quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Guiné 63/74 - P9437: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (7): Andava-se de sintex, com motor de 50 cavalos, no Cumbijã, nas barbas do PAIGC... e fazia-se esqui aquático no Cacine...



Carta de Cacine (Escala 1/25000) > Posição relativa de Cadique, Jemberém e Cacine, em pleno Cantanhez




Carta de Bedanda (Escala 1/25000) > Posição relativa de Cufar, Bedanda e Caboxanque


1. A propósito da aventura do Pedro Vaz, irmão do Luís Vaz, que durante as férias do Natal de 1973 acompanhou o pai até Cufar, de avião,  e depois foi até Cadique, de sintex... e que terá dormido, na noite seguinte [ou noutra ocasião, ele não pode garantir], numa LFG no Rio Cacine, onde viu fuzileiros a fazer esqui aquático, tivemos curiosidade em espreitar, de novo, o diário do António Graça de Abreu (AGA) (*)... 

No diário não há vestígios da família Vaz, nem em Cufar nem em Cadique. Também não se fazia esqui, lá em baixo, pelo menos no Cumbijã... Em contrapartida, o sintex era um transporte popular, rápido e relativamente segundo. Tanto servia para o Coronel do CAOP1 ir a Cadique dar apoio moral às NT na véspera de Natal ou para evacuar feridos até a Cufar, como servia para a malta ir a Caboxanque destilar a adrenalina e beber um copo... 

O Pedro Vaz  (nem o irmão Luís) tem a certeza sobre a data exata em que ocorreu a aventura... Pode ter sido antes ou depois do Natal ou até mesmo nos primeiros dias do novo ano. Para o Pedro ("que tem uma memória seletiva", diz o mano mais novo) foi seguramente nas férias de Natal de 1973, não nas férias da Páscoa de 1974 (A Páscoa nesse ano foi a 14 de abril). 

De 13 a 21 de dezembro,  o AGA está em Bissau, onde foi ao dentista. Se o CEM do CTIG, o cor cav Henrique Gonçalves Vaz,  esteve lá pode ter sido nesta altura. E não terá lá ido fazer turismo, que aquilo não era propriamente um destino paradisíaco como Bubaque.  Ao ler o diário do AGA,  sabe-se que se estava a preparar, para a época natalícia,  a grande Op Estrela Telúrica, envolvendo o batalhão de comandos africanos (3 companhias), a 38ª CCmds, os fuzileiros (de Cacine), a tropa de Cadique... Houve grande movimentação de meios aéreos, conforme se pode ler diário do AGA (Vd. Cufar, 26 de dezembro de 1973).


Cufar era a Bissalanca do sul... E as NT lá andavam também de sintex (pequenos barcos de fibra com potentes motores de 50 cavalos)... E lá estava o CAOP1... O António Graça de Abreu esteve lá de Junho de 1973 até Abril de 1974... Ele próprio foi a Cadique de sintex com o comandante dele, coronel, no dia 24 de dezembro... Mais uma razão para se pensar que esta aventura do filho do CEM do CTIG é perfeitamente verosímil...  

Selecionei uma série de excertos do do diário do AGA, com referências ao sintex, usado no Cumbijã, ligando Cufar aos vários aquartelamentos (Cadique, Caboxanque)... Reproduzimos aqui, mais uma vez, com, a devida vénia ao autor e ao editor...(LG).


(...)  Cufar, 26 de Junho de 1973

Adapto-me, moldo-me a um novo quotidiano ingrato. Podia ser pior, pode sempre ser pior.
Estou no sul da Guiné em zona de muita guerra. Os guerrilheiros continuam a dispor de boas hipóteses para vir a Cufar chatear quem cá vive, de resto, eles também não moram longe. De momento creio que têm mais com que se preocupar mas qualquer dia voltam cá, de certeza.


Em Cufar não existe propriamente um quartel, as instalações militares são pouco mais do que uma dezena de pequenas casas separadas umas das outras, vivemos praticamente misturados com a população o que é uma vantagem em caso de flagelação. Os africanos, das etnias balanta, beafada, mandinga, fula coexistem com a tropa, nem muito, nem pouco amigos. São frequentes pequenos sarilhos entre as NT e as gentes da terra mas sem gravidade, cada um trata de si.

Ao contrário do que acontecia em Canchungo e Mansoa, a tropa especial, comandos, pára-quedistas e fuzileiros não vivem aqui connosco. Sinto a sua falta, não estou tão seguro. Até Novembro [de 1973] a guerrilha não deve aumentar, estamos na época das chuvas.

Em termos de ligações com o resto da Guiné, Cufar está muito isolada. Existe a estrada asfaltada para Catió, nove quilómetros que só se fazem com escolta, e a estrada para o porto grande no rio Cumbijã, dois quilómetros por onde nos deslocamos à vontade. Depois, há umas picadas em péssimo estado que conduzem à terra de ninguém, ou melhor aos lugares habitados pelos guerrilheiros. Quem se mete por aí? Ninguém. De Cufar a Bissau serão uns cento e trinta quilómetros, em linha recta, mas não há estradas. 

É pelo rio e pela ramificação dos seus afluentes que Cufar se liga aos novos aquartelamentos da região. Existem os sintex, pequenos barcos de fibra sintética – em Cafal e Cafine, os fuzileiros têm os zebros -, com motores de 50 cavalos que sobem e descem os rios a boa velocidade com grupos NT, sempre armados, garantindo a comunicação entre todos nós. 

Temos ainda a pista de aviação com os aviões e os hélis. Hoje chegou uma DO, um Nordatlas – o avião é conhecido entre a tropa por Horácio -  e dois helicópteros. Vêm de Bissau e para lá regressam. Trazem víveres, correio, pessoal, pequenas cargas. Os helicópteros redistribuem os géneros pelos aquartelamentos da região, frangos e peixe congelado, carne, batata, farinha, couves frescas.

Se os homens do PAIGC voltam a mandar um avião ou héli abaixo, estamos todos lixados porque suspende-se outra vez o apoio aéreo. Mas agora já não é fácil que tal aconteça. Os pilotos conhecem as características dos mísseis terra-ar, os Strela ou Sa 7 que são eficazes entre os 200 e os 2.000 metros de altitude, e tomam as devidas precauções. As DOs e os hélis voam muito baixo, a rapar, rente às árvores, às bolanhas e aos rios, e os Nordatlas ou os DC 3 voam muito alto, com tectos de mais de 2.500 metros. Descem e sobem sobre a pista de Cufar, onde montamos sempre segurança, voando em círculos ou espirais para evitar sobrevoar as florestas, as zonas IN. Em quarenta minutos de voo, uma pessoa põe-se em Bissau. É seguro? Até hoje tem sido.

As LDG, Lanchas de Desembarque Grandes, são o outro meio para se chegar e partir. As viagens são mais seguras do que de avião, mas incómodas e demoradas. Há uma semana atrás, experimentei o luxo da Alfange, uma das três LDG que navegam nos mares e rios da Guiné. O navio vinha carregado com tudo, víveres, cimento e muitos outros materiais de construção, um obus, munições, três unimogs e dois jipes do CAOP 1 atravancados com os nossos haveres e cerca de 150 pessoas, não apenas soldados, também população negra que aproveita a boleia das NT e se desloca utilizando os meios possíveis. 

Largámos de Bissau às três da tarde em direcção ao mar, chegámos a estar aí a uns quinze quilómetros da costa. Vim com os condutores auto que já enfrentaram a morte, estiveram em Guidage quando morreu o Viegas que também teria viajado connosco para Cufar se não tivesse morrido. Arranjámos o jantar que comemos em cima da minha mesa-secretária, composto por pão, atum, cebola e vinho. Por volta das dez da noite, a LDG ancorou no mar à espera da maré da manhã seguinte para então poder subir os vinte e cinco quilómetros do rio Cumbijã até Cufar, com paragem nos aquartelamentos da margem para descarregar materiais e pessoas. Dormimos na Alfange em condições péssimas, em cima de mercadorias, no chão de ferro do barco, onde calhava e havia espaço. Nós trazíamos as nossas viaturas e colchões e eu lá me safei porque coloquei um colchão dentro da cabina de um Unimog e consegui dormitar. Para azar de toda a gente, às duas da manhã começou a chover em grande, as pessoas não tinham onde se abrigar, foi o encharcanço total. Também me molhei porque os Unimog não têm janelas e a lona grossa que cobre as viaturas não é impermeável. Mas já esqueci. 


De manhã, foi a subida do rio Cumbijã passando por Cafine, Cafal e Cadique, lugares críticos de guerra. Mal se entrou no rio, fomos avisados de que a LDG ia disparar sobre as margens para testar as metralhadoras pesadas. O armamento, colocado a bombordo e estibordo, sossega quem viaja no barco e põe os guerrilheiros em sentido. Eles não possuem armas semelhantes e é raríssimo flagelarem uma LDG. Existe a hipótese de minas aquáticas, já rebentaram algumas, mas não têm feito mossa nos navios maiores, de aço compacto e pesadíssimo.


(...) Cufar, 5 de Julho de 1973

À tarde, evacuámos no Nordatlas para o hospital de Bissau um soldado de Cobumba que pisou uma mina e ficou sem uma perna, esfarrapado, retalhado até aos testículos. O médico diz que ele não se salva. Veio pelo rio Cumbijã de sintex até Cufar e perdeu muito sangue. Fui à pista e todo o seu corpo era ligaduras e sangue. A minha passividade a olhar para o moço, os olhos parados. Não sou o mesmo António que desembarcou na Guiné há um ano atrás.

(...) Cufar, 1 de Setembro de 1973

Sábado tombou mais um Fiat sobre o Morés, ao lado de Mansoa. Fala-se de avaria técnica, o avião entrou em perda e pumba! Também se fala em mísseis do PAIGC. O piloto teve sorte, ejectou-se e na altura passavam por perto dois helicópteros que viram o pára-quedas no ar e o foram buscar ao solo.


Também sábado ao entardecer, tivemos em Cufar as consequências da guerra. Às quatro e meia da tarde, um Unimog pisou uma mina anticarro em Cobumba. Os seis pobres desgraçados que iam na viatura ficaram feridos, três em estado grave. De Cufar, pedimos a evacuação para Bissau, vinham dois hélis a caminho mas voltaram para trás devido ao mau tempo. Um Nordatlas que seguia de Bafatá para Bissau foi desviado para aqui e chegou já de noite. Entretanto, os feridos de Cobumba, a perder muito sangue, vieram para Cufar nos sintex, descendo o rio Cumbijã. A pista de aviação foi iluminada pelo usual processo artesanal, as garrafas de cerveja cheias com petróleo e as mechas acesas distribuídas lateralmente ao longo da pista. Com os feridos seguiu para Bissau o furriel enfermeiro que fez de capelão quando daquela brincadeira no desembarque dos periquitos há quinze dias atrás. Os feridos de Cobumba estiveram na sala de operações do hospital de Bissau até às quatro horas da manhã, não morreu nenhum. Tanto esforço, mas salvaram-se as vidas.


(...) Cufar, 19 de Novembro de 1973

A guerra, os efeitos da guerra. África pobre, quente, medos, suores, sangue e tudo o mais que as palavras não dizem, mas sentimos e vivemos.


Sábado chega a notícia de que na foz do Cumbijã, a uns trinta quilómetros de Cufar, caíra uma DO, ou melhor fizera uma aterragem forçada no tarrafo da margem do rio. Avançaram logo meios para se recuperarem os tripulantes, o piloto, e duas enfermeiras pára-quedistas. Tiveram muita sorte, três horas depois os fuzileiros de Cafine descobriram-nos no lodo do tarrafo.[++] Embora a avioneta tivesse caído numa região libertada, os guerrilheiros não apareceram e os fuzileiros trouxeram o pessoal aqui para Cufar nos zebros, ainda meio assustados e cobertos de lama. Dois helicópteros levaram-nos depois para Bissau. A DO não foi abatida, tratou-se mesmo de acidente.


Ontem foi dia de ataque a Cadique, o aquartelamento a sul mais perto de Cufar. Às seis e meia da tarde, estavam a jantar, mal tiveram tempo para fugir para as valas e levaram com canhão sem recuo, RPG e morteirada. Houve um pobre soldado que corria para um abrigo e foi atingido por um estilhaço de canhão sem recuo que lhe perfurou o crâneo. Contaram-se mais meia dúzia de feridos. Era já noite quando os sintex trouxeram o ferido grave para Cufar e aqui aguardámos duas longas horas por um avião que transportou o rapaz para o Hospital Militar de Bissau. Como de costume, iluminámos a pista com as garrafas acesas e os faróis das viaturas. Quando o avião desceu, já o soldado estava a oxigénio, a caminhar para a morte. Na madrugada de hoje, no hospital, não resistiu. Tinha perdido massa encefálica, o estilhaço apanhara-lhe o cérebro.

Podia ter acontecido a qualquer um de nós, um destes dias posso ser eu.

(...) Cufar, 24 de Dezembro de 1973

Tempo de Natal. Paz na terra aos homens de boa vontade, na Guiné em guerra.


Fui a Cadique com o meu coronel, de sintex, dez quilómetros descendo o rio Cumbijã. Os pobres de Cadique, que tiveram dois mortos na terça-feira passada, estão a entrar na engrenagem da loucura. Já houve soldados que se recusaram a sair para o mato. Outros, ou os mesmos, na confusão de uma flagelação, atiraram com uma granada de mão ao tenente-coronel comandante do batalhão que não o atingiu por pura sorte. O tenente-coronel não tem culpa do sofrimento e da morte dos seus homens, limita-se a cumprir ordens, não pode pegar no batalhão e marchar sobre Bissau, ou sobre Lisboa. De resto, entre os muitos oficiais do QP que tenho conhecido, este tenente-coronel é um dos homens mais humanos e sensíveis ao sofrimento dos seus subordinados.

A zona de Cadique é terrível, os guerrilheiros deixaram construir a estrada para Jemberém e agora passam o tempo a dinamitá-la e a emboscar as NT. Sabotaram os sete pontões do trajecto, abriram enormes brechas no asfalto, em vários sítios. Para arranjar a estrada, a tropa de Cadique avança com camionetas carregadas de terra e troncos de árvore. Depois dos primeiros dois quilómetros, começam a ser flagelados. Quem quer caminhar para a morte?

Os dias estão tão bonitos! Frescos, serenos, com pouca humidade, manhãs de sol que abrem os braços para os homens, o fumo a sair das tabancas e a espalhar-se sobre os campos, como em Portugal. A natureza não tem culpa da insensatez, do desvairo da espécie humana.


(...) Cufar, 26 de Dezembro de 1973

Graças ao Natal, umas tantas iguarias rechearam as paredes dos nossos estomagos. Houve bacalhau do bom, frango assado, peru para toda a gente e presunto, bolo-rei, whisky e espumante à discrição, só para oficiais. Fez-se festa, fados, anedotas, bebedeiras a enganar a miséria do nosso dia a dia.

 Hoje, 26 de Dezembro, acabou o Natal e, ao almoço, regressámos às cavalas congeladas com batata cozida e, ao jantar, ao fiambre com arroz. Isto não tem importância, importante é a ofensiva contra os guerrilheiros do PAIGC desencadeada na nossa região com o bonito nome de Estrela Telúrica. Acho que nunca ouvi tanta porrada, tantos rebentamentos, nunca vi tantos mortos e feridos num tão curto espaço de tempo. E a tragédia vai continuar, a Estrela Telúrica prolongar-se-á por mais uma semana.

Tudo começou em grande, com três companhias de Comandos Africanos, mais os meus amigos da 38ª., fuzileiros e a tropa de Cadique a avançarem sobre o Cantanhez. O pessoal de Cadique começou logo a levar porrada, um morto, cinco feridos, um deles alferes, com certa gravidade. Ontem de manhã, dia de Natal, foi a 38ª de Comandos a embrulhar, seis feridos graves entre eles os meus amigos alferes Domingos e Almeida, hoje foram os Comandos Africanos comandados pelo meu conhecido alferes Marcelino da Mata, com dois mortos e quinze feridos. Chegaram com um aspecto deplorável, exaustos, enlameados, cobertos de suor e sangue. Amanhã os mortos e feridos serão talvez os fuzileiros… No dia seguinte, outra vez Comandos ou quaisquer outros homens lançados para as labaredas da guerra. O IN, confirmados pelas NT, só contou seis mortos, mas é possível que tenha morrido muito mais gente, os Fiats a bombardear e os helicanhões a metralhar não têm tido descanso.

Na pista de Cufar regista-se um movimento de causar calafrios. Hoje temos cá dez helicópteros, dois pequenos bombardeiros T-6, três DO, dois Nordatlas e o Dakota. A aviação está a voar quase como nos velhos tempos. Os helis saem daqui numa formação de oito aparelhos, cada um com um grupo constituído por cinco ou seis homens, largam a tropa especial directamente no mato, se necessário os helicanhões dão a protecção necessária disparando sobre as florestas onde se escondem os guerrilheiros, depois regressam a Cufar e ficam aqui à espera que a operação se desenrole. Se há contacto com o IN e se existem feridos, os helicópteros voltam para as evacuações e ao entardecer vão buscar os grupos de combate novamente ao mato. Ontem, alguns guerrilheiros tentaram alvejar um heli com morteiros, à distância, o que nunca costuma dar resultado.

Sem a aviação, este tipo de operações era impossível. Durante estes dias os pilotos dormem em Cufar e andam relativamente confiantes, há muito tempo que não têm amargos de boca. Os mísseis terra-ar do IN devem estar gripados porque senão, apesar dos cuidados com que se continua a voar, seria muito fácil acertar numa aeronave, com tanto movimento de aviões e hélis pelos céus do sul da Guiné.

Cufar fica a uns quinze, vinte quilómetros da zona onde as operações se desenrolam. Todos os dias, às vezes durante horas seguidas, ouvimos os rebentamentos e os tiros dos embrulhanços, das flagelações. É impressionante o potencial de fogo, de parte a parte. Os guerrilheiros montam também emboscadas nos trilhos à entrada das matas onde se situam as suas aldeias. Aí as NT começam a levar e a dar porrada, e não têm conseguido entrar nas povoações controladas pelo IN.

Natal, sul da Guiné, ano de 1973, operação Estrela Telúrica. Tudo menos paz na terra aos homens de boa vontade.

(...) Cufar, 4 de Janeiro de 1974

Ontem de manhã acordei com mais um tremendo embrulhanço, os rebentamentos uns atrás dos outros. Era a estrada Cadique-Jemberém. Ainda na cama pensei: “Lá estão mais pobres desgraçados a morrer!” Era verdade, dois soldados mortos do batalhão de Cadique, os corpos destroçados. Vieram para Cufar e, como de costume, aqui foram metidos nas urnas junto com um fuzileiro que esperava por caixão há dois dias e já cheirava mal. O cangalheiro vestiu o fato de madeira e chumbo aos três. Já ninguém estranha muito, estamos habituados, a vida continua. Mas porque diabo é que o rodopio dos mortos e feridos passa sempre por Cufar?...

Tenho constatado que em muitos de nós existe um prazer sádico, mórbido em ver mortos e feridos. Faço parte do grupo. Há qualquer coisa de macabro no ser humano, talvez uma silenciosa nostalgia da morte que nos aguarda a todos. Ontem, ao fim da tarde, quando o cangalheiro metia os três rapazes nos caixões, ao ar livre, no largo no centro de Cufar, juntaram-se à volta umas dezenas de mirones, brancos e negros. Um furriel pegou numa G 3 e ameaçou disparar sobre os curiosos se não desaparecessem imediatamente. Assisti a tudo, parado, insensível como um boneco de gesso, a cinquenta metros de distância.
(...) Cufar, 13 de Janeiro de 1974

No domingo fui a Caboxanque com o Dias da Silva, o capitão da 4740, outro alferes e mais cinco soldados em dois sintex, os botes com que se viaja por estes rios. Íamos bem armados, eu levei uma espingarda Kalashnikov (um dos soldados que nos acompanhou chama-lhe Calaxmicose!) emprestada pelo capitão e senti-me um verdadeiro guerrilheiro. É fácil atacar os nossos botes que sobem e descem o rio Cumbijã. O tarrafo das margens é alto e basta os combatentes do PAIGC esconderem-se na vegetação e dispararem umas dezenas de carregadores das espingardas ou uns RPG para provocarem baixas nas NT. Raramente tal acontece. Não sei porquê, não entendo porque é que o inimigo, às vezes, é tão nosso amigo. Em paz, fomos a Caboxanque, em paz regressámos.



O objectivo da curta viagem até ao aquartelamento nosso vizinho foi simplesmente sair de Cufar, a ideia do passeio foi ver outras pessoas, beber uns copos com o pessoal amigo de Caboxanque. Dei uma volta pela povoação, que até é maior do que Cufar, e tudo tão pobre! Comprovei como são miseráveis as tabancas, deploráveis as instalações dos nossos militares.

(...) Cufar, 7 de Fevereiro de 1974

Em alguns aquartelamentos aqui do sul também existem carências de todo o tipo, mas de natureza diferente das deste pobre povo guineense. No Relatório Mensal Janeiro 1974 do nosso CAOP 1, no ponto 4. b. Logística, os meus chefes referem, em diferentes destacamentos da nossa zona operacional, falta de medicamentos, falta de mesas e bancos para os refeitórios, falta de víveres frescos e de arroz para distribuir pela população, falta de armamento, falta de peças de substituição para muitas das viaturas auto-metralhadoras Fox e White que têm dezenas de anos e estão na sua maioria avariadas, falta de geradores eléctricos, de moto-serras, de electro-bombas, de motores para os barcos sintex.


(...) Cufar, 5 de Março de 1974

Guerra, só guerra. O PAIGC não pára, desencadeou mais uma ofensiva. Flagelaram uma série de aquartelamentos e lançaram-se em força sobre Jemberém. Com o abandono do aquartelamento de Guileje em meados do ano passado, foi-lhes possível abrir uma estrada desde a Guiné-Conacri até às florestas situadas entre Bedanda e Jemberém. Vêm com as viaturas até bem dentro do território carregados com toneladas de material de guerra. Jemberém tem estado dias e dias debaixo de fogo. Encontram-se lá duas companhias, mais de trezentos homens, ainda há soldados a viver em tendas e tudo aquilo está muito destruído. 


Por incrível que pareça, com tanta flagelação não registaram ainda nenhum morto, só bastantes feridos. Cavaram valas profundas e praticamente vivem nesses buracos. A tropa portuguesa já pensou em abandonar Jemberém por várias vezes, mas a situação é tão má, tão má que não têm por onde sair. Jemberém fica encravada na região do Cantanhez, voltada para sul, para o rio Cacine e agora só se chega lá com os barcos pequenos, os zebros e os sintex, em viagens pelo rio nada seguras a partir de Cacine. Foi construída uma boa estrada asfaltada entre Cadique e Jemberém mas os guerrilheiros tornaram-na intransitável ao dinamitarem vários troços. Quando as NT avançam a pé, o IN monta emboscadas e é cada vez mais extenso o rol de mortos e feridos.

Jemberém encontra-se numa situação crítica mas nestas últimas semanas não registaram nenhum morto. Nós,  em Cufar, estamos bem melhor mas há dias, com o inferno das minas, dos incêndios nos batelões carregados de gasolina contámos dezanove mortos, em meia dúzia de horas.

(...) Cufar, 7 de Março de 1974

Neste exacto momento em Portugal, há milhões de pessoas especadas diante do televisor à espera do Festival da Canção. Aqui na guerra do sul da Guiné, acabou de morrer um homem, outro está moribundo. Oiço o roncar dos motores do Nordatlas que, com a pista iluminada acabou de aterrar e vai levar gente ferida para Bissau.

Lá longe, satisfeitos, os portugueses deliciam-se com melodias, músicas capazes de enternecer uma mula ou um burro. Neste pequeno lugar do mundo, em África, um homem retalhado tem o corpo a arfar nos estertores da morte. Vim há pouco da enfermaria, vi tudo, continuo a ver demais.

Foi em Caboxanque, os nossos vizinhos do outro lado do rio Cumbijã. O aquartelamento não costumava ser muito flagelado embora se situe numa zona praticamente controlada pelos guerrilheiros. Neste momento Caboxanque tem duas companhias, a velhinha que terminou a comissão e está de partida no merecido regresso a Portugal, e a de periquitos acabados de chegar. Por isso, para assustar os piras, foram atacados quatro vezes em doze dias. 


As flagelações sucessivas também se integram na ofensiva geral sobre os nossos aquartelamentos desencadeada pelo IN. Hoje acertaram na tropa de Caboxanque e nem sequer foi um grande ataque, dez minutos apenas com vinte disparos de canhão sem recuo. Estou farto de ouvir, e até de sofrer, ataques piores. Mas a tropa de Caboxanque teve azar, uma granada de canhão caiu numa vala e rebentou lá dentro. Resultado, um morto, um soldado cozinheiro da companhia velhinha cortado ao meio, a cabeça voou para um lado, o tronco e as pernas caíram para outro, mais um ferido gravíssimo com os intestinos de fora e vários feridos ligeiros.

Na noite de luar, os barcos sintex trouxeram os feridos para Cufar. Neste momento o Nordatlas levanta de voo levando os homens de Caboxanque para o hospital de Bissau. No rádio, no Festival da Canção, o Artur Garcia canta a “Senhora Dona da Boina”. (...)


Fotos: © António Graça de Abreu (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.
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Nota do editor:


Último poste da série > 27 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9406: Excertos do Diário do António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (6): Bissau, 23 de Junho de 1972, e 25 de Março de 1974: dois estados de espírito diferentes...

Guiné 63/74 - P9436: Em busca de... (182): Identificação dos dois Oficiais na foto (Armando Pires)

Quem são os acompanhantes do nosso camarada Armando Pires que aparece na foto à esquerda?

1. Mensagem de Armando Pires, ex-Fur Mil Enf.º da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70, com data de 31 de Janeiro de 2012:

Carlos Vinhal, meu caro camarada.
Em finais de Novembro de 1970, ou já em Dezembro do mesmo ano, apresentaram-se em Bissorã este dois oficiais, capitães, que estão na foto comigo.

Era o fim da nossa comissão, a do BCAÇ 2861, e este dois oficiais viajaram connosco na coluna para Bissau e regressaram a Lisboa, também connosco, no defunto Carvalho Araújo.

Sucede que por uma razão que não me ocorre, eu com estes homens troquei momentos de grande camaradagem, fosse à mesa, fosse à conversa.
Sucede, ainda, que não me recordo, nem dos seus nomes nem de onde vieram. Os anos e a cabeça começam a não ajudar e a ter de pedir auxilio.

Tendo ido para Bissorã aguardar o regresso a Lisboa, este dois capitães só podiam ter vindo de um qualquer aquartelamento naquele sector, no OIO.
E, para viajarem "sozinhos", o mais certo era serem de uma qualquer rendição individual.

O meu pedido vai no sentido de perguntares, no mural da nossa Tabanca Grande, se alguém viu por lá estes dois homens.

Obrigado e, a todos, um Abraço de camaradagem.
Armando Pires
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 29 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9417: Em busca de... (181): Camaradas que tenham pertencido ao BCAV 1915 ou BCAÇ 2861 (Bissorã e Bula, 1968/69)

Guiné 63/74 - P9435: Memórias da CCAÇ 798 (Manuel Vaz) (6): Uma perspectiva a partir de Gadamael Porto - 65/67 - VI Parte - Momentos de descompressão

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Vaz (ex-Alf Mil da CCAÇ 798, Gadamael Porto, 1965/67), com data de 30 de Janeiro de 2012:

Camarada Vinhal:
Junto envio a VI Parte da minha Comunicação para incluíres no Blogue.

Com os meus cumprimentos,
Manuel Vaz



MEMÓRIAS DA CCAÇ 798 (6)

De 63 a 73, uma década de Guerra na Fronteira Sul da Guiné

Uma Perspectiva a Partir de Gadamael Porto - 65/67 (VI Parte)

Momentos de Descompressão

Mas nem só de descargas e colunas de reabastecimento, de operações ou abrigos se vivia em Gadamael Porto. No coração e na mente da rapaziada muito havia para viver ou não fosse aquela a idade dos sonhos, dos projectos . . . e tudo contido no interior da paliçada, entrincheirado nos abrigos, limitado pelo arame farpado !. . .

O DO 27 no momento de aterragem. Do lado esquerdo, quase impercetíveis, os elementos da segurança e o mastro com a manga para a indicação do vento

A chegada do correio era um momento especial . . . como se o saco que o transportava contivesse os desejos de cada um: da família ! . . . da namorada ! . . do emprego ! . . . dos estudos ! . . . dos amigos ! . . . de o tudo que deixamos . . . e que esperava por nós.

O avião imobilizado na pista com o representante do Comando e outros graduados para receberem o correio, encomendas ou até recados.

Percebe-se, por isso, que quando o DO 27 sobrevoava o aquartelamento, a baixa altitude, para verificar as condições de segurança da aterragem, um súbito alvoroço irrompia de todo o sítio, onde viva alma se encontrasse e todo o aquartelamento se agitava até se distribuir o que o saco do correio continha.

A vinda do avião era um acontecimento semanal obrigatório que nada poderia impedir, sob pena de se gerar um mal-estar, mais ou menos generalizado. Compreende-se que assim fosse, visto que ele representava a ligação com o resto do mundo ! . . .

Mas havia sempre quem guardasse um calendário e religiosamente cortasse os dias que passavam. Por isso, dava conta dos domingos, feriados, dias santos e avisava que era dia de jogar à bola ! . . . E se nada fundamental fazia parte da “ordem do dia”, pois porque não ? Praticar desporto também é importante para desanuviar o espírito.

Uma peladinha no fundo da pista dava sempre jeito ao espírito e à pista, para não falar da forma física dos atletas.

O nosso (de Gadamael) principal adversário era Ganturé (Destacamento), principal e único, pois o campeonato era limitado e não eram admitidas inscrições fora do prazo. Por isso, quando não havia derby, treinávamos. Conseguia-se sempre arranjar voluntários para a segunda equipa. . . E para aqueles que não tinham pés para a bola, jogavam com as mãos . . . voleibol claro.

O Campo normalmente utilizado para o Voleibol era em Ganturé

Em qualquer dos casos, é de realçar, não só o empenhamento, mas também o estilo e a técnica. É caso para dizer: Assim se jogava em Gadamael Porto ! . . . E para que fique para a História, aqui vai a equipa principal de futebol.

Que me desculpem os esforçados atletas, mas só me lembram os nomes de alguns: Em baixo, da esquerda para a direita, em segundo lugar o Cap. Anacoreta Soares, seguida do Alf. Mil. Assunção e eu próprio.

Mas quem poderia imaginar que, no meio de tantas vicissitudes, o ser humano ainda dispunha de disposição e criatividade para “fundar” um Grupo Cultural e Recreativo, mais recreativo que cultural, naturalmente . . . Foi assim que nasceu o “LADRÕES DE GADO”. Têm dúvidas?!. . . Pois tentem ler o dístico, junto ao microfone . . .

O Palco improvisado foi montado numa Berliet que, para o efeito, foi estacionada, em frente do refeitório.

O espectáculo exibiu um repertório variado e teve numerosa assistência com direito a plateia e primeiro balcão, ou seja, a bancos do refeitório em primeiro plano, seguidos das respetivas mesas.

A fotografia seguinte retrata um ritual com um significado profundo que a galhofa esconde e em que os participantes, sem se aperceberem, transmitem uma mensagem, compreensível apenas a quem está “por dentro das coisas”.

Um grupo manifestando-se depois da “recuperação” de um amigo, na Clínica, a parada do Aquartelamento

O cortejo, porque é disso que se trata, captado noutra fotografia publicada na Segunda Parte, é uma manifestação festiva e espontânea de um conjunto de amigos que resolvem “recuperar um doente”:
- A CLINICA FEZ A RECUPERAÇÃO DE UM DOENTE, é o que diz o cartaz. O “doente” era um camarada que acabava de cumprir o castigo de trabalhar na parada à hora do descanso.

Moral da história:
- Quando o Grupo assume a disciplina como coisa indispensável à sua própria sobrevivência, o castigo é entendido como um tratamento e o facto tem honras de festa. Tenho de confessar que este ensinamento, transmitido de forma espontânea, me acompanhou para o resto da vida. Obrigado Camaradas.

A macaquinha (da raça “macaco cão” ao colo do Camarada Faria de Transmissões, que até parece que se fardou a preceito para a fotografia

Vou terminar esta comunicação, com uma homenagem à natureza da Guiné, simbolizada na macaquinha que, com o seu ar ternurento, nos deliciava com as suas diabruras, o seu pedido de festas as quais, à falta da mãe, nos solicitava. É impressionante como a natureza é implacável e determinante. É quase impensável que a macaca criada no meio dos humanos, sentisse vertigens quando colocada num ramo, a dois metros do solo !

. . . E que pensar da sua reação, quando saltitando à frente da coluna se aproximava da zona do Bendugo, onde habitava uma colónia da sua raça: eles ameaçavam com latidos ferozes e a macaquinha corria em pânico para nós. Ela coitada, sem querer, talvez pela força do destino, traiu os irmãos de raça ! . . . Nós, os humanos, éramos os amigos ! . . . Era assim com os macacos . . . Não é muito diferente com os humanos. . .
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9329: Memórias da CCAÇ 798 (Manuel Vaz) (5): Uma perspectiva a partir de Gadamael Porto - 65/67 - V Parte - Defesa do aquartelamento

Guiné 63/74 - P9434: Tabanca Grande (320): Álvaro Simões Madureira Vasconcelos, Transmissões STM (Aldeia Formosa e Bissau, 1970/72)

1. Mensagem do nosso novo tertuliano, camarada Álvaro Simões Madureira Vasconcelos, Transmissões do STM, Aldeia Formosa e Bissau, 1970/72, com data de 29 de Janeiro de 2012:

Camarada Luis Graça, muitos parabéns.
Esperamos que a vida lhe sorria, com muita saúde e um incomensurável pacote de bem-aventuranças!

Sou um ex-combatente, Álvaro Simões Madureira Vasconcelos, nasci em 1948.
Fui incorporado em 6.5.69, RI-10 – Aveiro. Depois da recruta, colocaram-me no Regimento de Transmissões, no Porto, de onde sou natural.
Em Outubro, desse ano de 69, fui para Lisboa. Em Sapadores, no Batalhão de Transmissões, conclui um curso intensivo de STM.

Fui colocado na Foz do Douro, no Castelo, junto ao Law Ténis, a prestar serviço de transmissões junto com camaradas da Força Aérea e da Marinha. Durou pouco a boa vida.
Em Janeiro fecharam o Posto e passei para o QG/Porto.
Em 13.5.70 fui mobilizado para o CTIGuiné, conjuntamente com mais 10 camaradas da mesma "fornada".

Forte de S. João Batista - Foz do Douro
Com a devida vénia a Castelos de Portugal

Depois de três embarques falhados, lá me despacharam no “Carvalho Araújo”, em 10 de Julho. Cheguei a Bissau, Cais de Embarque, em 21 de Julho, depois de ter “encostado” em S. Vicente / Cabo Verde.

Oito dias depois de me terem “acrescentado”, como rendição individual, aos disponíveis no STM do CTIGuiné, fui despachado para “Quebo” (Aldeia Formosa). Lá cheguei em 28 de Julho, sendo colocado no posto de transmissões da unidade. Passei por alguns “embrulhanços”, ajudei a preparar a op.”Mar Verde” (Nov.70) e aguentei.me lá até Junho de 1971.

Vista aérea de Aldeia Formosa (1973)
Com a devida vénia a José da Mota Vieira da 3.ª CCAÇ/BCAÇ 4513

Depois, por obra do então Cap. Oliveira Pinto, na altura Comandante do Agrupamento de Transmissões, em Santa Luzia, passei para Bissau. Quando operei no "arame farpado" do aquartelamento de Aldeia Formosa, devo ter deixado algum legado que me "trampolizou" para o posto receptor do Centro de Mensagens, em Bissau. Recebia bem os sinais de "morse" e passei a co-responsável pela recepção dos SITREPS/CTIG e da "Press Lusitana".
Aqui cheguei em finais de Junho/71 e passei a guarnecer aquele servidor do Aquartelamento de Transmissões. Foi um período de algum trabalho, mas de muita felicidade, uma vez que os 10 meses (pouco mais) do Quebo foram duros. Não sendo o quartel muito flagelado, eram-no no entanto os camaradas dos Batalhões lá sediados, bem como os artilheiros que operavam nos três "Obus 14", nos "Morteiros" e, ainda, o Pelotão" FOX", cuja malta era de muita garra, desde o Alferes, aos Furriéis, Cabos, condutores das "White,s", artilheiros etc.. Rapaziada de um companheirismo, bravura e dedicação inesquecíveis. Quando saíam para as missões no mato, chegavam sempre com o sentimento de missão cumprida a preceito. Nas colunas para Buba - sempre de grande risco, devido as minas na estrada que constantemente era "picada" quase metro a metro (em trinta mil bem difíceis), o pessoal sofria muito e, no aquartelamento quem ficava também sofria por eles!

Depois, em Bissau, ainda passei por um pequeno susto, quando em Junho de 72 caíram uns "foguetes" de fabrico "Chinoca", quando menos se esperava, embora a "malta" percebesse que estava para acontecer algo arrojado por parte do PAIGC. Mas não passou de um episódio que serviu para o pessoal se prevenir mais e melhor, pois as coisas aqueciam, com frequência cada vez mais indicadora de algum descontrole. Preparava-se a malta da fornada de 69, os Milicianos (Sargentos e Oficiais) que mais tarde desceram do "Ralis" até à Ajuda!...

Camarigo Luís Graça, sou um seguidor do Blogue. Até hoje mantive uma postura de leitor. Hoje consegui quem me ajudasse a mexer na PC e escrever o que entendo ser obrigação: reconhecimento do extraordinário trabalho que o Luís, o Carlos Vinhal e todos os v(n)ossos camaradas editores desenvolvem: um OBRIGADO do tamanho do Tabanca Global (Mundo).

Mexo mal na informática, sou quase infodependente, sei utilizar o teclado, entrar na NET e pouco mais. Sou um tanto "cepo". Prometo ver se aprendo a digitar fotografias e/ou documentos. Tenho algumas fotos de Aldeia Formosa, dos camaradas com quem convivi (e que nada sei deles).

No Blogue não tenho conseguido encontrar referências ao (ou do) pessoal que embarcou no "Carvalho Araújo", em 11 de Julho de 1970, desembarcando onze dias depois (com poiso em S. Vicente ao oitavo dia).

Porque mal me desenrasco com o serviço informático, não entrei ainda na Tabanca Grande. Tenho medo de fazer asneira ("borrar a escrita")!

Hoje era imperativo saudá-lo. Espero ser bem sucedido,

FELICIDADES E MUITA SAÚDE.
Bem Haja, assim como todos os Camarigos!


2. Comentário de CV:

Caro camarada Vasconcelos, sê bem aparecido na Tabanca Grande, onde, a partir de hoje és membro efectivo e apresentado mesmo sem fotos. Atendendo à tua dificuldade de principiante nesta coisa "muito complicada" chamada informática, abrimos excepção.

Desculpa ser eu a responder-te e não o Luís a quem te dirigiste directamente, mas acontece que ele ainda tem actividade profissional, como professor universitário, e o seu tempo é muito limitado. Por outro lado sou eu que praticamente "abro" as portas invisíveis da Tabanca virtual aos novos tertulianos. O Luís agradece as tuas palavras a propósito do seu aniversário.

Podes navegar à vontade no nosso blogue porque não o danificas assim como o teu PC. A informática do utilizador é fácil, basta saber meia dúzia de comandos e o resto vem com a prática. Depois sempre se arranja um filho, neto, sobrinho, vizinho ou afim para dar uma ajuda em caso de dúvida.

Aconselho-te a que guardes nos favoritos o endereço do nosso blogue para ser mais fácil, para ti, aceder a ele sempre que queiras. O nosso endereço é http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com

Ficas na "obrigação" de, logo que te seja possível, enviar-nos as tuas fotos da praxe, uma do tempo de tropa e outra actual, para te conhecermos quando nos cruzarmos na rua. Já agora diz-nos qual o teu antigo posto e a Especialidade correcta não venha eu a ser gozado pelos camaradas da área das Transmissões.

Quanto à tua tropa, até nem tiveste um percurso muito mau. Tropa ao pé da porta e tudo, a ver as meninas a jogar ténis e apanhar o bonito sol da Foz do Douro. Até dava para ir almoçar a casa e fechar a porta da guerra às 17 horas. Mesmo na Guiné, tirando Aldeia Formosa, ainda tiveste um tempinho para gozar aquela bela cidade(zinha) de Bissau.

Apesar da parte menos perigosa, terás também as tuas histórias que terão todo o cabimento neste blogue, pois nem só os operacionais fizeram a guerra. Não te acanhes e começa a escrever.

Antes das despedidas até ao teu próximo contacto, resta-ma enviar-te um abraço em nome da tertúlia e dos editores deste blogue, e os desejos de que tenhas uma colaboração assídua. Continua a treinar no PC com a certeza de que muito dificilmente estragarás alguma coisa. Quando tiveres dúvidas a coisa mais aconselhável é desligar o equipamento e voltar a ligar. Evita a tecla "Delete" e utiliza mais a "Esc". Fala quem "sabe".

Recebe um abraço do editor de serviço
Carlos Vinhal
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 27 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9409: Tabanca Grande (319): Vítor Caseiro, ex-Fur Mil da CCAÇ 4641 (Mansoa e Ilondé, 1973/74)

Guiné 63/74 - P9433: (Ex)citações (172): Ainda o dossiê Guidaje - Maio de 1973 (Manuel Marinho / Amílcar Carreira)

1. Comentário do nosso camarada Manuel Marinho (ex-1.º Cabo da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Nema/Farim e Binta, 1972/74), no Poste 9425(a) no dia 1 de Fevereiro de 2012:

Caro Amílcar
Por feitio e formação não gosto de estar a comentar textos de camaradas ou amigos do blogue que não são devidamente identificados, mas isto diz respeito aos editores, e na minha opinião violam regras estabelecidas no blogue, fica o reparo.
Mas como tu dizes que eras da CCS do BCAÇ 4512, portanto pertencendo ao meu, vou corrigir o que escreves no texto, que não corresponde à verdade, (eu estava lá).

Para mais completa informação consulta o P4957(b).

No dia 8 Maio onde eu vou integrado com o meu 1º GrComb de Nema, o confronto com o PAIGC só durou 15 minutos na noite do dia 8, por efeito de rebentamento de mina que obrigou a paragem forçada e a permanecermos durante a noite junto das viaturas.

Já agora, tivemos 2 feridos nessa noite.

Dia 9 logo ao alvorecer começou a grande e longa emboscada com mais de 100 IN que durou cerca de 5 longas horas, até que um pequeno grupo de cerca de 15 elementos de Binta da minha 1ª Ccaç, conseguiu chegar perto de nós e fazermos a retirada, conseguindo a muito custo retirarmos os nossos feridos.

As tuas erradas e (lamento dizê-lo) lamentáveis afirmações;

“A emboscada à 1ª coluna de ajuda a Guidage aconteceu no 1º dia, ao fim da tarde, só terminou ao raiar do dia seguinte, com o IN a derrotar as NT, e fazendo o correspondente assalto final.”

(É por estas e por outras parecidas, que o PAIGC “ganhou a guerra”).

O IN nunca nos fez assalto final porque não teve tempo nem poder para o fazer, mesmo nós já nos limites físicos e praticamente sem munições as coisas não eram assim tão fáceis.

Tivemos 4 mortos, que ficaram na picada, as ossadas só foram levantadas passados três meses, de apenas três deles.

- Arnaldo Marques Bento - Fur Mil da Ccaç 14ª de Farim, e já agora não era açoriano.
É o primeiro a falecer vítima de ter sido atingido no baixo-ventre, com granada RPG.
- Lassana Calissa - Sold da Ccaç 14ª
- Bernardo Moreira Castro Neves - Cabo Mil do meu GrComb.
- António Júlio Carvalho Redondo - da 3ª / Bcaç 4512 (corpo não recuperado).

O PAIGC teve 13 mortos confirmados nestes confrontos.

Mais algumas notas:

- O dia 8 Maio / 73 foi numa terça-feira e não num domingo.

- A 13 quando chega a 2ª coluna de Guidaje a Farim é num domingo, e traz 2 mortos numa Berliet, um deles é da tua Ccs, é curioso não o mencionares, seu nome:

- Ludgero Rodrigues Silva – Condutor Auto – faleceu em Guidaje.

- O 1º ataque com foguetões a Farim, ocorre a 5 de Fevereiro de 1973, ainda lá estão os “velhinhos” da Cart 3358 que fomos render.

Espero ter contribuído para que se dissipem algumas dúvidas que ainda vão aparecendo.

Aos Editores, renovo o meu apelo para que haja identificação de quem comenta, pois ainda não “apareceu” o anónimo que dizia ser Capitão da minha Ccaç, fez um comentário ao P6612(c) com falsas afirmações e até hoje não pude responder, além do comentário que fiz chamando a atenção para estas questões.

Um abraço para todos
Manuel Marinho


2. Mensagem do nosso camarada Amílcar Carreira, ex-Fur Mil Inf Op da CCS/BCAÇ 4512, Farim, 1972/74, com data de 1 de Fevereiro de 2012:

Boa tarde Carlos Vinhal.
Pelos dados que forneceste estivemos em épocas diferentes na Guiné.

Não suspeitei que o meu e-mail fosse publicado com a classificação de anónimo, uma vez que um dos ficheiros dizia que estava de sargento de dia ao batalhão e no item: assunto, disponibilizava muitos dados que permitiam identificar-me. No entanto a dúvida ficou instalada, ora nunca tive necessidade de me esconder atrás do anonimato, muito menos na situação de ex-militar.

Assim esclareço:

Frequentei a recruta de sargentos milicianos no quartel das Caldas da Rainha (4/1/1972).
Frequentei a especialidade de Informações e Operações no quartel de Tavira.
Fui mobilizado fazendo parte da CCS do BCaç 4512/72, que saiu do Quartel de Tomar, com o posto de fur milº Inf.Op. de Infantaria.
No dia 6/12/72, bem cedo (6 horas da manhã?), apanhei o comboio, para Lisboa, na estação da CP de Tomar. Cerca das 18 horas de 6/12/72 embarquei, no Uíge, com destino à Guiné.
Ao final da tarde do dia 12/12/72 cheguei a Bissau e na manhã de 13/12/72 desembarquei. De imediato segui para o treino operacional que decorreu no Cumeré.
Nas primeiras semanas de Janeiro de 1973 o Bcaç 4512/72 vai para o sector de Farim. A CCS e o comando ficaram em Farim e é aí que permaneço até Agosto de 1974.
O meu nome, no meio militar. era de Amílcar, e para quem ainda tem dúvidas da autenticidade de quem fez o contacto, dir-lhe-ei que o meu nome é Amílcar Carreira.

O Carlos Silva tem razão; o modo como cada um percepciona a verdade depende de várias variáveis.

Quanto aos comentários do Manuel Marinho terei que acrescentar algo, tentando nunca trair o que disse no 1º e-mail, relativamente à verdade dos factos e de quem devia ter prioridade na narrativa.

1 - Um olhar subjectivo sobre o conflito (guerra): cada qual tem a sua visão e não vou entrar por aí.

2 - A 1ª coluna de reabastecimento a Guidage é que sofreu os 4 mortos e todos na manhã seguinte à 1ª emboscada.

2.1- Furriel miliciano Bento, atirador, pertencia à Ccaç 14, e até ali, tinha sido o professor dos militares. Era de Vila do Conde (falámos horas intermináveis sobre a guerra e de assuntos de carácter geral)

2.2 - O Cabo miliciano da 1ª Companhia BCaç 4512/72, diziam que era dos Açores. Só o via quando os furriéis de Nema vinham tomar café ao nosso bar, Farim.

2.3 - Os 2 militares (penso que um era cabo e outro soldado, mas sem a certeza), identifiquei-os como ambos pertencentes à Ccaç 14. O Manuel Marinho diz que um pertencia à 3ª Compª do BCaç 4512/72, aceito que ele esteja certo.

3 – No que respeita ao regresso a Farim (13/5/73), domingo, da coluna constituída pelos militares que tinham feito parte da 1ª e 2ª colunas de ajuda a Guidage, como é óbvio, elas tinham saído de Farim durante a semana. Esta coluna trazia de volta o Comandante de Batalhão, Cor Vaz Antunes, que tinha ido a Guidage, na 2ª coluna que saíu de Farim, e por imposição expressa do General Spínola. Não questiono a presença de mortos na coluna descrita pois o que mais me marcou foi ver os corpos enfaixados seminus e os medicamentos a serem administrados por via venosa.

4 - É verdade que o soldado auto da nossa CCS morreu, mas foi no aquartelamento de Guidage, enquanto que no e-mail anterior só mencionei os mortos que aconteceram na 1ª/2ª emboscadas.

Aproveito este contacto para fazer uma correcção e repor a verdade dos factos em relação à narrativa do ex-fur milº Araújo.
Depois de ter feito seguir o meu ficheiro sobre o soldado africano que assassinou o alferes, verifiquei que o Araújo, mais uma vez, foi rigoroso, pois refere que o oficial foi assassinado por causa de um reforço, mas que não sabia o que estava na origem do diferendo. Ao Araújo as minhas desculpas se sentiu que os meus comentários feriram de algum modo a sua narrativa.

Durante muitos anos tive dúvidas se devia revelar o que tinha vivido na guerra (não é o caso de ter conhecimento de acontecimentos extraordinários). Mas não terão sido todos extraordinários? Ainda hoje as dúvidas subsistem…

Ao Bento, estejas onde estiveres, descansa em paz. Sei que finalmente estás bem.

A todos os ex-combatentes vai um abraço fraterno e sem mágoas,
Amílcar


3. Comentário de CV:

Caros camaradas Marinho e Amílcar, a troca de argumentos dentro da cordialidade e frontalidade só podem levar a um caminho, o da verdade.

Com efeito, ficou-nos alguma dúvida quanto à identidade do Amílcar, embora nunca duvidássemos de que se tratava de um camarada que de algum modo esteve perto dos acontecimentos de Guidaje. Agora sim estamos em posse de todos os elementos e podemos falar mais abertamente, rebatendo e utilizando a cordialidade como arma de arremesso.
Cada um de nós tem uma percepção do que viu e viveu, e só o ajuste de pormenores pode levar à verdade, se é que será possível chegar até ela volvidos todos estes anos.

Renovo o nosso convite ao Amílcar para se juntar a nós e colaborar neste registo de memórias que serão tanto mais fieis quantos mais depoimentos aqui forem feitos. Manda-nos as tuas fotos da ordem.

Ao camarada Marinho agradecemos a sua sempre atenta colaboração e a certeza de que tudo faremos para manter o nosso Blogue no caminho da verdade.

Carlos Vinhal
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Notas de CV:

(a) - Vd. poste de 31 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9425: O Nosso Livro de Visitas (125): Amílcar, ex-Fur Mil Inf Op da CCS/BCAÇ 4512 (Farim, 1972/74)Guiné 63/74 - P9311: (Ex)citações (171): A propósito de citações e comentário do Mais Velho (José Manuel Matos Dinis)

(b) Vd. poste de 15 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4957: Tabanca Grande (173): Manuel Marinho, ex-1.º Cabo da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Farim e Binta (1972/74)

(c) Vd. poste de 18 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 – P6612: Estórias avulsas (89): Guidaje em revolta após Abril (Manuel Marinho)

Vd. último poste da série de 4 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9311: (Ex)citações (171): A propósito de citações e comentário do Mais Velho (José Manuel Matos Dinis)

Guiné 63/74 - P9432: Estórias avulsas (59): Uma aventura, nas férias de Natal de 1973, aos 17 anos... em Cufar, Rio Cumbijã e Cadique (Pedro Gonçalves Vaz)

1. Mensagem do Luís Gonçalves Vaz, com data de 31 de janeiro último:



Assunto - Estória de mais um filho do último CEM do CTIG  Coronel Henrique Gonçalves Vaz

(...) Consegui autorização para publicar a 'estória' do meu irmão José Pedro, que se encontra no Brasil como Administrador de uma Empresa Portuguesa (é engenheiro mecânico de formação), sobre um dos diversos episódios que viveu na Guiné, nos anos de 1973/74, aquando das visitas que fazia à família, já que se encontrava na Escola Naval, em Lisboa a estudar. Enviou-ma hoje do Brasil. Podem Publicar. (...)



2. História no Ultramar com José Pedro Gonçalves Vaz [, na foto acima, aos 17 anos, na ilha de Bubaque, Bijagós]

Bissau-Cufar-Cadique
Data: Dezembro de 1973
 

Sempre tive algum receio de voar, para não dizer medo (que fica muito mal para quem hoje viaja tanto de avião como eu), mas nos meus 17 anos eu queria muito era experimentar o helicóptero.


Estava eu na Guiné a passar umas férias de Natal, em 1973, com os meus pais, quando soube que o meu pai, que era na altura, o Chefe do Estado-Maior do CTIG, coronel Henrique Gonçalves Vaz, ia visitar uns aquartelamentos no Sul da Guiné. Julgo que era Cufar e Cadique ! O plano de visitas dessa semana ao “mato” do meu pai, era esse. O que me lembro melhor é que soube que iria de helicóptero, oh que maravilha!… 


Passei essa semana a pedir ao meu pai que me levasse nessa saída. Para que se perceba, eu apesar de ter apenas 17 anos, era já um jovem cadete da Escola Naval, como tal seria “normal” ir-me habituando ao Teatro de Operações da Guiné, no entanto não era esse o meu pensamento, o que eu queria era “ter acção” de helicóptero!


Depois de muito insistir, ele lá concordou em me levar. No dia D, pelo mês de Dezembro de 1973 (nas minhas férias de Natal), entregou-me, logo ao início da manhã, um camuflado (e uma G3) e disse: 
- Veste-o, e prepara-te bem já que vais ver o que te espera logo que saíres da Escola Naval! 


Eu, todo contente, lá o vesti. O tamanho, era de um tipo muito mais pequeno do que eu! Ficava com metade das pernas e dos braços “descamuflados”! Tenho pena de não ter fotografias dessa minha experiência marcial. Depois das habituais recomendações, que incluíam o uso da G3 em caso de ataque e a responsabilidade do grupo, lá nos dirigimos para o local de embarque. 




Último CEM do CTIG, nesta fotografia ainda major Henrique Gonçalves Vaz, não no rio Cumbijã na Guiné, mas no rio Chiloango,  em Cabinda (1964 ) com apoio dos Fuzileiros. Como era de sua “tradição”, visitava todos os aquartelamentos, para onde realizava operações como oficial do Estado-Maior. Cadique não foi esquecido, como muitos outros aquartelamentos no Teatro de operações da Guiné, nos anos de 1973 e de 1974.


Oh… grande desilusão! Afinal, por qualquer razão logística de que não me lembro (talvez a necessidade do helicóptero nesse dia para evacuar feridos nalguma zona do TO), a viagem não ia ser realizada de helicóptero mas sim por outros meios de transporte. Não me lembro bem até chegar ao rio Cumbijã, mas o que era costume (informações de ex-combatentes) era ter ido de avião até Cufar (que fica entre Catió e Bedanda) e depois, e disso lembro-me muito bem, fomos de sintex até Cadique, na outra margem do Cumbijã. 


Chegados ao rio tivemos direito a um pequeno briefing para iniciarmos a parte mais crítica, visitar Cadique pelo rio Cumbijã. O medo e a adrenalina estavam em níveis crescentes, e finalmente recebi instruções e lá me instalei com o restante pessoal, deitado no fundo da embarcação com a G3 apoiada na borda a apontar para a minha margem. Saímos do porto grande no rio Cumbijã em direcção ao aquartelamento de Cadique seguindo rio abaixo até que chegámos ao nosso destino, no lado oposto do rio relativamente ao ponto de partida. 


Nesse percurso lembro-me muito bem da tensão na viagem, sempre à espera de sentir uma saraivada de balas disparadas de alguma das margens com o tarrafo bastante alto, mas eu estava bem “mentalizado” para uma reacção imediata da nossa parte. Hoje penso que tivemos muita sorte em não termos sido atacados. Naquela altura, terei ficado um pouco desiludido já que, nessa idade, somos todos um pouco loucos. 


Do que lembro hoje, a viagem decorreu sem qualquer incidente, com uma duração que me pareceu um eternidade, mas não foi, já que cada barco sintex tinha um valente motor de 50 cavalos, com uma velocidade de cerca de 18 nós e o percurso não teria mais que meia dúzia de km. A “escolta” do CEM/CTIG, não ultrapassaria dois sintex com uma dúzia de militares bem equipados e com sentido de missão. 


Chegámos, finalmente, a Cadique e tive mais uma desilusão, o nosso destino não passava de um aquartelamento cercado de arame farpado com meia dúzia de “tabancas” em redor. O Comandante, o Tenente-coronel Sousa Teles (1) teve um meeting com o meu pai, do qual recordo apenas a discussão sobre o número de rádios e outros equipamentos que o Comando do CTIG poderia disponibilizar para esse aquartelamento. A minha impressão actual é que a visita do meu pai, o CEM/CTIG, coronel Henrique Vaz, teria também o objetivo de expressar um apoio aos militares que ali combatiam em condições adversas já que, pelo que sei hoje, Cadique era frequentemente fustigada por ataques do PAIGC. Depois de tratarem dos “negócios” militares, convidou-nos então a dar uma volta de jeep pelo exterior do quartel.




Recorte de uma imagem do mapa da Guiné (escala 1/ 500 mil), onde é possível ver a localização do campo de aviação em Cufar, bem como o itinerário entre o porto novo de Cufar e Cadique.


Mais uma surpresa, naquele fim de mundo havia uma estrada asfaltada [, Cadique-Jemberém], no meio de uma selva cerrada, que, não acredito, levasse a lugar algum!


Ao fim de algum tempo (pouco…), encontrámos duas mulheres negras que caminhavam na nossa direcção. O Comandante parou o jeep e iniciou uma conversa com as mulheres numa linguagem para mim completamente estranha. Subiu uns pontos na minha consideração, pois falava perfeitamente o dialecto local… Impressionante! Depois de se despedir das mulheres, virou-se para o meu pai e disse:
- Meu coronel os “turras” estão aqui perto pelo que, sem escolta (só íamos os três, mas eu levava a minha G3…), não é aconselhável ir mais além. O meu pai concordou com o oficial conhecedor da “realidade” local e voltámos para trás.





Cadique, em 2008, integrado na área do Parque Nacional de Cantanhez. (Fotografia gentilmente cedida para este artigo pelo ex-combatente Eduardo Campos, membro da nossa Tabanca Grande, ex-)





Do regresso, nada me lembro, não me impressionou comparado com o que tinha acabado de viver naquele local recôndito, bonito mas perigoso.

Nunca me esqueci de duas coisas desta estória, e que foram importantes na minha vida: (i) o dilema que o meu falecido pai, coronel Henrique Gonçalves Vaz, deve ter tido para me autorizar a ir com ele; (ii) e o profissionalismo daquele Comandante do mato. 


Um ano após este episódio cheguei à conclusão que a minha vocação não era a carreira militar e mudei de ramo.


Curitiba [, Brasil,] 30 de Janeiro de 2012

José Pedro Beleza Gonçalves Vaz
(filho do último CEM do CTIG na Guiné)


Fotos: © Luís Gonçalves Vaz (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.
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Nota do irmão do autor, LGV:(1) Informação gentilmente dada pelo camarigo Eduardo Campos (ex-1.º Cabo Trms da CCAÇ 4540, Cumeré, Bigene, Cadique, Cufar e Nhacra, 1972/74)

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Nota do editor:


Último poste da série > 6 de novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9004: Estórias avulsas (117): Posto avançado ou vala comum? (Carlos Filipe) 

Guiné 63/74 - P9431: O Nosso Livro de Visitas 126): Fernando Paiva, Pel Caç Nat 57, Mansoa e Bindoro, abril de 1967/abril de 1969






Guiné > Região do Oio > Mansoa > BCAC 2885 (1969/71) > Posição relativa do antigo destacamento de Bindoro, a sul de Mansoa. na margem direita do Rio Geba (Largo)


Infogravuras:   Jorge Picado (2011). Todos os direitos reservados.


1. Mensagem, com data de 20 novembro de 2011, do nosso camarada e leitor Fernando Paiva


Caro Luis Graça,

Tomei conhecimento deste seu trabalho de promover ligações entre gente que esteve na Guiné, através duma sua amiga, Laura Fonseca, que conheci, recentemente.

Também estive na Guiné, de Abril de 67 a Abril de 69.

Fui, em rendição individual, para criar o Pel Caç Nat 57, em Mansoa. A pá e pica, construímos o Destacamento de Bindoro, onde permaneci, até Julho de 68, quando fui transferido para Bolama.

Vivi, diariamente, quase ombro a ombro, com aqueles fantásticos Balantas, gente muito boa e corajosa, que aprendeu, às suas custas, a melhor maneira de coexistir com a tropa e o PAIGC, num "jogo de cintura" que eu julgo ser muito comum, em períodos de guerra civil, como foi aquele em que se viveu, na Guiné.

Gostava de ter alguma informação, quer da gente do Bindoro, quer dos militares, de cá e de lá, com quem partilhei alguns dos momentos mais emocionantes da minha vida.

Muito obrigado pela sua iniciativa e pela sua dedicação.

Fernando Paiva
Amarante

2. Comentário de L.G.:

Camarada Paiva: quero-te pedir (entre camaradas da Guiné tratamo-nor por tu), antes de demais,  desculpa pelo atraso com que a tua mensagem chega ao conhecimento dos nossos leitores... São quase dois meses e meio. O que se passa é que não somos tão profissionais quanto gostaríamos de sê-lo.  Ou melhor: não dedicamos (nem podemos dedicar) ao blogue o tempo que seria preciso para dar conta de todos os recados... Mas a tua mensagem, por algum tempo perdida ou esquecida, aí está à luz do dia... 

Apreciei muito a tua mensagem. Em primeiro lugar, por vires referenciado por uma amiga muito especial, do Porto, que conheço há quase 40 anos, a Laura Fonseca. Ela falou-me de ti e, se não me engano, és ou vives em Amarante. Se sim, somos vizinhos, porque também tenho casa no Marco de Canaveses. E depois por seres um do homem do Pel Caç Nat 57, por teres andado por Mansoa e por Bindoro, e  por nos teres falares dos balantas com tão grande apreço e inteligência... 


Vou-te convidar para te sentares aqui ao nosso lado, à sombra do nosso poilão, nesta Tabanca Grande que não tem muros, nem arame farpado, nem cavalos de frisa, nem abrigos, nem espaldões, nem ninhos de metralhadora... É um espaço de partilha de memórias e e de afetos, onde cabem todos os camaradas da Guiné, sem qualquer distinção. 

Acontece, além do mais, que não temos ninguém do Pel Caç Nat 57, temos gente de (ou referências a) todos os Pel Caç Nat  do 50 ao 70, com exceção do 57. Tu serás o homem certo para nos falares dessa unidade que ajudaste a criar.  O mesmo se passa com gente do Bindoro: pouco sabemos desse lugar. Como pouco também temos falado dos nossos amigos balantas... Um abraço de boas vindas. Luís Graça
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Nota do editor:

Último poste da série > 31 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9425: O Nosso Livro de Visitas (125): Amílcar, ex-Fur Mil Inf Op da CCS/BCAÇ 4512 (Farim, 1972/74)


Guiné 63/74 - P9430: Parabéns a você (375): Germano Santos, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 3305/BCAÇ 3832 (Guiné, 1970/73)

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 29 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9414: Parabéns a você (374): Luís Graça Henriques, ex-Fur Mil Armas Pesadas da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Guiné, 1969/71) e fundador deste Blogue

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Guiné 63/74 - P9429: Nós da memória (Torcato Mendonça) (7): Finalmente Bissau - Fotos falantes IV

Finalmente Bissau - Palácio do Governador






1. Mais um texto do nosso camarada Torcato Mendonça (ex-Alf Mil da CART 2339 Mansambo, 1968/69) para integrar os seus "Nós da memória", ilustrado com fotos falantes da sua IV série.





NÓS DA MEMÓRIA - 7
(…desatemos, aos poucos, alguns…)

3 - GUINÉ

Difícil para mim falar daqueles dias – dois ou três – depois da chegada à Guiné ou, mais concretamente, a Bissau.

O desgaste provocado pelos anos, a influência posteriormente sofrida pelo que vi e vivi, fiz e mandei fazer pode, de algum modo, deformar a maneira como recordo esses tempos. Talvez mais forte, mais determinante no arrumar de ideias, seja o que, principalmente e ultimamente, tenho lido neste nosso blogue. Há palavras, frases que se escapam ao politicamente correcto, digamos assim, e vêm-nos dizer tanto. São libertações de sentimentos reprimidos, vãs tentativas de se parecer cordeiro vestindo a sua pele sobre corpo de lobo velho ou novo. É natural que assim seja.

Eu, tu ou muitos “eles” podemos pensar de modo diferente. Porquê? Somente porque não fomos os agredidos, os humilhados e ofendidos, os despojados ou desalojados mesmo de poderes injustos e efémeros.

Eu, tu ou muitos “eles” voltamos e tentamos esquecer. Impossível fazê-lo totalmente. O mais forte, o que mais nos marcou ficou para sempre Será o infinito a apagar tudo isso.

Temos algo em comum eu, tu ou muitos “eles”: - Não esquecer, jamais perdoar as cobardes injustiças e colocar cada um em seu lugar.

Quando aqui escrevi, talvez a segunda vez, disse-o. Mantenho e assumo.

Temos igualmente em comum o gosto por aquela terra e aquelas gentes das Tabancas.
Contudo o elo mais forte entre nós é o termos sido combatentes. Termos passado por situações difíceis, termos dialogado com a morte e a sorte. Muitos quase a deixaram de temer, ou, em momentos de quase desespero quase a desejaram. O medo? O medo era uma constante e inesperadamente desaparecia como por magia, não existia tempo para ele e surgiam os automatismos treinados quase até à exaustão. Lembras-te? Claro que sim.

Seria o saber da incerteza do momento seguinte, a incerteza como hoje aqui relato essa parte do passado que nos leva a falar, a apelar à memória para fiel, o mais fielmente possível, contar a versão subjectiva, sempre subjectiva, de tudo o que se passou.

Não sei! Mas ouso fazê-lo honestamente.

Ressalvo o tudo e fico no muito. O tudo não por ser impossível.
Fiquemos no muito, na recordação, na subjectividade e no possível

 A Sé

Forte da Amura

Texto e fotos ©: Torcato Mendonça (Fotos Falantes IV) 2012. Direitos reservados
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 30 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9419: Nós da memória (Torcato Mendonça) (6): África, adeus - Fotos falantes IV

Guiné 63/74 - P9428: Turismo de saudade (3): Fotos da cidade Bissau em 07 de Janeiro de 2012 (TCor José Francisco Robalo Borrego)

1. Dizia-nos no poste* anterior o nosso camarada José Francisco Robalo Borrego (Ten Cor (R), que pertenceu ao Grupo de Artilharia n.º 7 de Bissau e ao 9.º Pel Art, Bajocunda , 1970/72) que no dia 7 de Janeiro de 2012 fez em Bissau um passeio a pé, ida e volta, recordando outros tempos, desde o Quartel-general, Santa Luzia, até ao cais do Pidjiguiti, aproveitando para tirar algumas fotos na cidade.

Quando regressava para Santa Luzia, pedi uma informação a um guineense, na casa dos 60, sobre uma rua o qual se prontificou a informar-me e depois de eu lhe dizer que tinha lá estado, há quarenta anos, na guerra colonial, ele disse-me que também tinha sido combatente da liberdade da pátria, ou seja, do PAIGC, mas que agora éramos amigos, o que eu concordei plenamente com ele. Fomos andando no mesmo sentido e ele amavelmente ia-me transmitindo as alterações geográficas, entretanto, ocorridas. No fim, abraçámo-nos desejando boa sorte mútua.na sua mensagem de 19 de Janeiro de 2012:

Aqui ficam algumas fotos da cidade de Bissau actualmente:

Aeroporto Internacional Osvaldo Vieira da Guiné-Bissau

Forte da Amura

Assembleia Nacional Popular da Guiné-Bissau

Mercado de Bandim

Catedral de Santa Luzia

Estátua de Amílcar Cabral na Rotunda do Aeroporto

Ex-Batalhão de Intendência

Ex-Liceu Honório Barreto

Os Toca-toca, popular meio de transporte da Guiné-Bissau

CONCLUSÃO:

Foram cinco dias intensos e à excepção de Santa Luzia e das unidades e órgãos militares que dela faziam parte, todos os outros locais que visitei, fi-lo pela primeira vez. Por falta de tempo não visitei Bajocunda, minha primeira saída para o mato, mas quem sabe, talvez numa próxima oportunidade!

Despeço-me com um abraço de amizade a todos os ex-combatentes portugueses e guineenses.
José Francisco Robalo Borrego
TCOR (R)
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 30 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9420: Turismo de saudade (2): Mini-diário e fotos da minha visita à Guiné-Bissau (José Francisco Borrego)

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9427: Agenda Cultural (185): Ciclo de Conferências-debate Os Açores e a Guerra do Ultramar - 1961-1974: história e memória(s) (Carlos Cordeiro) (10): Intervenção da Prof. Dra. Célia Carvalho, dia 3 de Fevereiro de 2012 no Anfiteatro B da Universidade dos Açores (Carlos Cordeiro)

1. Mensagem do nosso camarada Carlos Cordeiro (ex-Fur Mil At Inf CIC - Angola - 1969-1971), Professor na Universidade dos Açores, dando-nos notícia de mais um acontecimento integrado no "Ciclo conferências-debates Os Açores e a Guerra do Ultramar – 1961-1974, história e memória(s)":

Meu caro Carlos,
Na próxima 6.ª feira teremos a nossa sexta conferência do ciclo de conferências-debate "Os Açores e a Guerra do Ultramar: história e memória(s)". Junto a notícia, nota biográfica e foto da conferencista, cartaz, prospeto (a foto do prospeto foi amavelmente cedida pelo nosso camarada e especial amigo José Câmara - encontro da CCaç 3327 "Os Nómadas", Angra do Heroísmo, Agosto de 2011), capa do livro (foto gentilmente cedida pelo camarada Humberto Reis). Acho que está tudo... e já não é pouco, para o trabalho que te estou a dar.

Um abraço do
Carlos



Ciclo de conferências-debate
Os Açores e a Guerra do Ultramar - 1961-1974
História e memória(s)

No âmbito do ciclo de conferências-debate “Os Açores e a Guerra do Ultramar – 1961-1974: história e memória(s)”, Célia Carvalho – Professora da Universidade dos Açores e Psicóloga Clínica/Psicoterapeuta, – proferirá, no próximo dia 3 de Fevereiro (6.ª feira), a conferência “Ressonâncias do passado com ecos no presente: tempo de fazer as pazes com a vida”.

Na mesma sessão será apresentado o livro, da autoria do antigo combatente Lino de Freitas Fraga, "Pátria porque nos abandonas? Sofrimentos de uma guerra".

A apresentação da obra estará a cargo de Carlos Cordeiro (foto à direita), coordenador da Comissão Científica do ciclo de conferências-debate.

O evento terá lugar no anfiteatro “B” do Pólo de Ponta Delgada da Universidade dos Açores, com início pelas 17H30, e estará aberto à participação de todas as pessoas interessadas.

Com início em Maio do ano transato, esta é a sexta conferência do ciclo de conferências-debate “Os Açores e a Guerra do Ultramar – 1961¬ 1974: história e memória(s)", uma organização do Centro de Estudos Gaspar Frutuoso do Departamento de História, Filosofia e Ciências Sociais da Universidade dos Açores.



Nota biográfica da Doutora Célia Carvalho

Natural de Coimbra, Célia Maria de Oliveira Barreto Coimbra Carvalho é licenciada, mestre e doutora em Psicologia – área de especialização em Psicologia Clínica – pela Universidade de Coimbra. A partir de 2003 passou a exercer as funções de professora da Universidade dos Açores e da Escola Superior de Enfermagem de Ponta Delgada, desempenhando, simultaneamente, atividade clínica. É também Consultora da University of Southern California, onde exerce as funções de Coordenadora Clínica das Investigações sobre as bases Genéticas da Esquizofrenia e dos Distúrbios Bipolares, a decorrer na Região Autónoma dos Açores e da Madeira. Tem integrado equipas de investigação de projetos a nível nacional e internacional.
É autora ou coautora de inúmeros artigos em revistas científicas nacionais e internacionais.

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Nota de CV:

(*) Vd. poste da última conferência-debate de 26 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9098: Agenda Cultural (171): Ciclo de Conferências-debate Os Açores e a Guerra do Ultramar - 1961-1974: história e memória(s) (Carlos Cordeiro) (9): Rescaldo da sessão do dia 23 de Novembro de 2011 (Carlos Cordeiro)

Vd. último poste da série de 24 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9393: Agenda cultural (184): Conferência "Voluntariado: Que futuro?" e Exposição de Fotografia "Rostos", fotos de rostos da crianças da Guiné-Bissau, a ter lugar no El Corte Inglês de V.N. de Gaia, dia 26 de Janeiro de 2012, pelas 17h00, na Sala de Âmbito Cultural, piso 6.

Guiné 63/74 - P9426: (In)citações (38): Mutilação Genital Feminina: As Mães africanas não são malfeitoras! (Jorge Cabral)

 



Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cantanhez > Iemberém > 6 de Dezembro de 2009 > Festa de batizado muçulmano (10h34)... Uma mãe (in)expressiva, uma mater dolorosa...


Foto: © João Graça (2009) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.


 
1. Mensagem do Jorge Cabral, que é jurista, especialista em direito criminal,[ na foto à esquerda, com a uma aluna, de origem guineense, na Universidade Lusófona, em Lisboa, ] e também foi Alf Mil Art, Cmdt Pel Caç Nat 63 (Fá Mandinga e Missirá, 1969/71): Caro Luís,
  

Como não cabe como comentário ao texto "Mutilação Genital Feminina e Eurocentrismo",  do Chemo Baldé (*), ai vai a minha última conferência sobre o assunto.
Atenção, foi proferida antes das alteração do Código Penal da Guiné Bissau. 
Abraço Grande, JCabral.

2.  Conferência do Jorge Cabral, proferida no Barreiro, na Biblioteca Municipal, em 10 de Maio de 2011 > Mutilação Genital Feminina


Muito boa tarde a Todos!


Cumprimento, felicitando a Organização deste evento na pessoa do Dr. Vítor Munhão, bem como a simpática troika que me acompanha. Saúdo os presentes e convido-os a escutar esta tão humilde reflexão.

A chamada Mutilação Genital Feminina (MGF), prática, com milhares e milhares de anos, vem suscitando curiosidade, interesse e preocupação, um pouco por todos o lado, como se tratasse de algum costume novo, fruto de mães criminosas ou culturas inferiores.

Naturalmente vou deixar, para as companheiras Mafalda e Deolinda,  a tarefa de elencarem os tipos e as consequências desta Mutilação, optando por me debruçar sobre o Fenómeno, numa perspectiva global, a qual julgo mais idónea à sua compreensão.

Há quarenta e dois anos assisti a um Fanado na Guiné-Bissau, cerimónia de iniciação, com dor, sangue e lágrimas, mas também solenidade e magia. Ritual importante, confere a identificação sexual, quer nos rapazes pelo corte do prepúcio (a parte feminina) quer nas meninas, pela ablação do clítoris (a parte masculina).

Desde sempre nas minhas aulas de Direito Penal, nos vários cursos, falo da excisão, a propósito da falta de consciência da ilicitude, pois ninguém pode ou deve ser punido, se não tiver interiorizado o ilícito do acto praticado. O problema discutido é sem dúvida importante numa sociedade multicultural. Será possível sobrepor o direito à diferença étnico-cultural ao preceito incriminador?

Creio que nenhum caso foi julgado no nosso País, mas em França ocorreram vários julgamentos e consequentes condenações, de mães originárias da África Ocidental, tendo Lefeuvre-Déotte, recolhido alguns depoimentos impressionantes como estes:

  •  “Fiz excisar a minha filha… não para a fazer sofrer, ou para a mutilar, ou para fazer tudo aquilo de que me acusam neste processo, mas porque é o meu costume, a minha tradição”;
  • “Não quis fazer mal algum, é a minha tradição que me obriga… Eu amo muito os meus filhos. Uma mãe africana não é uma malfeitora…”

Certamente que em Portugal teríamos declarações semelhantes.

A Mutilação Genital Feminina é conhecida em Portugal há séculos. E sempre foi criminalizada. Ofensa Corporal no Código Penal de 1886 que expressamente previa – “se da ofensa resultar cortamento, privação, aleijão ou inabilitação de algum membro ou órgão do corpo…” - a pena será de “prisão maior de 2 a 8 anos". Ou ofensa à integridade física grave nos Códigos seguintes… “Privá-lo de importante órgão ou membro… ou tirar-lhe os, afectar-lhe de maneira grave as capacidades intelectuais ou de procriação ou a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos”…. Cominando uma pena de prisão de 2 a 10 anos.

Parece óbvio que a conduta em causa sempre esteve enquadrada nas disposições citadas. Não é necessária, nenhuma referência específica ao clítoris, grandes ou pequenos lábios… Também não há referência aos olhos ou ao nariz… A não ser que os genitais não façam parte do corpo da Mulher. A questão não é essa. Nós e os outros. A Europa e a África. Cultura, culturas e relação inter-cultural.

Quando é que em Portugal se começou a falar do problema? Creio que só neste século, designadamente a partir dos importantíssimos artigos da Jornalista Sofia Branco, no Jornal – O Público, em 2002.

E no entanto toda a gente sabe que,  na Guiné-Bissau, se praticou e se pratica a utilação Genital Feminina e que,  até a independência, era o Código Penal Português que lá vigorava. Nós e os outros, isto é, uma espécie de apartheid cultural.

Durante a Guerra Colonial, milhares de Portugueses conviveram com essa realidade. Médicos, enfermeiros, padres, agentes da chamada Acção Psico-Social… Respeito pela cultura, pelos costumes, pelas tradições? Ou indiferença? É lá com eles…

Falo de Portugal, mas podia referir outros países europeus. O problema só assume real importância, quando face ao fluxo migratório, a excisão passa a ter lugar também na Europa, entre imigrantes. Quando falo deste tema logo me perguntam:
– E em Portugal, também se pratica?

Longe da vista, longe do coração, traduz esta postura, egocêntrica e europocêntrica, a qual encerra uma visão distorcida e amputada dos Direitos Humanos, que - frise-se - são universais e tão válidos para a menina do Barreiro, como para a menina da Somália. Ou não serão ambas portadoras de igual Direito à Dignidade ? 

Independentemente das diversas e falsas razões que procuram fundamentar o acto, uma certeza se retira – o seu objectivo fundamental é controlar, melhor,  anular a sexualidade feminina.

A mulher como objecto e não como sujeito do prazer sexual. No fundo, no fundo, trata-se de uma visão que acompanhou desde sempre a Humanidade, e que, quer queiramos ou não, ainda resiste, mesmo em sociedades ditas avançadas. Infelizmente, constato que, no plano sexual, não chegámos à igualdade entre Homem e Mulher. Ainda há quem pense que sexo é uma coisa que os homens fazem às mulheres e se calhar as lições que o meu avô me deu – “A mulher para o dever, a puta para o prazer” ou “Quando uma mulher diz não, quer dizer sim”, pelo menos entre alguns, permanecem actuais.

É pois nos Direitos da Mulher que o problema deve ser enquadrado, Direito ao Corpo, Direito à Sexualidade, Direito à Dignidade, Direito à Liberdade, enfim é o estatuto da Mulher na sua integralidade que está em causa. A mulher coisa, a mulher comprada e vendida, a mulher propriedade, a mulher sob o domínio do homem.

Por essa razão de nada valerá tecer armas contra a mutilação, sem lutar contra todas as situações que inferiorizam a Mulher, designadamente a sua compra ou o casamento forçado.

Direito das Mulheres, mas também Direito das Crianças, pois este tipo de prática é efectuado, em crianças menores de idade, na primeira infância (2 – 4 anos) ou na pré-puberdade (9 – 11 anos).

É a Comunidade, é a Família, são os Pais que determinam. Também aqui convém relembrar que os Pais não são donos dos filhos e que toda a sua acção deve ser orientada para a educação e desenvolvimento da Criança, obedecendo sempre ao Interesse Superior da mesma, como a Convenção sobre os Direitos da Criança determina no seu Art.º 18º.

E a mesma Convenção acentua expressamente, no seu Art.º 24º, N.º3 – Os Estados-partes tomam todas as medidas eficazes e adequadas com vista a abolir as práticas tradicionais prejudiciais à saúde das Crianças.

Convenções, Leis, Códigos não nos faltam.

Não conheço nenhum Código Penal que de uma forma ou de outra não penalize este acto, embora o Código Penal da Guiné-Bissau possua um artigo intrigante e de difícil interpretação. É o Art.º 117, que sob a epígrafe “Ofensas Privilegiadas” reza que: “Quem habilitado para o efeito e devidamente autorizado, efectuar a circuncisão ou excisão sem proceder com cuidados adequados para evitar os efeitos do Art.º 115º ou a morte da vítima… (o Art.º 115º elenca de uma forma semelhante ao nosso, as circunstâncias que qualifiquem a ofensa corporal como grave).

Quererá a primeira parte do artigo dizer que a excisão pode ser autorizada, desde que efectuada por quem estiver habilitado?

Indiciará uma medicalização da prática, vendo o problema como uma mera questão de saúde pública? Claro que dadas as condições em que na maioria dos casos é efectuada é também um problema de saúde pública, mas encará-lo apenas dessa forma, é transformar uma complexa cerimónia de iniciação numa intervenção cirúrgica, sem outro objectivo ou razão, senão cumprir o costume. Semelhante actuação é aliás incentivadora, quando não legitimadora da mutilação,  e segundo penso contrária à própria deontologia médica.

Não nos esqueçamos que durante o século XIX e até aos anos 30 do século XX, tanto nos Estados Unidos como na Europa, a ablação do clítoris constituiu tratamento da histeria, da ninfomania e do lesbianismo…

Não existem culturas superiores nem culturas inferiores e o direito à sua própria cultura, à sua identidade cultural, constitui um direito fundamental, inscrito quer no Art.º 27º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, quer na própria Convenção dos Direitos das Crianças, no Art.º 30º.

E assim deve continuar a ser. Não queremos um Mundo de clones, todos iguais, lendo os mesmos livros, escutando as mesmas músicas e comendo os mesmos hambúrgueres, filhos da Globalização Económica e netos da Internet.

Devemos preservar os costumes e as tradições, para sabermos quem somos e donde vimos. Por isso devemos respeitar todas as outras culturas, respeitá-las e compreendê-las, num constante diálogo inter-cultural. Mas cada cultura encerra em si valores e desvalores. Não devemos deixar morrer os valores, mas procurar extinguir os desvalores.

A Mutilação Genital Feminina será um valor cultural a ser respeitado ? É um problema dos outros? Obviamente que não podemos cair em tal relativismo cultural. A ser assim, toleraríamos que as viúvas na Índia fossem enterradas vivas com os falecidos maridos, que os chineses partissem os pés às meninas e até que certas formas de canibalismo continuassem.

Claro que a Mutilação Sexual Feminina é um crime. Não basta porém afirmá-lo. É necessário que aqui e em todo o Mundo, as Pessoas compreendam porque é um crime. Porque causa dor, porque provoca sofrimento, porque inferioriza a Mulher, e a anula, enquanto Ser Humano, na sua Dignidade.

Combatê-la é um imperativo! Mas não através do Direito Penal, cuja eficácia é reduzida e muitas vezes contraproducente.

A repressão penal,  só por si, levará a um maior secretismo, aumentará os riscos da sua prática e determinará um sentimento de discriminação cultural.

Em qualquer lugar a MGF, é igualmente grave, enquanto violação dos Direitos Humanos, cuja universalidade nos impõe, que a sintamos como violação dos nossos Direitos. A lapidação de uma Mulher no Irão, a condenação à morte de um Homossexual na Arábia, ou a mutilação de uma menina no Sudão, constituem ofensas à minha condição de Homem Livre, até porque a minha Liberdade só pode ser assumida em plenitude, num Mundo de Homens e Mulheres Livres.

A universalização dos Direitos Humanos não pode ser olhada como uma espécie de imperialismo cultural. Os valores fundamentais inerentes à condição humana não têm cor, nem latitude, nem religião. Todas as culturas interagem e se completam, se e quando forem objecto de um igualitário e correcto diálogo intercultural, que deve visar a construção de uma cidadania multicultural.

A Mutilação combate-se não através de slogans, mas pelo trabalho em prole da igualdade de género, respeito pela criança, assumpção da liberdade e dignidade humana, numa atitude que não inferiorize o outro, no seu inalienável direito à cultura.

Pratica-se a Excisão em Portugal?

Não sei! Mas sei que aqui vivem centenas de mulheres que sofreram a Mutilação. Elas sim, deviam ser mais do que Testemunhas, Agentes, Intervenientes da Luta, contra a indignidade.

O Fanado é uma cerimónia importante. Deve ser preservado, mas transformado. É possível; substituir a Dor e o Sangue, pela Festa e a Alegria, num Ritual, que troque a realidade do corte, pelo simbólico do gesto ou da dança. Um fanado alternativo que já foi ensaiado, que não marginalize as «Fanatecas» na sua tradicional autoridade,  antes as aproveite como organizadoras. Todos os costumes e tradições podem ser lembrados a nível simbólico.

Não casam as noivas de branco?

Parece que já falei de mais. O meu amor ao povo da Guiné-Bissau, o meu respeito pela sua cultura, a minha admiração pela sua bondade, impõe-me a obrigação de afirmar sentidamente, fazendo coro com a tal Mulher julgada em França:_
-  As Mães africanas não são malfeitoras!

Tratá-las desse modo será frustrar qualquer combate.

Lutar,  sim, mas com inteligência e respeito, porque habitamos o mesmo Mundo e pertencemos à mesma raça – a Raça Humana, lutar sim porque é nossa obrigação contribuir para um Futuro mais Livre, Fraterno e Solidário.

 Muito obrigado

Jorge Cabral

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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 30 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9423: (In)citações (37): Mutilação Genital Feminina e Eurocentrismo (Cherno Baldé)