segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9301: Notas de leitura (319): Milicianos, Os Peões das Nicas, de Rui Neves da Silva (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Dezembro de 2011:

Queridos amigos,
Procurei atinar com a relevante importância do curso para capitães de Julho de 1970, em Mafra, não terei sido muito bem sucedido. O autor gaba-se de como estes capitães milicianos, em muitos casos ardorosos, entusiastas e valentes, podiam ter contribuído para mudar o curso da guerra, era um sangue novo que foi recusado pelos muitos interesses enquistados dos oficiais do quadro permanente, que neste relato romanceado são, regra geral, tratados a baixo de cão. Seria bom ouvir a opinião daqueles que, à época (entre 1970 e 1974) tenham vivido a incorporação, a guerra em África e depois a rejeição dos oficiais do quadro permanente.

Um abraço do
Mário


Milicianos, os piões das nicas

Beja Santos

Em Julho de 1970, cinco dezenas de cidadãos, com idades compreendidas entre os 27 e os 35 anos, e com formação académica superior, foram convocados pelo Ministério do Exército para se apresentarem em Mafra, na Escola Prática de Infantaria. Estes adultos tinham em comum coisas como estas: havia cumprido já o serviço militar obrigatório, estavam numa fase ascendente das suas carreiras profissionais e não eram propriamente aliados do regime. Receberam quatro meses de formação, foram promovidos a capitão e deram-lhes o comando de Companhia, numa das três frentes de combate. Este é o ponto de partida do relato romanceado “Milicianos, os peões das nicas”, por Rui Neves da Silva (Prefácio, 2007).

Com o passar dos anos e o agravar da guerra, tornou-se indispensável o recurso generalizado a estes capitães milicianos para suprir a falta de oficiais do quadro no comando de Companhias. Durante os primeiros anos, eram oficiais do quadro os chamados, e os alferes, seus subordinados, eram milicianos. A narrativa centra-se no papel que eles desempenharam, a contragosto dos oficiais do quadro permanente. São cerca de 700 páginas de um relato que não esconde o excesso, tanto na linguagem rebuscada como na animosidade a muitas figuras do quadro permanente, isto numa atmosfera em que o vinho a mais, a cartilha de Marialva e a solidariedade são omnipresentes. É uma narrativa composta por três livros: a Escola Prática de Infantaria é apresentada como uma fábrica de oficiais; a guerra como uma fábrica de heróis; e a revolução do 25 de Abril uma fábrica de equívocos. Esses capitães milicianos são apresentados como piões das nicas, numa daquelas diatribes carregadas de gongorismo o autor levanta o véu do conflito latente entre o quadro permanente e os milicianos: “Entre os diversos processos de tirar partido do jogo do pião há um que exige dos participantes um forte instinto destrutivo; trata-se de, lançado o pião, procurar não só que ele gire rápido e de forma equilibrada, mas também que, ao chegar ao solo, acerte do pião do adversário que por sorteio jogou primeiro. Acertando, o vencedor ganha o direito de, com o seu pião, nicar o pião do vencido; ou seja, espetar-lhe através de sucessivos golpes o espigão de ferro na zona mais carnuda e frágil, junto à pequena saliência onde o cordel é preso no acto de lançamento”. E, mais adiante, o tenente miliciano diz a um tenente-coronel: “Neste jogo há um processo de o nosso pião perdedor, ou ganhador, não sofrer o menor dano, que é o de um jogador ter um pião bem equilibrado para lançar, um outro de ponta de ferro bem afiada para escavacar o do adversário… e um terceiro, de ponta gasta e de corpo cheio de lanhos, para levar com as nicas. Senhor tenente-coronel, nesta maldita guerra nós somos os piões que levam com as nicas”.

O autor argumenta que estes tenentes milicianos tiveram necessidade de ser exigentes consigo próprios. E para que não haja equívoco sobre a carga autobiográfica, Rui Neves da Silva esclarece: “Foi em Angola que combati. No Leste e no Norte. Orgulho-me de ter feito parte do único Exército do mundo que venceu uma guerra subversiva. Quando saí desta província ultramarina os três movimentos independentistas estavam de rastos”. O leitor é logo emerso no Convento de Mafra, o lançamento das hostilidades é dado pela pergunta do miliciano a um oficial superior: o que vão vossemecês fazer quando a merda da guerra acabar? Depois o autor aprimora-se a identificar a proveniência destes tenentes, como eles se relacionam entre si, as tascas e restaurantes onde se encontram, os engates, as bebedeiras, as zaragatas, as peripécias da instrução, a ansiedade das suas famílias. Quando há palestras, são inevitáveis as ferroadas políticas, os oficiais do quadro permanente são confrontados com a abertura inevitável de diferentes áreas de comando aos milicianos. Há também o diagnóstico do quadro mental e político de cada um, tudo é superado pela franca camaradagem. Alguns deles irão frequentar o Centro de Instrução de Operações Especiais de Lamego e depois colocados nas Unidades de onde partirão para a guerra, à frente da respectiva Companhia.

Partem todos para a guerra, o epicentro narrativo será Angola, Guiné e Moçambique merecerão igualmente referências, praticamente anódinas e desambientadas. Marcelino, filho de D. Diogo Fermões de Pimentel, parte para Bissum, Daniel Cabrita fica em Bissau. São apontamentos frágeis, ao contrário de tudo quanto é escrito sobre Angola, é um desequilíbrio de que toda a obra se ressente, terá faltado investigação que permitisse dar quadros impressivos e ajustados ao que ele descreve sobre o Leste e Norte de Angola. Vão surgindo as baixas, os sinistros, os capitães mantêm-se em contacto entre si e toda a desconfiança quanto ao quadro permanente jamais abranda. Sensivelmente a partir de Março de 1973, os capitães milicianos da tal incorporação de Julho de 1970 começam a regressar. Marcelino tinha morrido heroicamente em combate.

E chegámos ao período revolucionário, o autor descreve minuciosamente a legislação do ministro Sá Viana Rebelo e o descontentamento que ela provocou, como irão ficar acirradas as relações entre os oficiais preparados na Academia Militar e aqueles que o regime de Marcello Caetano pretende que ingressem no quadro especial de oficiais. É deste ângulo que o autor parte para uma crítica demolidora aos oficiais do quadro que confundiram uma reivindicação com as obrigações que deviam ter mantido com ética militar. O MFA, nesta lógica, foi uma maneira de esses oficiais do quadro terem fugido à competitividade com aqueles que tinham ardor e entusiasmo em combater. Esses oficiais foram politicamente manipulados, os comunistas e a extrema-esquerda. Os piões das nicas descobrem o logro em que caíram. Um mestiço que fugira do MPLA e que desertara do Exército português irá abater um oficial miliciano condecorado no dia 25 de Novembro. Aqui termina a narrativa romanceada e dá-se como demonstrado o nefando papel dos militares de carreira em tudo terem feito para impedir os capitães milicianos para não terem sido compensados com igual estatuto ao seu.

Não se percebe exactamente o que levou Rui Neves da Silva a escrever este relato que ele classifica como história romanceada de um punhado de homens que se assumiram como testemunhas de eventos que militares envolvidos na revolução dos cravos e historiadores teimam em calar ou desvirtuar. Não se percebe a dimensão desta conspiração de silêncio e pasma o silêncio do autor quanto ao alferes e tenentes milicianos que, segundo os historiadores, tiveram um papel fundamental na preparação das condições psicológicas que contribuíram para os oficiais do quadro terem chegado à conclusão que todo aquele esforço de guerra era insano na ausência de uma resposta política, quando não se antevia qualquer solução militar, pelo menos da Guiné e em Moçambique.
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Nota de CV:

Vd.- último poste da série de 30 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9288: Notas de leitura (318): Literaturas da Guiné-Bissau, Cantando escritos da história (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P9300: Parabéns a você (361): Carlos Marques Santos, ex-Fur Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69)

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9298: Parabéns a você (360): A nossa novel tertuliana Margarida Peixoto

domingo, 1 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9299: O nosso sapatinho de Natal: Põe aqui o teu pezinho, devagar, devagarinho... (13): Mensagens dos nossos camaradas José Manuel Cancela, António Teixeira, Francisco Palma, Carlos Rios, Manuel Reis, Fernando Barata, Manuel Sousa e Manuel Joaquim

1. Do nossos camarada José Manuel Cancela, ex-Soldado AM da CCAÇ 2382, Bula, Buba, Aldeia Formosa, Contabane, Mampatá e Chamarra, 1968/70:

Caro Amigo Carlos
Um pouco atrasado, mas a época natalícia continua.
Quero deixar aqui os meus votos de um Ano Novo com tudo que há de melhor para todos os ex-combatentes e em especial para os da Guiné, e mais ainda, aqueles esquecidos da sociedade, que lutaram connosco, e não são reconhecidos como tal.

Aqui vai uma recordação do meu segundo Natal na Guiné, este em Safim.
José Manuel Cancela


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2. Do nosso camarada António Teixeira, ex-Alf Mil da CCAÇ 3459/BCAÇ 3863 - Teixeira Pinto, e CCAÇ 6 - Bedanda, 1971/73:


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3. Mensagem do nosso camarada Francisco Palma, ex-Condutor Auto Rodas da CCAV 2748/BCAV 2922, Canquelifá, 1970/72:

Para todos, votos de um Bom Ano Novo 2012, com saúde e felicidade.

Saudações do
Francisco Palma


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4. Do nosso camarada Carlos Rios, ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66:

Para os incansáveis e extraordinários responsáveis do blogue e todos os camarigos alguns dos quais tem feito o favor de ter paciência de ler e enviar os mais entusiásticos e agradáveis comentários aos meus incipientes
escritos e a tudo o mais, aos quais retribuo e agradeço, pois estes momentos e tudo o mais são partilhados por todos nós, envio os maiores desejos do mais maravilhoso 2012 ao encontro dos desejos mais íntimos de cada um.

Bem Hajam!
Carlos Rios


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5. Do nosso camarada Manuel Reis, ex-Alf Mil da CCAV 8350, Guileje, 1972/74:


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6. Mensagem do nosso camarada Fernando Barata, ex-Alf Mil da CCAÇ 2700, Dulombi, 1970/72:

Carlos
Para toda a equipa de editores da Tabanca votos de muita saúde para que possam continuar a desenvolver este genuíno "serviço público".


Abraço
Barata

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7. Do nosso camarada Manuel Sousa, ex-Soldado da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Jumbembem, 1972/74, actualmente Sargento-Ajudante da GNR na situação de Reforma:


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8. Do nosso camarada Manuel Joaquim, ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67:

Vivam, meus caros Luís, Carlos e Eduardo:
Que as vozes destas crianças, na sua força e sua alegria, nos sustentem a esperança e nos dêem alento para continuarmos o caminho rumo a um futuro melhor.
Feliz Ano Novo, para os meus queridos camaradas e para todos os vossos entes queridos!

Um grande abraço
Manuel Joaquim


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9. Mensagem de CV:

Muitos outros camaradas se dirigiram a mim ou ao Blogue utilizando os célebres Power Point's que não são publicáveis, como tal, no Blogue. A todos o nosso muito obrigado pelos votos manifestados, os quais agradecemos e retribuímos.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 30 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9292: O nosso sapatinho de Natal: Põe aqui o teu pezinho, devagar, devagarinho... (12): Cartão de boas festas do Patrício Ribeiro, À sombra do poilão, Cacheu, Dezembro 2011

Guiné 63/74 - P9298: Parabéns a você (360): A nossa novel tertuliana Margarida Peixoto

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 29 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9284: Parabéns a você (359): Luís F. Moreira, ex-Fur TRMS da CCAÇ 2789 (Guiné, 1970/72)

sábado, 31 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 – P9297: Memórias de Gabú (José Saúde) (19): Um poço no mato



1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabú) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série.

Camaradas,




Um poço no mato
Saciando a sede

O calor apertava e não dava tréguas ao guerrilheiro que se depara com a falta de água no cantil. A sede assumia-se como uma necessidade premente. Saciar a avidez era urgente. Por aquelas paragens a ausência do precioso líquido era uma certeza. Olhávamos o terreno, infecundo, e não visualizávamos fontes, tão-pouco bolanhas para uma recarga do pequeno cantil que trazíamos atrelado ao cinturão.

Meu Deus, faça-nos o milagre de um eventual encontro com uma fonte de água! Pensávamos. A caminhada no mato prolongava-se. O pessoal, já com o cantil completamente esvaziado, desesperava. Aconselhava calma. Também eu sentia a necessidade de um reabastecimento. Mais uns quilómetros percorridos e… nada!

Eis que, perante os espaços desalinhados das árvores, pareceu-nos ver uma cultura de milho. Verde! Gritou-me um dos soldados. Associei de imediato que o verde simboliza fresquidão. Fresquidão… água. Estamos safos, pensei.

A surpresa foi quando nos aproximámos do local. Uma criança tirava água de um poço, utilizando uma pequena lata que transportava o líquido do fundo para a superfície. Eureka! Estamos safos, avançou um outro soldado já quase a desfalecer. Nos limites. Barrenta? Não faz mal, comentava um camarada ao lado alertando para a necessidade de colocarmos no cantil o tal comprimidinho desinfectante que matava o mais audaz bicho que porventura ousasse desafiar as nossas gargantas e bexigas.

Curioso foi a amabilidade que a criança nos prestou. Quis ser ele a assumir o trabalho. O caldeirão fez várias viagens ao fundo. Saciámos a sede, enchemos os cantis e toca a andar.

Conhecendo a zona onde prestei serviço – Gabu – não era comum encontrarmos poços no mato. Água, isso sim, havia com fartura nas bolanhas e nos rios. Tanto mais que a Guiné era um território onde a água abundava.

A fonte do Alecrim, na saída da estrada que nos conduzia a Piche, era a nascente de reabastecimento do nosso Quartel.

O calor imenso que nos transportava a socorrer sistematicamente ao cantil para, pelo menos, enxaguar a boca com o líquido e seguir viagem, esgotava-se quase sem darmos por isso. Razão, óbvia, para o desespero. Restava saber sofrer até um possível reencontro com uma fonte de reabastecimento e voltar a acelerar a caminho do objectivo ou para o ambicionado regresso ao Quartel são e salvo.

Saciar a sede era, para todos nós, uma bênção caída do céu quando a ocasião proporcionava momentos de desespero. Recordações que ficaram eternizadas nas nossas memórias guineenses!

Junto ao poço para saciar a sede 
 Milho e humildade, sinais de água! O poço estava ali ao lado.

Um abraço deste alentejano de gema,
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Fotos: © José Saúde (2011). Direitos reservados.
Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: 


Guiné 63/74 - P9296: Blogpoesia (174): Dies irae! (Luís Graça)






Distrito de Viseu, Terras do Demo, Sernancelhe, Santuário de N. Sra. da Lapa, um dos lugares de culto mariano mais antigos da Península Ibérica 








Distrito de Viseu, Terras do Demo, Sernancelhe > Santuário de N. Sra. da Lapa > Sanitários públicos > Grafitos de antigos combatentes da guerra colonial e de outros peregrinos.

Fotos: © Luís Graça  (2011). Todos os direitos reservados

Dies iræ, dies illa!

Dedicado a todos os camaradas,
humilhados,
esquecidos,
abandonados,
ostracizados,
emigrados,
exilados, 
que um dia subiram o portaló
dos Niassa, dos Uíge, dos Ana Mafalda,
a caminho da Guiné,
aquela terra verde e vermelha
que a todos nos marcou,
a ferro e fogo...
sem esquecer os que simplesmente viajaram nos TAM!
Que o ano de 2012,
mesmo de raiva,
seja de coragem e de esperança!
Como os que os anos que passámos na Guiné!

Cavalgam caudalosos os rios
Pela terra adentro,
Enquanto fluem ruidosos
Os dias da guerra.

Rios que não são rios
Mas rias,
Entranhas ubérrimas
Fustigadas pelo vento,
Rias baixas pela manhã,
Pedaços, braços de mar,
Restos de tsunamis,
Pontas de fuzis,
Palavras acérrimas,
Imprecações ao Grande Irã,
Picadas minadas
De ir e não mais voltar.

Dias que não são dias,
Circadianos,
Mas fragmentos,
Ora ledos ora amargos enganos,
Estilhaços de tempo,
Riscos nas paredes sujas dos bunkers,
Repentinas emboscadas,
Breves finais de tarde,
Instantes,
Flagelações,
Balas tracejantes
Sob o céu verde e vermelho
Enquanto o capim arde.

Narciso, reveste ao espelho,
Quebrado,
Vais nu,
De camuflado,
De azul,
Celestial,
Ao encontro do anjo da morte
Em Jugudul.
E não há estrelas
À noite,
Mas a bússola indica o norte,
Sideral,
Nunca o sul,
Nunca o nascer nem o morrer.

Dies irae, dies illa,
Dia de ira, aquele,
Em que subiste o cadafalso do Niassa,
Ou do Uíge ou do Ana Mafalda,
Dias de ira, aqueles,
Os da guerra!
Calai-vos,
Rápidos do Saltinho,
Rápidos de Cussilinta,
Vós que mais não sois
Do que canoas loucas,
Desenfreadas,
Levadas pelo macaréu da nossa raiva,
Entre o Geba e o Corubal.

Braços que não são braços,
Amputados,
Mas apenas tatuagens,
Traços,
Letras de fado pungentes,
Pontes que são miragens,
Tentáculos, serpentes,
Lianas, cortadas pela catana,
A eito,
Pela floresta-galeria,
Inferno tropical,
Túneis, tarrafo,
Bolanhas, lalas, bissilões,
Curvas da morte do Cacheu ao Cumbijã,
Apocalípticos palmeirais,
Pontas de punhais
Cravadas no peito,
Irãs acocorados
No alto dos poilões.

E depois o silêncio.
O impossível silêncio.
O silêncio das partituras,
Das mapas dos argonautas,
Partículas,
Pausas,
Pautas,
Cartas de tiro
Com claves de sol,
Desidratação,
A ogiva do obus,
O medo da avestruz,
O roncar do helicanhão,
Gritos do djambé,
E do macaco-cão,
Gemidos de kora,
Espasmos de balafon,
Rajadas de kalash
Ecos do bombolom,
Bombas de fragmentação
Que correm no dorso dos cavalos
Desde o Futa Djalon.

Não vais poder ouvir o silêncio do Cantanhez,
Nem queres voltar a ouvir o grito da morte 
Outra vez.

Terras do Demo, 27-29 de Dezembro de 2011;
Madalena, Vila Nova de Gaia, 30-31 de Dezembro de 2011

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Nota do editor:

Último poste da série >  17 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9215: Blogpoesia (173): Natal da raiva e solidão (Armor Pires Mota, 1974)

Guiné 63/74 - P9295: Nós da memória (Torcato Mendonça) (4): Ano Novo; Ano Velho e Toca o Mesmo

Quotidiano em Candamã
Foto ©: Torcato Mendonça (Fotos Falantes) 2011. Direitos reservados





1. Em mensagem do dia 26 de Dezembro de 2011, o nosso camarada Torcato Mendonça* (ex-Alf Mil da CART 2339 Mansambo, 1968/69), enviou-nos o segundo texto para publicação na sua série "Nós da memória".





NÓS DA MEMÓRIA
(…desatemos, aos poucos, alguns…)

4 - Ano Novo; Ano Velho e Toca o Mesmo

Passou o Natal de 68.
Com tão grandes festejos, com os calorosos carinhos e as prendas do Pai Natal, estavam as gentes de Mansambo prenhes de alegria.
Até os picadores e seus familiares, mesmo sendo muçulmanos, com os militares estavam solidários.

Só que o trabalho continuava. A guerra não tinha fechado o portão. Esquecimento? Nada disso, os portões só se fecham quando a guerra entra em letargia e pára aqui para começar acolá.
Assim: - em 28 de Dezembro viemos para Bambadinca preparar mais uma louca coluna de abastecimentos ao Saltinho/Xitole. Louca porque era composta por muitas viaturas, civis e militares, passando por estradas e picadas entre Bambadinca, Galomaro, Dulombi, Quirafo, Saltinho e Xitole. A chegada era à noitinha ou já noite e na madrugada seguinte estávamos de regresso. Eram dezenas de quilómetros - itinerário alternativo - para não fazer dezassete entre Mansambo e o Xitole. Não era fuga a portagens, nada disso. Aquele troço de estrada estava encerrado para obras de desminagem e afins. Além disso quando foi aberto levou mais tempo, com tropas por terra e ar. Faltou a Marinha devido ao assoreamento do Galoiel e o Corubal ter uns rápidos em bela e traiçoeira paisagem.

Nesta coluna, de itinerário alternativo, só ia o 2.º GCOMB, mecânicos reforçados, picadores e os militares da Manutenção Militar. Em caso de emboscada respondiam uns, por avaria auto outros e mais outros quanto aos comes e bebes transportados. Tudo ligado mas com tarefas distintas e de preferência sem interferências Era uma maravilha.
O regresso era, se possível, de prego ao fundo.

A 30 de Dezembro já estávamos de regresso a Bambadinca, em trânsito para Mansambo. Para não arrefecer ânimos, no dia seguinte depois de breves preparativos partimos, em visita de cortesia certamente, para a Moricanhe onde estava sediado um Pelotão de Milícia. Visita e salamaleques feitos, regressámos a quartéis.

À noite, a noite de fim do fim de 1968 ou só 68 – assim o relator não parece tão velho – e de entrada em 69 (ano), houve uns tiros e, por acidente na resposta, um militar ficou ferido. Era do 2.ºgrupo. Como era um “faz de tudo” fora destacado para manobrar os geradores eléctricos, de marca Lister, creio eu e alemães. A EDP nada tinha a ver com aquilo e chineses estavam do outro lado daquela barricada. Outras vidas…

O militar foi evacuado no outro dia para Bissau. Nós seguimos para a Tabanca em auto defesa de Candamã.

Lá fomos, naquele primeiro dia de 69, fazer segurança a um pequeno Grupo da Engenharia de Nova Lamego, comandado pelo Furriel Zamite (?). Isto se bem me lembro e as breves notas da agenda estão correctas. Eles iam reconstruir um pontão entre Candamã e Musa Iéro, o pontão da Chanca, que os nossos inimigos de outrora tinha escaqueirado. O outrora fica bem, não fica? Outrora?

Mobilizada a população, sempre os que pagam as crises, para uma ajuda, as moto-serras a trabalhar - perigoso o ruído na mata - o saber das gentes da Engenharia e lá se reconstruiu rapidamente o pontão.

No dia 3 de Janeiro estávamos de regresso a Mansambo, depois de, ainda em Candamã, um militar ter ficado com ligeira queimadura. Acidentes ou azares.
Aí estávamos nós, ao fim da tarde de regresso a “casa”, com correio e roupa lavada à espera.
Talvez nos tenhamos apressado no regresso pois o IN atacou, pelas 20/21 horas, Mansambo. Seria o normal. Este não foi. Provocou um ferido grave e o primeiro morto do nosso grupo. Triste recordação.
Eles certamente tinham ido cheirar a zona do pontão ou foram para a picada Candamã/ Mansambo à nossa espera. Viemos primeiro. Que pena não termos ainda os obuses 10.5. Que pena pois eles certamente gostariam.

No outro dia, já na igreja de Bambadinca (desconhecia aquela construção) assisti à colocação do corpo do meu camarada na urna.
Curioso, talvez não, ainda recordo bem a cena. Logo já continuo. Um café, agora.

No dia seguinte, a 5 de Janeiro, apanhei boleia numa DO para Bissau. Vinha gozar o meu segundo e último período de férias.
Ninguém diria certamente que a “produção” destes militares não era boa.

Perspectivava-se um Bom Ano Novo. Outrora como agora é o que sempre desejamos. Não é? Acredita camarada, acredita pois não há mal que sempre dure.

PARA TODOS UM BOM 2012. O de 69 há muito que se finou.
Vai ser um Bom Ano, este de 2012 e com os Votos do T.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 25 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9265: (Ex)citações (167): Vagomestria(s) (Torcato Mendonça / José Brás)

Vd. último poste da série de 17 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8917: Nós da memória (Torcato Mendonça) (3): Baguera, baguera e Desconforto

Guiné 63/74 - P9294: Blogoterapia (195): Ano Novo de 1970 em Empada (José Teixeira)

Guiné > Região de Quínara > Empada > Outubro de 1973 > A povoação de Empada e, ao fundo, o Rio Empada vistos pela câmara fotográfica do Alf Mil António Graça de Abreu (CAOP 1, Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74)


1. Mensagem do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Enf.º da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), com data de 10 de Dezembro de 2011:

Caros amigos editores
Voltei ao “meu diário” e recolhi este “grito” escrito no dia 1 de Janeiro de 1970.


Ano novo de 1970 – Empada

A felicidade é o supremo desejo de todos os homens. A História não é mais que uma longa e louca aventura dos homens à busca da felicidade.

O homem, na ânsia de atingir a felicidade, esmaga o seu irmão.

A moral diz-nos que a felicidade se constrói com a vida na medida em que nos mentalizamos da nossa missão como seres humanos. Viver a vida em comunidade e agirmos em conformidade. No entanto esquecem-se rapidamente estes princípios morais. Os governantes, responsáveis pelo bem estar do seu povo, guerreiam, ensanguentam, matam. Destroem para atingiram os seus fins. Alegam que buscam a felicidade para o povo, que é preciso sacrificar uns para que outros vivam felizes, enquanto eles vivem nos seus palácios de egoísmo.

Ah! Esses que se arvoram em condutores do povo, que conduzem as guerras dos seus palácios de vidro, se vivessem no seu sangue, no seu corpo, no seu espírito o que se passa nas frentes de batalha!
Se sentissem o sofrimento de tantos que num último esforço, tentam agarrar a vida, no meio de atrozes dores.
Se sentissem a dor os que têm de abandonar tudo o que é seu e fugir, na esperança de escaparem à morte.
Se sentissem a dor daqueles que vêm os seus entes queridos, os seus amigos, ali à sua frente, mortos por uma granada traiçoeira, quando ainda há escassos segundos viviam felizes.
Se sentissem o que é ficar sem uma perna, um braço, ficar inutilizado para a vida e quantas vezes rejeitado pelos seus, como quem deita fora o que já não presta.
Se sentissem o que sente o jovem a quem lhe roubaram os melhores anos da sua vida, a quem atrasaram a sua construção como homem.

O ingrato de tudo isto, é que alegam que se trata de uma causa justa.
O Inimigo também afirma que luta por uma causa justa e que esta justifica a vida e o esforço de todos.
De que lado estará Deus, se ambas as frentes lutam por uma causa justa ?
Dizem que estão dentro da razão e mandam os outros para a frente. Eles não vão. Lá longe traçam os planos, jogam com as vidas, indiferentes ao sofrimento. . .

A eterna busca da felicidade . . .

Pobre homem cego, que procuras a felicidade e julgas que a consegues, esmagando os outros, servindo-te do teu poder. Esqueces-te que a felicidade, não é mais que a construção de ti mesmo, procurando atingir o HOMEM perfeito.

O grande drama do homem é o ser limitado nos seus meios naturais e infinitos nos seus desejos. Procura então por meios anti-humanos conseguir os seus desejos.

Zé Teixeira
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 16 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9213: O meu Natal no mato (34): Empada, 24 de Dezembro de 1969, em tempo de guerra (José Teixeira)

Vd. último poste da série de 18 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9227: Blogoterapia (194): Como é bom não termos dúvidas (Juvenal Amado)

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9293: Tabanca Grande (315): Margarida Peixoto, Professora do Ensino Básico Aposentada, esposa do nosso camarada Joaquim Carlos Peixoto

1. Quem de algum modo está ligado à Guiné, a nós ex-combatentes e tem colaboração publicada no nosso Blogue, tem "direito", se assim entender, a fazer parte do nosso núcleo de amigos que é já bem extenso, felizmente.

Está nesta situação a nossa nova tertuliana, mas já "velha amiga", Margarida Peixoto que aceitou o meu convite pessoal para fazer parte da nossa equipa e que promete colaborar sempre que a ocasião se proporcione.

Quem é Margarida Peixoto e porque está aqui?

Margarida Assunção Oliveira Rocha Ribeiro da Rocha Peixoto é esposa do nosso camarada Joaquim Carlos Rocha Peixoto que foi Fur Mil Inf MA na CCAÇ 3414, Bafatá e Sare Bacar, de 1971 a 1973. Ambos estão aposentados de uma das mais bonitas profissões do mundo, Professor do Ensino Primário.


Esta foto, do nosso camarada Manuel Carmelita, documenta o casal Peixoto num momento de boa disposição durante o Encontro da Tertúlia em 2010.

Encontro da Tertúlia 2011, em Monte Real, Margarida Peixoto com outra das nossas amigas,  a Felismina Costa. Momento captado por Joaquim Carlos Peixoto.

Há muita maneira de participar no nosso Blogue, e a Margarida já deu os primeiros passos, como se pode aquilatar a partir do seu marcador.
Não vamos pedir à nossa tertuliana Margarida que nos conte as suas memórias de guerra porque não as tem, a menos que já estivesse de algum modo ligada ao marido no tempo de tropa ou tivesse outro familiar que cumprisse a sua comissão de serviço na guerra colonial. As nossas mulheres na qualidade de mães, irmãs, namoradas/noivas, madrinhas de guerra e familiares dos combatentes, tiveram o seu combate na retaguarda com a incerteza, a saudade e a dor que sentem de modo diferente. Digo eu que, ao contrário do que está escrito na Bíblia, a primeira mulher (Eva) não foi "feita" a partir de uma costela do homem (Adão), porque todos nós, homens, somos parte de uma mulher, a nossa mãe.

O Peixoto vai permitir, e a Margarida aceitar, o envio de um beijinho de boas vindas em nome da tertúlia.

Em nome dos editores
Carlos Vinhal
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Nota de CV:

(*) Vd. último poste de Margarida Peixoto de 23 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9257: O nosso sapatinho de Natal: Põe aqui o teu pezinho, devagar, devagarinho... (8): Mensagens das nossas amigas tertulianas Felismina Costa e Margarida Peixoto

Vd. último poste da série de 27 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9277: Tabanca Grande (314): António Osório, ex-Fur Mil Rec Inf da CCS/QG (Guiné, 1970/72)

Guiné 63/74 - P9292: O nosso sapatinho de Natal: Põe aqui o teu pezinho, devagar, devagarinho... (12): Cartão de boas festas do Patrício Ribeiro, À sombra do poilão, Cacheu, Dezembro 2011



"À sombra do poilão"... Feliz e apropriado cartão de Boas Festas da empresa Impar Lda e do seu sócio-gerente (*), o nosso tabanqueiro Patrício Ribeiro, mais conhecido em Bissau por "pai dos tugas"... Foto relativa à inauguração de uma maternidade no Cacheu, em Dezembro de 2011...

É o postal de boas festas que o Patrício, há mais de um quarto de século a trabalhar e a viver na Guiné-Bissau, nunca se esquece de mandar à malta que se acolhe debaixo do poilão, secular, protetor, mágico, multicolor, fraterno, solidário, plural e tolerante,  da nossa Tabanca Grande!

Recorde-se aqui a história de vida deste ex-grumete fuzileiro, natural de Águeda, mas criado em Angola...

Obrigado, Patrício! Bela mensagem!... 


Que o ano de 2012 seja bom para ti, para a tua empresa, para os teus projetos e negócios, para a tua família e para todos os nossos amigos da Guiné, do Cacheu a Tombali, são os votos dos tabanqueiros deste lado de cá!... Levas um poste com capicua (9292) para te dar boa sorte, e para que os bons irãs te protejam. (LG) 

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Notas do editor:

(*) IMPAR Lda

Av. Domingos Ramos 43D - C.P. 489 - Bissau
Tel / Fax 00 245 3214385, 6623168, 7202645, Guiné Bissau
Tel / Fax 00 351 218966014 Lisboa

www.imparbissau.com
impar_bissau@hotmail.com

(**) Último poste da série > 25 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9268: O nosso sapatinho de Natal: Põe aqui o teu pezinho, devagar, devagarinho... (11): Mensagem do nosso camarada Hélder Sousa.

Guiné 63/74 - P9291: Facebook...ando (14): João José Alves Martins, ex-Alf Mil PCT (BAC1, Bissau, Bissum-Naga, Piche, Bedanda, Gadamael, Guileje, Bigene, Ingoré, 1967/70)




Foto nº 1



Foto nº 2 


Foto nº 3


Foto nº 4


Foto nº 5

Guiné > Álbum fotográfico do ex-Alf Mil PCT João José Alves Martins (1967/1970)... De total de cerca de duas centenas magníficas fotos da Guiné (obtidas a partir de diapositivos), e que estão disponíveis no mural da sua página no Facebook, tomámos a liberdade de selecionar, editar e publicar 5, numeradas de 1 a 5... Com a devida vénia, ao autor, bem entendido.


Aqui vão as legendas: Na foto nº 1, temos o nosso artilheiro no BAC1, em Bissau, em 1967; na foto nº 2, posando junto aos obuses 8.8 cm, no BAC1; na foto nº 3, vemos uma série e obuses 10.5 cm; na foto nº 4, três peças de artilharia 11,4 cm (vulgarmente confundidas pelos infantes com os obuses 14), aguardando embarque para o interior na Guiné; e, por fim, na foto 5, pode ver-se o difícil transporte, em picada, de uma peça 11.4, a caminho de Nova Lamego...

Fotos: ©  João José Alves Martins  (2011). Todos os direitos reservados.


1. João José Alves Martins, residente em Lisboa,  é um dos nossos mais recentes amigos do Facebook (Tabanca Grande, Luís Graça, Guiné).  Ele próprio se apresentou, ontem, nestes termos:


Agradeço terem aceitado o meu pedido de amizade. A Guiné e os portugueses guineenses, porque a Guiné era território português quando a conheci, ficaram-me no coração. O meu testemunho vale o que vale, mas porque o que se pretende com esta página é precisamente a junção de testemunhos, independentemente de opiniões políticas ou religiosas que todos temos, não posso excluir-me de dar o meu, até porque em minha opinião é muito rico.

Entrei no COM em Mafra, em Janeiro de 1967, era o soldado-cadete nº.003251/65. No 2º trimestre tirei a especialidade PCT [, Posto de Controlo de Tiro,] em Vendas Novas, no 3º trimestre fui colocado no RAP 3, na Figueira da Foz, onde estive até embarcar já como Alferes Miliciano de Artilharia, no navio Alfredo da Silva, juntamente com outros dois alferes, rumo a Bissau, onde chegámos em 19 de Dezembro de 67. 

Na Bataria de Artilharia de Campanha [BAC] nº 1, unidade de recrutamento da província com cerca de 25 pelotões de soldados de todas as etnias, espalhados por muitos dos aquartelamentos do território da Guiné, fomos recebidos pelo Comandante da Unidade, um capitão do quadro, que, depois de nos ter perguntado quais as nossas pretensões, em que eu resolvi solicitar as férias em Agosto, na Metrópole, para poder gozá-las na praia, me mandou vestir o camuflado e informou-me que estava um pelotão com três obuses 8,8 numa LDM com destino a Bissum-Naga, à minha espera. 

Era quase Natal e as duas operações programadas foram designadas por "Bolo Rei" e "Cavalo Orgulhoso". Em Bissum, era frequente entrarmos em acção, inclusivamente durante a noite, pelo que dormia com o camuflado vestido, eramos atacados com alguma frequência, flagelação que também incluía a povoação que tínhamos que defender.

Em Julho [de 1968], vim de férias, e no regresso deram-me um outro pelotão, agora com três peças 11,4 rumo a Piche. Passámos por Bambadinca, Farim, Nova Lamego e finalmente Piche, que foi o único aquartelamento onde não conheci a dureza dos combates e onde se estava relativamente bem o que me levava a aventurar-me, passeando "inconscientemente e perigosamente" pelo interior da Guiné, mas contactando populações extremamente amigáveis, como são os fulas e os futa-fulas. 

Nada indicava haver perigo no contacto com as populações. Mas ele era real porque havia um grande esforço de "mentalização e educação" com o objectivo de virar as populações contra os portugueses por parte do PAIGC. Era mais do que óbvio, a excelente acção que os nossos missionários desenvolveram na medida em que as populações sempre nos receberam de braços bem abertos, o que, segundo melhor opinião, ainda deve acontecer nos dias de hoje, apesar de toda a propaganda soviética e americana através do KGB e da CIA, durante a "Guerra Fria" em que se confrontavam pela influência e maior domínio à escala mundial, no seu esforço imperialista e expansionista. 

Também é verdade que os portugueses, noutras eras, em que os valores os tornavam unidos e fortes, se lançaram numa grande e valorosa expansão, enfrentando grandes perigos, e "edificaram" um grande império. Mas eram homens de outra têmpera e com outros valores e sentido da Pátria. Que, conforme alguns afirmam, nos dias de hoje, se encontra à venda. Talvez os chineses a queiram comprar... 

Depois de umas férias, mandaram-me para Bedanda, onde se encontravam um pelotão com três obuses 14 e a Companhia de Caçadores 6, do recrutamento da província, pelo que éramos uma dúzia de brancos a conviver com centenas de africanos, distribuídos por, um pelotão de artilharia, uma companhia de naturais da província e todo um aglomerado de africanos que tínhamos o dever de defender.

De Bedanda, partimos para Guilege em LDM, com desembarque em Gadamael Porto, onde, no rio Cacine, cheguei a tomar umas ricas banhocas, e recordo a simpatia extrema daquela população. Na verdade, senti em muitos guineenses uma maneira de ser e de conviver que gostaria de encontrar em alguns portugueses com responsabilidades políticas e com a responsabilidade da governação, mas que estão muito longe de estarem à altura das suas responsabilidades e, muito menos, com o discernimento necessário à defesa da nossa pátria.

Seguiu-se Guileje. Foi o local que mais me custou. O morteiro 120, fazia tal barulho que impunha muito respeito. Aliás, quando cheguei, observei uma flecha de um obus que tinha sido partida por uma morteirada. Impunha respeito.

No final da minha comissão ainda conheci Bigene e Ingoré no norte da Guiné, junto ao rio Casamança. Foram uns locais com perigo assinalável, mas, para além disso, bastante agradáveis.

Regressei à Metrópole em 1 de Janeiro de 1970, tendo passado três Natais e três fins de Ano na Guiné que muito me custaram. Agradeço à intervenção Divina o facto de não ter ficado por lá, tantas foram as vezes em que isso podia ter acontecido. O PAIGC chegou mesmo a noticiar na rádio terem-me abatido... 

2. Comentário de L.G.:

Na qualidada de fundador, administrador e editor deste blogue bem como da nossa página no Facebook, compete-me saudar a tua aparição. Tens um currículo impressionante como ex-combatente na Guiné, tendo tu passado por sítios aqui representados por diversos camaradas de diferentes épocas: Bissau, Bissum-Naga, Piche, Bedanda, Gadamael Porto, Guileje, Bigene, Ingoré... Temos também aqui camaradas com a tua especialidade (que, de resto, eu desconhecia, a de PCT). 

Enfim, deixa-me saudar-te também por outra coisa que temos em comum, o Instituto Superior de Economia (ISE), onde estudei no meu 2º ano da licenciatura de ciências sociais, em 1976/77, antes de seguir para o 3º ano de sociologia do ISCTE. Bom, e já que és um apaixonado por São Martinho do Porto, deixa-me ainda dizer-te que também há uma Tabanca de São Martinho do Porto, filial da Tabanca Grande... (Costuma reunir-se uma vez por ano em Agosto).

Julgo que aceitarás, de bom grado, o convite para integrar este blogue, de que a nossa página do Facebook é uma extensão. A nossa Tabanca Grande tem um conjunto de 10 regras que deve inspirar, mais do que regular, o nosso comportamento enquanto membros desta comunidade virtual de amigos e camarada Guiné. 

Podes lê-las na coluna no lado esquerdo do nosso blogue ou aqui, neste poste, P8588, na série O Nosso Livro de Estilo. São também regras que os editores, autores e comentadores devem respeitar e fazer respeitar no dia a dia. Tarefa que nem sempre é fácil, sabendo-se que no nosso blogue há 3 coisas que não devem entrar em (ou não devem perturbar) as nossas relações: a política (partidária), a religião e o futebol... Refiro-me às nossas, naturais e saudáveis, diferenças  a nível político, filosófico, religioso, étnico ou clubístico... O que nos une é a nossa vivência na Guiné, que conhecemos grosso modo entre 1961 e 1974... 

João, fico aguardar a formalização do teu pedido (neste caso, o pedido para a entrada no blogue).  E até lá desejo-te um bom ano de 2012, com saúde e com motivos para continuarmos, tu, eu e todos nós,  a acreditar nesta terra, neste povo,  neste planeta e nesta humanidade, que são  os nossos... Um Alfa Bravo. Luís Graça
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Guiné 63/74 - P9290: Efemérides (83): A CART 3521 chegou à Guiné no dia 29 de Dezembro de 1971 (Adriano Neto)


29DEZ71 > Chegada a Bissau do navio Niassa - Foto ©: Alferes Miliciano Sá Fernandes CART 3521


1. Mensagem do nosso camarada Adriano Neto (ex-Fur Mil da CART 3521 (Piche) e CCAÇ 11 (Paunca), 1971/74), com data de 29 de Dezembro de 2011:

Caro Luis,

Na nossa vida há dias que jamais esqueceremos, este é um deles.

Camaradas, companheiros e amigos da CART 3521, para os vivos que felizmente são muitos, um grande abraço, aos mortos, que a sua alma descanse em Paz.

Faz hoje 40 ANOS que passámos a integrar o contingente de tropas, no Teatro de Operações da Guiné (CTIG).

No dia 29/12/1971, atracou no porto de Bissau, o navio NIASSA que tinha zarpado de Alcântara no dia 22/12/1971, com a missão de fazer chegar a bom porto a CART 3521 e o BART 3873.

Consciente que a memória, pelo tempo passado, poderá não estar muito bem afinada, creio que só tiveram direito a pisar o chão de Bissau alguns graduados, o restante pessoal ficou na área circundante ao porto, a aguardar a entrada para a LDG, que horas depois começou a navegar na direcção de Bolama.

Foi nesta Ilha que celebrámos a primeira das três passagens de ano em Território da Guiné. Periquitos, cheios de medo, aguardámos com ansiedade que a meia-noite chegasse. Penso que não tivemos direito a "rancho" melhorado, muito menos a champanhe.

Ao longe ouvimos rebentamentos, alguém estaria a embrulhar, não me lembro se chegámos a saber onde foi.

Assim foi a nossa chegada à Guiné e os três primeiros dias em terra de guineenses.

Quis ser breve, pois só no fim de jantar tive oportunidade de escrever esta dúzia de palavras.

Um abraço para toda a Tabanca Grande e um 2012 recheado do que mais desejarem.
Adriano Neto
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 14 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9198: Tabanca Grande (311): Adriano Lopes dos Santos Neto, ex-Fur Mil da CART 3521 (Piche) e CCAÇ 11 (Paunca), 1971/74

Vd. último poste da série de 17 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9219: Efemérides (61): A invasão da Índia Portuguesa em 18 de Dezembro de 1961 (José Martins)

Guiné 63/74 - P9289: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (4): Fragmentos Genuínos - 2

FRAGMENTOS GENUÍNOS - 2

Por Carlos Rios, ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66


Retrospectivo agora um acidente marcante e que emocionou toda a gente; um dos condutores da Companhia de Formação e Serviços ao pôr uma GMC em movimento fê-lo no sentido inverso, entalando contra a parede do refeitório um camarada que teve morte imediata; nomeado o Alf. Mil. Pamplona para tratar das formalidades do enterro do jovem, lá fui também nomeado juntamente com mais seis praças companheiros do infortunado. Transportando-nos em duas viaturas uma maior onde ia eu próprio ao lado do condutor, indo na retaguarda em bancos laterais os praças tendo ao centro o caixão vindo atrás um velhinho Willis com um condutor a transportar o Alferes. Deslocámo-nos para o cemitério de Olhão por aí existir uma casa mortuária, aí já se encontrando no exterior os familiares do finado, onde foi feita a autópsia ao corpo, a que o Alferes teve de assistir para vir a elaborar o respectivo auto. Terminada que foi a autópsia, o coveiro que servia de ajudante ao médico, pegou em todos os utensílios cirúrgicos utilizados para o efeito, meteu-os num alguidar de plástico e veio ao exterior para uma torneira existente junto dos familiares, lavar toda aquela parafernalha ensanguentada. Que doloroso foi assistir aquelas manifestações pungentes e revoltadas.

Terminou esta fase ainda com a soldadura do caixão cuja execução digno de ser comparado com um das momentos de Hitchkoc. Aproximou-se a noite e como a casa mortuária não tinha luz, o expedito coveiro (não tinha o olho direito) foi buscar um gasómetro e foi a essa luz que o soldador fez o trabalho. Episodicamente saiam do caixão sopros de ar que digo com franqueza me aterrorizavam. Num dos intervalos que fazia para espairecer, um dos militares que nos acompanhavam, lembrou-me que não tinham jantado, pelo que dando dinheiro a um o encarreguei de ir comprar umas sandes e bebidas. Terminadas que foram estas peripécias arrancámos para Portel, agora levando atrás da viatura em que ia o caixão o carro com os familiares. Os militares aproveitaram a viagem para degustarem a merenda que tinham ido comprar; creio que a mesa terá sido o caixão vindo logo atrás o carro da família.

Participei, de homenagem durante toda a noite junto do desventurado defunto ate é a hora do funeral logo nos alvores da manhã.  A noite estava extremamente fria, não houve por parte de ninguém a oferta nem sequer de um golo de água e muito chegados a Portel, já alta noite, ali mantivemos um sentinela, em que também menos foi dirigida uma palavra. A tropa foi a responsável pela morte do ente querido e nós éramos a sua face. Após o cumprimento do regulamentado protocolarmente com a execução de salvas no acto final, antes do corpo baixar à terra, seriam pouco mais de 8h00, dirigimo-nos ao posto da GNR onde me foi dado assistir a uma cena perfeitamente rocambolesca: o Pamplona fardado com o capote (era bonito) cinzento com as virolas da gola em vermelho entrou no Posto, e provavelmente por ter ouvido barulho, apareceu numa porta lateral um Cabo já quarentão, de camisa da farda e em ceroulas; ficou varado: ainda ameaçou bater a pala, nunca vi expressão tão cómica. O Pamplona lá o fez vir a si pelo que rapidamente se despachou carimbando a guia de marcha e arrancámos direitos a Tavira, não sem antes nos banquetearmos com um suculento almoço oferecido pelo inefável jovem alferes.

Mais dois acontecimentos durante a minha estadia nesta cidade antes de vir a ser mandado apresentar em Abrantes já mobilizado para a Guiné, de notar que o meu irmão mais velho tinha acabado de chegar da guerra de Angola.

A primeira é demonstrativo da violência sobranceria e displicência eram tratados os jovens entregues à guarda desta instituição e ocorreu ainda durante o período em que estava a tirar a especialidade.

A actividade que fomos desenvolver nesse dia tratou-se de numa improvisada carreira de tiro que existia nas traseiras da enfermaria fazer treino de tiro com a metralhadora Dryse. Depois da necessárias recomendações pelo jovem alferes Cadete, Oficial de Tiro para aquela actividade, lá começámos a tarefa. Durante a sua actuação, o Silva de Braga, Professor Primário, deixou encravar a arma e inadvertidamente ainda deitado levantou-a do chão, de imediato o crápula do Alf Cadete lhe espetou um pontapé, que lhe quebrou duas costelas.

Não posso de deixar de contar esta rocambolesca estória quase no fim da minha estada em Tavira, um dos instruendos do Curso de Oficiais Milicianos de Infantaria que aqui decorreu, foi intimado a comparecer em Tribunal Civil no Porto para ser julgado. Fui nomeado como guarda do jovem em causa para o acompanhar ao julgamento e no caso de ser condenado teria de o trazer de regresso ao Quartel. Em conversa com o elemento foi-me transmitido por este, que praticamente estava assegurado que seriam os dois absolvidos, o pai também era arguido no processo. Então lá nos preparamos para apanhar o comboio do fim da tarde que chegou no dia seguinte de manhã a S. Bento. Mandei o meu “preso” levar uma mala com roupa civil e eu fiz o mesmo. Sai do Quartel de Tavira um desconchavado cabo-miliciano, já bastante conhecido fardado e de pistola à cintura e um anafado Cadete na sua coquete farda. Assim que o comboio arrancou, fomos imediatamente a casa de banho vestir a nossa roupa e transformámo-nos em dois jovens em amena cavaqueira a caminho do Porto, não sem antes eu ter dito: - Oh "meu a partir de agora amigo”, não penses em te pirar porque nem que vás até Paris eu vou atrás de ti.

Fizemos uma longa e incómoda viagem e ao chegarmos à Estação de S. Bento encontrava-se meio encoberto um casal que ao ver-nos aproximar se desmanchou no melhor dos sorrisos de boas vindas que se pode receber, não entendi o que esperavam ver. Lá nos metemos no carro do pai do jovem e seguimos de imediato para o Tribunal, mudámos dentro do carro de roupa convenientemente, e foi realizado o julgamento que de facto deu na absolvição.

Ainda me convidaram para ir a casa deles mas estava nos meus planos vir para casa - Caxias - para desfrutar do fim de semana e abalei imediatamente para a Estação de Comboio para passados poucos minutos embarcar. Apenas já depois de estar no comboio mudei de roupa, até a malvada da pistola foi à cintura até aí. Enfim coisas de um desmiolado e imberbe saloio.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. poste de 28 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9279: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (3): Fragmentos Genuínos - 1