quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Guiné 63/74 - P9432: Estórias avulsas (59): Uma aventura, nas férias de Natal de 1973, aos 17 anos... em Cufar, Rio Cumbijã e Cadique (Pedro Gonçalves Vaz)

1. Mensagem do Luís Gonçalves Vaz, com data de 31 de janeiro último:



Assunto - Estória de mais um filho do último CEM do CTIG  Coronel Henrique Gonçalves Vaz

(...) Consegui autorização para publicar a 'estória' do meu irmão José Pedro, que se encontra no Brasil como Administrador de uma Empresa Portuguesa (é engenheiro mecânico de formação), sobre um dos diversos episódios que viveu na Guiné, nos anos de 1973/74, aquando das visitas que fazia à família, já que se encontrava na Escola Naval, em Lisboa a estudar. Enviou-ma hoje do Brasil. Podem Publicar. (...)



2. História no Ultramar com José Pedro Gonçalves Vaz [, na foto acima, aos 17 anos, na ilha de Bubaque, Bijagós]

Bissau-Cufar-Cadique
Data: Dezembro de 1973
 

Sempre tive algum receio de voar, para não dizer medo (que fica muito mal para quem hoje viaja tanto de avião como eu), mas nos meus 17 anos eu queria muito era experimentar o helicóptero.


Estava eu na Guiné a passar umas férias de Natal, em 1973, com os meus pais, quando soube que o meu pai, que era na altura, o Chefe do Estado-Maior do CTIG, coronel Henrique Gonçalves Vaz, ia visitar uns aquartelamentos no Sul da Guiné. Julgo que era Cufar e Cadique ! O plano de visitas dessa semana ao “mato” do meu pai, era esse. O que me lembro melhor é que soube que iria de helicóptero, oh que maravilha!… 


Passei essa semana a pedir ao meu pai que me levasse nessa saída. Para que se perceba, eu apesar de ter apenas 17 anos, era já um jovem cadete da Escola Naval, como tal seria “normal” ir-me habituando ao Teatro de Operações da Guiné, no entanto não era esse o meu pensamento, o que eu queria era “ter acção” de helicóptero!


Depois de muito insistir, ele lá concordou em me levar. No dia D, pelo mês de Dezembro de 1973 (nas minhas férias de Natal), entregou-me, logo ao início da manhã, um camuflado (e uma G3) e disse: 
- Veste-o, e prepara-te bem já que vais ver o que te espera logo que saíres da Escola Naval! 


Eu, todo contente, lá o vesti. O tamanho, era de um tipo muito mais pequeno do que eu! Ficava com metade das pernas e dos braços “descamuflados”! Tenho pena de não ter fotografias dessa minha experiência marcial. Depois das habituais recomendações, que incluíam o uso da G3 em caso de ataque e a responsabilidade do grupo, lá nos dirigimos para o local de embarque. 




Último CEM do CTIG, nesta fotografia ainda major Henrique Gonçalves Vaz, não no rio Cumbijã na Guiné, mas no rio Chiloango,  em Cabinda (1964 ) com apoio dos Fuzileiros. Como era de sua “tradição”, visitava todos os aquartelamentos, para onde realizava operações como oficial do Estado-Maior. Cadique não foi esquecido, como muitos outros aquartelamentos no Teatro de operações da Guiné, nos anos de 1973 e de 1974.


Oh… grande desilusão! Afinal, por qualquer razão logística de que não me lembro (talvez a necessidade do helicóptero nesse dia para evacuar feridos nalguma zona do TO), a viagem não ia ser realizada de helicóptero mas sim por outros meios de transporte. Não me lembro bem até chegar ao rio Cumbijã, mas o que era costume (informações de ex-combatentes) era ter ido de avião até Cufar (que fica entre Catió e Bedanda) e depois, e disso lembro-me muito bem, fomos de sintex até Cadique, na outra margem do Cumbijã. 


Chegados ao rio tivemos direito a um pequeno briefing para iniciarmos a parte mais crítica, visitar Cadique pelo rio Cumbijã. O medo e a adrenalina estavam em níveis crescentes, e finalmente recebi instruções e lá me instalei com o restante pessoal, deitado no fundo da embarcação com a G3 apoiada na borda a apontar para a minha margem. Saímos do porto grande no rio Cumbijã em direcção ao aquartelamento de Cadique seguindo rio abaixo até que chegámos ao nosso destino, no lado oposto do rio relativamente ao ponto de partida. 


Nesse percurso lembro-me muito bem da tensão na viagem, sempre à espera de sentir uma saraivada de balas disparadas de alguma das margens com o tarrafo bastante alto, mas eu estava bem “mentalizado” para uma reacção imediata da nossa parte. Hoje penso que tivemos muita sorte em não termos sido atacados. Naquela altura, terei ficado um pouco desiludido já que, nessa idade, somos todos um pouco loucos. 


Do que lembro hoje, a viagem decorreu sem qualquer incidente, com uma duração que me pareceu um eternidade, mas não foi, já que cada barco sintex tinha um valente motor de 50 cavalos, com uma velocidade de cerca de 18 nós e o percurso não teria mais que meia dúzia de km. A “escolta” do CEM/CTIG, não ultrapassaria dois sintex com uma dúzia de militares bem equipados e com sentido de missão. 


Chegámos, finalmente, a Cadique e tive mais uma desilusão, o nosso destino não passava de um aquartelamento cercado de arame farpado com meia dúzia de “tabancas” em redor. O Comandante, o Tenente-coronel Sousa Teles (1) teve um meeting com o meu pai, do qual recordo apenas a discussão sobre o número de rádios e outros equipamentos que o Comando do CTIG poderia disponibilizar para esse aquartelamento. A minha impressão actual é que a visita do meu pai, o CEM/CTIG, coronel Henrique Vaz, teria também o objetivo de expressar um apoio aos militares que ali combatiam em condições adversas já que, pelo que sei hoje, Cadique era frequentemente fustigada por ataques do PAIGC. Depois de tratarem dos “negócios” militares, convidou-nos então a dar uma volta de jeep pelo exterior do quartel.




Recorte de uma imagem do mapa da Guiné (escala 1/ 500 mil), onde é possível ver a localização do campo de aviação em Cufar, bem como o itinerário entre o porto novo de Cufar e Cadique.


Mais uma surpresa, naquele fim de mundo havia uma estrada asfaltada [, Cadique-Jemberém], no meio de uma selva cerrada, que, não acredito, levasse a lugar algum!


Ao fim de algum tempo (pouco…), encontrámos duas mulheres negras que caminhavam na nossa direcção. O Comandante parou o jeep e iniciou uma conversa com as mulheres numa linguagem para mim completamente estranha. Subiu uns pontos na minha consideração, pois falava perfeitamente o dialecto local… Impressionante! Depois de se despedir das mulheres, virou-se para o meu pai e disse:
- Meu coronel os “turras” estão aqui perto pelo que, sem escolta (só íamos os três, mas eu levava a minha G3…), não é aconselhável ir mais além. O meu pai concordou com o oficial conhecedor da “realidade” local e voltámos para trás.





Cadique, em 2008, integrado na área do Parque Nacional de Cantanhez. (Fotografia gentilmente cedida para este artigo pelo ex-combatente Eduardo Campos, membro da nossa Tabanca Grande, ex-)





Do regresso, nada me lembro, não me impressionou comparado com o que tinha acabado de viver naquele local recôndito, bonito mas perigoso.

Nunca me esqueci de duas coisas desta estória, e que foram importantes na minha vida: (i) o dilema que o meu falecido pai, coronel Henrique Gonçalves Vaz, deve ter tido para me autorizar a ir com ele; (ii) e o profissionalismo daquele Comandante do mato. 


Um ano após este episódio cheguei à conclusão que a minha vocação não era a carreira militar e mudei de ramo.


Curitiba [, Brasil,] 30 de Janeiro de 2012

José Pedro Beleza Gonçalves Vaz
(filho do último CEM do CTIG na Guiné)


Fotos: © Luís Gonçalves Vaz (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.
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Nota do irmão do autor, LGV:(1) Informação gentilmente dada pelo camarigo Eduardo Campos (ex-1.º Cabo Trms da CCAÇ 4540, Cumeré, Bigene, Cadique, Cufar e Nhacra, 1972/74)

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Nota do editor:


Último poste da série > 6 de novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9004: Estórias avulsas (117): Posto avançado ou vala comum? (Carlos Filipe) 

Guiné 63/74 - P9431: O Nosso Livro de Visitas 126): Fernando Paiva, Pel Caç Nat 57, Mansoa e Bindoro, abril de 1967/abril de 1969






Guiné > Região do Oio > Mansoa > BCAC 2885 (1969/71) > Posição relativa do antigo destacamento de Bindoro, a sul de Mansoa. na margem direita do Rio Geba (Largo)


Infogravuras:   Jorge Picado (2011). Todos os direitos reservados.


1. Mensagem, com data de 20 novembro de 2011, do nosso camarada e leitor Fernando Paiva


Caro Luis Graça,

Tomei conhecimento deste seu trabalho de promover ligações entre gente que esteve na Guiné, através duma sua amiga, Laura Fonseca, que conheci, recentemente.

Também estive na Guiné, de Abril de 67 a Abril de 69.

Fui, em rendição individual, para criar o Pel Caç Nat 57, em Mansoa. A pá e pica, construímos o Destacamento de Bindoro, onde permaneci, até Julho de 68, quando fui transferido para Bolama.

Vivi, diariamente, quase ombro a ombro, com aqueles fantásticos Balantas, gente muito boa e corajosa, que aprendeu, às suas custas, a melhor maneira de coexistir com a tropa e o PAIGC, num "jogo de cintura" que eu julgo ser muito comum, em períodos de guerra civil, como foi aquele em que se viveu, na Guiné.

Gostava de ter alguma informação, quer da gente do Bindoro, quer dos militares, de cá e de lá, com quem partilhei alguns dos momentos mais emocionantes da minha vida.

Muito obrigado pela sua iniciativa e pela sua dedicação.

Fernando Paiva
Amarante

2. Comentário de L.G.:

Camarada Paiva: quero-te pedir (entre camaradas da Guiné tratamo-nor por tu), antes de demais,  desculpa pelo atraso com que a tua mensagem chega ao conhecimento dos nossos leitores... São quase dois meses e meio. O que se passa é que não somos tão profissionais quanto gostaríamos de sê-lo.  Ou melhor: não dedicamos (nem podemos dedicar) ao blogue o tempo que seria preciso para dar conta de todos os recados... Mas a tua mensagem, por algum tempo perdida ou esquecida, aí está à luz do dia... 

Apreciei muito a tua mensagem. Em primeiro lugar, por vires referenciado por uma amiga muito especial, do Porto, que conheço há quase 40 anos, a Laura Fonseca. Ela falou-me de ti e, se não me engano, és ou vives em Amarante. Se sim, somos vizinhos, porque também tenho casa no Marco de Canaveses. E depois por seres um do homem do Pel Caç Nat 57, por teres andado por Mansoa e por Bindoro, e  por nos teres falares dos balantas com tão grande apreço e inteligência... 


Vou-te convidar para te sentares aqui ao nosso lado, à sombra do nosso poilão, nesta Tabanca Grande que não tem muros, nem arame farpado, nem cavalos de frisa, nem abrigos, nem espaldões, nem ninhos de metralhadora... É um espaço de partilha de memórias e e de afetos, onde cabem todos os camaradas da Guiné, sem qualquer distinção. 

Acontece, além do mais, que não temos ninguém do Pel Caç Nat 57, temos gente de (ou referências a) todos os Pel Caç Nat  do 50 ao 70, com exceção do 57. Tu serás o homem certo para nos falares dessa unidade que ajudaste a criar.  O mesmo se passa com gente do Bindoro: pouco sabemos desse lugar. Como pouco também temos falado dos nossos amigos balantas... Um abraço de boas vindas. Luís Graça
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Nota do editor:

Último poste da série > 31 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9425: O Nosso Livro de Visitas (125): Amílcar, ex-Fur Mil Inf Op da CCS/BCAÇ 4512 (Farim, 1972/74)


Guiné 63/74 - P9430: Parabéns a você (375): Germano Santos, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 3305/BCAÇ 3832 (Guiné, 1970/73)

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 29 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9414: Parabéns a você (374): Luís Graça Henriques, ex-Fur Mil Armas Pesadas da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Guiné, 1969/71) e fundador deste Blogue

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Guiné 63/74 - P9429: Nós da memória (Torcato Mendonça) (7): Finalmente Bissau - Fotos falantes IV

Finalmente Bissau - Palácio do Governador






1. Mais um texto do nosso camarada Torcato Mendonça (ex-Alf Mil da CART 2339 Mansambo, 1968/69) para integrar os seus "Nós da memória", ilustrado com fotos falantes da sua IV série.





NÓS DA MEMÓRIA - 7
(…desatemos, aos poucos, alguns…)

3 - GUINÉ

Difícil para mim falar daqueles dias – dois ou três – depois da chegada à Guiné ou, mais concretamente, a Bissau.

O desgaste provocado pelos anos, a influência posteriormente sofrida pelo que vi e vivi, fiz e mandei fazer pode, de algum modo, deformar a maneira como recordo esses tempos. Talvez mais forte, mais determinante no arrumar de ideias, seja o que, principalmente e ultimamente, tenho lido neste nosso blogue. Há palavras, frases que se escapam ao politicamente correcto, digamos assim, e vêm-nos dizer tanto. São libertações de sentimentos reprimidos, vãs tentativas de se parecer cordeiro vestindo a sua pele sobre corpo de lobo velho ou novo. É natural que assim seja.

Eu, tu ou muitos “eles” podemos pensar de modo diferente. Porquê? Somente porque não fomos os agredidos, os humilhados e ofendidos, os despojados ou desalojados mesmo de poderes injustos e efémeros.

Eu, tu ou muitos “eles” voltamos e tentamos esquecer. Impossível fazê-lo totalmente. O mais forte, o que mais nos marcou ficou para sempre Será o infinito a apagar tudo isso.

Temos algo em comum eu, tu ou muitos “eles”: - Não esquecer, jamais perdoar as cobardes injustiças e colocar cada um em seu lugar.

Quando aqui escrevi, talvez a segunda vez, disse-o. Mantenho e assumo.

Temos igualmente em comum o gosto por aquela terra e aquelas gentes das Tabancas.
Contudo o elo mais forte entre nós é o termos sido combatentes. Termos passado por situações difíceis, termos dialogado com a morte e a sorte. Muitos quase a deixaram de temer, ou, em momentos de quase desespero quase a desejaram. O medo? O medo era uma constante e inesperadamente desaparecia como por magia, não existia tempo para ele e surgiam os automatismos treinados quase até à exaustão. Lembras-te? Claro que sim.

Seria o saber da incerteza do momento seguinte, a incerteza como hoje aqui relato essa parte do passado que nos leva a falar, a apelar à memória para fiel, o mais fielmente possível, contar a versão subjectiva, sempre subjectiva, de tudo o que se passou.

Não sei! Mas ouso fazê-lo honestamente.

Ressalvo o tudo e fico no muito. O tudo não por ser impossível.
Fiquemos no muito, na recordação, na subjectividade e no possível

 A Sé

Forte da Amura

Texto e fotos ©: Torcato Mendonça (Fotos Falantes IV) 2012. Direitos reservados
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 30 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9419: Nós da memória (Torcato Mendonça) (6): África, adeus - Fotos falantes IV

Guiné 63/74 - P9428: Turismo de saudade (3): Fotos da cidade Bissau em 07 de Janeiro de 2012 (TCor José Francisco Robalo Borrego)

1. Dizia-nos no poste* anterior o nosso camarada José Francisco Robalo Borrego (Ten Cor (R), que pertenceu ao Grupo de Artilharia n.º 7 de Bissau e ao 9.º Pel Art, Bajocunda , 1970/72) que no dia 7 de Janeiro de 2012 fez em Bissau um passeio a pé, ida e volta, recordando outros tempos, desde o Quartel-general, Santa Luzia, até ao cais do Pidjiguiti, aproveitando para tirar algumas fotos na cidade.

Quando regressava para Santa Luzia, pedi uma informação a um guineense, na casa dos 60, sobre uma rua o qual se prontificou a informar-me e depois de eu lhe dizer que tinha lá estado, há quarenta anos, na guerra colonial, ele disse-me que também tinha sido combatente da liberdade da pátria, ou seja, do PAIGC, mas que agora éramos amigos, o que eu concordei plenamente com ele. Fomos andando no mesmo sentido e ele amavelmente ia-me transmitindo as alterações geográficas, entretanto, ocorridas. No fim, abraçámo-nos desejando boa sorte mútua.na sua mensagem de 19 de Janeiro de 2012:

Aqui ficam algumas fotos da cidade de Bissau actualmente:

Aeroporto Internacional Osvaldo Vieira da Guiné-Bissau

Forte da Amura

Assembleia Nacional Popular da Guiné-Bissau

Mercado de Bandim

Catedral de Santa Luzia

Estátua de Amílcar Cabral na Rotunda do Aeroporto

Ex-Batalhão de Intendência

Ex-Liceu Honório Barreto

Os Toca-toca, popular meio de transporte da Guiné-Bissau

CONCLUSÃO:

Foram cinco dias intensos e à excepção de Santa Luzia e das unidades e órgãos militares que dela faziam parte, todos os outros locais que visitei, fi-lo pela primeira vez. Por falta de tempo não visitei Bajocunda, minha primeira saída para o mato, mas quem sabe, talvez numa próxima oportunidade!

Despeço-me com um abraço de amizade a todos os ex-combatentes portugueses e guineenses.
José Francisco Robalo Borrego
TCOR (R)
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 30 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9420: Turismo de saudade (2): Mini-diário e fotos da minha visita à Guiné-Bissau (José Francisco Borrego)

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9427: Agenda Cultural (185): Ciclo de Conferências-debate Os Açores e a Guerra do Ultramar - 1961-1974: história e memória(s) (Carlos Cordeiro) (10): Intervenção da Prof. Dra. Célia Carvalho, dia 3 de Fevereiro de 2012 no Anfiteatro B da Universidade dos Açores (Carlos Cordeiro)

1. Mensagem do nosso camarada Carlos Cordeiro (ex-Fur Mil At Inf CIC - Angola - 1969-1971), Professor na Universidade dos Açores, dando-nos notícia de mais um acontecimento integrado no "Ciclo conferências-debates Os Açores e a Guerra do Ultramar – 1961-1974, história e memória(s)":

Meu caro Carlos,
Na próxima 6.ª feira teremos a nossa sexta conferência do ciclo de conferências-debate "Os Açores e a Guerra do Ultramar: história e memória(s)". Junto a notícia, nota biográfica e foto da conferencista, cartaz, prospeto (a foto do prospeto foi amavelmente cedida pelo nosso camarada e especial amigo José Câmara - encontro da CCaç 3327 "Os Nómadas", Angra do Heroísmo, Agosto de 2011), capa do livro (foto gentilmente cedida pelo camarada Humberto Reis). Acho que está tudo... e já não é pouco, para o trabalho que te estou a dar.

Um abraço do
Carlos



Ciclo de conferências-debate
Os Açores e a Guerra do Ultramar - 1961-1974
História e memória(s)

No âmbito do ciclo de conferências-debate “Os Açores e a Guerra do Ultramar – 1961-1974: história e memória(s)”, Célia Carvalho – Professora da Universidade dos Açores e Psicóloga Clínica/Psicoterapeuta, – proferirá, no próximo dia 3 de Fevereiro (6.ª feira), a conferência “Ressonâncias do passado com ecos no presente: tempo de fazer as pazes com a vida”.

Na mesma sessão será apresentado o livro, da autoria do antigo combatente Lino de Freitas Fraga, "Pátria porque nos abandonas? Sofrimentos de uma guerra".

A apresentação da obra estará a cargo de Carlos Cordeiro (foto à direita), coordenador da Comissão Científica do ciclo de conferências-debate.

O evento terá lugar no anfiteatro “B” do Pólo de Ponta Delgada da Universidade dos Açores, com início pelas 17H30, e estará aberto à participação de todas as pessoas interessadas.

Com início em Maio do ano transato, esta é a sexta conferência do ciclo de conferências-debate “Os Açores e a Guerra do Ultramar – 1961¬ 1974: história e memória(s)", uma organização do Centro de Estudos Gaspar Frutuoso do Departamento de História, Filosofia e Ciências Sociais da Universidade dos Açores.



Nota biográfica da Doutora Célia Carvalho

Natural de Coimbra, Célia Maria de Oliveira Barreto Coimbra Carvalho é licenciada, mestre e doutora em Psicologia – área de especialização em Psicologia Clínica – pela Universidade de Coimbra. A partir de 2003 passou a exercer as funções de professora da Universidade dos Açores e da Escola Superior de Enfermagem de Ponta Delgada, desempenhando, simultaneamente, atividade clínica. É também Consultora da University of Southern California, onde exerce as funções de Coordenadora Clínica das Investigações sobre as bases Genéticas da Esquizofrenia e dos Distúrbios Bipolares, a decorrer na Região Autónoma dos Açores e da Madeira. Tem integrado equipas de investigação de projetos a nível nacional e internacional.
É autora ou coautora de inúmeros artigos em revistas científicas nacionais e internacionais.

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Nota de CV:

(*) Vd. poste da última conferência-debate de 26 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9098: Agenda Cultural (171): Ciclo de Conferências-debate Os Açores e a Guerra do Ultramar - 1961-1974: história e memória(s) (Carlos Cordeiro) (9): Rescaldo da sessão do dia 23 de Novembro de 2011 (Carlos Cordeiro)

Vd. último poste da série de 24 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9393: Agenda cultural (184): Conferência "Voluntariado: Que futuro?" e Exposição de Fotografia "Rostos", fotos de rostos da crianças da Guiné-Bissau, a ter lugar no El Corte Inglês de V.N. de Gaia, dia 26 de Janeiro de 2012, pelas 17h00, na Sala de Âmbito Cultural, piso 6.

Guiné 63/74 - P9426: (In)citações (38): Mutilação Genital Feminina: As Mães africanas não são malfeitoras! (Jorge Cabral)

 



Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cantanhez > Iemberém > 6 de Dezembro de 2009 > Festa de batizado muçulmano (10h34)... Uma mãe (in)expressiva, uma mater dolorosa...


Foto: © João Graça (2009) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.


 
1. Mensagem do Jorge Cabral, que é jurista, especialista em direito criminal,[ na foto à esquerda, com a uma aluna, de origem guineense, na Universidade Lusófona, em Lisboa, ] e também foi Alf Mil Art, Cmdt Pel Caç Nat 63 (Fá Mandinga e Missirá, 1969/71): Caro Luís,
  

Como não cabe como comentário ao texto "Mutilação Genital Feminina e Eurocentrismo",  do Chemo Baldé (*), ai vai a minha última conferência sobre o assunto.
Atenção, foi proferida antes das alteração do Código Penal da Guiné Bissau. 
Abraço Grande, JCabral.

2.  Conferência do Jorge Cabral, proferida no Barreiro, na Biblioteca Municipal, em 10 de Maio de 2011 > Mutilação Genital Feminina


Muito boa tarde a Todos!


Cumprimento, felicitando a Organização deste evento na pessoa do Dr. Vítor Munhão, bem como a simpática troika que me acompanha. Saúdo os presentes e convido-os a escutar esta tão humilde reflexão.

A chamada Mutilação Genital Feminina (MGF), prática, com milhares e milhares de anos, vem suscitando curiosidade, interesse e preocupação, um pouco por todos o lado, como se tratasse de algum costume novo, fruto de mães criminosas ou culturas inferiores.

Naturalmente vou deixar, para as companheiras Mafalda e Deolinda,  a tarefa de elencarem os tipos e as consequências desta Mutilação, optando por me debruçar sobre o Fenómeno, numa perspectiva global, a qual julgo mais idónea à sua compreensão.

Há quarenta e dois anos assisti a um Fanado na Guiné-Bissau, cerimónia de iniciação, com dor, sangue e lágrimas, mas também solenidade e magia. Ritual importante, confere a identificação sexual, quer nos rapazes pelo corte do prepúcio (a parte feminina) quer nas meninas, pela ablação do clítoris (a parte masculina).

Desde sempre nas minhas aulas de Direito Penal, nos vários cursos, falo da excisão, a propósito da falta de consciência da ilicitude, pois ninguém pode ou deve ser punido, se não tiver interiorizado o ilícito do acto praticado. O problema discutido é sem dúvida importante numa sociedade multicultural. Será possível sobrepor o direito à diferença étnico-cultural ao preceito incriminador?

Creio que nenhum caso foi julgado no nosso País, mas em França ocorreram vários julgamentos e consequentes condenações, de mães originárias da África Ocidental, tendo Lefeuvre-Déotte, recolhido alguns depoimentos impressionantes como estes:

  •  “Fiz excisar a minha filha… não para a fazer sofrer, ou para a mutilar, ou para fazer tudo aquilo de que me acusam neste processo, mas porque é o meu costume, a minha tradição”;
  • “Não quis fazer mal algum, é a minha tradição que me obriga… Eu amo muito os meus filhos. Uma mãe africana não é uma malfeitora…”

Certamente que em Portugal teríamos declarações semelhantes.

A Mutilação Genital Feminina é conhecida em Portugal há séculos. E sempre foi criminalizada. Ofensa Corporal no Código Penal de 1886 que expressamente previa – “se da ofensa resultar cortamento, privação, aleijão ou inabilitação de algum membro ou órgão do corpo…” - a pena será de “prisão maior de 2 a 8 anos". Ou ofensa à integridade física grave nos Códigos seguintes… “Privá-lo de importante órgão ou membro… ou tirar-lhe os, afectar-lhe de maneira grave as capacidades intelectuais ou de procriação ou a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos”…. Cominando uma pena de prisão de 2 a 10 anos.

Parece óbvio que a conduta em causa sempre esteve enquadrada nas disposições citadas. Não é necessária, nenhuma referência específica ao clítoris, grandes ou pequenos lábios… Também não há referência aos olhos ou ao nariz… A não ser que os genitais não façam parte do corpo da Mulher. A questão não é essa. Nós e os outros. A Europa e a África. Cultura, culturas e relação inter-cultural.

Quando é que em Portugal se começou a falar do problema? Creio que só neste século, designadamente a partir dos importantíssimos artigos da Jornalista Sofia Branco, no Jornal – O Público, em 2002.

E no entanto toda a gente sabe que,  na Guiné-Bissau, se praticou e se pratica a utilação Genital Feminina e que,  até a independência, era o Código Penal Português que lá vigorava. Nós e os outros, isto é, uma espécie de apartheid cultural.

Durante a Guerra Colonial, milhares de Portugueses conviveram com essa realidade. Médicos, enfermeiros, padres, agentes da chamada Acção Psico-Social… Respeito pela cultura, pelos costumes, pelas tradições? Ou indiferença? É lá com eles…

Falo de Portugal, mas podia referir outros países europeus. O problema só assume real importância, quando face ao fluxo migratório, a excisão passa a ter lugar também na Europa, entre imigrantes. Quando falo deste tema logo me perguntam:
– E em Portugal, também se pratica?

Longe da vista, longe do coração, traduz esta postura, egocêntrica e europocêntrica, a qual encerra uma visão distorcida e amputada dos Direitos Humanos, que - frise-se - são universais e tão válidos para a menina do Barreiro, como para a menina da Somália. Ou não serão ambas portadoras de igual Direito à Dignidade ? 

Independentemente das diversas e falsas razões que procuram fundamentar o acto, uma certeza se retira – o seu objectivo fundamental é controlar, melhor,  anular a sexualidade feminina.

A mulher como objecto e não como sujeito do prazer sexual. No fundo, no fundo, trata-se de uma visão que acompanhou desde sempre a Humanidade, e que, quer queiramos ou não, ainda resiste, mesmo em sociedades ditas avançadas. Infelizmente, constato que, no plano sexual, não chegámos à igualdade entre Homem e Mulher. Ainda há quem pense que sexo é uma coisa que os homens fazem às mulheres e se calhar as lições que o meu avô me deu – “A mulher para o dever, a puta para o prazer” ou “Quando uma mulher diz não, quer dizer sim”, pelo menos entre alguns, permanecem actuais.

É pois nos Direitos da Mulher que o problema deve ser enquadrado, Direito ao Corpo, Direito à Sexualidade, Direito à Dignidade, Direito à Liberdade, enfim é o estatuto da Mulher na sua integralidade que está em causa. A mulher coisa, a mulher comprada e vendida, a mulher propriedade, a mulher sob o domínio do homem.

Por essa razão de nada valerá tecer armas contra a mutilação, sem lutar contra todas as situações que inferiorizam a Mulher, designadamente a sua compra ou o casamento forçado.

Direito das Mulheres, mas também Direito das Crianças, pois este tipo de prática é efectuado, em crianças menores de idade, na primeira infância (2 – 4 anos) ou na pré-puberdade (9 – 11 anos).

É a Comunidade, é a Família, são os Pais que determinam. Também aqui convém relembrar que os Pais não são donos dos filhos e que toda a sua acção deve ser orientada para a educação e desenvolvimento da Criança, obedecendo sempre ao Interesse Superior da mesma, como a Convenção sobre os Direitos da Criança determina no seu Art.º 18º.

E a mesma Convenção acentua expressamente, no seu Art.º 24º, N.º3 – Os Estados-partes tomam todas as medidas eficazes e adequadas com vista a abolir as práticas tradicionais prejudiciais à saúde das Crianças.

Convenções, Leis, Códigos não nos faltam.

Não conheço nenhum Código Penal que de uma forma ou de outra não penalize este acto, embora o Código Penal da Guiné-Bissau possua um artigo intrigante e de difícil interpretação. É o Art.º 117, que sob a epígrafe “Ofensas Privilegiadas” reza que: “Quem habilitado para o efeito e devidamente autorizado, efectuar a circuncisão ou excisão sem proceder com cuidados adequados para evitar os efeitos do Art.º 115º ou a morte da vítima… (o Art.º 115º elenca de uma forma semelhante ao nosso, as circunstâncias que qualifiquem a ofensa corporal como grave).

Quererá a primeira parte do artigo dizer que a excisão pode ser autorizada, desde que efectuada por quem estiver habilitado?

Indiciará uma medicalização da prática, vendo o problema como uma mera questão de saúde pública? Claro que dadas as condições em que na maioria dos casos é efectuada é também um problema de saúde pública, mas encará-lo apenas dessa forma, é transformar uma complexa cerimónia de iniciação numa intervenção cirúrgica, sem outro objectivo ou razão, senão cumprir o costume. Semelhante actuação é aliás incentivadora, quando não legitimadora da mutilação,  e segundo penso contrária à própria deontologia médica.

Não nos esqueçamos que durante o século XIX e até aos anos 30 do século XX, tanto nos Estados Unidos como na Europa, a ablação do clítoris constituiu tratamento da histeria, da ninfomania e do lesbianismo…

Não existem culturas superiores nem culturas inferiores e o direito à sua própria cultura, à sua identidade cultural, constitui um direito fundamental, inscrito quer no Art.º 27º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, quer na própria Convenção dos Direitos das Crianças, no Art.º 30º.

E assim deve continuar a ser. Não queremos um Mundo de clones, todos iguais, lendo os mesmos livros, escutando as mesmas músicas e comendo os mesmos hambúrgueres, filhos da Globalização Económica e netos da Internet.

Devemos preservar os costumes e as tradições, para sabermos quem somos e donde vimos. Por isso devemos respeitar todas as outras culturas, respeitá-las e compreendê-las, num constante diálogo inter-cultural. Mas cada cultura encerra em si valores e desvalores. Não devemos deixar morrer os valores, mas procurar extinguir os desvalores.

A Mutilação Genital Feminina será um valor cultural a ser respeitado ? É um problema dos outros? Obviamente que não podemos cair em tal relativismo cultural. A ser assim, toleraríamos que as viúvas na Índia fossem enterradas vivas com os falecidos maridos, que os chineses partissem os pés às meninas e até que certas formas de canibalismo continuassem.

Claro que a Mutilação Sexual Feminina é um crime. Não basta porém afirmá-lo. É necessário que aqui e em todo o Mundo, as Pessoas compreendam porque é um crime. Porque causa dor, porque provoca sofrimento, porque inferioriza a Mulher, e a anula, enquanto Ser Humano, na sua Dignidade.

Combatê-la é um imperativo! Mas não através do Direito Penal, cuja eficácia é reduzida e muitas vezes contraproducente.

A repressão penal,  só por si, levará a um maior secretismo, aumentará os riscos da sua prática e determinará um sentimento de discriminação cultural.

Em qualquer lugar a MGF, é igualmente grave, enquanto violação dos Direitos Humanos, cuja universalidade nos impõe, que a sintamos como violação dos nossos Direitos. A lapidação de uma Mulher no Irão, a condenação à morte de um Homossexual na Arábia, ou a mutilação de uma menina no Sudão, constituem ofensas à minha condição de Homem Livre, até porque a minha Liberdade só pode ser assumida em plenitude, num Mundo de Homens e Mulheres Livres.

A universalização dos Direitos Humanos não pode ser olhada como uma espécie de imperialismo cultural. Os valores fundamentais inerentes à condição humana não têm cor, nem latitude, nem religião. Todas as culturas interagem e se completam, se e quando forem objecto de um igualitário e correcto diálogo intercultural, que deve visar a construção de uma cidadania multicultural.

A Mutilação combate-se não através de slogans, mas pelo trabalho em prole da igualdade de género, respeito pela criança, assumpção da liberdade e dignidade humana, numa atitude que não inferiorize o outro, no seu inalienável direito à cultura.

Pratica-se a Excisão em Portugal?

Não sei! Mas sei que aqui vivem centenas de mulheres que sofreram a Mutilação. Elas sim, deviam ser mais do que Testemunhas, Agentes, Intervenientes da Luta, contra a indignidade.

O Fanado é uma cerimónia importante. Deve ser preservado, mas transformado. É possível; substituir a Dor e o Sangue, pela Festa e a Alegria, num Ritual, que troque a realidade do corte, pelo simbólico do gesto ou da dança. Um fanado alternativo que já foi ensaiado, que não marginalize as «Fanatecas» na sua tradicional autoridade,  antes as aproveite como organizadoras. Todos os costumes e tradições podem ser lembrados a nível simbólico.

Não casam as noivas de branco?

Parece que já falei de mais. O meu amor ao povo da Guiné-Bissau, o meu respeito pela sua cultura, a minha admiração pela sua bondade, impõe-me a obrigação de afirmar sentidamente, fazendo coro com a tal Mulher julgada em França:_
-  As Mães africanas não são malfeitoras!

Tratá-las desse modo será frustrar qualquer combate.

Lutar,  sim, mas com inteligência e respeito, porque habitamos o mesmo Mundo e pertencemos à mesma raça – a Raça Humana, lutar sim porque é nossa obrigação contribuir para um Futuro mais Livre, Fraterno e Solidário.

 Muito obrigado

Jorge Cabral

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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 30 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9423: (In)citações (37): Mutilação Genital Feminina e Eurocentrismo (Cherno Baldé)

Guiné 63/74 - P9425: O Nosso Livro de Visitas (125): Amílcar, ex-Fur Mil Inf Op da CCS/BCAÇ 4512 (Farim, 1972/74)

1. Mensagem de 13 de Janeiro de 2012 de um nosso camarada que se assina apenas como Amílcar:
Assunto: ex combatente - fur. milº Inf Op - Farim 1972/74 (Bcaç 4512/72-CCS)

Bom dia.
Por estes dias tive o primeiro contacto com o teu blogue e no que se refere ao sector de Farim e Guidage (pelos funestos acontecimentos) estou parcialmente de acordo com as narrativas feitas. Não estive na frente de combate ou em Guidage, só posso referir o que os camaradas diziam sobre a situação explosiva que se vivia ali e o clima vivido na sede de sector. Do que tive oportunidade de ler a narrativa do ex-Fur Mil Ranger Fernando Araújo* (2ª Compª do Bcaç 4512) está correcta.

Existem ex-combatentes vivos que estiveram na frente de combate, nos diversos dias que a acção decorreu, que poderão dar o seu depoimento. Todos os depoimentos que li e sempre que narravam situações que o combatente não foi protagonista entram em contradição com os referidos por quem os viveu.

Aqueles dias marcaram-nos inclusive a quem ficou a dar apoio às linhas da frente.

Num dos depoimentos é referido que o camarada Bento (Ccaç 14) foi morto pela explosão de mina quando todos os relatos, que tenho conhecimento, referem que foi morto por uma rajada de metralhadora que o cortou na região do baixo ventre. É um pormenor que ilustra bem as diferenças nas várias narrativas. Se queremos a verdade ela só será revelada por quem assistiu a tão trágicos acontecimentos.

A emboscada à 1ª coluna de ajuda a Guidage aconteceu no 1º dia, ao fim da tarde, só terminou ao raiar do dia seguinte, com o IN a derrotar as NT, e fazendo o correspondente assalto final. As munições de ajuda a Guidaje foram destruídas pelo bombardeamento das FAP (cerca das 9 horas) tal como as viaturas e alguns elementos IN que no momento estariam a roubar o conteúdo das Berliets. Os corpos dos nossos mortos foram recuperados semanas depois (quantas?), só após um grupo especial de Sapadores, de Tancos, ter chegado para o efeito.

A chegada angustiante ao quartel de Farim, naquela tarde de domingo de Maio, para verificarmos quem não tinha sido ferido, já que mortos eram 4 (o Bento, o Cabo Miliciano açoriano da 1ª Compª e 2 militares da Ccaç 14). Os feridos deitados no chão das Berliets e Unimogs, desnudados, enfaixados, recebendo soro, e a seu lado as enfermeiras e enfermeiros… O barulho dos motores dos helis, na pista, prontos para os evacuar.

Aquela tarde quente com o gosto amargo pela perda de camaradas, pelos camaradas feridos e mesmo pelos que voltaram sem ferimentos mas cansados e esgotados física/psicologicamente. E a dúvida acabou nesse fim de tarde; o furriel louro morto era o Bento e não o outro (não me recordo do seu nome) que também estava no teatro das operações e cuja esposa estava a viver em Farim. A imagem do encontro do casal nunca se me apagou da memória.

As fotografias documentam o primeiro ataque de foguetões que tivemos (o Batalhão dos velhinhos ainda se encontrava no sector) e a jangada que fazia a travessia do rio Farim (Cacheu), e, nos ligava a K3 (Saliquenhedim).

Quanto aos acontecimentos referidos no depoimento do ex-Fur Mil Ranger Fernando Araújo (2ª Compª do Bcaç 4512) sobre a morte trágica do Alf Mil que comandava o Pel Caç Nat 51 envio-te um ficheiro que consta das minhas memórias de guerra.

Constata-se que o inicio do diferendo não terá sido o reforço mas da não autorização para o militar africano visitar a mulher. Esta situação foi muito comentada pelos soldados africanos de Farim, pois diziam que não era razão para ele matar o alferes.

Para um primeiro contacto já vai longo.

Um abraço, até sempre
Amílcar





2. RETALHOS DE UMA GUERRA
JUMBEMBEM 
(Pel Caç Nat 51)

Naquele fim de tarde, cerca das 17,30 horas, chegou a coluna militar de Jumbembem.

A notícia tinha-nos chegado horas antes e dizia o seguinte: o comandante do Pelotão Nativo 51, Alf. Milº, tinha sido abatido por um tiro, à queima roupa, dado por um soldado africano.

Convém aqui dizer que estes pelotões eram compostos por soldados negros comandados por oficiais e sargentos brancos.

Mais tarde, via rádio, fomos informados de que a coluna militar fúnebre se encontrava junto ao arame farpado do aquartelamento, para depositar o cadáver na missão do sono, donde, posteriormente, seria enviado para a Metrópole.

Estávamos no Comando do Batalhão. O Comandante, Coronel Vaz Antunes, saiu a recebê-los. À frente das viaturas vinham os soldados formados em 2 filas e com as armas em posição funeral-armas, desfile tão triste. Armas que até ali, e dali em diante, só apontavam para ceifar vidas, neste momento com os canos virados para o chão.

Feito o desfile o cadáver foi depositado.

No fim da coluna fúnebre vinha uma viatura “Berliet”, escoltada por 6 homens armados, e no estrado jazia o assassino. O homem tinha sido neutralizado e ataram-lhe as mãos atrás das costas com arame de espessura de 0,5 mm. A cara, de tantos muros e pontapés que tinha levado, estava tão inchada que parecia tudo menos o rosto de um homem. Os pulsos, devido, ao arame, estavam a sangrar. Quem o olhasse diria que estava morto. Só a respiração, ofegante, desmentia tal facto.

Foi chamado o médico do Batalhão, para certificar o estado de saúde do detido, para poder ir para a prisão, uma vez que o oficial de dia se tinha recusado a aceitar o preso naquele estado. O médico observou-o e recusou-se a aceitar o preso devido ao seu estado físico. Mas como a coluna tinha que regressar a Jumbembem, foi o Comandante de Batalhão a responsabilizar-se pelo estado físico do preso.

Apesar de o comportamento assassino do soldado ser reprovado por todos os militares (brancos e pretos), nesta morte ficou estampado todo o racismo recíproco existente. A morte motivada pela não autorização, por parte do alferes, para o soldado ir visitar a mulher, foi um crime, mas a fúria com que todos os brancos batiam no desgraçado, não era menos criminosa. Interrogados porque batiam no homem, respondiam; ele é preto.

Depois de tão martirizado, o soldado, recolheu à prisão onde permaneceu deitado, no chão, até ao dia seguinte.

Durante uns dias o médico assistiu-o, periodicamente, tendo este recuperado.

NOTA: Neste dia estava de sargento de dia ao batalhão


3. Comentário de CV

Caro camarada Amílcar muito obrigado pelo teu contacto.
O assunto que referes e a que acrescentas mais uns pormenores, foi já largamente tratado no Blogue.
Toda e qualquer declaração que aumente o nosso conhecimento é bem vindo, pelo que esta tua mensagem fica a fazer parte do dossiê Guidaje 1973. Antes de ti vários camaradas fizeram chegar até nós testemunhos dramáticos daqueles dias, pelo que nem me atrevo a salientar nenhum. Cada participação tem um valor incalculável porque são quase todos vividos na primeira pessoa.

Se assunto da tua mensagem se refere ao teu posto e Especialidade, então foste Fur Mil com a Especialidade Inf Op e pertenceste à CCS/BCAÇ 4512/72. Do teu Batalhão fazem parte da tertúlia, assim de repente, os camaradas Manuel Marinho, Manuel Sousa e o Fernando Araújo. Espero não ter esquecido ninguém.

Já agora, aproveito para te convidar formalmente a fazeres parte da Tabanca Grande. Para oficializares a tua candidatura, antecipadamente aceite, manda por favor uma foto militar e outra civil (actual) tipo passe e confirma o teu posto, Especialidade, Unidade, local de permanência na Guiné, e tudo o que achares seja útil conhecermos de ti. Se tiveres mais algum apontamento das tuas memórias que queiras partilhar connosco, assim como fotos, junta ao processo. Digamos que é a jóia para ser admitido.
Futuramente poderás continuar a contar-nos as tuas vivências em Farim, suponho, assim como a enviar fotos, com a respectiva legenda, por favor, para serem publicadas na nossa página. Deste modo contribuirás para a nossa memória futura.

Até ao teu próximo contacto, deixo-te um abraço

Pelos editores
Carlos Vinhal
____________

Notas de CV:

(*) Vd. postes de:

25 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 – P6249: Estórias avulsas (85): Como foi assassinado o Alf Mil Op Esp Nuno Gonçalves da Costa, do Pel Caç Nat 51 (Fernando C. G. Araújo)
e
8 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 – P6131: Estórias avulsas (82): A participação do 2º Pel 2ª CCAÇ/BCAÇ 4512, na Coluna a Guidage (Fernando C. G. Araújo)

Vd. último poste da série de 30 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9421: O Nosso Livro de Visitas (124): Recordando as forças expedicionárias do RI 15 (Tomar) no Mindelo, São Vicente, Cabo Verde (1941-1943) (Adriano Miranda Lima, Cor Inf Ref)

Guiné 63/74 - P9424: Documentos (16): Situação Militar no TO da Guiné no ano de 1974: Relatório da 2ª REP/QG/CTIG: Transcrição, adaptação e digitalização de Luís Gonçalves Vaz (Parte IV): pp. 1/9

1. Publicamos hoje as 9 primeiras páginas do relatório da 2ª Rep/CTIG, documento que nos está a ser gentilmente digitalizado pelo Luís Gonçalves Vaz [, foto à esquerda], a partir de um exemplar pertencente ao arquivo pessoal de seu pai, Cor Cav CEM Henrique Gonçalves Vaz, último Chefe do Estado-Maior do CTIG (1973/74), entretanto falecido em 2001.

O Luís Vaz (que tinha 13 anos, andava no liceu e estava em Bissau com a família em 25 de Abril de 1974) também teve a gentileza de fazer, da sua lavra, um compilação das partes mais interessantes do documento, do ponto de vista do conteúdo informativo. Iremos dar também continuidade à publicação desse seu texto (que está dividido por partes). Mas, para já vamos, ao encontro da sugestão de camaradas e leitores nossos, como o José Manuel Dinis, de quem se publica o seguinte comentário, de 21 de Janeiro, ao poste P3972:

“Caros Editores, o eventual interesse do relatório em epígrafe carece de uma publicação integral, para avaliação sistémica e conjuntural, na medida das possibilidades de cada um. A não ser assim, apenas ficamos a saber da existência de um relatório, mas aos costumes nada se acrescenta. A manter-se nas trevas, será uma oportunidade perdida. Abraços fraternos. JD”.

Nestas primeiras 9 páginas do relatório (que tem no total 74 páginas), aborda-se a situação política à data do 25 de Abril de 1974.

A. Período até 25Abr74
1. Situação em 25Abr74
a. Generalidades (p.1/2)
b. Situação política externa:
(1) PAIGC e organizações internacionais (p. 2/5)
(2) Países limítrofes (p. 5/8)
(3) O reconhecimento internacional do “Estado da G/B em 25Abr74 (p.8/9).

Entretanto, ainda há dias, o Luís Gonçalves Vaz esclareceu o significado das siglas CC/FAG, a nosso pedido:

(...) "Quanto às iniciais CC/FAG é: Comando-Chefe/Forças Armadas da Guiné. O Relatório,  a que estou dar visibilidade, assinado pelo então sr. Major Tito Capela [e hoje maj gen reformado], foi elaborado, já depois da unificação entre o Comando-Chefe e o QG/CTIG. Ler, a este propósito,  a nota do meu falecido pai, a saber:

Bissau, 20 de Agosto de 1974

(...) Despediram-se o Major Barreto Fernandes e o Tenente Abrantes, respectivamente, chefe da Secção de M.M. e Adjunto do Brig  Comandante. Desde 17 que oficialmente se constitui o Q. G. unificado para o C. C. (Comando Chefe) e CTIG . Publicado em Ordem de Serviço do Comando Chefe.

Soube-se hoje após o almoço que irá vigorar o esquema: Totalidade de pessoal (-6000) evacuado até 20 de Setembro de 1974 (...);  Restantes até Dezembro (?); Entretanto vai-se 'evacuando' o material ...". [Coronel Henrique Gonçalves Vaz, Chefe do Estado-Maior do CTIG].

 

____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série > 25 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9398: Situação Militar no TO da Guiné no ano de 1974: Relatório da 2ª REP/QG/CTIG: Transcrição,  adaptação e digitalização de Luís Gonçalves Vaz (Parte III)

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9423: (In)citações (37): Mutilação Genital Feminina e Eurocentrismo (Cherno Baldé)

1. Comentário, ao poste P9410, aposto pelo Cherno Baldé [, foto à direita, com os seus quatros filhos, rapazes]:

 Amigo José Saúde,

O tema que hoje trazes à estampa, [a Mutilação Genital Feminina,]  é muito importante e oxalá tivesse eco junto dos demais, em especial da nossa população e assim contribuir para ajudar a neutralizar esta prática em África.

A necessidade de acabar com a pratica da Mutilacao Genital Feminina, devido às consequências negativas na saúde da mulher, é hoje tão consensual que deveria ser automaticamente aceite e aplicada por todos, de forma generalizada.

Mas, se isto nao se verifica é porque existem razões internas, profundas, enraizadas na cultura ancestral (social e religiosamente falando), é verdade, mas também, existem outros motivos e um deles é o facto de esta campanha mundial ser de iniciativa europeia, mais uma e logo suspeita!!! E porquê?

Há um proverbio africano que diz: "Quem já teve um encontro com um 'kancuran' de certeza que terá medo do bagabaga", que o é mesmo que dizer: "Gato escaldado, de água fria tem medo".

Depois de tudo o que (de bom e de mau) aconteceu no encontro entre europeus e africanos,  o que garante que as ideias vindas da Europa são completamente isentas, humanistas e desprovidas de "arrière pensée"?

Sem necessidade de voltar muito atrás na histária, lembro simplesmente que na Nigéria, e provavelmente em toda a África, já se viram campanhas de vacina (para a saúde das crianças!?) transformar-se em campanha para servir-se de cobaias humanas.

A África deve acreditar?!...

A África deve acreditar na Europa e na ciência!?.. Então não é essa mesma Europa e a sua Ciência que, em tempos, considerava o africano ligeiramente superior ao macaco das florestas tropicais e digno de ser obrigado a trabalhar!?..

A África deve mudar?!...

Para que sentido!? Norte, sul, leste...ao capricho e gosto dos europeus?!

Apesar de tudo, ainda há pessoas que ficam admiradas pelo facto de os africanos resistirem e não aceitarem factos cientificamente comprovados. Mais que uma simples teimosia de caráter cultural das nossas populações, na minha opinião, é a confusão e o desnorteamento que criam a resistência à mudanca e não ajudam os voluntários das boas intenções (atencao, de boas intenções...)

Um grande abraço,

Cherno Baldé

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Nota do editor:

Último poste da série > 30 de novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9117: (In)citações (36): Para melhor compreendermos a África... (Artur Augusto Silva, 1963)

Guiné 63/74 - P9421: O Nosso Livro de Visitas (124): Recordando as forças expedicionárias do RI 15 (Tomar) no Mindelo, São Vicente, Cabo Verde (1941-1943) (Adriano Miranda Lima, Cor Inf Ref)


Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Hospital de São Vicente, fundado em 1899, no reinado do Rei Dom Carlos I (1889-1908). Foto do álbum do expedicionário, 1º Cabo Luís Henriques, nº 188/41 (1º Pelotão, 3º Companhia, 1º Batalhão, RI 5, Caldas da Raínha). Natural da Lourinhã, onde nasceu em 19 de Agosto de 1920,  Luís Henriques tem hoje 91 anos e memórias muito vivas dos difíceis tempos que passou no Mindelo (26 meses, entre julho de 1941 e setembro de 1943; nos últimos 4 meses esteve hospitalizado, por problemas pulmonares, entre maio e agosto de 1943).

Foto: © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2010). Todos os direitos reservados


 
1. Comentário, de um camarada de armas e leitor do nosso blogue, com data de 21 do corrente, ao poste P5109:

Luís Graça:


Sou Adriano Miranda Lima, coronel reformado, residente em Tomar, e nascido em Cabo Verde, S. Vicente. Não estive na Guiné, apenas em Angola e Moçambique.

Tive acesso ao seu blogue e só tenho razões para o felicitar efusivamente por esta belíssima e interessante iniciativa.

Revisitar estas saudosas memórias é recolocar a história no seu devido lugar e com ela reencontrar-se num abraço fraterno em que o coração se dá inteiro.

Como servi longos anos no RI 15 [, Tomar], aliás, a minha unidade de colocação, após o termo das comissões no ex-Ultramar, acompanhei sempre o convívio dos antigos expedicionários mobilizados pelo Regimento.

Algumas vezes coube aos expedicionários do RI 15 a organização do convívio, com participação dos camaradas de outros regimentos e unidades mobilizadoras. Cada "regimento" organizava o convívio de todos os que serviram em S. Vicente, [Cabo Verde].

Com o meu apoio pessoal, sendo eu então major, por duas vezes o convívio realizou-se no meu Regimento, em Tomar, e numa das vezes ele foi integrado nas comemorações do Dia da Unidade. Noutra ocasião, foi num restaurante em Tomar, e também estive presente, por simpático convite do elemento organizador, Sr. Francisco Lopes (Chico Concertina), infelizmente falecido há cerca de 4 anos. Dava-me muito bem com ele, e era sogro de um amigo meu, advogado.

Se estiver interessado em saber alguma coisa sobre o Batalhão que saiu de Tomar, terei o maior gosto em prestar informações ao blogue. Por acaso, publiquei um artigo num jornal online, sobre a memória desse batalhão. (**)

Há um blogue chamado Praia de Bote (nome de um local de S. Vicente), em que tenciono publicar uns spots sobre as forças expedicionárias a Cabo Verde. Como tenho poucas fotos, queria pedir a sua autorização para me servir das que constam do seu blogue respeitantes ao BI 5, que eram do seu pai. Apenas como ilustração. Naturalmente que me refiro a fotos de carácter genérico, não pessoais.

Apraz-me também registar o afecto e a admiração com que cultiva a memória do seu pai neste Blogue. (***)

Um abraço
Adriano Lima

[, criador e editor do blogue Ademos, cujo objetivo é a defesa do património ambiental e construído da cidade do Mindelo, São Vicente, Cabo Verde]



Blogue de Joaquim Saial, Almada, Portugal:

"A Praia de Bote é o genuíno coração do Mindelo. Sítio de catraeiros, lojas de aprestos marítimos (em desaparição), vendedeiras de fruta e legumes, botequins com cheiro a grogue, mancarra e tabaco americano, pescadores e seus botes, plurim d'pêxe (mercado de peixe), contrabandos vários, patifes de navalha afiada e também gente boa... Começa na velha Alfândega (hoje Centro Cultural do Mindelo) e termina na Torre de Belém (ou ao contrário...). É dela, da cidade e também da ilha onda se encontra que o blogue PRAIA DE BOTE trata".

Joaquim Saial é Professor e investigador de Arte e História. O blogue tem mais de 20 mil visitantes, desde o seu início (7 de fevereiro de 2011).

2. Comentário de LG:

Adriano, muito obrigado pelo seu comentário, pelo seu elogio ao nosso blogue,  mas também pelo seu pedido. Começando por este, disponha das fotos do meu pai, para os efeitos que julgar convenientes, citando sempre, naturalmente, o nosso blogue. (Temos, aliás, mais fotos de mais outros dois expedicionários, na série Meu pai, meu velho, meu camarada, nomeadamente do Ângelo Ferreira de Sousa e do Armando Lopes).

Todos temos o dever de memória, deixando às gerações seguintes notícias sobre a nossa passagem por este planeta que é único, o berço da humanidade, é a nossa casa, ou é a aldeia onde todos somos vizinhos... Cabo Verde e Portugal têm uma longa história em comum, além de uma língua. Eu tenho um especial afeto por São Vicente e, em particular, pelo Mindelo que um dia destes espero poder  finalmente conhecer ao vivo. (Não conheço Cabo Verde, de todo: estive apenas uma escassa hora ou duas no Sal, em paragem técnica do avião da TAP que me trouxe de férias, de Bissau a Lisboa, em 1970).

Transmiti, este fim de semana,  ao meu pai, Luís Henriques, (a caminho dos 92 anos) o seu interesse e o seu pedido. Até aos 80 anos, costumava ir ao convívios anuais da malta de Cabo Verde. Disse-me que nunca foi ao RI 15 (Tomar), a nenhum dos convívios dos antigos expedicionários, já que ele pertencia ao RI 5 (Caldas da Rainha). Em todo o caso, lembra-se bem das jogatanas de futebol, no Lazareto, entre uns e outros. Como também se lembra da epidemia de fome que assolou as ilhas, no tempo em que lá esteve (1941/43). O seu "impedido", o Joãozinho, que ele alimentava com as suas próprias sobras do rancho, também ele morreu, de fome e de doença, em meados de 1943. Comove-se ao dizer-me que deu à família do miúdo todo o dinheiro que tinha em seu poder (c. de 16$00) - na altura, estava hospitalizado -,  para ajudá-la nas despesas do enterro.

Desejo-lhe, por fim, meu caro Adriano, a si e aos seus amigos,  todo o sucesso na defesa do património daquela terra mágica, o Mindelo, berço de grandes poetas, músicos e cantores.
______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 15 de outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5109: Meu pai, meu velho, meu camarada (18): Do Mindelo a... Bambadinca, com futebol pelo meio (Nelson Herbert / Luís Graça)

(**) Vd. excerto do artigo de Adriano Miranda Lima no jornal Liberal, "on line",

edição de 31 de Março de 2009:

Adriano Miranda Lima > Tropas expedicionárias a Cabo Verde durante o período da Segunda Guerra Mundial - Memória que perdura

(...) Como é sabido, Portugal não teve qualquer envolvimento na Segunda Guerra Mundial, tendo optado por uma posição de neutralidade que se manteve ao longo de todo o conflito. No entanto, sabedor da importância estratégica das suas ilhas atlânticas, nomeadamente os arquipélagos dos Açores e de Cabo Verde, alvos apetecidos por qualquer dos contendores, Portugal entendeu que seria curial guarnecer aqueles territórios com forças militares suficientes para dissuadir qualquer veleidade por parte dos beligerantes. O conflito assumira uma dimensão considerável no Atlântico e aqueles arquipélagos eram, com efeito, detentores de elevado potencial estratégico, sobretudo do ponto de vista aero-naval. Uma fraca presença militar de forças nacionais poderia indiciar um sintoma de desleixo, susceptível de encorajar uma ocupação estrangeira à revelia do direito internacional, em manifesto atropelo da soberania portuguesa.
 
O Regimento de Infantaria nº 15, de Tomar, foi das unidades do exército que enviaram forças expedicionárias a Cabo Verde. Conheço muito bem o historial deste Regimento por nele ter servido durante longos anos. E é assim que me capacito a divulgar a curiosa memória afectiva que os expedicionários deste Regimento de Infantaria desde sempre vêm cultivando e perpetuando. A par de outros Regimentos do Exército, competiu ao Regimento de Infantaria nº 15 organizar e mobilizar para Cabo Verde um Batalhão de Infantaria (cerca de 800 homens). As quatro companhias do Batalhão ficaram instaladas em S. Vicente e S. Antão, tendo partido de Portugal agrupadas em três contingentes. O primeiro embarcou em Portugal em 19 de Outubro de 1941, o segundo em 17 de Novembro do mesmo ano, e o terceiro em 8 de Janeiro de 1942.
 
Mas este acontecimento teria sido mais um episódio normal da história militar portuguesa não tivesse marcado indelevelmente o espírito dos antigos militares, sobretudo a classe de praças (soldados e cabos) e os oficiais e sargentos milicianos (serviço obrigatório). Os capitães já eram na altura homens maduros (quarentões) e habituados às andanças e contingências da vida militar, pelo que é natural que o impacto emocional das grandes “aventuras” tocasse mais a faixa etária dos vinte anos. O facto é que, desde a sua desactivação, os ex-militares que serviram no citado Batalhão vêm promovendo reuniões anuais em almoços-convívio para recordar a sua passagem por Cabo Verde, nomeadamente pelas ilhas de S. Vicente e de S. Antão, por onde se distribuíram as suas companhias.
 
Estive presente num desses convívios, pela primeira vez em 1986, pela circunstância de o mesmo ter sido realizado nas instalações do Regimento de Infantaria nº 15, por convite do seu Comandante. Competiu-me, na altura com o posto de major, ser o oficial a apoiar a organização desse evento, que se inseria nesse ano nas comemorações do aniversário do Regimento, condição que me permitiu assistir do princípio ao fim à confraternização dos ex-militares.

O leitor nem imagine a satisfação daqueles homens quando lhes disse que eu era cabo-verdiano de origem. E isto porquê? Porque, quando se juntam, a intenção é celebrar a memória de uma experiência militar vivida na intensidade anímica dos seus 20 anos, mas também recordar e celebrar a terra cabo-verdiana com eflúvios de uma saudade que eu não imaginava possível.  (...).
 
Um deles, Francisco Lopes, na altura cabo, era um exímio acordeonista (ainda hoje anima as romagens de saudade com o mesmo instrumento), e, como tal, fazia parte de grupos de animação recreativa em S. Vicente, juntamente com outros músicos da terra, frequentando as festas e os bailes das colectividades. Tanto assim foi que aprendeu, e ainda se recorda bem de mornas então em voga que ele recupera e interpreta nestes convívios, acompanhado por outros intervenientes.

Mas achei digno de registo o facto de muitos deles fazerem questão de introduzir nas suas conversas expressões em crioulo, demonstrando que não foi em vão o seu convívio com as gentes cabo-verdianas. São inúmeras as histórias que se contam nestes convívios, citando-se amizades contraídas com cabo-verdianos, namoricos com raparigas da terra, nomes de ruas, praças, botequins, enfim, um reportório variado de emoções e aventuras que a sua memória regista como as mais indeléveis recordações das suas vidas (...).

(...) Mas há um nome cuja memória estes homens veneram. Trata-se do capitão Fernando de Magalhães Abreu Marques e Oliveira, [1903-1975,] comandante da 3ª Companhia do Batalhão, recordado como oficial de alta competência e dotado de grande espírito humanitário. E então recordam que, naqueles tempos difíceis, em que grassava a fome em Cabo Verde, vitimando muita gente entre a população (como bem sabemos), o capitão Oliveira, condoído com aquela dramática situação, ordenou a montagem de um conveniente serviço de distribuição de sobras de rancho (alimentação das praças) às pessoas que se acercavam da portão do quartel. A certa altura, reparando que o número de necessitados crescia a olhos vistos, disse ao Sargento do Rancho que tinham de maximizar as sobras de alimentação. Perante as dúvidas do subordinado, explicou-lhe que era preciso “inventar” todas as situações administrativas e recursos possíveis. O Sargento mostrou-se então com dúvidas, mas a pertinácia do seu capitão não permitia qualquer hesitação ou tibieza. Sublinho que este facto foi-me contado, emocionado, pelo próprio Sargento interveniente, que era na altura um jovem furriel miliciano, infelizmente hoje já falecido.

O capitão Oliveira era, de facto, de uma natureza humana invulgar, um homem de grande nobreza de carácter e estatura moral, às ordens de quem nunca servi, mas que sempre ouvi citado pelas suas altas qualidades humanas e profissionais. Faleceu de morte súbita em 1975, já general reformado, tendo no seu cortejo fúnebre um número infindável de antigos subordinados. Todos os anos, estes veteranos do ex-Batalhão Expedicionário aproveitam o convívio para cumprir uma romagem ao jazigo do cemitério de Tomar onde estão os restos mortais do seu “capitão”. Ele era filho desta cidade de Tomar. Escusado é dizer que me venho incorporando no séquito de homenagem, em intenção a um oficial de estirpe, mas, sobretudo, em nome de todos os meus conterrâneos a quem o oficial mitigou a fome com a sua atitude de grande compaixão e solidariedade humana.

Registe-se que o gesto humanitário do capitão Oliveira em prol dos necessitados em S. Vicente não tardou a ser seguido por outros comandantes das companhias destacadas na ilha de S. Vicente. Creio que por longos anos ficou gravada na memória dos pobres e desprotegidos do Mindelo a figura humana do valoroso capitão. Um homem que aparentava um ar sóbrio e mesmo severo, mas que tinha um coração de ouro, do tamanho do mundo. Havia uma rua em Mindelo que se chamava rua Infantaria 15, provavelmente uma homenagem da cidade por tudo quanto foi aqui referido. Ainda me recordo dessa rua, mesmo no centro da “morada”, que hoje terá certamente outra designação toponímica. Provavelmente, o nome de algum estrangeiro que nenhuma relação teve com Cabo Verde e a cidade do Mindelo.

Num breve apontamento, resta referir que o Batalhão de Infantaria 15 regressou a Portugal em Julho de 1943. Seria interessante citar outros factos do seu historial, em meu poder, mas não o faço para não saturar este texto. No entanto, não deixo de referir que o comandante do Batalhão, major Nicolau de Luizi, faleceu por doença em S. Vicente, em pleno exercício do seu comando. Realizou-se então um cerimonial militar fúnebre em S. Vicente, mas a sua urna foi transferida para Portugal, estando sepultado num jazigo no cemitério desta cidade de Tomar, de onde era também natural. (...)

O capitão Oliveira era, de facto, de uma natureza humana invulgar, um homem de grande nobreza de carácter e estatura moral, às ordens de quem nunca servi, mas que sempre ouvi citado pelas suas altas qualidades humanas e profissionais. Faleceu de morte súbita em 1975, já general reformado, tendo no seu cortejo fúnebre um número infindável de antigos subordinados. Todos os anos, estes veteranos do ex-Batalhão Expedicionário aproveitam o convívio para cumprir uma romagem ao jazigo do cemitério de Tomar onde estão os restos mortais do seu “capitão”. Ele era filho desta cidade de Tomar. Escusado é dizer que me venho incorporando no séquito de homenagem, em intenção a um oficial de estirpe, mas, sobretudo, em nome de todos os meus conterrâneos a quem o oficial mitigou a fome (...).

(***) Vd. último poste da série >22 de janeiro de 2012 >  Guiné 63/74 - P9386: O Nosso Livro de Visitas (123): Fernando Gomes Pinto da CCAÇ 4945/73 (Guiné, 1973/74)