segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7778: Memória dos lugares (139): Bedanda no meu tempo (Rui Santos, ex-Alf Mil, Op Esp, 4ª CCAÇ, 1963/65)

1. Mensagem, do dia 12,  do nosso camarada Rui Santos (ex-Alf Mil, Op Esp, 4ª CCAÇ 1963/65), ao poste P7771 (*)

Caro António Teixeira:

Devo referir que devo ter sido dos primeiro a comentar BEDANDA [, que tem já meia centena de referências/marcadores no nosso blogue]. Estive nessa região que calcorrei a pé por bolanhas, subi o Unguariuol de canoa, ía quase todos os dias a Cobumba, onde estava um cais com rampa, onde atracavam os Navios da Marinha maiores, a escolta era apenas dentro desses transportes, uma a duas secções, comandadas por um ou dois sargentos

Fiz sózinho cerca de 56 Kmts pela mata do Cantanhês. Na 4ª CCaç eramos apenas 3 a 4 alferes e um capitão.  Estive nesses locais desde 20 de Setembro  de 1963 a Agosto de 1964, fui alferes e as povoações que o meu amigo fala são Amedalai lá no alto, a companhia estava para leste dessa, em frente da casa do Chefe de Posto, havia um destacamento comandado por um sargento e eu comandava o pelotão que aboletava em Bedanda propriamente dita,  a cerca de 700 metros  do "cais" no Unguariuol, a norte, e a sul, o campo de aviação.

Fui flagelado no meu pelotão pelo menos duas vezes por mês, quer via morteiro, quer de ataques directos, quer de canhão sem recuo (penso) e de uma metralhadora .50 [?].

Conheço a região palmo a palmo e penso actualmente nela como se lá estivesse, minei em volta do meu aquartelamento com cerca de 28 minas pessoais e anti-carro adaptadas a antipessoal com cordões de tropeçar e garrafões de 10 litros cheios de invólucros e gasolina por cima (o detonador superior desactivei-o), e bem camufladas em arbustos naturais.

Vejo no Google  e reparo que há muito mais moranças e os campos estão cultivados, mas meu amigo num dos seus primeiros comentários referiu que esteve numa operação nocturna no Unguariuol, junto do Nhai com o Figueiral a inspeccionar tudo o que era canoa.

Meu amigo, Nhai fica a cerca de 7 km (de mata) do riozito que, no local mais perto de Nhai, deve ter cerca de três metros de largo, deve ter-se por certo enganado.

O pequeno afluente do Cumbijã distava cerca de 800 mts das povoações de Incala; Rossum Hole; Caboxanque e mais duas aldeias que de momento não recordo o nome.

Pois, já tentei comunicar com o Figueiral via mail, mas "nepias"!

Gosto das suas fotos que acho magnificas, só tenho pena que no meu tempo só houvesse "caixotes" de fotografia.

Cumprimentos
Rui G. dos Santos
ex-alf-mil 


2. Comentário de José Figueral:



Que grande memória tens! Esqueceste-te de dizer que as batatas já chegavam sempre podres e,por isso,a ementa do almoço e jantar era sempre a mesma:bife de vaca com arroz,durante 2 anos.


O alferes do Pelotão era o Baltasar de Esposende. Vê se o descobres.

Abraço. José Figueiral

3. Novo comentário do Rui Santos:

Caro Figueiral,

Bem dito por quem ainda comia batatas pois nós houve uma altura que não tivemos reabastecimento e tivemos que comer bacalhau com arroz, arroz com bacalhau,e por aí fora durante 36 dias seguidos, o que vale é que gosto de bacalhau e ía porvezes caçar rolas e eu e os meus sargentos comiamos rolinhas fritas ao pequeno almoço.

Voltei apenas para rectificat que Caboxanque fica mais para sudoeste 12 a 15 Kmts em linha recta e queria-me referir a Contumbum.

Tenho uma boa memória, sim, senhor, obrigado!

Uma vez fomos reabastecidos via aérea, mas os pilotos tinham medo de aterrar com os Nordatlas (ou coisa parecida) e então faziam a pista no sentido oeste leste e deixavam cair as caixas com batatas, cebolas, couves, cenouras, etc e claro partiam-se todas quando caiam, e ai estamos todos á procura de alimentos em volta da pista.

Estou apto a responder a tudo o que tenha ocorrido no meu tempo nessa região!
Rui G.Santos 
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Nota de L.G.:
 

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7777: (Ex)citações (132): “… Ele sobreviveu apenas porque pressentiu o que se avizinhava… ”


1. O filho de um camarada nosso - Francisco José Miranda Velez -, assinou um comentário no poste P7433, com o pseudónimo “falcus”, que passamos a publicar:

“… Ele sobreviveu apenas porque pressentiu o que se avizinhava… ”

“Relativamente à coluna dos 3 obuses > Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa (Quebo) > Julho de 1968 > Com a viatura destruída por mina a/c. Era a do Rádio de Transmissões..."

Quero acrescentar que o condutor desse carro é o meu pai, condutor auto Francisco José Miranda Velez. Ele sobreviveu apenas porque pressentiu o que se avizinhava. O PAIGC não ia deixar barato o transporte dessas armas para a Formosa. A existir um ataque sério e articulado a uma coluna, o primeiro alvo teria que ser as transmissões, neste caso o veículo das transmissões. Ele desmontou o banco do condutor e encheu três sacos de areia e conduziu o carro sentado em cima dos sacos de areia. Ainda assim foi projectado para a frente do Unimog segundo se consta cerca de 30 metros.

O veículo seguia atrás de outros (ao que parece era o 5º veículo) mas uma mina "programada" esperava-o. E digo "programada" porque segundo o meu pai ele não desviou um milímetro do rodado da viatura da frente que por sinal até era mais pesada. Devo acrescentar também que momentos antes o capitão tinha descido da viatura e o cabo telegrafista tinha subido na mesma, não estava protegido com sacos de areia e o capitão por ainda estar próximo à viatura também sentiu os efeitos da explosão e também se feriu.

Dá para ver pelo estado do veículo a potência da explosão mas os sacos de areia salvaram-no praticamente ileso.

Devo ainda dizer que quando a coluna ainda estava em Buba e o meu pai tirou o banco do carro, ainda aconselhou o cabo telegrafista a fazer o mesmo e a encher uns sacos de areia, mas este sabendo que seguiriam outros carros na dianteira achou que talvez não fosse necessário e não o fez. Não quero com isto estar a recriminar o cabo telegrafista por ter desleixado a segurança, aliás ele foi uma vítima inocente desta guerra, possivelmente mesmo com os sacos de areia talvez não escapasse ao seu destino, mas acho importante acrescentar mais estas peças ao puzzle.”

2. Ao filho do Francisco José Miranda Velez (a quem aproveitamos para enviar o nosso melhor abraço fraterno), em nome do Luís Graça, aqui fica registado o nosso convite para que adira a este nosso projecto, enviando-nos a sua foto do tipo passe, alguns dos seus dados pessoais e uma estória de que o seu pai se lembre do tempo da sua comissão na Guiné.

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Notas de M.R.:

Ver também sobre esta matéria o poste:

14 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7433: Facebook...ando (3): Uma dramática ida de Buba a Gandembel (Raul Brás, ex-Sold Cond Auto, CCAÇ 2381, Buba, 1968/70)

Vd. último poste desta série em:

12 de Fevereiro de 2011 >
Guiné 63/74 - P7768: (Ex)citações (131): Saudades de quê ?... Será que sou masoquista ?... E por que é que leio o raio deste blogue e até faço comentários ? (C. Martins)

Guiné 63/74 - P7776: Tabanca Grande (267): Fradique Augusto Morujão, CCAÇ 2615/BCAÇ 2892 (Aldeia Formosa, 1969/71)

1. Mensagem do nosso camarada e novo tertuliano Fradique Augusto Morujão, da CCAÇ 2615/BCAÇ 2892, Aldeia Formosa, 1969/71, com data de 11 de Fevereiro de 2011:

Caro editor:
Como está expresso na página da Tabanca Grande, a porta está sempre aberta, mas é sinal de boa educação pedir licença. Nessa conformidade, peço licença para entrar.
Agradeço que corrija possíveis erros ou elimine situações, que firam os princípios deontológicos a que se propuseram e muito bem.

Embarque em Janeiro de 1970.

Nomeado em reforço à guarnição normal para a Guiné.
Integrado num dos grupos de combate da CCAÇ 2615 em Aldeia Formosa.
Mais tarde deslocado com a Companhia para Nhala.
Comissão nos anos de 1970 e 1971


Introdução:

Quando se assinala meio século do início da guerra colonial e decorridos 40 anos da comissão militar na Guiné, é a primeira que abro o meu livro de memórias da guerra.
Quais folhas amarelecidas e bolorentas pelo decorrer corrosivo dos anos, assim estão as minhas lembranças.
A experiência militar resultou negativa, na medida em que, ou por auto-defesa, ou por maneira de ser, baralhei e esqueci completamente nomes e datas.


Lembro-me de:

Operações de reconhecimento; saídas para fazer picagem; segurança a colunas; colunas; emboscadas com mortos e feridos; patrulhamentos vários, mas de nomes dos camaradas, (nicles batatoide), nada!

Neste deserto de lembranças, vem à memória os nomes de Guiomar e Leandro, os dois mortos em combate na zona de Sare Amadi, com quem falei momentos antes da emboscada. Pela alegria de viver, se me fosse permitido um epitáfio seria:

Oh! Morte, por tão tarde te querer, tão cedo me levaste.

Aos dois, presto a minha humilde homenagem.
Também me lembro que nesse dia, foi a primeira e única vez na minha vida, que a boca me soube a sangue, sem estar ferido.

Tenho comigo alguns slides desse tempo, que ajudarão a reconstituir a memória colectiva da Companhia.
São fotos dos 3 Grupos de Combate da CCAÇ 2615, sem legendas.
Cada um saberá quem é!


No estandarte: a velhice dos loucos; regressa ao manicómio; Comp. Circo CCAÇ 2615




Como é da praxe vou contar uma das minhas memórias.

Aldeia Formosa-Buba
As colunas

As colunas de Aldeia Formosa para Buba fazem parte do meu imaginário, uma vez que participei em várias.
Lembro-me de um dia em que fomos escalados para uma coluna a Buba, com a finalidade de reabastecer Aldeia Formosa. Formou-se a coluna com as velhinhas GMC para a carga e os Unimog para o apoio. Entretanto, já estavam a fazer segurança ao percurso, pelotões de Aldeia, Nhala e Buba, que faziam a detecção de minas pelo método de picagem.

Depois de tudo organizado foi dado o sinal de partida e lá iniciámos a marcha, para mais uma viagem de desfecho incerto.

Ainda a coluna não tinha feito o segundo quilómetro, já Aldeia Formosa estava a ser atacada com morteiros e RPG e ouvia-se ao longe o alvoroço próprio destas ocasiões.

Todos os que seguiam na coluna se viraram para Aldeia com alguma apreensão, mas depressa a apreensão foi substituída por um certo alívio, como quem diz «desta já nos safámos».

Aumentámos o alerta nas proximidades do trilho que cruzava a estrada na direcção de Salancaur, nome muito respeitado por ser uma base importante do IN, quando avistámos um grupo de macacos cães. Seriam 30 ou 40 de várias idades e tamanhos. Alguns apresentavam uma compleição física notável. Foram seguindo a coluna por entre as árvores. Nós começámos a ficar inquietos, porque à medida que saltavam de galho em galho, produziam algum ruído. Então, alguém se lembrou de afugentá-los e arremessou um pau na direcção dos macacos. Amigos! Nem vos digo, nem vos conto, os bichos ficaram enraivecidos, fazendo uma chinfrineira dos diabos, com aqueles latidos irritantes e as beiçolas escancaradas, mandavam murros no peito e saltitavam, para meterem respeito. Ao mesmo tempo começaram a bombardear-nos com tudo o que tinham a jeito e sempre a aproximarem-se dos carros. Parecia uma batalha campal, já que alguns dos nossos se tinham apeado, para melhor se munirem e treinarem na arte do arremesso, enquanto um operacional que estava num dos carros e parecendo achar piada à coisa, virou-se para os macacos que estavam mais perto e lembrou-se de cantar uma canção muito em voga do Nilton César “receba as flores que lhe dou” e continuou.

Vai daí, um ou mais macacos, ou porque já não tinham mais munições, ou por malandrice, colocaram as manápulas debaixo do ânus e puxaram pelo intestino grosso, arremessando o mais perigoso de todos os projécteis. O que ainda estava a cantar nem teve tempo de se abrigar, porque as granadas de fragmentação, desfizeram-se na lona da GMC e o cantor apanhou com os estilhaços e levado de 30 mil raios, explodiu dizendo:

-  Os desgraçados atingiram-me com merda. Ai! Que dou cabo deles - e fez o gesto de empunhar a G3 para matá-los de rajada, mas logo outros o avisaram para se acalmar, porque a zona era perigosa. Como não pôde disparar, desfolhou o dicionário do português mais vernáculo e brejeiro e atirou aos macacos todos os palavrões que lhe vieram à cabeça.

Os bichos bateram em retirada e, eu, fiquei com a nítida sensação, que os macacos eram a favor da auto-determinação. No resto do percurso a coluna evoluiu sem grandes incidentes.

Chegados a Buba, lugar aprazível com rio como pano de fundo, atravessamos o aldeamento militar e fomos directos ao armazém de abastecimento, que ficava junto ao rio e muito perto do cais de atracagem das LDG e LDM e entrámos com as GMC no dito armazém, depois dos procedimentos burocráticos.

Escalados os militares para o serviço de trasfega e concluído o carregamento, cada um ficou livre de fazer o que bem lhe aprouvesse.

Penso que me dirigi a um pavilhão que ficava perto e funcionava ou como comando ou secretaria, talvez para assinar as guias de abastecimento e a seguir saí para um varandim que ficava na entrada. Fiquei algum tempo absorto a apreciar a paisagem melancólica, que se me oferecia e a observar a bifurcação que o rio Buba fazia com o cais em frente, de onde tantas vezes tinha mergulhado e nadado, quando se acercou de mim um oficial de quem não me lembra, nem o nome, nem a patente e com modos gentis, iniciou um diálogo. Ficámos algum tempo a conversar acerca do evoluir da situação militar em Aldeia Formosa e, eu, aproveitei para lhe contar que Aldeia tinha sido atacada nessa manhã e de como nos achávamos uns sortudos por termos escapado ao ataque, por a coluna se encontrar a distância considerável, quando se ouviram vários: Pum, Pum, Pum, abafados pela distância, mas suficientemente audíveis para se aquilatar da gravidade dum ataque eminente.

Todos os que por ali se encontravam se apressaram a refugiar-se, num abrigo que se encontrava perto.

Também eu fazia o gesto de me apressar, quando o oficial e cavalheiro me disse:

- Não se apresse que dá tempo de nos abrigarmos com calma. Ofereceu-me a dianteira e quando estávamos a ultrapassar a porta do abrigo, já os morteiros faziam aquele silvo entrecortado e arrepiante da descida e o subsequente estrondo da explosão com tudo estilhaçado e coisas pelo ar.

Senti um grande respeito por aquele oficial que controlava as emoções, fruto de muita experiência, com grande calculismo, predicado que, eu, não tinha. Ao outro dia falando com um fuzileiro, acerca do oficial com quem tinha dialogado no fim da tarde anterior e me tinha intrigado, informou-me que tinha sido deslocado para Buba em fim de comissão, porque segundo o fuzileiro, tinha comandado uma grande operação a um reduto inimigo altamente patrulhado e com grande poder de fogo. Como a operação se estava a revelar difícil e tendo sofrido algumas baixas o Oficial analisou a situação e verificou que se continuasse ainda sofreria mais baixas, pelo que preferiu sofrer as consequências duma retirada reprovada pelo alto comando, do que pôr em causa a vida dos operacionais que comandava.” Grande Homem”!

Afinal, julgando que nos tínhamos safado do ataque a Aldeia Formosa, acabamos por ser atacados de forma vexame pelos macacos e atingidos com canhões em Buba.
Há dias de sorte!




Hino às colunas

Autor da letra: Soldado desconhecido
Música: adaptação do fado “Bairro Alto”

Aldeia e as colunas a seguir
Para Buba com a malta
Obrigados e sujeitos a não vir
Com aquilo que nos falta

São colunas bem penosas
Que nada têm de airosas
Sempre metidas no perigo
Sujeitas a emboscadas
Nestas tão reles estradas
Para nós é um castigo

Viaturas velhas
Tudo a cair
E memo assim
A malta tem que seguir
São tristes chaços
Em procissão
Andam mecânicos
Com chaves de mão em mão


Quero aproveitar para agradecer a todos os operacionais com quem tive a honra de conviver: Pela compreensão; entreajuda e camaradagem que sempre revelaram pela minha pessoa.

Em jeito de despedida, um aviso à navegação. Não consto em nenhuma das fotografias e se alguém perguntar:
Afinal, quem és tu?
Responderei:
Ninguém.

Um abraço solidário
Fmorujão


2. Comentário de CV:

Caro camarada Fradique Morujão. Obrigado pelo contacto e pela adesão à Tabanca Grande onde espero te venhas a sentir bem pois estás entre camaradas e amigos.

Ao iniciar esta conversa contigo, na qualidade Public Relations (uma espécie de mordomo que abre a porta, que não existe, a quem quer entrar), quero dizer-te que mal comecei a preparar a publicação do teu texto e das tuas fotos, tive um sobressalto quando li que tinha morrido em combate um camarada da tua Companhia chamado Guinapo. É que esteve comigo em Vendas Novas um camarada, alentejano, com o mesmo apelido. Mas, sendo ele da arma de Artilharia e sendo a tua Companhia de Caçadores, tendo nós terminado o curso em fins de Setembro de 1969 e o teu Batalhão deslocado para a Guiné em Outubro, é improvável tratar-se do mesmo Guinapo. Será algum familiar?

Outra observação que quero fazer é em relação à tua última afirmação de que responderás "ninguém" à pergunta "quem és tu?"
Falarás em sentido figurado, mas o certo que querem fazer de nós, ex-combatentes, "ninguém".

O Estado não reconhece o acesso a tempo e horas ao tratamento das mazelas provocadas pela guerra; às autarquias custa o reconhecimento ao nosso esforço em África, lembrado por Memoriais, nomes de ruas, etc, antes que morramos todos e passemos "à história", leia-se, esquecimento.

Falando agora de nós e da nossa Tabanca à qual pertences por teres palmilhado a mesma terra vermelha e as mesmas bolanhas.

Como deves ter lido no lado esquerdo da nossa página, é nossa missão recolher fotografias e histórias contadas na primeira pessoa e preservá-las neste Blogue para memória futura. Não é nossa intenção fazer história, mas deixar elementos para que outros o possam fazer desapaixonadamente.

Já temos sido contactados por alunos e professores universitários que depois de consultarem as nossas páginas nos pedem autorização para se servirem de elementos nelas contidas. É para nós um motivo de orgulho poder colaborar com estas pessoas ligadas de alguma maneira à História Contemporânea.

Posto isto, caro camarada, podes e deves ajudar-nos a aumentar o nosso espólio. Já fizeste o mais difícil, começar.

Queria que me confirmasses a data em que embarcaste para a Guiné, porque se foste com o teu Batalhão, terás ido em Outubro de 1969 e regressado em Setembro de 1971. Se te lembrares, diz-nos também qual foi o teu posto e a tua Especialidade.

Termino, mandando um abraço em nome da tertúlia.

O teu camarada e novo amigo
Carlos Vinhal
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 12 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7770: Tabanca Grande (267): Os 4 magníficos da CART 1690: Alfredo Reis, António Moreira, Domingos Maçarico e A. Marques Lopes

Guiné 63/74 - P7775: Memória dos lugares (138): Bedanda vista por António Teixeira, ex-Alf Mil da CCAÇ 6 (1971/73) (2)

1. Mensagem de António Teixeira* (ex-Alf Mil da CCAÇ 3459/BCAÇ 3863 - Teixeira Pinto, e CCAÇ 6 - Bedanda; 1971/73), com data de 11 de Fevereiro de 2011:

Boa noite
Cá vão mais algumas fotos daqueles tempos idos, tirados "nha terra di no parente"

[...]
PS: - Creio que neste caso não será necessário legendas para as fotos. No entanto gostaria só de salentar que na foto B144 está o "Pelotão", onde se pode ver algumas das casas comerciais. Na foto B37estou eu e o meu grupo depois da chegada do patrulhamento aos barcos. Atrás de mim está o sempre fiel Aliú Djaló, que nunca me largava e na ponta esquerda, em pé, o Cabo Fernando, um dos melhores guerrilheiros e pisteiros que conheci ( era práticamente o meu braço direito). Na B105, quem aparece em primeiro plano é o cabo enfermeiro, que lamentávelmente não me lembro o nome ( se alguém me puder ajudar). Na foto B114, ao meu lado (lado esquerdo na foto) está um Furriel do meu grupo que também não me lembro o nome. Sei que é de Setúbal (aparece novamente na foto B115). O outo é o cabo das transmissões. Na foto B119 pode ver-se bem a protecção aérea.

Um grande abraço para todos
António Teixeira

Foto B111

Foto B113

Foto B114

Foto B115

Foto B116

Foto B117

Foto B118

Foto B119

Foto B144

Fotos: © António Teixeira (2011). Direitos reservados.
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Nota de CV:

Vd. poste de 12 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7771: Memória dos lugares (136): Bedanda vista por António Teixeira, ex-Alf Mil da CCAÇ 6 (1971/73) (1)

Guiné 63/74 - P7774: Memória dos lugares (137) : Do Mindelo a Bissau, aos bailes da UDIB, do Benfica e da Associação Comercial... Sonsene un vex era sabe (António Estácio)

1. Gentilleza do nosso camigo (e camarada) António Estácio, nascido em Bissau, no tchom de papel, engenheiro técnico agrícola,  escritor, autor de Nha Carlota, sinólogo, amigo do Zé Neto, do Mário Dias, do Pepito, da Dra. Clara Schwarz (sua professora, em Bissau, que faz amanhã 96 anos!), e ainda do Paulo Santiago e do Graça de Abreu, 

Data: 4 de Fevereiro de 2011 00:14

Assunto:   SONSENE UN VEX ERA SABE

 Amigas e Amigos:

Convosco tenho o prazer de partilhar trechos musicais de Cabo Verde, que talvez vos tragam à memória saudosas lembranças dos bailes, da nossa juventude, que tiveram lugar na UDIB, no Benfica de Bissau ou até da Associação Comercial.


Bons tempos em que eu saí do baile aí pelas 06H30, ia ouvir a missa das 07H00, à capelinha da irmãs no Hospital e seguia para casa a fim de me recompor da noitada.

Mesmo os que lá não estiveram não poderão ficar indiferentes.

É que isto, é música...

António J. Estácio

http://www.youtube.com/watch?v=R7Xg_buQ5vE&feature=email

[Vídeo de tchapsu, que vive nos EUA, colocado no You Tube em 18 de Outubro de 2010... Tem já mais de 3100 visualizações...  "Um video com imagens e vivências antigas da Cidade do Mindelo, São Vicente, acompanhado com a morna 'Tempe De Caniquinha' de Sergio Frusoni, interpretada por Bana"]

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Nota de L.G.:

  

Guiné 63/74 - P7773: Memórias de Mansabá (15): A construção dos destacamentos de Banjara e K3 (Ernesto Duarte)

1. Para as suas Memórias de Mansabá, o nosso camarada Ernesto Duarte (ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67), em mensagem de 8 de Fevereiro de 2011, manda-nos mais este relato.

MEMÓRIAS DE MANSABÁ (15)

DESTACAMENTOS DE BANJARA E K3

Nós tivemos uma vida muito ocupada, a zona era muito grande, íamos muitas vezes ao comando, e aqueles homens maravilhosos, vinham ter connosco, juntávamo-nos em grupinho, falávamos baixo, e depois só se falava na saída.

Um dia lá recebemos ordem para nos prepararmos, para irmos limpar a estrada Mantida / Banjara. Lá fomos e tirámos não sei quantas árvores, normalmente com os guinchos das viaturas até que chegamos a Banjara*. Dá-se o encontro com tropas de Bafatá, muitos apertos de mão, muitas fotos tiradas pelo serviços do Exército, um içar de bandeira, com tropas nossas e de Bafatá, e lá ficámos não sei se três se quatro dias, mais não deve de ter sido. Fizeram-se umas emboscadas, apanharam-se muitos civis, a quem deram conservas e disseram que a partir daquela altura tinham ali a tropa para defendê-los e auxiliá-los, para irem dizer aos outros e que viessem para junto da tropa. Penso que não veio nenhum.


Foto: © Alfredo Reis (2009). Direitos reservados.

Entretanto começa a funcionar uma lógica, Farim devia de estar para próximo, falava-se disso inconscientemente com uma certa naturalidade.

Um dia fomos todos chamados, muito às claras, em pleno dia e partimos de imediato, tendo-nos sido dito que iríamos para Banjara. Íamos lá para tomar consciência das condições que iríamos encontrar e o que teríamos que fazer para melhorar o espaço. Mais parecia um passeio, mas teve os efeitos desejados, quase desejados, os mais distraídos deixaram de falar de Farim e começaram a falar de Banjara, porém os mais conscientes perceberam que Farim era uma questão de dias.

Aquartelamento do K3
Foto: © Carlos Silva (2008). Direitos reservados.

E um dia, não sei quando, ordem levar os sacos com os camuflados, tudo o que era ferramentas, correntes, guinchos, muitas munições, muitas granadas de bazuka e morteiro 60 e 82. O grupo que foi fazer o golpe de mão saiu pela estrada de Manhau, a coluna e todo o material saiu alta noite já pela porta certa, foi longa a viagem mas calma, o golpe de mão tinha corrido bem e foi chegar e começar a cavar, a cavar o K3 (Saliquinhedim)**.

Eu não tenho poder nenhum, apenas sou um indivíduo que nunca foi sócio de nada, que também nunca se comprometeu com a religião e muito menos com partidos políticos, mas um fulano que além de nunca dizer nada para fazer jeito, tenta ser delicado. Tem outro grande defeito, que é gostar muito e muito da sua terra. Não tive problemas na tropa, não tive problemas na vida civil, dei sempre a cara e é nessa qualidade de cidadão pleno, que relembro aquele Pelotão de Sapadores que cavou connosco que teve tanta importância no abrir daqueles buracos, no cortar daquelas palmeiras, no colocar aquele arame farpado. A minha Companhia foi grande, enorme, nos ataques violentos que sofreu, no fazer os abrigos, cavar, cavar, mas teria sido muito mais difícil sem a colaboração daquele grupo de Sapadores.

Os ataques foram dois ao anoitecer, dois três dias depois de começarmos a nos instalar e dois, três dias depois, portanto tudo numa semana.

Foi impressionante a violência dos ataques, impressionante o barulho de tiros e granadas, das chamas das armas vistas de frente, do clarão do rebentamento das granadas, com outro ruído ensurdecedor, dos disparos das LDM, como disparo e o barulho na floresta; depois silêncio, silêncio, cavar, cavar, cortar mais e mais palmeiras e ir passear à cidade de Farim.

Se as granadas que caíram dentro do perímetro do aquartelamento têm rebentado todas, o número de baixas seria elevado, mas por mau estado, com cavilhas, sem espoletas e mal lançadas, ficaram muitas e muitas por rebentar.

Foi criado como um contributo para estabelecer a paz na zona. Deve de ter sido amaldiçoado, tinha um cemitério lá dentro, tendo o grupo Os Caveiras da minha Companhia caveiras verdadeiras às entradas dos abrigos, tendo causado grande zanga na dona Supico Pinto, presidente do MNF que nos visitou lá no K3.


Ernesto Duarte
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Notas de CV:

(*) Vd. postes de:

31 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4115: Os Bu...rakos em que vivemos (1): Banjara, CART 1690 (Parte I) (António Moreira/Alfredo Reis/A. Marques Lopes)

19 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4211: Os Bu...rakos em que vivemos (6): Banjara, CART 1690 (Parte II): Lugar de morte (A. Marques Lopes / Alfredo Reis)
e
23 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4995: Estórias do Fernando Chapouto (Fernando Silvério Chapouto) (5): As minhas memórias da Guiné 1965/67 – O meu Bura… ko em Banjara!

(*) Vd. poste de 9 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7747: Tabanca Grande (266): Nuno Dempster, autor do poema K3, agora publicado em livro, ex-Fur Mil SAM, CCAÇ 1792 (Saliquinhedim/K3, Mampatá, Colibuía e Aldeia Formosa, 1967/69)

Vd. último poste da série de 11 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7767: Memórias de Mansabá (3): Uma ida ao Morés (Ernesto Duarte)

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7772: Blogpoesia (112): Quando os ventos sopram em Assuão (Luís Graça)



Lisboa > Estuário do Tejo > 5 de  Fevereiro de 2011 > 19h00 >  Pôr do sol no Atlântico... Pensando em todos os povos de África, em geral, e do Egipto, em particular, em luta pela sua liberdade...


Foto: © Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados


Quando os ventos sopram em Assuão
por Luís Graça


Quando os ventos sopram em Assuão
É verão.
Aqui o verão é fértil,
O verão é fútil,
O verão é fértil em coisas fúteis.
O verão é fértil
No Vale do Nilo.
E fútil
Em Abu Simbel.

É no Verão
Que se come melancia
Ao quilo.
Enquanto amadurecem as tâmaras,
Vende-se a cultura a granel
Em folhas de falso papiro:
- Welcome, sejam bem vindos a Assuão!

Senhores do norte,
Em Agosto resiste-se melhor à melancolia
Do entardecer
Em África,
Bem como ao medo das escuras câmaras
Da morte,
Na linha do horizonte,
Abaixo do Trópico de Câncer.

Em Abu Simbel,
O verão é ostentação.
Eu prefiro
Os ostraca
Onde o operário
De Deir el-Medina
Falava da sua condição
De produtor, de artesão,
De construtor de túmulos,
De guardador de segredos,
De malandro e de grevista,
De salteador e de ladrão,
De violador de medos
E de barqueiro de Queronte.

Eu sempre achei que esta estação
Não rimava com poesia.
Mas eu não sou o Ramsés Segundo
Nem conheço o caminho irreversível
Para a imortalidade.

Aqui o verão é fértil
Em coisas fúteis
Como o escriba acocorado
Perante o espectáculo risível
Do mundo globalizado.

Na terra prometida do pão e do mel
Tenham cuidado, meus senhores,
Com os vegetais,
Bebam águas minerais,
Levem dimicina e ultralevure
Por causa dos desarranjos intestinais.
- E o vírus do Nilo ? É mortal ?
- Descanse, minha senhora,
Que o barco tem escolta policial.


Na Ilha Elefantina
Não há manicure,
Há apenas pessoas inúteis
Que adoram subir aos píncaros do verão.
De camelo.
- Sobretudo não tome uísque
Com gelo,

Pode ler-se numa tabuleta
À beira do lago Nasser.
- Meus senhores, estamos em África,
'Be careful'.


Aqui o verão é, por excelência,
O paraíso com o ocre
Como pano de fundo.
O verão é uma casa de adobe
E uma esteira no chão
E os altos muros do deserto
Estrangulando o fio de água da vida.
- Ah, o nascer e o pôr do sol,
Não esquecer de desfrutar
O deus-sol.

Porque o verão no Egipto
É a rosa do mundo.
O misticismo. A demência.
Os calores de Santa Teresa d’Ávila
Em trabalho de múltiplos orgasmos.
No Vale dos Reis.
E das Rainhas.
E dos Nobres.
Esqueçam, por favor,
A mastabas dos pobres:
- Não vêm nos roteiros turísticos!

O verão é o sexo distendido.
O músculo relaxado.
A alma em carne viva.
A praia. O creme Nívea.
O postal ilustrado.
A alegre promiscuidade
Dos cinco sentidos.
O Cairo em três dimensões.
O meu gin tónico com limão.
A carne em decomposição.
O desastre humanitário.
Mais ao fundo a Núbia, o Sudão.
Os dóceis núbios.
As volúpteis núbias.
A tragédia de Darfur.
A louca montanha russa.
O bazar.
A dança do ventre
Dançada por travestis, canastrões.
A mesquita de alabastro.
O mítico mar vermelho.
A Sagrada Família.
Jesus, Maria e José.
O burrinho puxando a nora.
A felicidade a preço de saldo.
O exotismo com molho de bechamel.
O oásis no deserto.
Todos os estereótipos do mundo.
- Tirem uma fotografia digital.
Da varanda do hotel Marriott.

Gostaria de apresentar uma reclamação,
Por escrito, ao senhor vizir:
- Eu estive em Abu Simbel
E experimentei as dificuldades
Da comunicação humana.

O verão é o Vale do Nilo
Um gigantesco falo
Que penetra, fundo,
A terra árida e seca
Da Mãe África.
Gretada, a terra, a carne.
- White women, carne branca.
I Egiptian man, fertility man.
Portugal ? Good, Luís Figo.


Do alto da mesquita de Najaf,
Mais acima no mapa do corpo humano,
Diz o guia, o nosso guia,
Com o coração sangrando
De dor
Pelos seus irmãos,
Xiitas, sunitas, ismaelistas;
Ou do alto das pirâmides de Sakara
Há um imã que te notifica
Por carta registada com aviso de recepção:
- Que a vida eterna te chama
E exige a mortificação, a mumificação.


Recebi hoje correio de Lisboa
Onde a fertilidade da futilidade
É agora um problema de saúde pública.
Um osso duro
De roer.
Tão duro como o granito de Assuão
Donde sopra o vento que modela
O rosto das esfinges.

De Lisboa ao Cairo
Ergo o templo do futuro
Com paragem técnica em Luxor
Para consultar os arquitectos da eternidade.
A antiga Tebas, a cidade das cem portas,
É hoje um pequeno burgo.
E o meu guia, egípcio, brasileiro,
Diz que tem o coração a sangrar.
Marcos chora pelos seus irmãos
De Najaf, no Iraque,
E confidencia:
- Eu nunca poderia trabalhar
Para os meus inimigos e vizinhos de Israel.
Por muito dinheiro que me pagassem.


Tenham santa paciência.
Os pobres. Os diabos.
Os pobres diabos.
Os santos. Os turistas.
Os contribuintes.
Os camponeses.
Os escribas.
Os guias turísticos.
Os romancistas policiais.
Os arqueólogos.
Os caçadores de tesouros.
As esposas dos ricos homens de negócios das arábias.
Os sacerdotes do templo de Kom-Omb
Que eram carecas.
- E sobretudo os pobres.
Porque deles será o reino da terra.


Pobre planeta, sem rei nem roque.
E com tantos súbditos.
Por favor ponham a escrita em dia.
Pesem a alma.
Meçam as bolsas.
Leiam o Livro dos Mortos
Ou A Morte no Nilo,
Que o barco vai zarpar.
- Um oiro um oiro, amigo.
Para o Habibo.
E para o camelo do Habibo.
Óscar, de seu nome.


E o Estado garante
Que não pode ser,
Que não pode mais no futuro
Garantir que é Estado.
E muito menos Estado-Providência.
E pagar o leitinho às criancinhas.
E o funeral aos velhinhos.
E a múmia do faraó.
Deixem isso às madraças
E à caridade em tempo de Ramadão.

Resta-nos a Alta Autoridade do Nilo
Que regula os influxos
E os defluxos dos deuses.
E a exploração do trabalho infantil
Nas escolas-fábricas de tapeçarias
Em Memphis.

Na verdade,
O verão é apenas uma estação.
De comboio.
Do comboio de via estreita
Que vai do nascer ao morrer.
Ou quem diz estação
Diz cais. De chegar. De apodrecer.
Como esta falua do Nilo à beira Tejo
Que é o rio que passa à minha porta.

Sexta-feira, treze
De Agosto.
Dia de azar,
Quer queiram, quer não.
A indústria do lazer, aposto,
Vai ser o principal foco de infecção
Neste pico de verão.
Tenham cuidado com o cão
E com a maldição
Do Faraó Tutankamon.

Morreu a indústria dos metais pesados,
Viva a indústria do lazer.
Leve. Ecológica. De terceira vaga.
Com homologação.
Com certificação.
Com acreditação.
Com exemplos de boas práticas.
Com análises de custo/benefício.

Graças ao lóbi da qualidade
O mundo vai bem melhor.
Que a vida é dura.
E o que a gente faz para ganhá-la.
Como o búfalo que pasta
Nas margens do Nilo.
Como qualquer búfalo domesticado
Depois de trabalhar o dia inteiro
Para o seu suserano,
O camponês egípcio.
Que por sua vez alimenta
O Faraó e as suas esposas e concubinas,
O seu exército, a sua polícia núbia
E a legião de escribas
Que têm o monopólio da escrita.
E do saber.
E os engenheiros da barragem de Assuão.

Hoje as partes pudendas,
A zona púbica,
A coisa pia
Do Portugal contemporâneo
Vai ser matéria de alto relevo
Na televisão.
Diz o Eça, o escriba acocorado,
Em missão de reportagem
Na inauguração do Canal do Suez.

Já não temos rei.
Nem o tique aristocrático
Do beija-mão.
Nem o Conde de Burnay
Nem faraó. Nem deuses. Agora é
A república quem mais ordena.
Senão popular, pelo menos populista.
A coisa pia mais fino
No Portugal pequenino
Mas democrático.

Imagino.
Sem imagem nem voz.
Porque estou em férias
Num cruzeiro do Nilo.
A observar o elegante voo da garça.
- Onde estará o pelicano ?
E a cegonha preta ?
E os filhos ilegítimos do povo ?


No barco não apanho
A RTP, felizmente de todos nós.
Nem sei se o Porto perdeu na supertaça
E o Obikwelo ganhou
A medalha de prata dos 100 metros
Nas Olimpíadas de Atenas.
- Turco, grego, tunisino ?
Espanhol, italiano, palestino ?
- Não, português !
- Ah!, Portugal, Luís Figo! Compra, amigo.
- Quanto, quanto ? Dez nove oito sete seis cinco.
Quatro três dois, um!
- É só um oiro, amigo.
Que o Habibo tem fome mais o camelo.


Maria do Patrocínio
Minha avó materna.
Lembrei-me de ti, Tia Patxina.
Patxina, de alcunha,
Uma alcunha tão terna,
De ressonâncias bascas.
Nunca foste rainha,
Nunca te chamariam Hatshepstut,
Nem te construiriam o templo
Mais belo do mundo
Na aldeia do Nadrupe.
Morreste cega,
Sem hieroglifos gravados na estela,
Tia Patxina,
Apalpando os netos
O cabelo a cara.
E não te mumificaram
Nem muito menos te operaram
Que no teu tempo
As obras de misericórdia
Eram sete espirituais
E sete corporais.
Como no Egipto dos faraós.
Como as pragas do Egipto.
Como nesta triste aldeia núbia
Que é uma espécie de reserva dos índios
Cá do sítio.
Com crocodilos de plástico
E pretos garanhões de olhos verdes.
E onde há uma velhota
Cega como tu, minha avó,
Que vende bugigangas pró turista.

De Assuão a Luxor
Eu gostaria de ter escrito
Um poema sobre os meus estados de alma.
Tão contraditórios que se anulam.
A verdade é que encontrei aqui
Um povo afável.
Mas que me adianta o pedigree
E os cinco milénios de civilização
E o templo de Edfu
Se nada nudou na minha condição
De burro carrejão ?

Sopra o vento dessecante.
Estou em Assuão.
Nos píncaros do verão.

Egipto, 22-28 de Agosto de 2004.
Portugal, verão de 2004.
Revisto em Setembro de 2007.

Publicado originalmente em 7 de Outubro de 2005 > Luís Graça > Blogpoesia  
______________


Nota de L.G.:


Último poste desta série > 9 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7749: Blogpoesia (111): Enquanto vir a palavra Guiné num braço tatuada... (Jorge Cabral)

Guiné 63/74 - P7771: Memória dos lugares (136): Bedanda vista por António Teixeira, ex-Alf Mil da CCAÇ 6 (1971/73) (1)

1. Mensagem de António Teixeira* (ex-Alf Mil da CCAÇ 3459/BCAÇ 3863 - Teixeira Pinto, e CCAÇ 6 - Bedanda; 1971/73), com data de 11 de Fevereiro de 2011:

Boa noite
Cá vão mais algumas fotos daqueles tempos idos, tirados "nha terra di no parente"

Sendo Bedanda uma localidade fácilmente acessível por via marítima, sobretudo graças aos caudais dos rios Cumbijã e do seu afluente Ungauriuol  (creio que é esta a forma correcta de se escrever, ou pelo menos é assim que aparece na carta militar), e que inclusivamente tinha um pseudo cais com acesso ao povoado, era natural que esse recurso fosse utilizado quer para reabastecimento da população e do aquartelamento, quer para escoamento dos produtos da terra, que praticamente se resumia à bianda.

Também era usado como meio de transporte para a população de e para Bissau.
Esse abastecimento era efectuado uma vez por mês, e o dia da chegada dos barcos era feriado local, ou dia de ronco como eles diziam.
Claro que um comboio marítimo de tamanha envergadura (ainda eram quatro ou cinco barcos civis), tornava-se absolutamente indispensável uma escolta que era efectuada pelos Fuzileiros Navais com as LDM's e com alguns sintexs.
Assim, quer no dia da chegada, quer no dia da partida, era também necessário um patrulhamento às margens do rio, para a segurança do comboio, patrulhamento esse que estava a nosso cargo, havendo também segurança aérea.

E preciso também referir que Bedanda estava dividida em dois polos distintos (geográficamente falando), estando a nascente o aquartelamento da CCaç 6 e uma tabanca, e a poente a povoação com duas ou três casas comerciais que disponibilizavam à povoação alguns géneros alimenticios, assim como diversos materiais de construção. No meio desses dois polos, estava a pista de aviação. De referir que no polo a poente existia um destacamento de um pelotão da companhia, e era por isso que todos chamávamos a esse local, o Pelotão. Era precisamente junto ao Pelotão que os barcos atracavam e onde se mantinham durante os quatro ou cinco dias necessários para toda essa operação.

As fotos que vos envio hoje são todas relativas ao que aqui está exposto.

PS: - Creio que neste caso não será necessário legendas para as fotos.
No entanto gostaria só de salentar que na foto B144 está o "Pelotão", onde se pode ver algumas das casas comerciais.
Na foto B37 estou eu e o meu grupo depois da chegada do patrulhamento aos barcos. Atrás de mim está o sempre fiel Aliú Djaló, que nunca me largava e na ponta esquerda, em pé, o Cabo Fernando, um dos melhores guerrilheiros e pisteiros que conheci (era práticamente o meu braço direito).
Na B105, quem aparece em primeiro plano é o cabo enfermeiro, que lamentávelmente não me lembro o nome ( se alguém me puder ajudar).
Na foto B114, ao meu lado (lado esquerdo na foto) está um Furriel do meu grupo que também não me lembro o nome. Sei que é de Setúbal (aparece novamente na foto B115). O outo é o cabo das transmissões. Na foto B119 pode ver-se bem a protecção aérea.

Um grande abraço para todos
António Teixeira



Localização de Bedanda. À esquerda da figura, na direcção Norte/Sul, situa-se a estrada Catió/Buba.

Foto B8

Foto B9

Foto B11

Foto B37

Foto B105

Foto B106

Foto B107

Foto B108

Foto B109

Fotos: © António Teixeira (2011). Direitos reservados.

Nota do editor:

Em próximo poste serão publicadas as 9 restantes fotografias enviadas pelo camarada António Teixeira, referenciadas na sua mensagem.
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 6 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7732: Memória dos lugares (134): Algumas fotos da minha breve passagem pelo Pelundo (António Teixeira)

Vd. último poste da série de 10 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7761: Memória dos lugares (135): Bedanda, do tempo da malta da CCAÇ 6 - 1972/73 (2) (Vasco Santos)

Guiné 63/74 - P7770: Tabanca Grande (267): Os 4 magníficos da CART 1690: Alfredo Reis, António Moreira, Domingos Maçarico e A. Marques Lopes


Lisboa > Jantar de Natal 2007 > Os quatro magníficos da CART 1690, todos eles alferes milicianos... Ao fundo, estão o Domingos Maçarico, à esquerda, e o Alfredo Reis, à direita. Em primeiro plano, está o António Moreira, à esquerda, e o António Marques Lopes, à direita. Pela colaboração com o nosso blogue, o Alfredo Reis e o António Moreira já há muito que deviam figurar na lista dos membros da nossa Tabanca Grande, a partir do histórico A. Marques Lopes e do Domingos Maçarico... Esse lapso já foi corrigido, fazendo-se justiça... Comos quatro agora juntos, a CART 1690 faz o pleno em matéria de alferes milicianos... (LG)


Foto: © A. Marques Lopes (2007). Todos os direitos reservados.


1. Volta aqui a reeproduzir-se a mensagem, de Janeiro de 2008,  do nosso querido camarigo  A. Marques Lopes, ex- Alf Mil At Inf, CART 1690 (Geba) / CCAÇ 3 (Barro) (1967/69) (*): 


Caros camaradas:

Tenho-vos falado muitas vezes da CART 1690, sobre a qual há alguns postes no blogue da Tabanca Grande. Já fiz também referência aos alferes que por ela passaram. Mas quero, agora, falar-vos mais em pormenor destes gloriosos alferes, que é como nós próprios nos designamos, porque a nossa glória é continuarmos juntos. É bom que os conheçam pessoalmente. Aqui estão eles, num jantar do Natal de 2007, em Lisboa:

(i) O Domingos Maçarico (ainda um parente afastado do Luís Graça...), nascido na Praia de Mira, é engenheiro agrónomo e membro da Administração do Grupo Espírito Santo;

(ii) o Alfredo Reis, de Santarém, é veterinário e está reformado (embora pratique ainda);

(iii) o António Moreira, de Idanha-a-Nova, é advogado em Torres Vedras e [fez parte, no triénio de 2008/2010] do Conselho Geral da Ordem dos Advogados;

(iv) o A. Marques Lopes é, como sabem, coronel reformado [, fazendo parte dos primeiros cinco primeiros membros da nossa tertúlia, hoje Tabanca Grande: eu, o Sousa de Castro, o Humberto Reis, o A. Marques Lopes e o David Guimarães, por esta ordem cronológica]...

Como todos, também temos a nossa história.

Jovens e estudantes - o Domingos Maçarico no, então, Instituto de Agronomia de Lisboa (conheceu lá o Pepito), o Alfredo Reis no Instituto de Veterinária de Lisboa, também assim chamado então, o António Moreira na Faculdade de Direito de Lisboa e o A. Marques Lopes na Faculdade de Letras de Lisboa - fomos apanhados para frequentar, em Janeiro de 1966, o Curso de Oficiais Milicianos,  em Mafra.

De lá saímos, em Julho desse ano, como Atiradores de Infantaria. Andanças por vários lados, a seguir (Lamego, Amadora...), e tornámos a encontrar-nos no RALIS (Regimento de Artilharia de Lisboa), que nos mobilizou para a Guiné, a 4 de Dezembro de 1966.

De 6 de Dezembro deste ano a 23 de Fevereiro de 1967 estivemos no GAGA2 (Grupo de Artilharia Contra Aeronaves n.º 2) a dar a especialidade aos soldados da que foi designada CART 1690, e que foram connosco para a Guiné.

Passámos, depois, pelo RAC (Regimento de Artilharia de Costa) de Oeiras, Carregueira, IAO... e embarcámos em 8 de Abril. Mas, antes, grandes patuscadas e farras tivemos juntos nos bares e baiúcas de Lisboa, acompanhados pelo capitão da companhia, o Guimarães [morto aos 29 na estrada de Geba-Banjara ...] Nessa fase cimentou-se a nossa amizade.

Desembarcados do Ana Mafalda  para LDG, começou a Guiné, rio Geba acima. E ficámos em Geba. Eu fiquei na sede da companhia, às ordens do capitão e do Comando do Agrupamento. Eles foram distribuídos pelos destacamentos, por onde também passei, mas por pouco tempo. Já há coisas no blogue sobre Geba.

Em 21 de Agosto de 1967, fui ferido na estrada de Geba para Banjara e fui, uma semana depois, evacuado para o HMP, em Lisboa. O Domingos Maçarico foi ferido em 21 de Setembro de 1967, sendo igualmente evacuado para o HMP. O Alfredo Reis foi ferido na mesma altura, mas esteve apenas vários dias no hospital em Bissau. O António Moreira nunca foi ferido. Ele e o Reis estiveram sempre na companhia, em Geba e destacamentos, até Outubro de 1968.

O Maçarico não voltou à Guiné. Eu voltei em Maio de 1968, mas fui colocado na CCAÇ 3, em Barro.

Depois da minha evacuação para o HMP, fui substituído na companhia pelo alferes Fernando da Costa Fernandes, que foi dado como desaparecido em campanha em 19 de Dezembro de 1967, durante a operação Invisível em Sinchã Jobel: O alferes Fernandes foi, depois, substituído pelo alferes Carlos Alberto Trindade Peixoto, que foi morto em 8 de Setembro de 1968, durante um ataque ao destacamento de Sare Banda.

O Domingos Maçarico, depois de evacuado, foi substituído pelo alferes Orlando Joé Ribeiro Lourenço. Este voltou à metrópole são e salvo, mas nunca alinhou, nem nos encontros da companhia.

Somos nós os quatro, os sobreviventes, como também dizemos, que nos mantemos unidos entre nós e com os elementos da companhia. Com alguns intervalos, e eu explico a seguir.

Entre 1969 e 1974, os meus amigos e camaradas que estão comigo na fotografia, dedicaram-se a acabar os seus cursos e, depois, à vida pofissional, mantendo, embora, contactos entre si. Mas eu estive afastado deles durante esses anos, pois decidi afastar-me de qualquer actividade normal e pública, não os podendo contactar (é outra história que não cabe aqui).

A seguir ao 25 de Abril, foi o Maçarico que esteve afastado, pois acompanhou a família Espírito Santo quando eles foram para o Brasil. E, nesses primeiros anos após a revolução, também eu andei afastado, devido ao meu empenhamento nessa fase.

Mas, passado tudo isso, há cerca de trinta anos que estes quatro ex-alferes, camaradas e amigos na Guiné, e antes dela, se encontram pelo menos quatro vezes por ano, além dos encontros da companhia. Temos ideias muito diferentes sobre certas coisas, cada um disparando, agora, para seu lado, mas a amizade cimentada na juventude e na guerra mantém-se e está acima de tudo.

Queria dizer-vos isto, porque penso que, no nosso blogue, deve-nos unir o que vivemos e passámos, e vão a amizade e a compreensão.

Abraço

A. Marques Lopes




Letra da canção vencedora do Festival da Canção RTP, em 1967, interpretada por Eduardo Nascimento... Na CART 1690  (Geba, 1967/69),  tão duramente castigada pela guerra, cultivava-se a irreverência e o humor negro... Este documento, que me foi enviado, pelo A. Marques Lopes, é um bom exemplo do humor de caserna...

Fonte: © A. Marques Lopes (2007). Todos os direitos reservados.


2. Comentário de L.G.:

Meu caro António: Preciso dos endereços de e-mail dos nossos novos camarigos... A actualização da  lista de membros da nossa Tabanca Grande, com a inclusão dos seus nomes, é um acto de justiça que peca por tardia... Mas quero que todos saibam quanto eu aprecio este exemplo, raro, de 4 amigos que se transformaram em camarigos e que continuam a juntar-se, todos os anos, tendo a Guiné como traço de união, e cuja camarigagem resiste aos altos e baixos da vida e supera as naturais divergências de opinião,  político-ideológicas ou outras, que possam existir (e existem) entre eles... Um Alfa Bravo do tamanho do Rio Geba para vocês quatro.
 ___________________

Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 10 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2424: Álbum das Glórias (37): Os alferes da CART 1690 ou uma estória de amizade e camaradagem a toda a prova (A. Marques Lopes)


Último poste da série > 9 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7747: Tabanca Grande (266): Nuno Dempster, autor do poema K3, agora publicado em livro, ex-Fur Mil SAM, CCAÇ 1792 (Saliquinhedim/K3, Mampatá, Colibuía e Aldeia Formosa, 1967/69)

Guiné 63/74 - P7769: Notas de leitura (202): Política Cultural Portuguesa Em África O Caso da Guiné-Bissau, de Mário Matos e Lemos (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Fevereiro de 2011:

Queridos amigos,
Importa reconhecer a experiência de Mário Matos e Lemos no domínio cultural e o seu profundo conhecimento do meio, na Guiné-Bissau é indissociável a leitura do sociocultural com o sociopolítico. Profundamente atento à lógica de funcionamento do PAIGC parece, no entanto, que ele não confere importância à real assunção do poder militar a partir dos anos 80.
Foi um poder que se autonomizou e que hoje é o maior perigo para a democracia guineense.

Um abraço do
Mário


O conflito político-militar de 1998-1999, segundo Mário Matos e Lemos

Beja Santos

Jornalista, colaborador televisivo, conselheiro de imprensa em Roma e Moscovo, conselheiro cultural e director do Centro Cultural Português de Bissau entre 1985 e 1998, Mário Matos e Lemos, como se escreveu anteriormente, dedicou um livro à política cultural portuguesa em África, analisando única e exclusivamente a Guiné-Bissau (edição de autor, 1999). Acontece que no termo desta obra Mário Matos e Lemos procura dar uma explicação para os acontecimentos em torno do golpe militar de Junho de 1998.

Conhecedor das realidades políticas, observador qualificado das realidades da Guiné-Bissau, o que escreve é digno de ponderação e deve ficar exarado como análise da melhor bibliografia desses acontecimentos.
Começa por referir, em pano de fundo, o descontentamento da população e particularmente dos antigos combatentes, cada menos mais marginalizados e triturados pela carestia de vida. Dentro desse esforço de análise, comenta que a história do PAIGC é também um encadeado de lutas internas, com a desmesura de rivalidades, étnicas, pessoais, acrescendo a psicose do “inimigo interno”, que se expressou nos fuzilamentos em massa. Segundo o autor, o problema das chefias balantas já era notório no I Congresso do PAIGC, em Cassacá (1964) e daí se pode compreender as intentonas e a paranóia da perseguição que conduziram ao “caso do 17 de Outubro de 1985”, com a prisão e depois a execução de altos dirigentes. Este último golpe teria conduzido à união da chefia militar enquanto na sociedade civil se assistia a um processo de liberalização política e à reafirmação de valores ancestrais, como o caso da recuperação dos chefes tradicionais.

Nas eleições legislativas de 1994, o PAIGC teve menos votos que a oposição mas graças ao método de Hondt teve mais deputados; nas eleições presidenciais, Nino Vieira precisou de ir à segunda volta derrotou por escassa maioria Kumba Ialá. A turbulência dos acontecimentos acentuou as divergências dentro do próprio PAIGC, formaram-se duas alas antagónicas capitaneadas por Manuel Saturnino da Costa e Malã Bacai Sanhá, irão ser tempos em que, graças ao aparecimento da imprensa livre, a população irá tendo conhecimento de histórias espectaculares de corrupção, registar-se-ão manifestações violentas de estudantes liceais, com a derrisão do poder Saturnino Costa será demitido, isto enquanto se agravaram os confrontos entre os dissidentes do Casamansa e as tropas regulares do Senegal. Nem o Governo de Carlos Correia conseguiu aplacar a fúria dos antigos combatentes que passaram a reivindicar a moralização do país e insinuaram publicamente que podiam vir para rua para protestar contra a nova classe política que se locupletava com os dinheiros públicos para os seus negócios privados. Assim se chegou à demissão de Ansumane Mané, acusado de estar envolvido no tráfico de armas para o Casamansa, acontecimentos que foram tornados públicos depois da realização do VI Congresso do PAIGC em que as facções estiveram claramente em confronto.

Em Junho de 1998, o brigadeiro Ansumane Mané, fortalecido pelos apoios que recebera por parte dos combatentes, iniciou a revolta que parecia, segundo a opinião dos comentadores, ser-lhe totalmente desfavorável. Apelando à ajuda internacional, Nino Vieira veio dividir os guineenses e introduzir nova perturbação grave no tabuleiro político da África Ocidental, já turvado pelas relações deterioradas entre a Gâmbia e o Senegal, pela interferência dos líbios, pelos desejos hegemónicos do Senegal enquanto os rebeldes do Casamansa apareciam nitidamente em apoio da Junta Militar, isto para já não falar numa Guiné-Conacri que temia consequências internas do descontentamento em Bissau.

Esta análise de Mário Matos e Lemos foi escrita em Outubro de 1998 e a experiência encarregou-se de demonstrar que o mosaico político-militar da Guiné-Bissau era muito mais complexo do que a leitura que ele fez e que as previsões apresentadas não foram sustentadas pelos novos factos.

Com efeito, sendo verdade que o PAIGC entrara numa luta de facções e que se desacreditara aos olhos do povo pela intensidade da corrupção e do clientelismo, não foi menos verdade que o poder militar a partir de 1980 deixou de estar disciplinado pelo poder político, era esta a doutrina de Amílcar Cabral desde a primeira hora da luta: quem decide são os políticos, toda a lógica da intervenção militar é determinada pelos interesses do Estado e não por reivindicações de classe. Por razões históricas, a partir desses anos 80 os antigos combatentes verificaram que a nova classe política não satisfazia nenhuma das suas reivindicações, os quadros técnicos decidiam indiferentes da sorte de todos aqueles que tinham andado na luta armada.

Cavara-se a separação entre os militares e a classe política, hoje claramente pronunciada. O jogo tribal continua a ser muito influente: Nino foi inicialmente um fiel da balança entre as principais etnias, conduziu a perseguição demencial aos balantas, depois, politicamente enfraquecido na opinião pública e no interior do PAIGC, procurou dinamitar o prestígio de Ansumane Mané, numa altura em que o descontentamento militar superava as razões étnicas. Não terá sido por acaso que pela primeira e única vez depois da independência o povo guineense juntou-se agressivamente para derrotar os exércitos estrangeiros. A continuação da degradação económica levou os militares a promoverem os seus próprios interesses e é hoje público e notório que são eles quem beneficiam e quem orientam, maioritariamente, o negócio da droga, neutralizando ou intimidando o governo legítimo.

Os militares em 1998 já constituíam uma coligação corporativa, já desprezavam os políticos e os partidos. É bom não esquecer que Nino Vieira conheceu a sua última vitória aliado a um partido que se sabia ter sido criado pelos narcotraficantes que se juntaram para o efeito. Mas não existe um documento credível quanto a essa aliança nefanda nem se conhece um qualquer estudo sobre os efeitos dessa coligação dos narcotraficantes com Nino, à luz dos acontecimentos dos últimos anos. O que se sabe é que as altas chefias militares ajustam contas entre si como os gangues de Chicago, intimidam notoriamente o poder político legítimo, vivem à margem da lei.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 10 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7758: Notas de leitura (201): Política Cultural Portuguesa Em África O Caso da Guiné-Bissau, de Mário Matos e Lemos (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P7768: (Ex)citações (131): Saudades de quê ?... Será que sou masoquista ?... E por que é que leio o raio deste blogue e até faço comentários? (C. Martins)

1. Do nosso leitor e camarada C. Martins, ex-Alf Mil Art (que esteve em Gadamael),  e que voltou à Guiné duas vezes, como médico e cooperante,  comentário do dia 10 ao poste P7757 (*)

 Eu também não sei... e da juventude... sim e não. Saudades do calor sufocante, da fome e sede, da trinca de arroz com "estilhaços" semanas seguidas, da água da bolanha, das emboscadas e flagelações ao quartel, das minas, da micose, da imbecilidade de alguns com muitos galões nos ombros, da diarreia e do paludismo, do Old Parr que por acaso nunca faltou,...saudades disto.. não,  obrigado. Então porque é que já lá voltei duas vezes... será que sou masoquista?

Olhar para as águas do Corubal no Cheche e lembrar em silêncio os mortos,  limpando discretamente as lágrimas que me corriam pela face, e o gozo, sim o gozo,  que me deu percorrer a picada Guilege-Gadamael ( ex-corredor da morte) e admirar a paisagem sabendo que ninguém me ia dar um tiro... será que sou masoquista?... Acho que não sou...então porque será ?

AH !! E PORQUE QUE É QUE LEIO O "RAIO" DESTE BLOG E ATÉ FAÇO COMENTÁRIOS ? !

Se alguém souber, por favor, diga-me.
C. Martins

[Revisão / fixação de texto / título: L.G.]
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Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 10 de Fevereiro de 2011 Guiné 63/74 - P7757: (Ex)citações (130): A saudade imprecisa de África ou... não sei se tenho saudades da Guiné, se da minha juventude (Nuno Dempster)

(...) Pergunto-me muitas vezes se tenho saudades da Guiné, se da minha juventude. Creio que a juventude é inseparável do cenário real por onde andamos. Com a dúvida de me perguntar, chamo no poema a essa saudade a saudade imprecisa de África. (...)

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7767: Memórias de Mansabá (14): Uma ida ao Morés (Ernesto Duarte)

1. Para as suas Memórias de Mansabá, o nosso camarada Ernesto Duarte (ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67), em mensagem de 8 de Fevereiro de 2011, manda-nos o relato de uma ida ao Morés.


MEMÓRIAS DE MANSABÁ (14)

UMA IDA AO MORÉS

O tempo continua a passar com uma lentidão impressionante, estamos mais frios, mais autómatos, a Companhia foi uma Unidade disciplinada, reagindo em bloco ao mais pequeno sinal, uma pequenina excepção ou outra mas sem significado.

E continuando voltado para Morés, fomos muitas vezes, fazer emboscadas, patrulhamentos, operações ou golpes de mão, capinar a estrada de Bissorâ desde o Morés para Mansabá, provocar porque sabíamos que havia ali tanta gente.

 Localização da tabanca do Morés

É em mais uma ida a Cai, mais uma noite de água e mosquitos, um cansaço enorme, só quem por lá andou (Guiné) faz uma ideia, uma progressão por aquela mata, tão agressiva, um encontro, um potencial enorme mostrado por eles, começávamos a ter a noção que o potencial inicial era sempre mais forte, eles calaram-se começamos a procurar a zona, já de costas para Morés, à direita da Companhia eu e mais meia dúzia de camaradas procurávamos, naquelas tabanquinhas, que formavam a casa de mato, uns tiros, atirei-me para o chão, vi que o mesmo mexia à minha frente e para a minha direita, dei uma volta sobre mim, para a minha esquerda, um individuo que está um pouco à minha frente começa a dizer "acertei-lhe, acertei-lhe, apanhei-o". Levantei-me sem muita pressa, veio um camarada ter comigo dizer-me que tinha as cartucheiras no chão, apanhei-as. Ficámos a olhar, a tentar perceber porque é que as cartucheiras tinham caído, senti assim como que umas picadas do lado direito, joguei a mão e a mesma veio cheia de sangue, aproximaram-se mais uns quantos e chegamos à conclusão de que as cartucheiras tinham sido atingidas e que tinham sido os micro pedaços do carregador que me tinham ferido o lado direito.

Para mim, senti uma sensação muito boa e a necessidade de dizer muitas vezes: obrigado, obrigado.

Já na bolanha de Mansabá, encontrei o Capitão que me disse com aquele ar de militar muito sério:

- Desiludiste-me, nem sabes cair. Quero o auto de abatimento de material feito imediatamente.

Respondi que primeiro ia pedir a minha evacuação.

Morés.  Uma ida em grande.
A Companhia mais um grupo de Comandos e muitos carregadores com imenso material. Ao começar o raiar da Aurora, com a progressão a efectuar-se, a nossa artilharia começa a despejar para a nossa frente, continuamente. Aquele assobio, o rebentamento, e nós vamos, vamos obedientes, cheios de força e fé pela maldita mata, tem-se as caras feridas, a artilharia pára. Estamos numa zona de pequenas bolanhas com muitas cibes, há tiros, muitos, há morteiradas, muitas, mas é preciso retirar. Foi uma coboiada no melhor sentido. Era preciso tirar de lá o IN porque de Bissorã tinha vindo a CCAÇ 1419, e do Olossato a CART 1486, "Os Lobos". Já se tinha repetido antes, nos mesmos moldes, com êxito apreciável. Esta ida parece ter feito grandes estragos também. Ainda se repetiram no meu tempo mais duas ou três vezes, não com tanto aparato, mas com êxitos apreciáveis. Numa delas, Os Lobos capturaram mesmo muito material.

Vou-me voltar para o lado de Manhau.

Tudo isto está intercalado, um dia para Cutia, outro para Bijine, outro para Gendo, e sempre, sempre com intervalos muito curtos.

Cumprimentos
Ernesto Duarte
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 10 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7760: Memórias de Mansabá (2): A bajuda e as colunas para Manhau (Ernesto Duarte)