segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9360: Operação Tridente, Ilha do Como, 1964: Terminada a operação, a luta e a labuta no Cachil continuam (CCAÇ 557): Parte II (José Colaço)



O nosso camarada José Colaço, (ex-Soldado Trms da CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65), enviou-nos a continuação da narração iniciada no poste P9351.

Tridente terminada mas a luta e a labuta no Cachil continuam
Parte II 

Com a Operação Tridente dada como terminada,  o Cachil fica a ferro e fogo, a guerrilha reorganiza-se novamente na mata do Cassaca e em toda a zona de Cauane e Caiar, pois aquela zona tinha ficado livre de qualquer controle militar por parte das forças portuguesas. Como prova do que digo,  um dia de Abril que cito de memória, pois não registei a data, o comando chefe operacional da Guiné reorganiza uma batida, que chamava de limpeza à mata do Cassaca. 

A entrada na mata do Cassaca era feita através da orla da mata do Cachil, atravessando-se uma clareira, passagem esta onde as nossas forças durante a operação foram sempre repelidas, tornando-se este espaço uma passagem para a morte. 

Durante a noite os obuses de Catió bombardearam a mata e a seguir o avião bombardeiro P2V5 descarregou também ali as suas bombas, como fazia durante a Operação Rridente. De manhã, ao nascer do sol, vieram dois F86 e bombardearam, mais uma vez, a mata. 

Nota: No dia anterior um pelotão da CCaç 557 fez o reconhecimento a toda a mata do Cachil sem qualquer problema. Relembro que quando chegamos ao fim orla da mata do Cachil, à entrada da tal clareira para a mata do Cassaca, o alferes comandante do pelotão, no seu espírito jovem aventureiro, ter insistido junto do capitão vamos lá meu capitão não está lá ninguém. A resposta do capitão foi: “Amanhã dia da operação é que nós lá vamos.” 

Fica a interrogação o que nos teria acontecido se…? Mas as coisa são como acontecem e não se a opção tivesse sido outra. 

A seguir entraram em acção as tropas especiais terrestres, comandos, páras, fuzileiros e exército, apoiadas por 2 aviões T6, que passaram toda a mata do Cachil sem problemas. Mas, quando chegaram à clareira que dava acesso à passagem para a mata do Cassaca, foram atacadas com fogo de armas ligeiras, pesadas e fogo de morteiro, e tiveram que recuar resguardando-se na mata do Cachil. Deste confronto, as nossas forças sofreram doze feridos que foram evacuados de helicóptero. 

Resumo: Após esta limpeza (como foi chamada), as nossas forças especiais, à tarde, regressaram às suas unidades e foi feito o relatório para o comando-chefe. A partir desta data até 27/11/64, data em que eu e a CCaç 557 saímos do Cachil, não houve mais nenhuma ordem para ir à mata do Cassaca, nem pelo comandante-chefe militar, brigadeiro Fernando Louro de Sousa, nem pelo brigadeiro Arnaldo Schulz, que em Maio substitui o então polémico brigadeiro Fernando Louro de Sousa. 

Não dá para entender, porque razão se mantinha aquela força militar acantonada no Cachil e, para cúmulo, mais tarde, o comandante da CCaç 557 recebeu ordens do comandante de sector sediado em Catió em que desaconselhava batidas à mata do Cachil.  



Foto nº P1170599.jpg - Transporte de todos os mantimentos à força bruta do homem do cais para o quartel, que ficava a cerca de 1Km.

Foto nº P1170527. jpg - A maca do posto médico adaptada para padiola, no transporte dos géneros cedida pelo Dr. Rogério Leitão [ falecido em 28 de Outubro de 2010,], na condição de ser estimada porque não se sabia qual a hora em que ela podia ser precisa para o fim que se destinava: o transporte de doentes ou feridos.
Foto nº P1170565.jpg – A cozinha do quartel do Cachil.

Foto nº P1170537.jpg - O tenente-coronel Matias, de quico e óculos escuros, comandante de Sector de Catió - BCAÇ 619 - à conversa com o capitão Ares, comandante da CCaç 557, na única visita que fez ao Cachil, enquanto a CCaç 557 por lá permaneceu.
Foto nº 1170506.jpg - A lancha no cais do Cachil, responsável pelo transporte dos géneros de Catió para o Cachi

Foto nº 1170578.jpg - A contar da esquerda: O açoriano de Santa Bárbara - Ribeira Grande, ex- alferes miliciano Viriato Madeira - comandante do 1º pelotão; a seguir o também açoriano, picaroto, ex-alferes miliciano Mário Goulart - comandante do 3º pelotão que todos os anos faz questão de nos acompanhar no almoço de convívio da CCaç 557; pela mesma ordem,  o algarvio,  ex-alferes miliciano,  Ildefonso Leal - comandante do 2º pelotão – e, em baixo, o aveirense, ex-tenente miliciano médico,  Rogério Leitão [, já falecido,  em 2010].
Foto nº1170605.jpg - O paiol no quartel do Cachil.

RESUMO > Partida para a ilha do Como

Foto nº P1170500.jpf - O capitão Ares encostado ao jipe, ao lado o nosso tenente miliciano médico Dr. Rogério Leitão, momentos antes da partida para o Como. A partir daqui não há fotos a não ser do Cachil, como já referi o rolo levou sumiço quando foi para revelar.
Foto nº P1170519.jpg - Os trabalhos na construção da paliçada.
Foto nº P1170516.jpg - O pessoal na labuta e transporte dos toros para serem colocados na construção da paliçada.
Foto nº P1170518.jpg - Aqui uma construção menos sofisticada, possivelmente uma qualquer arrecadação.
Foto nº P1170521.jpg - Uma pausa nos trabalhos para tomar água.

Foto nº P1170523.jpg - O primeiro da esquerda é o tenente-coronel Fernando Cavaleiro, de quico e barbas, no Cachil em 21 de Março de 1964, quando atravessou a pé através da mata do Cassaca toda a Ilha desde Cauane ao Cachil, anunciando nessa altura a vitória da operação e por consequência disso o fim da operação tridente.

Nota: As fotos, todas elas, são de fraca qualidade devido aos meios que havia naquele tempo e, além disso, foram reproduzidas de slides de um DVD que tenho da estada, na Guiné, da Companhia de Caçadores 557.

José Colaço
Soldado Trms da CCAÇ 557

Fotos: © José Colaço (2011). Todos os direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

domingo, 15 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9359: O Nosso Livro de Visitas (121): Mafalda Ramos, filha do nosso camarada Armando Ramos do BCAÇ 1911

Nesta foto: Fernandino Vigário; Barbosa (Póvoa); Francisco (Miranda do Corvo) e Armando Ramos (Torres Novas)


1. Comentário deixado no Poste Guiné 63/74 - P9186: Tabanca Grande (309):

Viva! É com muita alegria que consegui chegar a vós.

Sou filha do Armando Ramos, de Torres Novas, 1º Cabo de Transmissões do Batalhão de Caçadores 1911 (1967-1969) que está na fotografia que gentilmente partilharam ...  O meu pai era de facto um "borrachinho". E  um misto de emoções me invadiram: o stress pós traumático, o que nós filhos sofremos por consequência do que Heróis como os senhores passaram numa guerra que nos cabe a todos arrumar nos nossos corações e reencontrar a paz necessária.

Grata por este meio que ajudará e muito a sarar estas feridas comuns... ESTAMOS JUNTOS!

Mafalda Ramos, telefone 93 506 7764 e 91 873 3318 e email: mafaldasays@gmail.com.

Em breve, em conjunto com o pai Armando, iremos colocar aqui uma fotografia do Batalhão [, o BCAÇ 1911,Teixeira Pinto, Pelundo, Có e Jolmete, 1967/69, ], fotos  individuais (que religiosamente guardei...) e a história contada pela 1ª pessoa - o meu pai, cuja partilha é tão necessária já que foi apenas comigo,  aos 12 anos, que o pai contou muito do que passou...

Hoje felizmente o meu pai faz uma vida normal com saúde (dentro das limitações normais) e hoje dei uma GRANDE alegria ao meu pai GRAÇAS A VÓS!

BEM HAJAM E ESTAREI MAIS ATENTA AGORA A ESTE NOSSO ESPAÇO.

BOM ANO DE 2012, CAMARADAS!


2. Comentário de CV:

Cara amiga Mafalda:

Muito obrigado pelo comentário deixado no Poste onde foi publicada a foto do nosso camarada Vigário, onde está o seu pai.

Costumamos dizer que o Mundo é Pequeno e o nosso Blogue Grande. O seu pai, e nosso camarada Armando Ramos, que agora nos descobriu, com a sua ajuda poderá contribuir para o espólio o nosso Blogue, mandando-nos as suas fotos e memórias para as publicarmos. Até porque temos poucas referências ao BCAÇ 1911 e ao seu pessoal.

Pelo que pudemos ler, a Mafalda foi um esteio para o seu pai na qualidade de confidente/ouvinte e acompanhante da sua recuperação psicológica. Por isto receba a nossa estima e consideração. Bem haja.

Ficamos assim à espera das vossas próximas mensagens, enviando, em nome dos editores e da tertúlia, um grande abraço para o camarada Ramos e outro para si.

Carlos Vinhal
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9328: O Nosso Livro de Visitas (120): Anabela Pires, em vias de ir para Iemberém, no Cantanhez, trabalhar como voluntário na AD - Acção para o Desenvolvimento, procura cartas da região de Tombali e elogia o nosso blogue

Guiné 63/74 - P9358: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (49): O "anónimo" J.B. Marques que comunicou o falecimento de Daniel Matos (Hélder Sousa)

1. Mensagem do nosso camarada Hélder Sousa* (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72):

Caros camaradas, Editor e co-Editores
Costumamos dizer que "o Mundo é pequeno mas o nosso Blogue é grande" como forma de passar a ideia que por ele e através dele acontecem muitos encontros (e alguns desencontros... mas isso são contas de outro rosário) que de outro modo ou não sucederiam nunca ou demorariam provavelmente mais tempo.

Isto vem a propósito do que me sucedeu e que acaba por se enquadrar muito bem naquele lema.
Vou relatar e se acharem que tem enquadramento, pois então que publiquem.


O "anónimo" J.B. Marques que comunicou o falecimento de Daniel Matos

Nos primeiros dias do passado mês de Dezembro estive presente no Tribunal de Trabalho de Lisboa onde estava citado como testemunha num caso de litígio laboral que opunha uma jovem arquitecta a um conhecido e reconhecido arquitecto lisboeta. Houve uma espera demorada com conferência entre advogados e o/a Juiz do julgamento e na sequência disso a sessão acabou por ser adiada e transferida para 13 de Janeiro deste ano, o que efectivamente já ocorreu.

A principal razão foi a situação de manifesta incapacidade física do sr. advogado da outra parte que se encontrava um tanto debilitado por força de perturbações e anormalidades no funcionamento da 'máquina'.

Embora não seja 'aconselhável' o contacto entre testemunhas de diferentes partes e esses advogados, a verdade é que arranjei maneira de, ao desejar-lhe as melhoras, lhe dizer que a sua fisionomia me fazia lembrar um amigo virtual que conhecia apenas através de um blogue de antigos combatentes na Guiné e que tinha conhecimento de ter falecido recentemente, mas sem lhe dizer quem.

Na volta ele disse-me que também conhecia um, amigo pessoal, cuja morte recente o tinha também deixado mais abalado e que se chamava Daniel Matos. É claro que "fez-se luz" mas ali, e naquele momento, não dava para mais, ficando no entanto tacitamente combinado que aquando da sessão de 13 de Janeiro podíamos, depois da dita, falar um pouco mais.

E assim se fez.

Então, na passada sexta-feira, 13 de Janeiro, lá conversámos sobre o nosso malogrado camarada Daniel Matos, falecido em 13 de Novembro e sobre o nosso Blogue. Foi ele o "anónimo" que enviou a notícia, em jeito de comentário deixado no P6351, em 20 de Novembro, e na sequência do qual se produziu o P9073 no dia seguinte, com as indicações que entretanto se foram obtendo. O meu interlocutor é hoje advogado, como já disse, J.B. Marques de seu nome, e foi combatente em Angola e não na Guiné, razões pelas quais não se identificou. É amigo da família do Daniel (Dani, para os amigos), e embora dois anos mais novo acompanhou com interesse e emoção os relatos que o "Dani" fez dos "Marados", principalmente da epopeia de Guidaje e que ele considera que a família, ou outra entidade, deveria tentar editar. Também conversámos um pouco mais sobre a Guiné, que ele não conhece mas aonde irá em breve no âmbito de afazeres profissionais, e trocámos as informações possíveis e necessárias.

E pronto.
Não é muito, mas acho que é o suficiente para se poder comprovar que de facto o nosso Blogue é grande, é, pelo menos, certamente, um grande meio de comunicação e de 'encontros'. De emoções e de solidariedade.

Abraços
Hélder Sousa
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 12 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9346: Tabanca Grande (317): Anabela Pires, voluntária no projeto Ecoturismo do Cantanhez, nossa tabanqueira nº 536, aqui saudada pelo Hélder Sousa

Vd. último poste da série de 24 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9091: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (48): Como a publicação do Diário da CCAÇ 675 fez reencontar dois camaradas quase meio século depois (Manuel Joaquim)

Guiné 63/74 - P9357: Da Suécia com saudade (33): A guerra da Guiné vista de uma certa retaguarda (José Belo)

1. Mensagem de José Belo, ex Alf Mil Inf da CCAÇ 2381, Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70, actualmente Cap Inf Ref, a viver na Suécia:

A Guerra da Guiné vista de uma "certa" retaguarda

Naquele ano de 69/70, dentro do espírito da Campanha "Por uma Guiné Melhor", o Comando Chefe da Guiné convidava alguns muçulmanos mais representativos para viagens de peregrinação a Meca.

Por razões várias, tinha contribuído para que 3 Homens Grandes de Tabancas ao redor de Aldeia Formosa tivessem sido incluídos (com toda a justiça) numa das listas das viagens. Foi em cortês gesto de agradecimento que, no regresso de Meca, aproveitando a estadia em Lisboa, decidiram ir "partir mantenha" a casa dos meus pais. Envergando os seus grandiosos trajes de "ronco" bateram à porta precisamente no dia da semana em que a minha mäe se reunia com as amigas à volta de uma chávena de chá.

Recebo na Guiné carta do Estoril...

"Meu querido filho"... Que roupagens fantásticas! Que português tão exótico o que falavam! Que bem educados nas suas tradições, e à sua maneira! Que acontecimentos incríveis que tão bem souberam descrever! A esposa do Presidente da Câmara convidou-os de imediato para o visitar. Sabes, gostaram muito do meu chá, e principalmente da... bavaroise de ananás! 

Sentado contra uma árvore na mata do Sul da Guiné, se näo me urinei a gargalhar pouco terá faltado.

Conhecia bem aquelas "eternas meninas" da Parada de Cascais do Portugal de então. Sentadas, segurando nas suas mãos delicadas por tantos ócios, as minúsculas chávenas de chá, e discutindo as delícias da bavaroise de ananás com aqueles heroicos combatentes Fulas. Encontros de um Império tão desencontrado.

Quem sabe se regressaram às matas do Forreá carregando nos "R" e dizendo "pecébe" no tal dialecto "bem" de uma certa capital de império.

Estocolmo, 15/01/2012
Um grande abraço
José Belo
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 10 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9020: Da Suécia com saudade (32): Geração, a Nossa... (José Belo)

Guiné 63/74 - P9356: Agenda cultural (181): Laboratório das Artes, Guimarães: Exposição sobre a guerra de África, de 20/1 a 25/2/2012: Convite do autor, Manuel Botelho


1. Mensagem do artista plástico Manuel Botelho:


 Data: 12 de Janeiro de 2012 22:11

Assunto: Exposição de Manuel Botelho

Caros editores e amigos:

Vou inaugurar mais uma exposição sobre a nossa guerra em África.  Quero convidar todos os membros do vosso blogue a estarem presentes na inauguração ou a visitarem esta exposição.

A todos um abraço

Manuel Botelho

[Vd. também página do artista na Net: vd ainda texto do crítico João Pinharanda sobre a anterior exposição do autor, Cartas de amor e saudade, 2011]

Manuel Botelho | Marcha Lenta

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Portugal, final dos anos sessenta, a guerra em África. Entre realidade e ficção, interroga-se o presente evocando o passado.

1º piso: enormes panos de tenda; castelos de cartas; espingardas ferrugentas emergindo da terra avermelhada; mapas de lugares incertos. Das acções militares aos intermináveis tempos de espera; um império à beira do colapso. 

2º Piso: uma parede feminina, cor-de-rosa, isola o espaço da instalação. Nando, radiotelegrafista em comissão na Guiné, e Lenita, empregada de escritório em Lisboa, são nomes fictícios de personagens reais; "Cartas de amor e saudade" baseia-se nas cartas que trocaram durante 2 anos, num formato que relembra as novelas radiofónicas dos anos sessenta.

3º Piso: um muro de velhos panos de tenda individuais; uma bandeira dobrada, outra cobrindo um corpo; regresso inglório; Marcha lenta.

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Laboratório das Artes
Edifício do café Milenário | Largo do Toural | 4800 Guimarães
Inauguração: 20.1.2012 às 22:00h
Até 25.2.2012
4ª a sábado das 16:00h às 19:00h

2. Nota do editor

Sugestão adicional: Aproveitemtambém, caros amigos e camaradas, para conhecer a Guimarães 2012, Capital Europeia da Cultura, que começa a 21 de janeiro de 2012. O centro histórico de Guimarães é, além disso, património mundial da humanidade. Tenhamos orgulho no que é nosso e no que fazemos de bom  ou melhor do que os outros.  LG

PS - Veja-se também o suplemento Fugas do jornal Público, de ontem. Belíssima capa (foto de Nelson Garrido), escolhida pelos leitores. Tudo (ou quase tudo) sobre este evento que vai durar um ano.
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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P9355: Facebook..ando (15): Um "regalo" para a Maria Ivone Reis, que anteontem fez anos (Hugo Moura Ferreira)



Foto: © Hugo Moura Ferreira (2012). Todos os direitos reservados

1. O nosso camarada Hugo Moura Ferreira deixou, na nossa página do Facebook,  esta pequena preciosidade, a cópia de um postal, assinado pela Maria Ivone Reis, Alf Enfermeira Paraquedista, datado de Luanda, 11-IV [?] -62, com os seus agradecimentos ao "doutor A. Ferreira" pelos "parabéns" e o seguinte voto:

"Desejo muito saber corresponder ao que esperam da minha missão profissional e que eu consiga a consciência de sempre bem cumprir".

No mural do Facebook da Tabanca Grande, o Hugo acrescentou o seguinte: 

 "Muitos Parabéns,  Maria Ivone. Como cumprimento, aqui deixo a reprodução de um postal enviado a meu Pai, em 1962, que sempre guardei como relíquia e com toda a devoção".

A Ivone e o seu anjo da guarda, a Maria Arminda, vão adorar. Obrigado, Hugo.

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Nota do editor:

(ª) Último poste da série > 30 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9291: Facebook...ando (14): João José Alves Martins, ex-Alf Mil PCT (BAC1, Bissau, Bissum-Naga, Piche, Bedanda, Gadamael, Guileje, Bigene, Ingoré, 1967/70)

sábado, 14 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9354: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (48): Bula - estória de uma foto

1. Mensagem do nosso camarada Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 11 de Janeiro de 2012:

Amigo Carlos Vinhal
Segue mais uma estória de “Viagem…” que poderá trazer às lembranças Camaradas que em dado momento se voluntariaram em nome de uma ou outra razão, assumindo riscos que lhes não caberiam. Devo dizer que me merecem todo o respeito.

Que 2012 seja ultrapassado com saúde e que as amizades se fortaleçam.
É o meu desejo para ti e para todos

Abraço
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (48)

Bula – estória de uma foto

Companheiros de guerra havia - julgo que em especial daqueles que pertenciam aos serviços e se encontravam integrados em Batalhões ou Companhias estacionados em centros populacionais mais importantes - que não queriam regressar a casa no final da comissão sem terem saído pelo menos uma vez para o mato.

Uma fotografia carrega (va) com ela uma dessas estórias. Estou cansado de a procurar… não aparece! Sinceramente gostava muito de a encontrar. Na certa não havia (há) outra no mundo… será única esta fotografia original, tirada julgo no terceiro terço de 1972.
Preservei-a religiosamente durante trinta e tal anos … ficou até ver desaparecida, esquecida ou “surripiada” há bem pouco tempo, talvez numa qualquer mostra em reuniões nossas.
Tenho pena que tenha acontecido, pois como disse, carrega (va) com ela uma estória comum a alguns, talvez até a muitos Companheiros da guerra.

Por Bula íamos avançando nas semanas, intervalando ócio e lazer com emboscadas, operações, patrulhamentos e serviços, ansiando pela rendição que parecia não mais acontecer, mas que a cada dia ganho se ia aproximando.

Acontece que, sendo a “FORÇA” uma Companhia de intervenção, mas estacionada num aquartelamento sede de Batalhão, à altura pouco atreito a ataques, havia rapaziada dos serviços que nunca tinha saído para o mato em operações e como tal achariam talvez não terem ainda sentido verdadeiramente aquela guerra.

Assim, um ou outro não querendo acabar a comissão e regressar a casa sem ter minimamente vivido e usufruído dessa experiência, de modo a saberem e sentirem como era, para os finais de comissão e quando sabiam de saída para operações, pediam-nos para integrar o grupo, o que era consentido ou não, dependendo do risco do objectivo, da pessoa e da autorização do Capitão.
Claro que se tentava demovê-los e só o consentíamos se considerávamos o objectivo de pouca probabilidade de confronto, sendo que de qualquer modo o risco existia sempre.

É neste contexto que numa saída para Ponta Matar se apresenta o Lourenço, Fur. Transmissões (o “Metralha”), equipado a preceito e qual “repórter de guerra”, acompanhado da sua quase inseparável “Asai Pentax”(?) pendurada ao pescoço. Instruo-o de que o lugar dele será atrás de mim, que deverá fazer tudo o que me vir fazer, sem despega.

O grupo arranca e lá vamos pela noite cumprindo a missão destinada, que se antevia calma e sem incidentes. A manhã encontra-nos deambulando em plena mata com o Lourenço procedendo como combinado e a assentir que tudo estava bem com ele. O tempo vai passando e registos fotográficos para memória futura, vão ficando na maquineta.

Sem mais nem para quê o tiroteio rebenta. O amigo Lourenço havia ganho a aposta e a experiência desejada, ainda por cima com “picante”que não se antevia.

Dias mais tarde, são-me mostradas as fotografias tiradas, e no lote havia a tal de que falo e anda desaparecida, que a pedido me foi oferecida na altura. Gostava mesmo de a vos poder mostrar, contudo, na impossibilidade actual espero ter a arte e o engenho para a descrever de molde a que possam observá-la como se à estampa tivesse sido dada.

É uma foto de grande nitidez e originalidade, tirada nas matas de Ponta Matar. Não regista nem uma nesga de chão, nem uma árvore, nem uma pessoa, nem qualquer objecto… nada a não ser uma única haste de capim focada em grande - plano até meia altura do rectângulo fotográfico, majestosa e erecta, perfeitamente centrada na foto e tendo o céu como fundo.

O Lourenço atirando-se para o chão tinha feito o que eu na certa fiz e a foto única e original, talvez inesperada e tirada debaixo de fogo em ângulo superior a 45º… aconteceu.

Luís Faria

Foto LF
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 20 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9237: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (47): O fugitivo

Guiné 63/74 - P9353: História da CCAÇ 2679 (46): SEXA COMCHEFE visitou Tabassi (José Manuel Matos Dinis)


1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis* (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 11 de Janeiro de 2012:

Olá Carlos,
Aqui vai mais um pedacinho de história da CCaç 2679. Nada de relevante. Aconteceu, porém, uma inopinada visita do ComChefe a uma tabanca em auto-defesa, onde nunca descortinei o paradeiro das G3 novinhas que ali foram distribuídas - Seria interessante saber se o General teria alguma agenda com anotações dessas visitas.

Para ti e para o Tabancal vai um abraço fraterno
JD


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (46)

"SEXA COMCHEFE visitou Tabassi"

A História da Unidade revela sobre a situação geral durante o mês de Janeiro de 1971:

Durante o mês de Janeiro-71, a actividade de iniciativa IN manteve-se em relação ao período anterior: duas flagelações ao Aquartelamento de Bajocunda e uma ao Destacamento de Copá. É de assinalar a forte intensidade do fogo IN empregue no dia 01JAN71, contra Bajocunda e em 07 contra Copá. Muito embora não causassem quaisquer baixas às NT e à população, os estragos materiais foram um tanto avultados, principalmente no ataque a Bajocunda.
A Companhia mantém o ritmo operacional em relação ao período anterior:
Os dois grupos de combate da CCav 2747 que se encontravam nesta em reforço temporário, regressaram a Piche em 19JAN71, sendo substituídos entretanto por um grupo de combate da CCaç 5 que segue em 21JAN71 para Copá a fim de render o Pel Caç Nat 65, que regressa a esta Companhia em Bajocunda.
A Companhia continua ainda reforçada temporariamente por 01 GrCombate da CArt 2762.
O Pel Caç Nat 65 segue em 22 para Tabassi rendendo 01 GrCombate da Companhia na protecção àquela tabanca.
Em 26JAN71 apresentou-se na Companhia o Pel Mil 298 recém formado em Contuboel que é atribuído de reforço à CCaç.
O Pel Mil 269 continua fixado em Amedalai a fazer a protecção àquela tabanca e diariamente 01 GrCombate reforça Tabassi à noite. Mercê de uma acção psicológica bem orientada a Companhia consegue que se apresentem neste período em Copá, mais 04 elementos da população refugiados na Rep Senegal a fim de ali residir. Em Amedalai também se apresentaram 10 elementos pop que ali fixam residência.
SEXA COMCHEFE visitou Tabassi.


Durante o mês de Dezembro aconteceram os seguintes aumentos ao efectivo:
Alferes Mil de Infantaria Eduardo José Luís Machado Pinto, proveniente da C Caç 2789, para o 4º. Pelotão, e os soldados, Manuel Morais, em rendição individual, e Armando Manuel Lanzana Lapa, proveniente da 26ª. CComandos, ambos para o segundo Pelotão, o Foxtrot. Foram dois elementos de boa valia.

Localização de Tabassi na Carta de Pirada


Minha nota:

Como acabam de ler, o IN mostrou-se bastante colaborante com a NT, pois, sabendo que os elementos da 2679 eram preponderantemente madeirenses, não quiseram deixar-nos passar o ano sem o condigno "reveillon". E no dia 1, pelas 21H45, voltaram a flagelar Bajocunda com um bom potencial de fogo, tendo deslocado morteiros, lança-granadas foguete, canhões s/recuo, e armas ligeiras.

Entretanto, um dia que não assinalei, provavelmente em 27DEZ70, regressei de uma coluna a Nova Lamego e senti-me censado, mas sem qualquer suspeita de doença ou sintoma de mau-estar. Comi, e fui para o meu quarto, onde três ou quatro jogavam cartas. Adormeci naturalmente. Até que a certa altura, já para o tardote, comecei com manifestações estranhas de inquietação e convulsões, acordei, e queixei-me de fortes cólicas, que não me permitiam sossegar. Foram chamar o Vítor que, perante as minhas manifestações, mas sem um diagnóstico (as Companhias em geral não tinham meios de diagnóstico."Guerra, é guerra!"), perguntou-me se eu aceitava uma injecção para acalmar. "Traz lá essa merda, depressa", deve ter sido a minha mais que natural resposta. O Vítor aplicou-me a injecção, que garantia, havia de produzir efeito. Qual quê! Não fez efeito nenhum. Então, o Vítor ministrou-me uma segunda injecção, na falta de medicação alternativa, admitindo que esta segunda dose teria que causar efeito, neutralizando a dor e restituindo-me tranquilidade.

Mais um hiato, talvez de uma ou duas horas, e... nicles. A minha imagem devia ser de desespero, e a malta em meu redor inquietava-se. À terceira dose, o Vítor esgotou os recursos razoáveis, pois não queria matar-me pela cura. Por essa altura, já o Marino, por indicação do Vítor, tinha pedido a minha evacuação.

Amanheceu como todos os dias, mas eu, desesperado, e acagaçado pelo obrigatório ingresso no hospital, não tinha esperança.

Talvez uma horita depois da alvorada, chegou um DO para me transportar ao hospital. Alguns Foxtrot acompanharam-me na despedida com graçolas a que eu nem era capaz de reagir.
Não sei se por efeito do cagaço, se por efeito da altitude, se por "ineficiência" da doença, quando cheguei a Bissalanca sentia-me bem.

Puseram-me numa ambulância e transportaram-me até a um médico que, no hospital, fazia despistagem. Quando me interrogou, disse-lhe da estranha manifestação da doença, e referi as injecções que me tinham dado, o que deveria constar de um qualquer relatório. Depois, despi-me de roupas e preconceitos, e encaminharam-me para a SO - Sala de Observações, um salão com ambiente fresco, onde ocupei a última cama do lado da entrada. Existiam no local oito camas, que passaram a estar preenchidas. Fiz análises e os exames prescritos, e voltei para a cama, onde tapei as vergonhas com um lençol. Era assim, também, para os restantes.

Era um ambiente terrível, e eu não encontrava qualquer razão para estar ali. Todos os meus companheiros de camarata tinham sido vítimas dos acasos da guerra, com excepção do que estava à minha frente, onde permanecia por alguns dias, com o diagnóstico de paraplegia, em virtude de um acidente. Os restantes, feridos em combate, mutilados ou portadores de estilhaços, aguardavam evacuações para Lisboa, e permaneciam em estado de adormecimento, só dando sinal quando as drogas abrandavam o efeito, ou tentavam mudar de posição na cama, e desatavam em choro, quando se encontravam com a nova realidade e as dores emanantes.

Passadas as duas noites a respirar daquele ar condicionado, chegaram os resultados, que revelaram uma amibíase, uma doença provocada por amibas ingeridas com a água que, entretanto, tinham devassado os glóbulos vermelhos. Transitei então para o primeiro andar, onde tomei lugar no primeiro quarto do lado direito, cuja varanda se situava sobre a entrada principal. Quando ali cheguei, apresentei-me ao ocupante da outra cama, o médico de Piche que se "batia" a uma hepatite. Tornei-me um cliente de luxo, pois a par dos mata-bichinhos prescritos, também tinha direito a frutas sul-africanas, e a sumos italianos, sempre em quantidade excedentária, que ainda permitia a alguns camaradas abastecerem-se.

Enquanto ali permaneci, o acontecimento mais relevante foi a operação cirúrgica ao CMDT da Região Militar de Bissau, o célebre "onze". Tinha permanentemente duas sentinelas à porta do quarto, uma atitude lógica, pois qualquer um dos internados poderia tentar-se a fazer justiça perante a oportunidade. E ao fim da tarde, esteve sempre garantido o espectáculo dos oficiais superiores, todos engalanados, a bater com os tacões das botas polidas, nos mosaicos do corredor, numa precipitação para prestarem vassalagem subserviente ao grande senhor enfermo, o grande déspota solitário. Apresentavam-se aos soldados sentinelas, e um deles ia confirmar a autorização para que o interessado tivesse oportunidade para entrar. Foram cenas dignas do magnífico romance de Gabriel Garcia Márquez, "O Outono do Patriarca", que neste caso tentava revitalizar.

Lembro-me ainda de duas situações aberrantes naquele hospital, um furriel miliciano e um soldado, ambos "clientes" da psiquiatria: o primeiro seria refratário por questões políticas, e o segundo teria cometido crimes sobre dois familiares (era o que constava). Ambos tinham o receituário diário, mas uma vez por semana, levavam uma dose extraordinária, uma injecção de vários centímetros cúbicos, que os deixava sem falar e quase sem comer durante dois dias. Aliás, nos períodos intercalares, e tive confirmação disso pelo contacto directo, nenhum deles conseguia manter um diálogo, com nítida falta de capacidade de expressão, e olhares vagos, de ausência. Não sei que futuro tiveram, nem se o psiquiatra contribuiu para a saúde deles.

Estive ausente da Companhia quase por um mês.

No meu regresso fiquei a saber que o Foxtrot, por falta de comando, foi deslocado para Tabassi, onde ficou a defender a tabanca. Durante algumas noites ficaram entregues a si próprios, comandados pelo Cabo mais antigo, ou solidariamente organizados. Também me fizeram queixa de que o pelotão abandonara a aldeia.

Apurei que os almoços eram confecionados em Bajocunda e transportados para Tabassi. Todavia, sem qualquer critério, a chegada das refeições fazia-se tardiamente, a uma hora qualquer, e o pessoal reclamava através da escolta. Coisa que não devia impressionar o capitão e os "sorjas". Até que um dia não se fizeram rogados, e apresentaram-se em Bajocunda para comer no refeitório. Estalou uma bronca, mas o pessoal levou a água ao moinho, e a refeição passou a chegar àquela aldeia pelo meio-dia. Reconheci-lhes razão.

No primeiro dia do ano, o Comandante-Chefe deslocou-se a Tabassi, inopinadamente, pelo que terá confirmado a espécie de ostracismo e displicência a que o Foxtrot estava votado. Não havia nenhuma razão especial para que o General ali se deslocasse propositadamente, salvo quaisquer eventuais informações que lhe chegassem por outras vias, talvez o COT-1; talvez a PIDE, ou o Mário Soares. Também não posso afirmar que se tenha ali dirigido para saudar o Foxtrot. Podia querer cimentar a relação com o chefe de tabanca, um individuo pouco (nada!) atento à condição da auto-defesa, ou saudar a população e a tropa.

Sobre a visita, a História da Unidade regista a seguinte frase no contexto situação em Janeiro/71: "SEXA COMCHEFE visitou TABASSI".
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 4 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9311: (Ex)citações (171): A propósito de citações e comentário do Mais Velho (José Manuel Matos Dinis)

Vd. último poste da série de 29 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9285: História da CCAÇ 2679 (45): Um aniversário em Bajocunda (José Manuel Matos Dinis)

Guiné 63/74 - P9352: Excertos do Diário do António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (4): Os foguetões 122 mm que vi, ouvi e contei ao longo de quase dois anos...





Lisboa > Museu Militar > O foguetão 122 mm ou a arma especial Grad (na terminologia do PAIGC).Era uma arma de artilharia, de bater zona e não de tiro de precisão, com   alcance máximo de 11.700 m para 40º de elevação. Segundo um relatório do PAIGC a distância maior a que se efectuou tiro, teria sido contra Bolama, em 4 de Novembro de 1969, a 9.800 m. O foguete dispunha de um perno (assinalado a vermelho ) que, percorrendo o entalhe em espiral existente no tubo, imprimia uma rotação de baixa velocidade afim de estabilizar a vôo. As alhetas só se abriam depois do foguete sair do tubo. Enviei para o blogue, há algum tempo, a fotografia do Tubo que se encontra no Museu Mil Lisboa, que julgo ser o capturado em Cufar, em Janeiro de 1973.  (NR)

Fotos (e legenda): © Nuno Rubim (2007). Todos os direitos reservados.



1. Do nosso camarada e amigo, António Graça de Abreu (AGA), publica-se mais uns tantos excertos do seu Diário da Guiné, 1972/74, a partir do ficheiro em word que serviu de base à edição do livro Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp). (*) 

Desta vez selecionámos passagens em que há referências a ataques ou flagelações a aquartelamentos e destacamentos com foguetões 122 mm, enquanto ele esteve no CAOP1 (Canchungo, Mansoa e Cufar)... Tudo somado, ao fim de quase dois anos de comissão são muitas centenas de rebentamentos, com especial especial destaque para os que caíram no sul, na região de Tombali... O António  esteve em Cufar, no CAOP1, de Junho de 1973 a Abril de 1974. 

Com a devida vénia ao nosso camarada que nos autorizou a utilização do seu trabalho... LG
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Canchungo, 7 de Julho de 1972

(...) Recebi carta da minha mãe. Diz-me que foi ao Porto e que, por amor de mim, colocou um grande ramo de flores no altar de Santo Ildefonso, na igreja da praça da Batalha. Que o santo me proteja!

Mas não me parece viver em situação de grande perigo. Tenho muitos privilégios, não sou propriamente um operacional, não saio para o mato de G 3 em punho em busca do IN. Há apenas o problema dos bombardeamentos, flagelações ou de uma emboscada na estrada.

Quase há um ano que Canchungo não é atacada pelo PAIGC. A última vez, a 3 de Agosto de 1971, foi com foguetões 122 disparados a onze quilómetros de distância. Durante quatro minutos sobrevoaram o quartel, sibilando no ar e foram rebentar lá longe, na bolanha, nos arrozais a sul. Foi só susto, não houve mortos nem feridos, apenas um capitão, ao fugir, caiu numa vala e partiu uma perna.
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(...) Canchungo, 22 de Agosto de 1972

Existe um CAOP 2. Fica em Nova Lamego, terra dos homens de etnia fula, lá no leste, não muito longe da fronteira. É uma zona menos pacífica do que a nossa. Foram agora flagelados com foguetões 122

Não sei ainda o que são, nem o estrago que provocam. A semana passada, nos arredores de Nova Lamego, uma mina anti-carro fez ir pelos ares um camião Berliet, tendo provocado 19 feridos, alguns graves. Nova Lamego nem é do pior. Aqui a nordeste, o aquartelamento de Olossato foi bombardeado a semana passada durante hora e meia. Nós, em Canchungo, fomos atacados (?) durante um minuto. O ataque em Olossato veio de todas as direcções com um potencial de fogo de arrepiar. No entanto, não se deve abrir muito a boca nesta guerra, as nossas tropas só tiveram um ferido grave e três feridos ligeiros. Os abrigos e as valas para alguma coisa servem.
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(...) Canchungo, 27 de Janeiro de 1973

Mansoa é o nosso destino. Entre as três possibilidades, Bula, Bissorã e Mansoa, não sei qual é a melhor, é dos tais casos em que “venha o diabo e escolha.”

Pouco sei sobre Mansoa, o meu baluarte nos próximos catorze meses. Mas é a maior das três que nomeei atrás e tem uma vantagem, a sua proximidade de Bissau - uns 60 quilómetros, -   e o facto de existir uma estrada asfaltada onde se circula normalmente sem escolta. Para oeste, entre Mansoa e Bissau, o IN não actua. No entanto, a vila é menos pacífica do que Teixeira Pinto. Para norte, leste e sul já os guerrilheiros se movimentam entre a malha dos aquartelamentos portugueses e encontram-se bases IN não muito distantes. Não vou falar mais da sagrada e intocável Caboiana, agora vai ser o Morés, o Queré, o Choquemone, o Oio.

Mansoa tem a grande desvantagem de “embrulhar” em média uma vez por mês. Tanto quanto sei, fazem pontaria para o quartel e disparam os foguetões 122, os canhões sem recuo, a uma distância que varia entre os quatro e os dez quilómetros. 

Eles são maus artilheiros, não costumam acertar na tropa e pelo que tenho lido nos relatórios diários que historiam esta guerra, quem normalmente paga as favas nas flagelações a Mansoa é a população negra das tabancas. A tropa tem abrigos, os disparos IN acertam com mais facilidade nas casas da vila do que no quartel.
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(...) Mansoa, 12 de Março de 1973

Bissá, um pequeno aquartelamento doze quilómetros a sul de Mansoa, foi atacado sábado passado às nove e meia da noite, estava eu a beber um café na esplanada do Simões, o restaurante. Foi um ataque a sério que se prolongou por quarenta e cinco minutos, apesar da distância ouviam-se os disparos e rebentamentos com muita nitidez. Os dois obuses de Mansoa ajudaram ao barulho e dispararam cinquenta e sete granadas de canhão sobre as zonas prováveis de retirada do IN. Só hoje soube os números.

Resultado, o IN destruiu e queimou oitenta e sete tabancas, houve três mortos entre a população, muitos feridos e gente intoxicada. As NT de Bissá não sofreram nada, além do desgaste psicológico que uma flagelação tão dura como esta costuma provocar.

Mantive-me tranquilo, mas se em vez de Bissá a ser atacada tivesse sido Mansoa diria, por certo, adeus à pacatez e à calma. Estar dentro de um quartel cercado de arame farpado e experimentar as sensações fortes de ouvir os foguetões, as granadas de morteiro e canhão sem recuo a vir em nossa direcção ou a cair não muito longe de nós, faz com que os rebentamentos comecem a ficar cá dentro. Agora entendo melhor porque é que, depois do regresso a Portugal, um ex-combatente ouve um foguete rebentar na romaria da aldeia e corre, tremebundo, a esconder-se no primeiro buraco que lhe aparece.
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(...)  Mansoa, 19 de Março de 1973

Foi a vez de Infandre “embrulhar”, um aquartelamento com quarenta militares e cerca de mil habitantes, dez quilómetros a norte daqui. Levaram com foguetões, canhão sem recuo, RPG, morteiros, armas automáticas, foram atacados com um enorme potencial de fogo. No destacamento, não houve feridos, apenas os usuais estragos materiais. A pobre da população é que pagou as favas.

Em Infandre, como em muitos outros lugares da Guiné, os negros tanto fazem o nosso jogo como apoiam o PAIGC. Mas a população é sempre infeliz. Nas flagelações à distância, os guerrilheiros não acertam na tropa portuguesa e acabam por provocar mortos e feridos nos habitantes negros que tantas vezes até não lhes são adversos. É a guerra impiedosa, cruel.
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(...) Mansoa, 6 de Maio de 1973

Os militares do quartel de Bula, ainda na zona se acção do CAOP 1, estão a passar por dificuldades. A vila fica mais perto de Bissau do que de Mansoa, a norte, e é um lugar estrategicamente importante. Um grupo grande de guerrilheiros anda por lá a fazer estragos. Numa emboscada próxima da povoação, as NT tiveram sete mortos, quatro soldados brancos e três negros e bem podem agradecer a Deus. Eram só trinta e cinco soldados portugueses contra duzentos guerrilheiros, não foram todos dizimados por acaso.

Em seguida, Bula foi atacada com foguetões, sem consequências. O batalhão da terra é constituído por “periquitos” acabados de chegar de Portugal, inexperientes e medrosos. Os guerrilheiros sabem que eles são novos na Guiné e vá de atacar, atacar, atacar.

O meu coronel [comandante do CAOP1] foi hoje de urgência para Bula, às cinco da manhã, orientar as operações de contra-guerrilha, dar força aos militares de lá. Seguiu sozinho de jipe, por companhia apenas a sua espingarda Kalashnikov, em sessenta quilómetros de estrada. Se o itinerário não é muito perigoso porque atravessa zonas controladas pelas NT, não posso deixar de reconhecer a coragem deste homem, já com mais de dois anos de comissão na Guiné. Tenho tido os meus problemas com ele, sobretudo devido à minha incompetência como pequeno oficial do exército, mas reconheço-lhe uma enorme valentia e excepcionais qualidades de comando.

Ao meio-dia e meia hora, estava de regresso a Mansoa, de novo sozinho no jipe, depois das reuniões com os oficiais de Bula. Voltou célere porque para hoje estava marcado um almoço de despedida em sua honra, oferecido pelos oficiais e sargentos do CAOP1. Não me admira que amanhã parta outra vez para Bula, ou para qualquer outro lugar da Guiné onde se justifique a sua presença, o seu comando de operações. (...)

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(...) Cufar, 25 de Junho de 1973

Não estou encantado com o lugar que vim encontrar, mas Cufar é melhor do que eu imaginava. Em termos de guerra, segurança pessoal, companheiros de armas e instalações.

Ponto Um: Estou no sul da Guiné, rios, canais, bolanhas, florestas. Até Dezembro de 1972, isto era quase tudo território do PAIGC. Havia os aquartelamentos de Catió, Cufar e Bedanda bem defendidos onde a tropa portuguesa não punha muito o nariz de fora. Em Abril de 1972 estiveram por aqui observadores do Comité de Descolonização da ONU para conhecer as realidades das zonas libertadas pelos guerrilheiros. Vieram de Conacry, entraram pela zona de Guileje, chegaram até perto de Cufar, sempre a pé, abrigados pelas florestas. (...)

Há três meses, em Março [de 1973], Cufar foi atacada com uma dezena de foguetões 122. Só um caiu dentro do nosso arame farpado e, por incrível que pareça, bateu numa árvore, tombou para uma vala onde estavam quatro soldados e não rebentou. Só vendo se acredita, e eu vi. Os soldados penduraram na árvore o resto da fuselagem do foguetão, como um autêntico troféu de guerra. O local fica a trezentos metros da minha secretaria e esta tarde voltei lá para confirmar o que os meus olhos tinham visto, claramente visto. (...) 
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Cufar, 2 de Julho de 1973

Catió “embrulhou” ontem às seis e meia da tarde. Seis foguetões, como de costume caíram fora do quartel. Em Cufar, ouvem-se sempre os rebentamentos mas a maioria do pessoal está tão habituado que já nem estranha. Hoje, às seis da manhã, acordei com mais pum, catrapum, pum, pum, tão diluídos na distância que voltei a adormecer. Era Gadamael.

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(...) Cufar, 20 de Julho de 1973

 A guerra acalmou, sossegou na nossa zona. Anda tudo admirado, mas isto tem uma explicação, é por causa da época das chuvas que conhece agora o seu auge. Chove todos os dias, as bolanhas, o mato enchem-se de água, é difícil caminhar quilómetros e quilómetros por trilhos na floresta, carregando às costas foguetões, morteiros, granadas, etc., para flagelar um aquartelamento. Num ataque em forma, o terreno precisa de estar firme para um bom apoio e eficiência das armas mais pesadas. No período das chuvas, a terra está mole, húmida, empapada em água. As saídas das granadas de morteiro, por exemplo, fazem com que o tubo de morteiro recue e se enterre no solo. Com as chuvas, os guerrilheiros aproveitam a menor actividade das NT para se reabastecerem, construir tabancas, trabalhar nos arrozais.

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(...) Cufar, 26 de Setembro de 1973

 O PAIGC declarou ontem a independência. Por aqui nada mudou a não ser que agora, oficialmente, somos nós portugueses quem está a ocupar a pátria deles.

Temos um novo tenente-coronel no CAOP 1, com apenas cinco dias de Guiné. Andou pelo Estado-Maior e fez comissões em Angola e Moçambique, sempre nas delícias do ar condicionado. Está a estranhar as realidades deste abençoado lugar. Ontem até chamou Cafur a Cufar! No dia em que chegou, Bedanda esteve aí a “embrulhar” durante uma hora, com foguetões 122, mais de trinta, sem consequências. Meio assustado, o tenente-coronel perguntou-me: “Isto é sempre assim?” Eu respondi-lhe: “Não, meu tenente-coronel, isto costuma ser muito pior!”


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(...) Cufar, 8 de Novembro de 1973

 Os dias fabulosos, as histórias que não conto, os whiskies que bebemos, às vezes a morte, espantalho de sangue agitado ao vento diante da menina dos olhos.

De madrugada, Gadamael, chão com cadáveres, juncado de medos. Quarenta e seis foguetões 122 disparados pelos guerrilheiros do PAIGC sobre o aquartelamento, aqui a sul, na fronteira. Apenas me apercebi de rebentamentos distantes, no sono do resto da noite. É normal, já nem estranho. Mas na mente de cada um de nós, a preocupação cresce. Quarenta e seis foguetões sobre Cufar, como seria?

As bebedeiras, cerveja, vinho, whisky, o álcool a circular no sangue temeroso. Os homens tontos de mágoa, solidão e medo.


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(...) Cufar, 11 de Novembro de 1973

 Outro dia duríssimo para Gadamael. Às seis da manhã, eu dormia mas acordei sonolento com os muitos rebentamentos distantes. Foram duas horas de flagelação com quarenta e dois foguetões 122. Tiveram dois mortos e muitos feridos.

Quando chegou a Cufar, o meu tenente-coronel “periquito” vinha cheio de ideias para pôr num brinquinho o que resta do CAOP 1. Começa a baixar a cabeça, a entrar na realidade. Ficou alterado com os ataques a Gadamael, hoje à noite apanhou uma bebedeira monumental. As pessoas, quer as do pequeno, quer as do grande mando, quando têm vinho dentro ficam claras como água.


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(...) Cufar, 14 de Novembro de 1973


Vieram os “jactos do povo”, como os guerrilheiros lhes chamam. Gostei, desta vez não apontaram aos vizinhos do lado, era connosco e, como costuma acontecer, tivemos sorte. Foram disparados oito foguetões 122 e só rebentaram três, a mais de quinhentos metros de Cufar.

Eram oito da noite, eu estava no gabinete do capitão a jogar xadrez com o Eiriz, o alferes das transmissões, quando ouvimos o silvo de um foguetão e um primeiro rebentamento. Saltámos rapidamente para a vala situada ao lado do edifício onde já havia gente abrigada, caímos uns por cima dos outros e ficámos quietinhos, à espera. Uns dez minutos depois, porque não havia mais foguetões, saímos da vala, não muito assustados. Foi um ataque pequeno, daqueles que só servem para criar insegurança e medo.

O médico, o Bastos, ficou por baixo de uma molhada de alferes e saiu da vala zangadíssimo, agastado com o Miguel Champalimaud (sobrinho do António Champalimaud, o “tio Patinhas” português). O rapaz caíra-lhe em cima e, com os foguetões a rebentar, o Miguel peidara-se, cagara-se como um rei por cima da cabeça do Bastos. Uma cena de antologia digna do Chaplin, do “Charlot nas Trincheiras da Guiné”. (...)

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(...) Cufar, 21 de Novembro de 1973

Guerra todos os dias. Ontem às seis de tarde, hoje às seis da tarde. Ontem foi Cobumba, estávamos a começar a jantar e pum, catrapum, pum, pum. Alguns de nós saltaram das mesas e começaram a correr para as valas. Cobumba fica aqui mesmo ao lado e como têm lá uma nova companhia de “periquitos”, os guerrilheiros trataram de lhes fazer condigna recepção, com foguetões, morteiros, canhão sem recuo, tudo a disparar numa cadência de fogo impressionante. O pessoal de Cobumba teve sorte, estão lá estacionados quatrocentos homens – a companhia velha e os “periquitos” que os vêm substituir – e não sofreram uma beliscadura.

Hoje foi a vez de Gadamael, já não era atacada há dois dias e meio! Embora muito mais distante do que Cobumba, ouviam-se os rebentamentos com extrema nitidez. Foram só vinte minutos de fogo, também a um ritmo capaz de assustar o mais valente, as granadas rebentavam de dez em dez segundos. Não sei se houve consequências para as NT em Gadamael, mas a flagelação foi tremendamente feia. O ataque a Cufar dia 13 passado, comparado com estes dois que ouvi ontem foi uma brincadeira.


Em resumo, a nossa tropa anda acagaçada. O PAIGC movimenta-se, põe, dispõe e manda lembranças. Começamos a ver a guerra com os olhos cada vez mais tortos. A aviação actua, os Fiats fartam-se de bombardear aqui em redor, numa cintura aí de quarenta quilómetros. Volta e meia ouvimos o zumbido dos aviões a jacto e os rebentamentos secos das bombas a cair. (...)
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(...) Cufar, 4 de Dezembro de 1973


Mais foguetões 122 e de novo para Cufar, direccionados para o interior do nosso aquartelamento. O Chugué, há dois dias levou com vinte e cinco foguetões, sem consequências, Gadamael tem sido tão flagelada, com consequências, que já perdemos a conta ao número dos foguetões. Nós, mais humildes, fomos brindados com dez projécteis explosivos disparados durante quinze minutos.

Eram nove e um quarto da noite, eu estava na varanda do meu quarto a ouvir a BBC e senti o silvo, os rebentamentos próximos. Logo de seguida soaram as rajadas das nossas metralhadoras. Os foguetões IN caíram todos fora do perímetro de Cufar, felizmente. É o costume, são disparados de muito longe, a onze quilómetros de distância, os guerrilheiros têm má pontaria, os foguetões são difíceis de orientar, ou desorientam-se no ar, e por isso não costumam acertar. Mas assustam, assustam sempre.

Vim ter com os meus soldados. Havia uma certa excitação, ainda para cúmulo choveu esta tarde. As valas estavam cheias de água e lama, e uma vez mais havia soldados que saíam das valas cobertos de lama, borrados de medo.

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(...) Cufar, 9 de Dezembro de 1973

 Esta noite fui obrigado a ir dormir a cama alheia. Ao chegar ao quarto, deparei com uma majestosa invasão de formigas gigantes baga-baga, aquelas que ostentam umas tenazes afiadas e mordem como santolas. Haviam entrado por duas frinchas na parede grossa e começavam a fabricar o seu formigueiro exactamente sob o vão do colchão da minha cama. Não as contei, mas seriam cinco a dez mil formigas laboriosas e trabalhadoras que tinham tido o bom gosto de habitar o espaço onde durmo. Era tarde, quase meia-noite, estivera a jogar xadrez, limpei cinco alferes, começo a jogar bem. Depois, não havia insecticida à mão e, à paulada, não era fácil correr com aqueles milhares de monstros pequeninos. Por isso, peguei nos meus lençóis, na almofada e resolvi ir pedir asilo ao meu amigo alferes Neto, da 4740, que habita um quarto grande, com duas camas.

Às cinco menos dez da manhã, fomos acordados pelos pum, catrapum, pum, pum. Era Cobumba, os nossos vizinhos mais próximos. Mais um ataque filho da puta! Estava tudo a dormir e durante meia hora a cadência de fogo era impressionante. Se fosse connosco, lá teria eu de fugir em cuecas para a vala. Cobumba levou o tratamento do costume, foguetões, canhão sem recuo, RPGs e morteiros. Também como é habitual, nem uma beliscadura nos duzentos homens que por lá padecem.

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(...) Cufar, 21 de Janeiro de 1974 

Cumpriu-se um ano sobre o assassinato do Amílcar Cabral e o PAIGC comemorou a data. Aqui na zona atacaram os aquartelamentos de Gadamael, Cafal, Cafine, Cadique, Cobumba, Bedanda, Chugué, Catió e … Cufar. 

Eram dez da noite, sozinho no quarto, lia umas “Vidas Mundiais” antigas e ouvia uma cassete com o Concerto de Aranjuez, de Joaquin Rodrigo. Por cima da guitarra e dos violinos espanhóis gravei outra música, outro concerto, uma parte do ataque, rebentamentos, tiros, rajadas, mais rebentamentos, meti na fita a minha reacção onde se nota algum nervosismo e se ouvem demasiados palavrões. Assim:
(…)

Boum, boum, pum, catrapum, pum.
-Aí está, um ataque!...Caralho! Um ataque, foda-se!

Tá, tá, tá, tá, tá.
- Um ataque, caralho! Venham mais. Aí vêm elas!...

Boum, boum…
- Tumba, um foguetão, caralho!...

Boum, boum, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, pum.

- Dá mais Manel! Estamos a levar no coco, estamos a “embrulhar”, caralho!

Pum, catrapum, tá, tá, tá, tá, tá, tá…
- Espera aí um bocadinho!

Boum…
- Espera aí que me eu vou-me já vestir, espera aí um bocadinho!
- Tumba, aí vem outra… Toma lá mais!...Espera aí um bocadinho, João…

Boum, boum…
- Estou-me a vestir, é preciso é calma!

Boum, pum, pum…

- Espera aí um bocadinho, estou-me a vestir, é preciso é calma.

Boum, boum…
- Estamos a “embrulhar”, caralho! É preciso ter calma. Estou no meu quarto. Hoje é o dia…

Boum, boum…
- Tumba, tumba, tumba!...

Boum, boum, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá tá, tá, tá, tá, tá, pum, catrapum, pum...

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(...) Cufar, 22 de Fevereiro de 1974

 Regressei [, de Bissau,] no Nordatlas, na viagem certinha até cá abaixo. Tudo calmo em Cufar. No nordeste da Guiné, em Copá junto à fronteira, é que tudo vai mal. Mal para as NT, bem para o IN. Ouvi falar num ataque com cem foguetões, valha-lhes Deus! Começa a ser insustentável aguentar Copá.

Em Portugal as coisas também aquecem, com manifestações contra a carestia de vida organizadas pelos maoístas do MRPP. Houve pancadaria da grossa, três polícias feridos, um deles levou uma pedrada na cabeça. O povo não anda bom.

Em Bissau rebentou uma bomba no quartel-general. E que dizer do novo livro de António de Spínola “Portugal e o Futuro”? O antigo Caco Baldé, meu ex-comandante-em-chefe, propõe soluções federalistas para a resolução dos conflitos do Ultramar. O livro vai ter sucesso entre os liberais, o grupo do Balsemão e do “Expresso, e também entre alguma da Oposição. Abençoadamente, agitará os espíritos de muitos portugueses.

O Marcello Caetano começa a ficar exasperado. No essencial, o mestre de Direito limitou-se a dar continuidade à política de Salazar e não sabe, ou esqueceu-se, como diz o Bob Dylan que “the times, they are a’changin”. O general Spínola aponta caminhos enviesados, é verdade, mas indica possíveis saídas para o pântano fétido em que vivemos.

Que futuro para Portugal?
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(...) Cufar, 28 de Fevereiro de 1974

O nosso 1º. sargento Afonso informa-me que o tal alferes Saldanha nomeado para me render, já está em Bissau mas não virá para Cufar, foi colocado na secretaria do Batalhão de Comandos, no Cumeré, logo ali às portas da capital. Quer isto dizer que já estou substituído na província, o que vai acelerar a minha rendição definitiva. A partir de Bissau, o 1º Afonso é impecável, interessa-se pela nossa vida, conhece todas as capelinhas de Bissau, trata dos nossos assuntos com extremo cuidado e rigor. É um diamante no CAOP1.

Mais uma história de guerra. D. Cecília Supico Pinto, a “generala Cilinha” do Movimento Nacional Feminino anda de visita à Guiné, a dar coragem e conforto moral aos briosos militares que defendem a integridade do império. No seu peregrinar por este sagrado solo pátrio desembarcou segunda-feira passada em Cacine, de helicóptero, às nove da manhã. Às onze o aquartelamento foi atacado com trinta e seis foguetões, uma flagelação que se prolongou por hora e meia. Só se registaram alguns estragos em tabancas, mas dizem-me que a Cilinha mostrou alguma coragem, aguentou-se muito bem, aninhada como toda a gente no fundo de uma vala.

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(...) Cufar, 12 de Março de 1974

 Os guerrilheiros continuam a marcar pontos. Caboxanque tem sido massacrada. Ontem, flagelação às quatro e vinte da madrugada. Acordei sobressaltado. Caboxanque fica mesmo aqui em frente, a oito quilómetros em linha recta e, ao ouvirem-se os primeiros rebentamentos, não sabemos se é com os outros ou connosco. Estes nossos vizinhos estão a ser atacados todos os dias. Bedanda, ontem, também esteve sob o fogo dos foguetões durante duas horas. Tiveram dois feridos, um deles gravíssimo, com um estilhaço na cabeça. Noite, escura desceram o rio até Cufar, Depois, a cena habitual, iluminar a pista, esperar pelo Nordatlas, evacuar o rapaz para Bissau.

Não estamos livres, um destes dias de sermos também atacados. Todos pensamos nisso, todos pensamos que da próxima vez pode ser qualquer um de nós a levar com um estilhaço, a ser desfeito por um projéctil qualquer.

Ontem também tivemos um problema grave mas de outra natureza, um enorme incêndio. Se soprasse mais vento ardiam as tabancas todas dos negros. As casas são construídas com estacas e adobe, têm telhados de colmo, não chove desde Dezembro, está tudo ressequido e em três tempos o fogo avançou de tabanca em tabanca. Arderam seis.

Parece que o incêndio começou com o rebentamento de um fogareiro a petróleo. Teria sido fácil controlá-lo se não se tivesse pegado à tabanca do lado onde o pessoal das Fox, as viaturas blindadas, guarda o seu material e tem uma espécie de paiol. Ora com as tabancas a arder e com muitas granadas dentro de uma delas, foi um festival de rebentamentos e estilhaços projectados pelo ar. A maioria da população negra fugiu para longe, mesmo assim houve imensa sorte porque ninguém foi atingido. Mais desgraças para os pobres negros que ficaram sem casa.

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(...) Cufar, 3 de Abril de 1974 

A guerra está feia. Bedanda embrulhou durante todo o dia, um ataque tremendo, doze horas consecutivas de fogo. A festa só acabou à noite com uma espécie de cerco à povoação levado a cabo pelos homens do PAIGC.

Em Cufar, tão próximo, além de distinguirmos nitidamente as rajadas de metralhadora de mistura com os rebentamentos dos RPG, foguetões e canhão, à noite viam-se as balas tracejantes e as explosões no ar. Uma novidade, os guerrilheiros utilizaram viaturas blindadas na flagelação a Bedanda. Existe uma estrada que vem da Guiné-Conacry, passa junto a Guileje – abandonada pela tropa portuguesa, – entra pela região do Cantanhez e termina em Bedanda. O IN está a utilizar esse percurso para deslocar camiões carregados com todo o tipo de armamento, em seguida é só despejar sobre os aquartelamentos portugueses mais expostos e fáceis de alcançar, como Chugué, Caboxanque, Cobumba, Bedanda, Cadique e Jemberém.

Bedanda é uma povoação grande, a maior do sul da Guiné depois de Catió. Terá uns cinco mil habitantes e ontem já se falava em abandonar o aquartelamento. A população africana saiu da vila, ficando por próximo.

Bedanda levou com mais de sessenta foguetões e centenas e centenas de granadas de RPG, morteiro e canhão sem recuo. Foi medonho, há muita coisa destruída, mas tiveram sorte, contam-se apenas dois feridos, um furriel e um negro que levou um tiro nas costas. A tropa passou mais de doze horas metida nas valas.

Espera-se novo ataque a Bedanda. As NT já foram remuniciadas e há promessa de se enviarem mais militares para defender a terra. Os guerrilheiros também devem ter ido descansar e reabastecer-se.

Todas estas flagelações, apesar de serem destinadas aos vizinhos do lado, deixam marcas em todos nós. São horas, dias, meses a ouvir continuamente o atroar dos canhões da guerra. Eu ando um bocado desconexo, excitado, “apanhado”. Quase não tenho dormido, são as sensações finais, o cansaço, o desamor à mistura com o alvoroço do regresso a casa. (...)


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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 4 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9308: Excertos do Diário do António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (3): Começar o ano novo com medo de levar uma porrada