter tido mais baixas. O problema é que quase não as havia. O leste de Angola como tu bem sabes, caro António, era o cu de Judas, terras do fim do mundo pouco povoadas, onde até os elefantes se esqueciam que possuíam uma prodigiosa memória de elefante.

As mulheres do leste de Angola não eram baixas, mas sim espigadotas, altas, secas de carne, peitos pequenos e encolhidos. Uma baixa constituía uma raridade. Estas baixas, sim, eram uma tentação para qualquer soldado, português, angolano, cidadão do mundo. De nádegas redondas e brilhantes, de peitos alteados e firmes, romãs suculentas cobertas de chocolate, estas baixas eram a perdição dos nossos excelentes mocetões. Fiéis aos ensinamentos do vetusto Salazar, tipo “muitas raças, uma só nação”, aquelas baixas portuguesas de Angola, pestanudas, roliças transformavam-se com facilidade, aos olhos da nossa tropa, na tão desejada namorada, a companheira, a vizinha, a menina branca que ficara lá longe, nostálgica, desamparada na aldeia lusitana de Vila Meã, Bensafrim, Antuã ou Cernache do Bonjardim.

O batalhão do alf. mil. médico António Lobo Antunes, lá por Angola, em Gago Coutinho, no Chiúme teve, segundo dados fornecidos por ti próprio, 150 baixas. Foi o que pôde ser, o que se pôde arranjar, e o que os deuses e os sobas do leste de Angola concederam aos nossos excelsos mancebos. Que hoje morrem de saudades – estamos todos mortos, falecidos, moribundos, semi-defuntos, etc., não é António? – por aquelas deliciosas baixas angolanas, de olhos de mel e frenéticos rabinhos empinados.

Segundo:

Quanto à procelosa questão do sistema de acumulação dos pontos obtidos com a mortandade feita sobre o IN, a fim de se obterem transferências para zonas de paz, os ex-militares das guerras de África na reunidos na tal ACNMNVAPC (Associação dos Combatentes Nem Mortos, nem Vivos, antes pelo Contrário, repito) tiveram grande dificuldade em entender tão radicais pressupostos apresentados por ti, camarada António Lobo Antunes.

Depois de muita deliberação, chegaram-se a conclusões.

Assim:

Os soldados, nos ócios da guerra, jogavam à sueca. Por jogo ganho, marcava-se uma bolinha preta na cruz de cada equipa. As cruzes iam-se enchendo de pontos negros que, por brincadeira de mau gosto, os nossos homens, associavam a cabeças de guerrilheiros. Como bem recordaste na entrevista ao jornal Expresso, a 28 de Agosto, “ninguém desce vivo da cruz”, nem sequer numa suecada à antiga. Podes pois imaginar a razia nas hostes inimigas que, jogando à sueca, provocávamos.

Mas há mais.

Os soldados jogavam à sueca, os sargentos e oficiais jogavam mais à batalha naval. Nesta última variante lúdica, como sabes, o objectivo era afundar contra-torpedeiros, submarinos, até porta-aviões. Também por brincadeira de mau gosto, os homens do teu batalhão diziam que os navios iam carregados de velhos, mulheres e crianças oriundas do Leste de Angola. Embarcavam em Luanda e depois, mar alto com eles… Cada barco ao fundo, era um morticínio atroz.

A tropa portuguesa jogava a dinheiro. Marcavam-se pontos e fizeram-se boas maquias, houve muito patacão arrecadado que os nossos militares, de férias, iam patrioticamente gastar em zonas onde a guerra estava ausente, no Luso e até em Luanda.

Está tudo explicado.

Saudações de camarada de armas,
António Graça de Abreu, alf mil infantaria, Comando de Agrupamento Operacional nº. 1, Guiné, 1972/1974.

[Fixação / revisão de texto / título: L.G.]


2. Comentário de L.G.:

O António acaba de regressar de mais  uma das suas viagens "sínicas" (leia-se: à China)... Julgo que desta vez foi também em trabalho. No regresso mostra estar em boa forma, a avaliar por esta carta aberta ao António Lobo Antunes que, antes de ser escritor famoso, foi nosso camarada de armas... em Angola.

A carta é uma peça, notável, de fino humor, deliciosa, inteligente, civilizada, irónica. Não sei se o destinatário é o ALA. Tenho dúvidas... De qualquer modo, sabemos, à partida, que o ALA não a vai ler, pela simples razão de que ele é um público e notório info-excluído (segundo a imprensa escrita, o ALA não tem computador, nem e-mail, nem página na Net, nem conta no Facebook, nem nenhum dessas tretas das chamadas TIC - Tecnologias de Informação e Conhecimento, que são obrigatórias para se ser membro deste blogue, por exemplo).

O António Graça de Abreu, além do mais, vem cheio de energia: no próximo dia  2 de Outubro a 18 de Dezembro, vai dar início, no Museu do Oriente / Fundação do Oriente, de um curso, de 12 sessões, sempre aos sábados, das 10h00 às 12h30, com o título Introdução à História da China. O preço de inscrição é de 100 euros. Esta iniciativa já foi divulgada internamente na nossa Tabanca Grande.

Desejamos-lhe que tudo corra bem e que, entre os inscritos, haja malta nossa, interessada em aprofundar os seus conhecimentos sobre a civilização e cultura chineses...

É explicitamente objectivo do curso ao longo de 12 sessões  "pontuar os períodos de crescimento, apogeu, estabilidade e decadência do velho Império do Meio. E caminhar, com todo o rigor possível, pela História, as mentalidades, a cultura, a construção dos quotidianos na China Clássica e Contemporânea. Macau e os Portugueses na China estarão naturalmente presentes, tal como o nosso Museu do Oriente".

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P7033: Álbum fotográfico de Jacinto Cristina, o padeiro da Ponte Caium, 3º Gr Comb da CCAÇ 3546, 1972/74 (1): O melhor pão da zona leste...


O Jacinto Cristina: foto da época em que esteve na Ponte de Caium, 3º Gr Comb da CCAÇ 3546 (Piche e Caium, 1972/74)... O 1º ano foi passado em Piche e o resto do tempo em Caium


Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Piche > CCAÇ 3546 (1972/74) > Destacamento da Ponte de Caium > A padaria e o padeiro... O forno foi construído na parte inferior da ponte... Como o espaço era pouco, tudo se aproveitava... O forno (e a cozinha) ficava do lado esquerdo, no sentido Piche-Buruntuma...  De costas, em tronco nu, vê-se o Manuel da Conceição Sobral (que vive hoje em Cercal do Alentejo, Santiago do Cacém). Os dois faziam reforço das 4 às 6. Por volta das 5h/5h30, um deles ia amassar a farinha (12 kg /dia)... O outro ficava de reforço até às 6. Depois das seis, até às 8h/8h30, ficavam os dois a trabalhar. Às 9h já havia pão fresco... Todos os dias coziam. Tinham um stock de farinha que dava para um mês. Faziam uma média de 30 pães de 400 gramas, por dia. O resto do dia descansava. O Sobral era o apontador do morteiro 81  e o Jacinto o municiador. Também havia um morteiro 10,7,. ao cuidado do Pinto e do Algés. O 81 ficava do lado direito, à saída da ponte, no sentido de Buruntuma. O 10,7 ficava no lado esquerdo, junto ao paiol, também no sentido de Buruntuma... Mais à frente estava o 1º Cabo Torrão, apontador da HK 21 (irá morrer em 14 de Junho de 1973).  também havia o morteiro 60 e a bazuca.



O Jacinto tornou-se de tal maneira imprescindível (por causa do "pão nosso de cada dia") que, além de municiador (e apontador, quando necessário) do morteiro 81, ficou na ponte de Caium 14 meses (13, se descontarmos o mês de férias, em Abril de 1973,  em que veio a casa para estar com a mulher e a filha)... "Vieram de férias o Jacinto, o Pinto, o Charlot e o Algés... No avião da TAP... Já não se lembro de quanto pagou... Seis contos, para aí, diz-me ele".


Diziam que era o melhor pão da Zona Leste... Aqui o Jacinto está varrer e a limpar o forno... Fatal foi aquele terrível período de um mês (entre meados de Maio e Junho de 1973) em que o destacamento esteve sem reabastecimentos, sem farinha, sem pão... Meteram-se a caminho de Piche, a 14 de Junho de 1973, tendo sofrido uma brutal emboscada, em que morreram os camaradas: 1º Cabo Ap. Metralhadora David Fernandes Torrão, Sold At Carlos Alberto Graça Gonçalves (Charlot), Sold At Hermínio Esteves Fernandes e Sold At José Maria dos Santos... Disse-me o Jacinto (que ficou na ponte a tomar conta do seu 81), que os corpos foram cortados em quatro, com rajadas de Kalash... e o PAIGC levaram cinco armas (incluindo a do Furriel Mil , que foi projectado com o impacto do RPG7, juntamente com o Sold Cond Auto Rocha).

Uns meses antes, em 19 de Fevereiro de 1973,  tinha morrido o Fur Mil Op Esp Amândio de Morais Cardoso, na sequência da desmonmtagem de uma armadilha de caça.  Essa cena passou-se debaixo dos olhos do Jacinto que se salvou, ao pressentir o perigo.


Destacamento da Ponte Caium > O Sabino na cozinha a preparar um petisco... 

Destacamento da Ponte > Os aposentos... As camas eram em beliche, como se pode ver na foto... Este abrigo era o mais pequeno: tinha quatro camas, era o mais pequeno... Ao aldo era o depósito de géneros (que roubou espaço ao abrigo). Aqui o Jacinto, com o Pinto, o apontador do 10.7... Havia quatro abrigos, dois em cada lado,  os outros eram todos maiores (6 / 8 camas). Os abrigos eram ladeados por fiadas de bidões cheios de terra.



Destacamento da Ponte  Caium > Um aspecto dos pilares da ponte... O Cristina,  mais um camarada,  na hora do recreio (ele não se recorde do nome)... Ali no rio Caium, naquela improvisada jangada, poderiam dar largas à sua imaginação de marinheiros e aventureiros... Na época seca, o rio levava pouca água... Era um afluente do Rio Coli. O abastecimento de água era feito mais longe, de Unimog, com segurança


Destacamento da Ponte Caium >  Mesmo com o metro quadrado mais caro da Guiné, nas "suites" não faltava nada... O chuveiro era um bidão de 200 litros, furado...


Destacamento da Ponte Caium > O tabuleiro superior, com duas fiadas de abrigos (2 de cada lado), feitos com bidões cheios de areias, troncos de palmeira, cimento e chapa de zinco, desenhadas para alojar 30 homens... Na foto, o Cristina , de reforço, de manhãzinha... Este posto fica no início da ponte, no sentido Piche-Buruntuma... E acreditem que pelo meio passavam (passaram) centenas e centenas de viaturas, militares e civis, além de chaimites e obuses...  


Guiné > Zona Leste >  Região de Gabu > Piche > CCAÇ 3546 (1972/74) > Destacamento da ponte sobre o Rio Caium, onde o Jacinto Cristina esteve mais de metade da sua comissão (cerca de 14 meses)... Na foto, a padaria ficava em segundo plano do lado esquerdo... Deve ter sido tirada no dia dos anos do Sobral, em Março de 1973, a avaliar pelos dois cabritos (comprados na tabanca fula, que ficava a nordeste da ponte, a 3 km, e onde residiam as lavadeiras)... Quem passou por aqui, entre Piche e Buruntuma,  dificilmente acredita que um homem pudesse aguentar mais do que um mês, dois meses, neste Bu...rako. Soldado atirador, o Jacinto ficou municiador do morteiro 81 e como era preciso fazer pão todos os dias, aprendeu a arte de padeiro (que depois seria  o seu ganha-pão, em  Ferreira do Alentejo,  onde vive). Como se percebe pelas fotografias, as estruturas da ponte foram aproveitadas ao milímetro...

Fotos: © Jacinto Cristina (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados

1. O Jacinto Cristina, alentejano, industrial de panificação (termo mais pomposo do que padeira, trabalhador por conta própria), em Figueira de Cavaleiros, Ferreira do Alentejo, começa por ser meu amigo, embora de há coisa de um ano... Vim a descobrir que entretanto foi nosso camarada, tendo pertencido à CCAÇ 3546 (Piche e Caium, 1972/74). Sou amigo, de longa data, da sua filha Cristina (que é engenheira) e do genro, Rui Silva (que é médico), vivendo o casal na Madeira.

Numa das últimas visitas que fiz à família, em Ferreira do Alentejo (onde o jacinto vive, com a esposa), o nosso camarada emprestou-me um dos seus preciosos álbuns fotográficos, onde tem o essencial do registo da sua passagem pelo leste da Guiné. Fiz uma selecção de fotos e digitalizei-as. Amanhã vou devolver-lhe o álbum (e trazer um dos seus deliciosos pães). A caminho de Serpa, vou lá jantar com ele, a esposa, a neta (a "nossa princesa"), a Cristina e o Rui (casal que, além do mais, nunca perde uma meia-maratona, desta vez  a
11ª Meia Maratona do  Centenário, que parte da Ponte Vasco da Gama). 

Levo comigo duas fotos do monumento construído na Ponte de Caium, já depois do regresso do Jacinto, e na base do qual se pode ler: "Nem só de pão vive o homem"... As fotos foram tiradas em Abril de 2010 pelo Eduardo Campos (**) que fez questão de mas entregar, em Monte Real, em 26 de Junho passado, para as fazer chegar às mãos do Jacinto que ele não conhece, a não ser do blogue... Um gesto de grande camaradagem que me sensibilizou muito e que vai emocionar o Jacinto.

Entretanto aqui fica o primeiro poste da série Álbum fotográfico de Jacinto Cristina... Vou pedir ao Jacinto que me ajude a "legendar" as fotos dos restantes três postes que vou publicar este fim de semana...


[Fotos digitalizadas, editadas  e legendadas por L.G.]
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Notas de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores:


Guiné 63/74 - P7032: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (33): Teixeira Pinto - Perdidos (2)

1. Mensagem de Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 22 de Setembro de 2010:

Meu Amigo Carlos Vinhal
Como ao que me apercebo, recuperaste todas as forças (será?) e mais algumas, cá te mando mais um troçozito da minha ”Viagem…”, que não foi antes, nem acoplado ao anterior, por querer inserir a história transcrita por um dos actores na época, em documento que… nunca mais me chega às mãos.

Assim cá vai e depois… se o doc acabar por chegar (tem que chegar, só não sei quando… também o darei a conhecer.

Vistas bem as coisas, naquela vida e idade, um “gajo” ao “mínimo” pretexto aproveitava para… beber uns copos, não seria? Se calhar nem seria preciso outro pretexto do que… estar lá naquela “vidinha” !!

Um abraço para os que vão tendo a paciência de me ir lendo.
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (33)

Teixeira Pinto – Perdidos (2)

Estávamos em retirada, depois de um confronto nas matas do Balanguerez. (vd. Poste 6990*)

O temporal era de fazer medo e à forte chuvada que se misturava com o suor peganhento que nos toldava a vista, juntavam-se relâmpagos que, já a anoitecer, começavam a fazer as matas dançar ao nosso olhar, confundindo-nos as definições e as distâncias do observado.

Com azimute pré-definido, a “bicha de pirilau” avança como usual, ziguezagueando em corta-mato para local escolhido, junto à estrada antiga Teixeira Pinto – Cacheu, onde emboscará para passar a noite. No trajecto damo-nos conta que a ultima meia dúzia de Rapazes tinham ficado para trás, perdidos (vd. P-6990*).

Após uma noite tenebrosa de dilúvio e mordidelas que mais pareciam queimadelas - provocadas por aquela mosquitada pequenina e negra que se entranhava por tudo o que era sítio, se embrenhava pelos cabelos queimando-nos o couro cabeludo e torrando-nos a paciência - o dealbar encontra-me metido na valeta, com água até ao peito e sem que tenha conseguido pregar olho, devido ao aguaceiro caído dos céus e especialmente à mosquitada que não havia meio de se afogar.

Era altura de fazer os tiros de sinalização, a ver se os “perdidos” respondiam. Assim foi feito… respondem de pronto e logo começa a aparecer, um a um, a “Jericada” (como dizia o Castro), saídos da orla da mata. Por fim íamos ficar a saber o que se tinha passado mas, antes havia que levantar arraiais e procurar outro poiso para emboscar… não fosse o diabo tecê-las.

Depois de, na certa, terem ouvido daquelas bocas ”foleiras” em titulo de comentários jocosos, - demonstrativas de proximidade, afinidade e de afecto, - usuais por aquelas paragens e situações, começam a contar, mais coisa menos coisa, que “após uma breve paragem, o bi-grupo recomeça o andamento e o Barros (Alf), que ia nos últimos lugares, pára por momentos para apertar as botas, mijar ou o “car… que o fo…”, sem avisar quem ia à sua frente. Claro que os que íamos atrás também parámos!”…

Já ao anoitecer e com aquele temporal, foi o suficiente para ficarem isolados. Foram seguindo os tiros de localização, mas não responderam por receio que o IN percebesse eventualmente o que se passava.

Continuam : “ouvíamos os tiros e não percebíamos porque não respondíamos e às tantas o Lobo (4.º GCOMB) começa a magicar que o Barros era preto da Guiné e se calhar tinha-se feito perder de propósito (!?) para se poder passar para o outro lado, naquela ocasião em que eles (IN) andavam ali por perto. “

Teixeira Pinto - Sold.Lobo (4.º GCOMB) com MG

Diz o Lobo: “Às tantas parámos e ele (Barros) pega no mapa e na bússola e quer que eu fique com aquilo. Digo-lhe que não percebo nada de mapas nem de bússolas, que não aceito e começo a pensar que afinal o fdp sempre se quer passar e vai-nos deixar aqui no meio da mata. Não, não nos vais f…, não vais conseguir… antes eu mando-te p´ró ca… e logo atrás dele, não o larguei da ponta da arma.”

Esclarece o Barros (Alf do 2. º GCOMB) que foram seguindo os sinais, mas era perigoso responder e que a dada altura começou a pensar : ” F… se somos apanhados… os fdp percebem que sou graduado e são capazes de me limpar o coiro. “

Prossegue: “então quis dar o mapa e a bússola ao Lobo (instrumentos usados pelos graduados) e assim, caso acontecesse, ele até beneficiaria e eu teria mais hipóteses. Mas… vi a reacção, senti o motivo da recusa e disse cá para mim, que se f…., o que tiver que ser… será. Notei que o pessoal tinha ficado um tanto inquieto e apreensivo pelo que lhes expliquei o que me tinha levado a propor aquilo. Ficaram então tranquilos achando até que devia ser levada avante. Não, não aceitei e a progressão continuou até à orla da mata onde passámos aquela tenebrosa noite emboscados, até que ouvimos a sinalização ao amanhecer. Estávamos nas imediações, respondemos.”

(Esta situação, à altura preocupante, dá agora azo a momentos hilariantes quando é recontada pelos intervenientes)

Novamente juntos faltava chegar as viaturas para nos levarem a porto mais seguro…Teixeira Pinto e à nossa bela vivenda, onde certamente se iria fazer uma “cerimónia” de truz.

Luís Faria
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Nota de CV:

(*) Vd. último poste da série de 15 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6990: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (32): Teixeira Pinto - Perdidos (1)

Guiné 63/74 - P7031: Notas de leitura (149): A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa, de António Duarte Silva (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Setembro de 2010:

Queridos amigos,
O que é bom acabou-se. Mas foram umas férias impares, andei por museus e casas senhoriais, vagueei por jardins e até apanhei chuva. O melhor de tudo, como já se vai repetindo, foram os vales de Yorkshire, um dos locais mais aprazíveis que conheço.
Chegou a hora de voltar ao trabalho. Talvez da melhor maneira, começando com o outro livro (também incontornável) desse grande estudioso que é o António Duarte Silva. Ele tinha obrigação de se filiar na tertúlia, não conheço melhor informado sobre a Guiné do que ele.

Um abraço a todos na chegada do Outono,
Mário


A independência da Guiné-Bissau e a descolonização portuguesa (1)

Beja Santos

Se com “Invenção e Construção da Guiné-Bissau” António E. Duarte Silva escreveu um ensaio memorável da Guiné Portuguesa entre os anos 40 e a luta da libertação (Edições Almedina, 2010), o seu trabalho anterior intitulado “A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa” (Edições Afrontamento, 1997) possui idêntica qualidade, rigor e originalidade. São investigações complementares, nalguns casos cruzam-se e amplificam os elementos de compreensão sobre a vida da colónia, clarificam os alvores do nacionalismo guineense, as estratégias que levaram à declaração unilateral de independência, comentam o comportamento da Guiné-Bissau recém-independente, analisam exaustivamente a formação do Estado e todas as questões inerentes seja o direito à autodeterminação seja o direito da descolonização. Igualmente o acervo bibliográfico é incontornável. Tudo somado, não se conhece na actualidade melhor investigação sobre as últimas décadas da Guiné, desde que se tornou uma colónia modelo, ainda nos anos 40, passando pela via da libertação nacional e as diferentes constituições bissau-guineenses.

É um estudo suficientemente rico para obrigar a sucessivos olhares, etapas e eventos, obrigando a seccionar a recensão. Como segue.

Primeiro, António Duarte Silva regista o que de essencial avulta na visão colonial portuguesa entre os anos 30 e o movimento descolonizador, subsequente à Segunda Guerra Mundial. Aliás, em idêntico sentido procede o historiador Filipe Ribeiro Menezes na sua monumental obra “Salazar, Uma Biografia Política” (Publicações Dom Quixote, 2010). Sem se entender o pensamento de Salazar desde o Acto Colonial até ao anti-colonialismo que explodiu na Ásia e na África, não é compreensível apreender e caracterizar o que movia as organizações independentistas que actuaram na Guiné ao longo da década de 50.

Segundo, o autor releva os acontecimentos inerentes ao massacre do Pidjiguiti, a importante reunião de 19 de Setembro de 1959, considerada determinante na história do PAIGC, a formação do frentismo anti-colonial, a tentativa do perfil ideológico de Cabral e como o seu pensamento se tornou dominante dentro do movimento de libertação e o início da luta armada, dando-se igualmente um quadro da actuação da FLING. Como é evidente, torna-se necessário equacionar a chamada unidade Guiné-Cabo Verde e até encontrar base histórica, sem descurar os símbolos e mitos dessa unidade. Segue-se o período que vai da “batalha do Como”, em 1964, até à nomeação de Spínola, em 1968. É um lugar-comum dizer-se que foi um período crucial, desde 1963 que o PAIGC se tornou preponderante no Sul e Amílcar Cabral destacou-se, ao nível dos movimentos de libertação, como figura de proa. É o tempo do crescendo da guerra que vai obrigar Spínola a redefinir a manobra e a procurar em simultâneo dissuadir a contra-guerrilha e a captar as populações.

Terceiro, analisa-se o contexto da independência, e aqui o autor dá largas à sua formação jurídica, recordando o historial de sucessivas independências unilaterais, a começar pelos Estados Unidos da América. Não querendo repetir o que já foi anotado em “Invenção e Construção da Guiné-Bissau” é de indiscutível importância perceber o que foi a formação da Guiné-Bissau enquanto Estado africano e as suas singularidades no contexto do Império Colonial Português. Para entender a declaração unilateral da independência, de 24 de Setembro de 1973, é preciso recuar até 1968 e passar em revista a evolução dos acontecimentos no teatro de operações, o significado do relatório da Missão Especial da ONU, em Abril de 1972, os sucessivos triunfos da diplomacia do PAIGC e o seu plano para pôr o Estado em movimento: a eleição da Assembleia Nacional Popular como facto inédito que precede a declaração da independência.


Quarto, o autor descreve a viragem da guerra e os principais eventos de 1973, desde as operações “Amílcar Cabral” e “Nô Pintcha”, o novo plano de encurtamento da área ocupada pelas tropas portuguesas (seguramente o motivo maior que levou ao pedido de demissão de Spínola), o II Congresso do PAIGC e a aprovação da Constituição do Boé. António Duarte Silva analisa pormenorizadamente as repercussões desta declaração de independência, na ONU, no Governo português, nos dois partidos da oposição (Partido Socialista e PCP). Entre 27 de Setembro e 7 de Outubro de 1973, a República da Guiné-Bissau foi imediatamente reconhecida pela grande maioria dos Estados africanos, asiáticos, árabes e comunistas. Numa medida surpreendente, em 2 de Novembro, a Assembleia-Geral da ONU aprovava, por 93 votos, 30 abstenções e 7 votos contra, uma resolução felicitando-se “Pelo recente acesso à independência do povo da Guiné-Bissau, ao criar o Estado soberano que é a República da Guiné-Bissau”. Em 19 de Novembro, a Guiné-Bissau era admitida por unanimidade na Organização da Unidade Africana. Tal como nas independências dos EUA e do Brasil, a guerra prosseguiu mais algum tempo. Os primeiros meses de 1974 viram encarniçados combates, desapareceu a guarnição de Copá, Canquelifá esteve a ferro e fogo, obrigando a uma intervenção do Batalhão de Comandos. Em Março, em reunião secreta, sentaram-se à mesa diplomatas portugueses com uma delegação do PAIGC, com resultados inconclusivos. O representante do Governo português só queria discutir o cessar-fogo para abrir negociações a uma eventual independência da Guiné. A delegação do PAIGC recusou-se a discutir a independência da Guiné sem a complementar com a de Cabo Verde. E assim chegamos ao 25 de Abril de 1974.

(Continua)
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 12 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6975: In Memoriam (51): Djassió Soncó, mulher do guia Quebá Soncó (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 10 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6966: Notas de leitura (148): Transição Democrática na Guiné-Bissau, por Johannes Augel e Carlos Cardoso (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P7030: Memória dos lugares (100): O dia em que o RAP2 esteve sob ameaça terrorista (Joaquim Mexia Alves)

1. Mensagem de Joaquim Mexia Alves*, ex-Alf Mil Op Esp/RANGER da CART 3492, (Xitole/Ponte dos Fulas); Pel Caç Nat 52, (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa), 1971/73, com data de 21 de Setembro de 2010:

Meus caros camarigos editores

Tenho lido alguns textos fazendo referência às Unidades militares onde alguns camarigos fizeram as suas recrutas ou especialidades, bem como, as que foram Unidades mobilizadoras dos Batalhões e Companhias que rumaram à Guiné.

Achei por bem então, escrever um texto, relembrando uma história engraçada que se passou comigo e com outros, no então RAP 2, na Serra do Pilar, onde formei Batalhão para servir na Guiné.

JMA


Regimento de Artilharia Pesada N.º 2 localizado na Serra do Pilar em Vila Nova de Gaia


O DIA EM QUE O RAP2 ESTEVE SOB AMEAÇA TERRORISTA

Cheguei ao RAP2, (julgo que juntamente com os outros oficiais, (Aspirantes), e sargentos, (Cabos Milicianos que iam formar Batalhão), aí pelo mês de Julho, findas que tinham sido as Especialidades de cada um.

Julgo que começámos a instrução do Batalhão por volta de Outubro de 1971, partindo para a Guiné no dia 21 de Dezembro do mesmo ano, a bordo do Niassa, a partir de Lisboa.

Houve então ali um período, entre Julho e Outubro, em que fizemos sobretudo Oficiais de Piquete e ao que me lembro pouco mais.

Havia então ali, à saída em frente da descida, o Café Mucaba e do outro lado da Ponte Luís I, do lado esquerdo de quem vai para o Porto, o Bar América, (onde umas raparigas de fino porte alegravam as noites), mas isso são outras histórias que talvez um dia conte.

Mas vamos à história, na qual omitirei os nomes, (tirando o meu), por razões óbvias que compreenderão, e que envolve dois Alferes Milicianos que não pertenciam ao Batalhão e julgo nem sequer foram mobilizados para lado nenhum.

Um, (a “vítima” da partida que vou contar), era bom rapaz, mas um pouco lerdo, se é que me faço entender, de tal forma que não podia, por ordens superiores ao que me lembro, ocupar as funções de Oficial de Dia.

Ora como o fruto proibido é o melhor, o homem ansiava por um dia poder andar de pistola à cinta, fazendo de Oficial de Dia.

O outro, o colaborador na partida, era um “gajo porreiro”, que andava por ali a passar o tempo à espera de acabar o tempo da tropa e que obviamente não levava nada daquilo a sério.

Claro que entre ele e mim se estabeleceu uma certa empatia, e se eu já estava apanhado do clima mesmo antes de chegar à Guiné, ele não estaria muito melhor, afectado com certeza pelos ares demasiado “puros” da Serra do Pilar.

Ora um dia em que por coincidência ele está de Oficial de Dia e eu de Oficial de Piquete, depois de uns uísques bebidos na Messe de Oficiais e com certeza de imensos “elogios” à família militar que nos dava cama e mesa naqueles tempos, decidimos concretizar o sonho do outro Alferes acima referido, e que nunca ou quase nunca saía do quartel.

Se bem pensámos, melhor o fizemos, e engendramos o seguinte esquema.

Ao fim do dia, (quando já tivessem saído os Comandantes), depois do jantar, (já noite dentro, para não haver surpresas de oficiais superiores), ele como Oficial de Dia chamaria o outro Alferes à minha frente, Oficial de Piquete, e dir-lhe-ia que tinha um problema grave em casa, e que obrigatoriamente tinha de se ausentar.

E a conversa continuava:
Ele como Oficial de Dia era no momento o Comandante do quartel e como tal investia-o nas funções de Oficial de Dia até que ele pudesse regressar.
Não havia problemas porque ele podia contar com a minha ajuda, etc., etc.

O outro, embora receoso, não cabia em si de contente vendo-se já de “pistola à cinta”!

Fez-se no gabinete do Oficial de Dia uma “cerimónia” de passagem de “testemunho”, com entrega da Bandeira Nacional e tudo!!!

O primeiro Alferes saiu então do quartel, tendo reentrado pouco tempo depois e ficado na Casa da Guarda logo junto ao portão.

Passado pouco tempo eu disse ao “Oficial de Dia” que tinha de inspeccionar qualquer coisa e vim para a Casa da Guarda, sem ele saber.

Daí, (e ele não se apercebeu de onde vinha o telefonema), telefonei para o gabinete do Oficial de Dia, imitando um suposto General Comandante-Chefe da Região do Porto, informando que tinha havido um aviso que um qualquer grupo terrorista iria atacar o RAP2 e como tal ele, Oficial de Dia, tinha que tomar as medidas necessárias à defesa do quartel.
Para tornar mais credível a coisa pedi-lhe para se identificar e sei lá mais o quê!

Claro que logo a seguir vim ter com ele como se nada se passasse!
Encontrei-o em pânico, sem saber o que fazer!

Entretanto e passado pouco tempo chegou o primeiro Alferes, (o Oficial de Dia a sério, que passo a designar como ODV – Oficial de Dia Verdadeiro), e perante a situação, (a coisa já estava combinada comigo), disse que não podia reocupar as funções visto que ele, (a “vitima”) se tinha identificado ao General e como tal teria de levar a coisa até ao fim.

A partir daí foi um crescendo de “asneirada” de tal modo que só a muito custo nos conseguíamos manter sérios, tendo que vir “desopilar” cá fora de quando em vez e até para avisar os oficiais, (Aspirantes), que iam chegando da noite.

“Solenemente” o ODV, comigo como testemunha, entregou a Bandeira Nacional ao ODF, (Oficial de Dia Falso), com o solene compromisso que a devia defender até ao limite da sua vida.

Eu fui incumbido de alertar o Piquete, o que verdadeiramente não fiz, obviamente, bem como avisar as sentinelas, o que também fingi.

Tratou-se então de defender o gabinete do Oficial de Dia, que ficava, salvo o erro, ao lado do bar de oficiais, pelo que, se decidiu instalar uma MG42 em cima da mesa do referido Bar, bem como se distribuíram por aqueles espaços as armas que estavam à mão.

O pessoal, (Aspirantes), que iam chegando, iam ajudando à “festa”!

Já não me lembro bem do que se fez mais, mas a situação era hilariante, com todas as histórias à volta e os avisos de defender o quartel até à morte!
Surge então a ideia mais estapafúrdia que era trazer, sob as ordens do ODF, (aconselhado por nós claro), um Obus 14 que havia no parque exterior e colocá-lo no cimo da rampa que dava acesso à Porta de Armas e apontado a esta!

Não sei se estão a ver a ideia de Obus apontado para baixo!!!!

Com toda a franqueza não me lembro se chegámos a concretizar esta “brilhante ideia”, embora eu pense que sim, (outros do meu Batalhão que ali estivessem se poderão lembrar), mas tenho a noção que, por um daqueles azares que só acontecem nestes momentos, o 1.º ou 2.º Comandantes vieram ao quartel à noite por qualquer razão.

Claro que aquele que veio se deparou com todo este aparato, e houve a necessidade óbvia de explicar o sucedido, o que segundo me lembro, foi recebido com os avisos de “porradas” a aplicar, mas no fundo com um sorriso condescendente e compreensivo, (caramba o pessoal ia para a Guiné), e julgo que não houve consequências de maior.

À distância parece uma coisa talvez sem graça, mas naquela noite “chorámos” a rir, e durante uns tempos foi conversa obrigatória.

Está bom de ver que fizemos as pazes com o “visado”, que sendo boa pessoa, engoliu a partida e tudo ficou “como dantes, quartel-general em Abrantes”.

À vossa consideração, camarigos editores, a publicação desta história.

Um abraço camarigo para todos do
Joaquim Mexia Alves
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 9 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6961: Depois da Guiné, à procura de mim (J. Mexia Alves) (11): Tempo presente, tempo de viver

Vd. último poste da série de 11 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6969: Estórias avulsas (95): A minha 2ª grande missão ao serviço do Exército Português (António Barbosa)

Guiné 63/74 - P7029: Tabanca Grande (245): António Branquinho, ex-Fur Mil do Pel Caç Nat 63 (Fá e Missirá, 1969/71)

1. Mensagem de António Branquinho, ex-Fur Mil do Pel Caç Nat 63, Guiné, 1969/71, com data de 20 de Setembro de 2010:

Caro amigo e companheiro

Sou irmão do Alberto Branquinho e  como vocês prestei serviço militar na Guiné.

Iniciei a Comissão em 23/09/1969 e terminei-a em finais de Outubro de 1971 (não me lembro da data correcta).

Fui em rendição individual, tendo sido colocado no Pel Caç Nat 63, que era comandado pelo ex-alferes miliciano Jorge Cabral, colaborador do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Desde o primeiro dia que somos amigos. Amizade esta que mantemos até à data.

O Pelotão era composto, na sua maioria,  por elementos oriundos da própria Guiné, o alferes, furriéis, cabos e alguns soldados adstritos ao Pelotão eram brancos. Por este facto, os chefes militares e outros, por vezes "esqueciam-se" de nós, nomeadamente, no que dizia respeito ao fornecimento atempado de géneros "frescos", sendo os enlatados (fiambre, conservas várias, chouriço, etc.) a base da nossa alimentação.

Durante bastante tempo (muitos meses) estivemos privados de gerador de electricidade e de arca ou frigorífico a petróleo e consequentemente do prazer de uma bebida fresca. Era uma festa quando nos deslocávamos à sede do Batalhão (Bambadinca), bebiam-se umas "bazucas" e uns wiskys gelados, era até cair - tirava-se "a barriga de misérias".


António Branquinho no Enxalé


Quando o Pelotão era mudado para outro Destacamento, o que se verificava frequentemente, era uma carga de trabalhos, uma vez que os soldados do Pelotão tinham consigo as mulheres e filhos, pelo que tinha de se arranjar transporte para todo aquela gente. Além das respectivas famílias, eram as galinhas, os cabritos e toda a traquitana inerente às lides domésticas (tachos, pilões, panelas, cabaças, alguidares, etc.). Era uma confusão! Eu passava-me.

O Jorge Cabral incumbia-me sempre destas missões, dizia que eu tinha uma certa sensibilidade para estas "operações". Tomava esta decisão por ser o furriel mais antigo e,  talvez, por uma questão de confiança. Numa das várias mudanças de Destacamento que efectuámos, apareceu-me com uma garrafa de wisky na mão, para festejarmos o fim da instalação do Pelotão. Estava tão desgastado e stressado que lhe tirei a garrafa da mão, mesmo à temperatura ambiente ia bebendo tudo de um só trago. Como era de esperar apanhei tamanha bebedeira, que passei o dia todo a dormir.

Após várias deslocações, estive em vários Destacamentos, na zona de Bambadinca: Fá, Missirá, Bambadinca, Ponte do Rio Udunduma, Nhabijões, Xime, etc.

Durante a minha Comissão, estive adstrito a dois Batalhões, sediados em Bambadinca (Sector L1): BCAÇ 2852 (1968/70) e BART 2917 (1970/72.

Terminei a Comissão em beleza, a não ser um senão, incompatibilizei-me com o substituto de Jorge Cabral, em Bafatá. Era uma pequena cidade, mas tinha muitas mordomias de que já há muito não estava habituado.

Escrevi este pequeno texto, como cartão de apresentação, havendo muito mais histórias para contar, desde que haja disponibilidade e pachorra para tal.

Um abraço
António Branquinho

Missirá, 1971 > António Branquinho (de pé) e Amaral

Missirá, 1971 > António Branquinho, Amaral e uma bajuda

Missirá, 1971 > Pires, Branquinho e Amaral


2. Comentário de CV:

Caro António Branquinho, é caso para dizer: que belos padrinhos! Ser irmão do Alberto Branquinho e amigo do Jorge Cabral dá-te muita responsabilidade.

Faz favor de entrar, a Tabanca é toda tua, como soi dizer-se, mas tens de a compartilhar com os outros 448 camaradas e amigos. Note-se que a tua entrada não faz aumentar o número de tertulianos, pois há muito estás na listagem da página.

A tua apresentação está muito completa, porque de uma só penada descreves o quão difícil era ser parte de um Pelotão de Caçadores Nativos. A diferença da língua, dos usos e costumes, eram, para quem chegava de novo, um choque. Bem sei que passado pouco tempo nos apercebíamos de quanta dedicação aqueles homens nos dedicavam. Penso que seria mais difícil acompanhá-los no mato, já que estavam adaptados a um terreno e a um clima, para nós, hostis.

Disto tudo nos vais falar com certeza, baseado na tua experiência de contacto com aqueles bravos homens.

Ficamos assim na expectativa das tuas narrativas e fotos. Já agora, se tiveres por aí uma foto actual, manda para que te possamos conhecer, se nos cruzarmos por aí algures. Obrigado.

Recebe um abraço que te envio em nome da tertúlia.

O teu camarada e amigo
Carlos Vinhal
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 22 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7023: Tabanca Grande (245): Armando Fonseca, ex-Soldado Condutor do Pel Rec Fox 42 (Guiné, 1962/64)