terça-feira, 13 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9602: Os nossos últimos seis meses (de 25abr74 a 15out74) (4): Documentação referente a negociações entre Portugal e o PAIGC com vista à desmobilização das tropas africanas que combateram por Portugal (Carlos Filipe)

1. Mensagem do nosso camarada Carlos Filipe Coelho* (ex-Soldado Radiomontador da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 18 de Fevereiro de 2012:

Carlos Vinhal, Luís Graça e restantes editores.

Não querendo sobrepor-me aos excelentes e oportunos relatórios do Luís Gonçalves Vaz, que trouxe ao blogue de forma documental o que até aqui se falava entre nós, mas sem o rigor que é necessário para o aprofundar de conhecimentos sobre o que na verdade se passou, venho pôr à disposição da Tabanca Grande este documento, entre outros, que guardo desde o meu despedimento (desalojado à bomba - Emissores da Buraca) na Rádio Renascença em 1975.


Talvez ajude a fazer luz sobre as intenções e negociações entre Portugal e o PAIGC sobre a desmobilização das tropas africanas que combateram sob bandeira portuguesa.


Entre outras coisas ressalta a divisão em facções dentro dos comandos africanos e proposta de retirar para Portugal os elementos que mais dificuldade teriam em ser aceites pelas novas autoridades em virtude do seu passado.


Um abraço para todos.


PS. pessoal: 99,9 % dos sublinhados, são meus. Podem dar a introdução que entenderem conveniente.


Obrigado.
Carlos Filipe

2. Nota dos editores:

Por norma, e de acordo com a nossa deontologia, o blogue não deve publicar documentos anónimos, apócrifos, de autoria duvidosa ou desconhecida. Fazemos sempre questão de validar os documentos que aqui chegam,  começando por averiguar a sua proveniência, origem, autoria, ano, editor, local de edição ou impressão, etc.

Pedimos ao Carlos Filipe para tentar saber qual a origem ou proveniência do documento, a data em que foi emitido, etc.... Trata-se de uma cópia de um documento original, datilografado, que é uma espécie de ata da reunião havida em 29 de julho de 1974, em Cacine, entre uma delegação portuguesa, encabeçada entre o brigadeiro graduado Carlos Fabião, último governador da Guiné e com-chefe, e uma delegação do PAIGC, chefiada por Júlio Carvalho (comandante Julinho, como era mais conhecido nas fileiras do PAIGC). O original devia ter  uma capa, uma folha de rosto, com indicação da Repartição do QG/CC que elaborou o documento... Mas também pode ser um documento pessoal, ou até um rasccunho de acta, elaborado por alguns dos oficiais portugueses que participaram nesta reunião...

O conteúdo do documenrto não nos parece dever ser posto em causa.  Ainda não confirmámos a data e local desta reunião. No depoimento do Carlos Fabião, em 2002, no âmbito dos Estudos Gerais da Arrábida sobre o processo de descolonização,  o último governador da Guiné não faz uma referência específica a esta reunião de Cacine... Ele fala dos comandos, do Marcelino da Mata (de que era muito amigo), etc., mas não refere esta reunião, uma de entre muitas que deve ter tido com delegações do PAIGC, na sequência das negociações de paz e do plano de retração das NT.

Sobre a origem do documento, disse-nos o Carlos Filipe: "Caros, Luís Graça e Carlos Vinhal, não me dispensaria de enviar também a capa do documento se existisse. Mas, estarão a imaginar o ambiente da época e o local (rádio) onde caía lá tudo de comunicados. Entre a muita azáfama que tinha como ocupante da Emissora, só nas últimas horas é que tentei ''salvar'' o que na ocasião me interessava. Portanto não posso fazer nada. Um abração p/ ambos e um obrigado".Publica-se o documento com estas ressalvas. No Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra, fom,os encontrar um documento sobre a Guuiné Bissau, com texto e fotos do Cap Duran Clemente. Publicam-se, com a devida dénia, duas fotos com dois dos protagonistas desta reuniãod e 29 de julho: netse caso, o Júlio Carvalho, caboverdiano, DO paigc,  e o comandante Patríci, da nossa Marinha, por ocasião da "transferência de poderes", em Cacine, em 12 de agosto de 1974. LG/CV.




Guiné > Região de Tombali > Cacine > 12 de agosto de 1974 (?) > Júlio Carvalho e comandante Patrício, presumivelmente por ocasião da cerimónia de "transferências de poderes", entre o PAIG e as Forças Armadas Portuguesas. Fotos do Cap Duran Clemente. Cortesia de Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra.



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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 8 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9012: Blogoterapia (191): Na varanda e a Guiné-Bissau (Carlos Filipe)

Vd último poste da série 12 de fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9535: Os nossos últimos seis meses (de 25abr74 a 15out74) (3): A Retirada Final: os últimos militares portugueses a abandonar o TO da Guiné (Luís Gonçalves Vaz / Manuel Beleza Ferraz)


Guiné 63/74 - P9601: Nós da memória (Torcato Mendonça) (14): O percevejo e o flautista - Fotos falantes IV

Mansambo > Foto falante 36 - IV série






1. Texto e Fotos Falantes (IV Série) do nosso camarada Torcato Mendonça (ex-Alf Mil da CART 2339 Mansambo, 1968/69) para integrar os seus "Nós da memória".






NÓS DA MEMÓRIA - 14
(…desatemos, aos poucos, alguns…)

10 – O Percevejo e o Flautista

Foto a merecer legenda mais alongada.
Nela já se vêem bem os balneários, a zona de protecção ao poço e parte de um abrigo caiado de branco. Esse pormenor é que motivou esta recordação.

O abrigo, em parte caiado de branco, e aquele lavatório eram um luxo. Recordar a importância que tinha para nós aquele poço, aberto muitos meses depois do início da construção do aquartelamento, e os balneários. Antes toda a água vinha da fonte e os banhos eram lá tomados e com segurança à volta. Não só por uma questão de segurança mas, isso sim, porque era muito mais natural a higiene ser feita assim com normalidade. Além disso, quase toda a água vinha dali e tinha qualidade.

Aquele luxo, de uma bacia de plástico colocada em cima de uma cadeira e o fundo de branco caiado, ficou a dever-se aos percevejos. Não era um local qualquer. Na metade daquele abrigo em L era o comando, messe de oficiais e sargentos, bar, centro de convívio e muito mais. Parece é um espaço exíguo. Pois com certeza que podia assim considerado mas, com engenho e boa vontade virava a Salão Diamante. Até um frigorífico a petróleo tinha, com um contra. Este frigorífico tinha um vidro circular a proteger a chama. Se os obuses 10.5 trabalhavam e o vidro não tivesse sido retirado, ia para o caneco. Uma maçada.

Porque apareceu ali uma parede caiada? Devido a uma praga, a uma infestação de percevejos.
Apareceram silenciosamente. Viajaram, um dia, em alguns velhos colchões de palha que acompanhavam, indevidamente, digo eu agora, os verdes colchões de espuma.

Em pouco tempo, devido a um afrodisíaco qualquer ou porque eram mesmo assim, reproduziram-se e espalharam-se pelos abrigos. Instalaram-se nos buraquitos dos blocos de cimento, nas camas, mosquiteiros e onde lhes fosse mais confortável. Eram os senhores dos abrigos.

Não era nada confortável, para os humanos, a partilha do espaço. Eram bichos de ataque nocturno, para isso já tínhamos os mosquitos e outros bem mais fortes para lá dos arames. Estes, os percevejos, sugavam o sangue. Eram esmagados facilmente. Só que o cheiro a coentros e a pasta deixada era incomodativa. Aberta uma luz rapidamente desertavam. Curta deserção pois voltavam ao ataque mal a escuridão voltasse. Uns sem vergonha.

Para conter ou acabar com ataques sugadores vieram gentes peritas em desinfestações. Foi uma balbúrdia mas a bicharada desapareceu. Parecia, se bem me lembro, um milagre. Como isto de milagres é controverso ainda pensei que tinha sido alguém que atacara pela calada. Porque não, como na lenda, um Flautista de Hamelin e, á falta de ratos – que os havia mas fazendo parte da mobília – tocara o Flautista a sua flauta e os percevejos atrás dele caminharam até á fonte ou acampamento IN. Porque não?

O interior dos abrigos foi bem caiado. Certamente sobrou cal, para futura eventualidade de regresso de tão incómodos bicharocos. Foram então caiados alguns locais mais. Os menos visíveis, claro, ou tínhamos alvos para alinhamento de pontaria IN. Para isso já bastava a enorme árvore por onde eram alinhadas as armas pesadas, sem grandes resultados depois dos 10.5.

Eu vos digo que a cal tornou tudo mais bonito. Pareciam casas. Só as víamos em Bambadinca ou Bafatá, principalmente em Bafatá. Casas com portas e janelas, de branco e outras cores pintadas e com homens, mulheres e crianças. Gentes com sorrisos e vestidos com roupas de cores diferentes do verde-azeitona ou do camuflado.

Eu vi também muitas em Bissau quando ia de férias. Desanuviava e ria feliz. Mas questiono eu? E os soldados que não tiveram essa oportunidade e estiveram 23 meses no mato? Um fulano ficava atormentado ou pior.

Não será assim?
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9582: Nós da memória (Torcato Mendonça) (13): Mansambo - Fotos falantes IV

segunda-feira, 12 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9600: Álbum fotográfico de João Martins (ex-Alf Mil Art, BAC1, Bissum, Piche, Bedanda e Guileje, 1967/69) (2): Ainda a viagem, de LDG, em setembro de 1968, de Bissau a Bambadinca, com o meu Pel Art a caminho de Piche


Foto nº 2/199: Aproximação a Bissau, do avião da TAP que trouxe o nosso camarada João Martins, de regresso da metrópole, depois das suas férias em julho de 1968...


Foto nº 58/199: O Rio Geba, visto de Bissau, ao pôr do sol...



Foto nº 62/199: A LDM [, Lancha de Desembarque Média] 311, a navegar no canal do Geba, nas imediações do Ilhéu do Rei, frente ao porto de Bissau. (Distância aproximada: 1,5 km).



Foto nº 66/199: A LDG [Lancha de Desembraque Grande] nº 101, pronto a zarpar, rio Geba cima, carregada de artilheiros e de artilharia, rumo a Bambadinca, aproveitando a maré cheia...


Foto nº 70/199:  Margem direita do Rio Geba, Porto Gole... Ou não ?  Parece-me ser Porto Gole, pelo perfil do casario... A distância aproximada entre as duas margens é de 6,5 km..


Foto nº 71/199: Margem esquerda do Rio Geba, depois da foz do Corubal, quando o rio começava a estreitar, antes do Xime... A temível Ponta Varela, onde era habitual os fuzileiros das LDG fazerem fogo de morteirete, apanhando de surpresa os "viajantes"... Este era um dos pontos referenciados como provável local de ataque do PAIGC às embarcações... Mas, em geral, o IN não se metia com as LDG, tinha-lhes "muito respeitinho"... Atacava de preferência as embarcações civis, indefesas... A distância aproximada entre as duas margens era de 400 metros...


Foto nº 73/199: O inconfundível porto fluvial de Bambadinca e instalações do destacamento da Intendência... Era penosa a viagem pelo Geba Estreito, do Xime até Bambadinca, passando pelo perigoso Mato Cão, devido ao curso "tortuoso" do rio... De LDG, só na maré vazia... Hoje este troço do rio está completamente assoreado... A distância aproximada entre as duas margens era ligeiramente superior a 100 metros...

Fotos: © João José Alves Martins (2012). Todos os direitos reservados. (Fotos editadas por L.G.; legendas do autor das fotos e do editor).


Guiné > Zona leste > Rio Geba (Xaianga) Estreito > Percurso entre o Xime e Bambadinca > Carta de Bambadinca (1955) > Escala 1/50 mil> Detalhe


1. Segunda parte da mensagem, enviada ontem, por João José de Lima Alves Martins, respondendo à seguintes perguntas dos editores, a seguir listadas: (A primeira parte da mensagem será publicada, oportunamente, noutro poste, noutra série):

Gostavamos que o João Martins nos confirmasse:



(i) o trajeto da viagem (Bissau-Xime ou Bissau-Bambadinca, pelo Rio Geba);


(ii) o tipo de embarcação (inclinamo-nos para a LDG, já que uma LDM não aguentava com viaturas, 3 peças 11.4, caixas de granadas, mais os homens de um Pel Art e o resto da tralha, desde garrafões de vinho a colchões...).


A viagem pela picada Xime-Bambadinca, em meados de 1968, não era segura... Acreditamos que a LDG tenha ido mesmo até Bambadinca (aproveitando a maré cheia).  Nessa época, a passagem por Ponta Varela, antes do Xime, sempre temida, mas não tanto pelo Mato Cão, já no Geba Estreito. Eu fiz esse percurso, a caminho de Contuboel, nove meses depois, de Bissau, em LDG, partindo de madrugada com a maré cheia, mas só até ao Xime... O resto do percurso (Xime-Bambadinca-Bafatá-Contuboel) foi por estrada, onde chegámos ao fim da tarde... (LG).


2. Recorde-se que o João José Alves Martins foi Alf Mil Art do BAC 1 (Bissum, Piche, Bedanda e Guileje, 1967/69). Entrou para a Tabanca Grande em 12 de Fevereiro de 2012.

Na sua página, no Facebook, o João Martins  tem um notável álbum fotográfico, com 199 imagens, obtidas a partir de diapositivos, relativas à sua comissão de serviço no TO da Guiné. Parecem estar ordenadas cronologicamente e uma boa parte delas estão legendadas. O que nos permite, por exemplo, seguir o o nosso camarada e o seu Pel Art, ao longo da viagem desde BAC1 [ Bateria de Artilharia de Campanha nº 1], em Bissau, até Piche... Viagem essa que não foi em julho de 1968, como supunhamos inicialmente, mas sim em setembro.

3. Explicações dadas pelo João Martins:


Luís Graça


É com muito prazer que recordo o tempo que passei na Guiné; lá, encontrei a alma e a coragem dos nossos antepassados, e toda uma obra de colonização que, ao contrário do que muitos pensam, nos deve orgulhar. (...)

Quanto às tuas perguntas, a viagem para Piche fez-se em Setembro de 68, depois de ter regressado de férias, pelo rio Geba e até Bambadinca numa LDG.

É claro que para chegarmos a Piche, passámos por Bafatá e por Nova Lamego; no caminho [ entre Nova Lamego e Piche], como afirmas, apanhámos um valente susto porque ficámos "parados sozinhos" com um furo, e fomos ajudados por uns naturais aos quais dei umas moedas, mas que, se tivéssemos tido azar,  seriam de "outra cor"...(faz parte das minhas memórias).

Passei por Farim, mas foi no regresso, e ainda me lembro do Dakota que tremia que nem varas verdes e fazia uma barulheira que só visto...


Quanto ao dia 21 de Abril [, dia do nosso VII Econtro Nacional, em Monte Real], teria muito prazer em estar convosco, mas acontece que estou a fazer grandes obras numa casa que tenho em S. Martinho do Porto e vou lá aos sábados para as acompanhar pelo que terá que ficar para outra oportunidade.


Um grande abraço,


João Martins
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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P9599: Os nossos seres, saberes e lazeres (42): Saltar de pára-quedas, um sonho realizado depois dos sessenta (Paulo Santiago)

1. Em mensagem do dia 11 de Março de 2012, o nosso camarada Paulo Santiago* (ex-Alf Mil CMDT do Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72), enviou-nos a notícia da concretização de mais um sonho, voar.


VOANDO


Sonhava com esta experiência: saltar de pára-quedas !!!
Aconteceu hoje à tarde no PARACLUBE DE ÁGUEDA.

Medo? Claro que tive algum, não sou louco, mas dominei-o bem antes da entrada para o avião, confiando no instrutor, Jaime Silva, meu acompanhante no tandem.

Da descolagem, até atingir, os 10.000 pés (3000 metros) foram 25 minutos de voo, uma bela visão, a tarde estava explêndida, e fui recebendo as últimas indicações do instrutor.

A saída da aeronave para o espaço livre foi óptima a que se seguiu uma cambalhota no ar. Sensação única, estabilização ventral (não sei se é o termo correcto) com queda livre até aos 1500 pés (à volta de 45 segundos) onde se processa a abertura do pára-quedas.

À velocidade vertiginosa e ruído da deslocação de ar, sucede-se um silêncio e uma descida calma mirando a magnifica paisagem.

Uma boa aterragem, onde me esperava o meu amigo Victor Tavares, Pára-quedista e ex-combatente na Guiné, onde também andei.

A foto acima foi tirada após aterragem. Nesta, como noutras aventuras, acompanhou-me a Rosário Azevedo.

Sexagenários, como eu, experimentem estas emoções, são únicas!!! Perigo? Até existe ao sair da cama.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 10 de Fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9469: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (51): Dois amigos, Paulo Santiago, aguedense, e Vasco Pires, anadiense​, reencontra​m-se, no blogue, ao fim de 50 anos!

Vd. último poste da série de 18 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9229: Os Nossos Seres, Saberes e Lazeres (41): Comprei um computador pequeno e lentamente fui aprendendo a navegar na Net (Fernandino Vigário)

Guiné 63/74 - P9598: Notas de leitura (341): Guerra Colonial & Guerra de Libertação Nacional 1950-1974: O Caso da Guiné-Bissau, de Leopoldo Amado (5) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Fevereiro de 2012:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo às recensões ao trabalho de indiscutível importância que constitui a tese de doutoramento do nosso confrade Leopoldo Amado. Pressinto que com trabalhos como este, o do Julião Soares Sousa, o do António Tomás, os livros do António Duarte Silva, há já ingredientes suficientes para a constituição de equipas de historiadores luso-guineenses, independentemente dos olhares nacionais este teatro de operações foi o elemento transformador de dois países e não se pode abdicar de tal realidade. Venho pedir ao Leopoldo Amado que opine sobre as críticas de fundo que destaco nas recensões: o ser totalmente inadmissível que não se procure aprofundar os fundamentos da tese da unidade Guiné/Cabo Verde, porventura um argumento de peso para alavancar a organização da luta armada mas que não tem fundamento real, como a História comprovou; a tese sibilina da responsabilidade da PIDE no assassinato de Cabral sem documentação de provas, fugindo à análise de que o complô foi exclusivamente guineense e tinha como rastilho a indignação dos guineenses serem monitorados por cabo-verdianos.

Um abraço do
Mário


Guerra Colonial versus Guerra de Libertação Nacional:
O caso da Guiné-Bissau (5)

Beja Santos

Vamos hoje concluir um punhado de reflexões sobre a tese de doutoramento do nosso confrade Leopoldo Amado “Guerra Colonial versus Guerra de Libertação Nacional – O caso da Guiné-Bissau” (IPAD, 2011), obra que classificamos, sem qualquer hesitação, como doravante indispensável na literatura de referência, como os livros de António Duarte Silva sobre a luta da independência na Guiné-Bissau, o trabalho de Julião Soares Sousa sobre Amílcar Cabral ou os depoimentos que o próprio Leopoldo Amado recolheu junto de dirigentes e combatentes do PAIGC e que fazem parte do livro atribuído a Aristides Pereira.

Entre a introdução de foguetões, ainda em 1970, e o aparecimento dos mísseis terra-ar Strella, em 1973, a sucessão de acontecimentos político-militares e diplomáticos tornou-se progressivamente desfavorável ao governo de Lisboa e às tropas portuguesas. Logo a operação Mar Verde abriu as portas à marinha soviética que veio até Conacri, a pedido de Sekou Touré, a NATO não gostou e mais abertamente criticou a agressão portuguesa. De imediato, logo em Janeiro de 1971, o PAIGC reformulou o seu dispositivo, deu sinal de que ia aumentar a sua eficiência combativa, simulou mesmo uma perda de iniciativa, por exemplo do corredor de Bafatá-Xitole, mas o mesmo não sucedeu na área de Guilege-Gadamael, intensificou-se a pressão na região Sul. Os anos de 1971 e 1972 correspondem ao período de uma ofensiva diplomática por parte de Amílcar Cabral e que custou uma maior animosidade internacional contra o governo de Lisboa. Nas suas viagens a países comunistas e ocidentais, Cabral não joga só com o trunfo das áreas libertadas, exibe outras provas como os ataques aos centros urbanos, Bissau, Bolama, Gabu. Os contactos com Senghor têm como pano de fundo a insistência das Nações Unidas quanto à necessidade de Portugal abrir as negociações com os movimentos de libertação e ao facto de Spínola já não encontrar resposta para uma contenção militar duradoura. Os resultados do encontro foram transmitidos a Marcello Caetano que, como é sabido, mandou pôr termo a novas conversações. A “guerra de nervos” desenvolvida pelos serviços de informações, pela ação dos agentes duplos e pela intensa propaganda radiofónica agravava feridas e desorientava por vezes os contendores. Só dois exemplos: O boato segundo o qual Osvaldo Vieira teria assumido as funções de secretário-geral do PAIGC, desde 2 de Maio de 1972, porque os filhos da Guiné estavam descontentes porque Amílcar Cabral só os mandava para o mato enquanto os cabo-verdianos ocupavam funções de comandantes. O boato de que Momo Turé teria mostrado a Amílcar Cabral uma carta escrita por Nino Vieira a Rafael Barbosa, em que o primeiro lamentava o comportamento de Amílcar Cabral para com os guineenses, o que comprometeu o seu autor e que, por isso, no Conselho de Guerra, fora destituído. Papel fulcral corresponde à visita, em Abril de 1972, de uma delegação do Comité de Descolonização da ONU, precedida por uma ofensiva militar de grande envergadura do lado português. O Comité de Descolonização, depois da visita, reconheceu o PAIGC como o único e autêntico representante do povo do território e apelou aos organismos das Nações Unidas para atuarem de colaboração com a Organização da Unidade Africana, a fim de puderem apoiar a luta do PAIGC.

O assassínio de Amílcar Cabral tem largo destaque no documento. Leopoldo Amado procede a um levantamento das atividades da PIDE/DGS e dos agentes infiltrados, já foi dito que o relacionamento entre os dois contendores também se fazia por agentes duplos. De novo surge Momo Turé como instigador da conjura, o que é inconcebível, Momo não possuía requisitos políticos e intelectuais para uma empreitada destas. O autor refere a existência de tensões, dissidências e clivagens mas não explicita porquê e com que resultados, levanta mesmo a hipótese de haver círculos concêntricos de informadores e instigadores a soldo da polícia política portuguesa, o que pode ser muito interessante no campo especulativo mas é inaceitável na historiografia. Mais a mais, é o próprio Leopoldo Amado quem reproduz uma mensagem da PIDE de Bissau para Lisboa no dia seguinte ao assassinato, sugerindo que a responsabilidade da insurreição era da linha guineense contra os cabo-verdianos e os mestiços. De igual modo, como há um silêncio absoluto sobre as teses da unidade Guiné/Cabo Verde, em que assentou a mobilização de Cabral, sem qualquer fundamentação ou rigor histórico, e que Leopoldo Amado não comenta, e que mesmo que os atritos entre guineenses e cabo-verdianos possam até ter sido explorados pelos agentes da PIDE e pela própria propaganda, eles existiram, os guineenses e os cabo-verdianos recusam-se a falar do que sempre foi um profundo conflito étnico, o autor também silencia na apresentação da conspiração o que podia ser o elemento detonador para esse conflito étnico e que hoje salta à vista de todos: em 1973, o aparelho de Estado tinha ao mais alto nível a preponderância cabo-verdiana e é esse mesmo conflito que vai desembocar no 14 de Novembro de 1980. Branco é galinha o põe, a historiografia, na ausência de documentos escritos, tem forçosamente de recolher depoimentos de todas as partes. Em 20 de Janeiro de 1973 foram só guineenses que se insurgiram e prepararam a insurreição, não há lá um só cabo-verdiano. Para quê deitar poeira nos olhos ou atribuir à PIDE uma responsabilidade que não está comprovada.

Leopoldo Amado assesta a sua atenção sobre os mísseis Strella, o fim da superioridade aérea e as operações sobre Guilege, Guidage e Gadamael, narra os preparativos da ofensiva prevista para 1974, o abandono de Copá e o assédio a Canquelifá. Chegamos assim ao 25 de Abril, detalha as negociações entre o PAIGC e Portugal, um itinerário de negociações entre Londres e Argel, foi aqui que se estabeleceu o acordo com cessar-fogo e o reconhecimento por Portugal da república da Guiné-Bissau e a retirada das Forças Armadas Portuguesas até 31 de Outubro de 1974. O legado político de Cabral a um texto de grande recorte quanto às principais linhas de pensamento do líder do PAIGC, mas com uma grave omissão, em meu modesto ponto de vista, nunca se vê explicado e documentado onde se alicerça a teoria da unidade Guiné/Cabo Verde. É facto, e Julião Soares Sousa também alude no seu trabalho a esse fenómeno do início da década de 1960, o pan-africanismo e as doutrinas de unidade intraestatal fizeram o seu percurso, como se sabe com mais insucessos que com bons resultados. Nada abona, porém, que houvesse uma opinião pública e uma corrente política que abonasse a favor desta unidade, foi um lampejo que passou pela mente de um líder sobredotado que não mediu, nem ele nem a direção política, as consequências de uma tese dada como indiscutível. É evidente que Cabral não podia denunciar uma questão de fundo: não tinha dirigentes guineenses e na ausência de condições favoráveis para implantar guerrilha no arquipélago atraiu gente altamente capaz que o cercou em cargos de responsabilidade e operações de comando militar de grande melindre, onde se exigiam elevados conhecimentos técnicos e tecnológicos. Era Cabral marxista? Há quem conteste, mas o seu método de análise bebia nessas águas, era convictamente socialista, adepto do partido-Estado e era suposto que a Guiné-Bissau, com a constituição do Boé, tivesse um regime socialista autoritário. Como, mesmo com todos os desvios e delírios da era Luís Cabral, teve. Reconheça-se que Cabral, como regista Leopoldo Amado, foi uma das figuras mais marcantes do século XX, não há investigador que hesite em considerá-lo como o verdadeiro teórico dos movimentos de libertação da África portuguesa.

As investigações de Leopoldo Amado, insiste-se, passam a ocupar um lugar do maior relevo na historiografia luso-guineense. Direi mesmo que existem agora condições para um trabalho conjunto dos historiadores dos dois países. Porque houve dois contendores e os olhares da historiografia precisam de distância e aproximação, de medir o verso e o reverso. E no caso da Guiné-Bissau dá-se o aspeto transcendente de ter sido ali que catapultou o movimento que originou o 25 de Abril. Não é por acaso que os dois povos têm toda a potencialidade para manter um olhar fraterno e dirigido ao futuro.
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Nota de CV:

Vd. postes das recensões anteriores de:

27 de Fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9540: Notas de leitura (337): Guerra Colonial & Guerra de Libertação Nacional 1950-1974: O Caso da Guiné-Bissau, de Leopoldo Amado (1) (Mário Beja Santos)

2 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9553: Notas de leitura (338): Guerra Colonial & Guerra de Libertação Nacional 1950-1974: O Caso da Guiné-Bissau, de Leopoldo Amado (2) (Mário Beja Santos)

5 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9560: Notas de leitura (339): Guerra Colonial & Guerra de Libertação Nacional 1950-1974: O Caso da Guiné-Bissau, de Leopoldo Amado (3) (Mário Beja Santos)
e
9 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9591: Notas de leitura (340): Guerra Colonial & Guerra de Libertação Nacional 1950-1974: O Caso da Guiné-Bissau, de Leopoldo Amado (4) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P9597: (Ex)citações (177): Relembrando, em Mato Cão, no dia dos meus anos, a presença do então maj art José Faia Pires Correia, oficial de operações do BART 3873 (Bambadinca, 1971/74) (Joaquim Mexia Alves)

Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Mato Cão > Pel Caç Nat 52 > 6 de Abril de 1973 > O Alf Mil Mexia Alves, em primeiro plano,à esquerda, brindando com os seus camarigos de então, no dia dos seus 24 anos... À frente do Mexia Alves, o Fur Mil Bonito, que também pertencia ao Pel Caç Nat 523, juntamente como os Fur Mil Santos e Varrasquinho...Entretanto, esta manhã o Joaquim enviou mais fotos  em que o hoje cor art ref José Faia Pires Correia aparece de perfil...


Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Destacamento de Mato Cão > Pel Caç Nat 52 > 1973 > Almoço num dia normal: "Estou eu, os Furriéis e os Cabos do Pel Caç Nat  52, mais o pessoal de uma secção do Pelotão de Morteiros de Bambadinca, que fazia destacamento também no Mato Cão" (JMA). Emsuma, todos os tugas do Mato Cão, os não desarranchados...  Todos os demais elementos do pelotão, guineenses, eram desarranchados... Sobre esta estância de férias que era o Mato Cão, vd. poste P4317, de 11 de maio de 2009.


Fotos: © Joaquim Mexia Alves  (2012). Todos os direitos reservados.

1. Mensagem, de 10 do corrente,  do nosso camarada e amigo Joaquim Mexia Alves: 


Caros camarigos

Sei que no computador do escritório terei outras fotografias, talvez, mas aqui vai uma do Mato Cão [, com o meu Pel Caç Nat 52,], no dia 6 de Abril de 1973, em que fazia 24 anos, e onde está o então Maj Faia Correia,  de costas, brindando ao meu lado [, à minha direita]. (*)

O então Major Faia Correia foi Oficial de Operações do meu batalhão, o  BArt 3873, subsituindo o Major Jales, que, se não me engano, passou a 2º Comandante, porque o Major Teles foi promovido e saiu do BArt 3873.


Um abraço camarigo do
Joaquim Mexia Alves (**)
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Notas do editor



(**) Último poste da série >  8 de março de 2012 >  Guiné 63/74 – P9584: (Ex)citações (176): Aristides Pereira e os MIGs - revelações ineditas (Nelson Herbert)

domingo, 11 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9596: In Memoriam (113): Ex-Soldado de Cavalaria José Aldeia Soares da CCAV 1748, pela sua morte ocorrida em 29 de Fevereiro, ex-sem abrigo de Odivelas (José Martins)

In Memorian do sem-abrigo

Soldado de Cavalaria Nº Mec 01210166
JOSÉ ALDEIA SOARES

Foi mobilizado para servir na Guiné, integrado na Companhia de Cavalaria nº 1748, formada no Regimento de Cavalaria nº 7 (já extinto), aquartelado em Lisboa, sob o comando da Capitão Miliciano de Infantaria Emilio Augusto Pires.

Embarcou para a Guiné em 20 de Julho de 1967 onde chegou no dia 25, ficando instalada em Bissau, com a missão de protecção e segurança das instalações e das populações da área.

Entre 12 e 20 de Setembro desse ano, escalonadamente, seguiu para Bula, a fim de efectuar o treino operacional, tomando parte patrulhamentos, emboscadas e batidas nas regiões de Inquida, Quitamo, Blequisse e Bofe, recolhendo a Bissau em 6 de Outubro de 1967.

Em 8 desse mês a companhia assume a responsabilidade pelo subsector de Contubuel, destacando pelotões para Sare Bacar e Sumbungo, sendo este deslocado para Geba e posteriormente para Dulo-Gengele.
Em 18 de Fevereiro de 1969 a subunidade é rendida, fica transitóriamente em Bissau e segue para Farim, onde assume a reponsabilidade deste subsector, integrado no dipositivo do Comando Operacional nº 3, até 1 de Julho de 1969,

Regressa à metrópole em 7 de Junho de 1969.


O José Aldeia Soares, no local onde passou os últimos anos da sua vida

Escrevi acerca dele e do seu irmão António, companheiro dos seus últimos anos, no post 4992* numa Carta Aberta ao Presidente da Liga dos Combatentes e à Presidente da Câmara Municipal de Odivelas.

O José Aldeia Soares era um dos sem abrigo, parece que de estimação, de Odivelas, já que nada ou pouco se fez por eles.

Com o José troquei apenas umas breves palavras, que transcrevo:

P - Posso fazer-lhe uma pergunta?
R – Se quiser…
P – Foi combatente do Ultramar?
R – Na Guiné.
P – Qual era a sua Companhia?
R – Cavalaria 7.
P – Onde esteve?
R – Bissau… Bafatá…
P – Não se lembra da sua unidade?
R – Nunca devia ter ido para lá!

Tendo sido hospitalizado no Hospital de Santa Maria, foi transferido para o Hospital Pulido Valente, onde veio a falecer em 29 de Fevereiro.



A situação do sem-abrigo José e António já tinha sido alvo de notícia do JN - Jornal de Notícias, de 6/4/2010. (Cabeçalho aqui reproduzido, com a devida vénia)...


Ao seu irmão António e companheiro de jornada de há muitos anos a esta parte e Combatente em Angola, os Combatentes da Guiné enderessam-lhe um abraço solidário.

Cabe aqui, e em forma de reconhecimento, do empenho sempre demonstrado pelo Sr. António Agostinho Pereira Pinto, pelo interesse que sempre dispensou a estes nossos camaradas, levando-lhe toda a assistência de que necessitavam, e o seu irmão ainda precisa.

Foi este mesmo cidadão que providenciou o seu funeral digno e cristão, tendo sido inumado no Cemitério de Odivelas, em 2 de Março de 2012, na campa n.º 110 da Secção M, na presença de autoridades locais.

Que o José Aldeia Soares descanse agora, dos trabalhos que esta vida lhe reservou e, fazemos votos de que tenha sido o último sem abrigo a viver sem ter a dignidade que todo o ser humano merece.

Cabe, neste espaço, recordar as palavras ditas por Madre Teresa da Calcutá, beatificada em 19 de Outubro de 2003 pelo Papa João Paulo II, na sua visita a Lisboa em 1982: “Aos outros pertence e compete encontrar os meios e as soluções para acabar com a pobreza. A nós pertence-nos amar os pobres”.

José Marcelino Martins
10 de Março de 2012
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 22 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4992: Ser solidário (37): Carta Aberta em prol dos ex-combatentes sem abrigo do Concelho de Odivelas (José Martins)

Vd. último poste da série 27 de Fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9542: In Memoriam (112): Lembranças de Cherno Suane, falecido em 24 de Fevereiro de 2012 (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P9595: Parabéns a você (391): Artur Soares, ex-Fur Mil Mec Auto da CART 3492/BART 3873 (Guiné, 1972/74)

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9578: Parabéns a você (390): António Marques Lopes, Coronel DFA Reformado, ex-Alf Mil da CART 1690 (Guiné, 1967/69)

sábado, 10 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9594: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (11): A PIDE/DGS, a repressão estudantil em Lisboa, Portugal e o Futuro...

1. Um diário de guerra, para mais escrito como este com base em documentos pessoais da época, e publicado,  sem censuras nem rasuras, em 2007, é um "livro aberto", um documento com maior ou menor interesse em termos de informação e conhecimento  sobre o autor e a sua circunstância, neste caso o Teatro de Operações da Guiné, entre meados de 1972 e as vésperas do 25 de abril de 1974, visto por um alferes miliciano, não operacional, de um CAOP (Comando de Agrupamento Operacional), ligeiramente mais velho do que a generalidade dos milicianos (que integravam as unidades combatentes), e para mais com formação universitária. 

No seu diário, o António Graça de Abreu (nascido em 1947, no Porto, ex-Alf Mil do CAOP1, 1972/74) dá-nos notícias do que se passa nas guarnições onde esteve (Canchungo, Mansoa, Cufar) assim como das informações, classificadas, a que tem acesso privilegiado, sobre o IN e sobre as NT... 

Falámos também dele, das suas preferências,  dos seus gostos, dos seus amores, das suas leituras... Falá-nos da metropóle e do que lá se passa, da repressão estudantil, dos seus sonhos e projetos futuros...  Fala-nos também da PIDE/DGS, do seu papel, e da relutância que alguns de nós tinham em relacionar-se com os seus agentes no TO da Guiné... Enfim, fala-nos dos tempos que estão a mudar e inquieta-o, também, o futuro da sua/nossa querida pátria, a propósito da publicação do livro do gen António Spínola, Portugal e o Futuro... 

Com a devida vénia, ficam aqui mais alguns excertos do seu Diário da Guiné, 1972/74, de que temos um ficheiro em word, o mesmo que serviu de base à edição do seu livro Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp) (*). (LG)

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(…) Canchungo, 13 de Julho de 1972


Recebi carta do Bolhé da Silva, um dos meus alunos de Português nas aulas para adultos que dei quase até embarcar para a Guiné na Cooperativa Vis, no bairro do Bosque, Amadora. Escrevera para lá um aerograma perguntando como haviam corrido os exames. Estes meus ex-alunos de Português são quase todos alentejanos e operários da Sorefame. Voltaram a estudar para concluir o ciclo. Fiquei satisfeito por saber que a maioria deles dispensou às orais.

O meu trabalho e o dos outros professores, todos a dar aulas sem ganhar um tostão, não foi em vão. Tive gosto em ensinar, em aprender. Mas continuo convencido que vim parar à Guiné por causa destas aulas. Há dois meses a PIDE/DGS foi visitar a Cooperativa – que creio ter relações clandestinas com o Partido Comunista –  e pediu o nome e profissão de todos os professores dos cursos do Ciclo Preparatório. Três semanas depois, já com quase dois anos de tropa em Portugal, fui estranhamente mobilizado para a Guiné.

[ Nota de rodapé: A polícia política seguia os meus passos desde Outubro de 1967. É curioso o meu processo consultado só agora em 2006: Arquivo Nacional da Torre do Tombo, PIDE/DGS, Procº. 9175 C7 (2) – NT 7555.]

(...) Teixeira Pinto ou Canchungo, 26 de Julho de 1972

Abro muito os olhos e os ouvidos, meto tudo dentro de mim, falo pouquíssimo, quase não reajo, não demonstro nada. Mas sinto que em Portugal é que o PAIGC vai ganhar a guerra, aqui não a perde e no terreno não a consegue ganhar.

No labor quotidiano no Comando de Operações, passam pelas minhas mãos documentos fundamentais para se entender a guerra na Guiné. Chegam de Bissau e são as informações diárias e semanais, os relatórios mensais de operações com todos os dados, bombardeamentos, flagelações, ataques, emboscadas, os números dos milhares de quilos de bombas lançadas pelos nossos aviões, o número de mortos e feridos, NT e IN, dias, horas, particularidades dos ataques, etc.

Esta documentação tem a classificação de confidencial e secreta. Vêm também as informações da PIDE/DGS com dados sobre a movimentação dos guerrilheiros, natureza dos acampamentos IN e outros elementos. Um exemplo, pela PIDE de Canchungo soubemos que neste momento estão dentro da Guiné sete jornalistas de nacionalidade checa, búlgara e russa. Entraram, vindos do Senegal, pela fronteira junto a S. Domingos, uns oitenta quilómetros a norte daqui.

O meu major P. não gosta muito do Sr. Costa, o agente da PIDE/DGS em Canchungo, que tem uma vivenda aqui na avenida. O major diz que o Costa, para mostrar serviço, de vez em quando inventa factos e notícias. Parece-me bem possível. Estive em casa dele a semana passada e, no desempenho de funções, tive de lhe apertar a mão. Coisas impensáveis em Lisboa. (…)

Dia 3 de Agosto vai ser data quente na Guiné. É o aniversário do PAIGC e por isso estão planeadas para esse dia diversas acções de guerrilha, encontrando-se Canchungo no rol das terras a atacar. A informação chegou pela PIDE/DGS de Bissau.

No caso de um ataque, já estive a preparar a minha defesa. Como não sou operacional, fico no meu aposento (se estiver lá no momento da flagelação!) e vou para o pequeno quarto de banho que é interior e tem paredes duplas de tijolos. O problema é o tecto que é de lusalite e não resiste a um impacto, de cima para baixo, de um foguetão ou granadas de grande calibre, mas o quarto de banho resiste ao resto. E é altamente improvável que o fogo do IN vá logo acertar nos três metros quadrados de telhado do meu quarto de banho.

Ainda estou virgem quanto a flagelações, emboscadas, bombardeamentos. Vou perder a virgindade em breve, tenho a certeza.

(…) Canchungo, 5 de Agosto de 1972

Canchungo não foi atacada, a informação do tipo da PIDE/DGS de Bissau era falsa.

Mas foram outros aquartelamentos NT. Leio os relatórios quotidianos das acções na Guiné e vejo os lugares onde os militares portugueses levaram (e deram) porrada. Os guerrilheiros fazem o que têm a fazer, eu compreendo, é a luta deles. Mas também é verdade que não gosto de ver as NT serem flageladas. Eu estou deste lado da barricada, com os homens iguais a mim expatriados nesta pequena África suja e quente. São meus amigos, é a minha gente. Não merecemos ser atacados, nenhum de nós merece sofrer, morrer por uma causa que quase ninguém sente.

(...) Mansoa, 1 de Maio de 1973

Não sei quem é que disse que “cada português traz um polícia dentro de si”. E além dos polícias “dentro” existem muitos “fora”, à nossa volta. (…)

Mansoa, 8 de Maio de 1973

Leio na Presse, um boletim informativo para militares que nos chega de Bissau, que houve zaragatas entre estudantes e polícia na Cidade Universitária, em Lisboa. Desta vez os polícias não foram nada meigos, dispararam mesmo mas, segundo a Presse, dispararam para o ar. Curioso terem atingido um estudante que voava. (…)

(...) Cufar, 22 de Fevereiro de 1974

Regressei no Nordatlas, na viagem certinha até cá abaixo. Tudo calmo em Cufar. No nordeste da Guiné, em Copá junto à fronteira, é que tudo vai mal. Mal para as NT, bem para o IN. Ouvi falar num ataque com cem foguetões, valha-lhes Deus! Começa a ser insustentável aguentar Copá.

Em Portugal as coisas também aquecem, com manifestações contra a carestia de vida organizadas pelos maoístas do MRPP. Houve pancadaria da grossa, três polícias feridos, um deles levou uma pedrada na cabeça. O povo não anda bom.

Em Bissau rebentou uma bomba no quartel-general. E que dizer do novo livro de António de Spínola Portugal e o Futuro? O antigo Caco Baldé, meu ex-comandante-em-chefe, propõe soluções federalistas para a resolução dos conflitos do Ultramar. O livro vai ter sucesso entre os liberais, o grupo do Balsemão e do Expresso, e também entre alguma da Oposição. Abençoadamente, agitará os espíritos de muitos portugueses.

O Marcello Caetano começa a ficar exasperado. No essencial, o mestre de Direito limitou-se a dar continuidade à política de Salazar e não sabe, ou esqueceu-se, como diz o Bob Dylan que “the times, they are a’changin”. O general Spínola aponta caminhos enviesados, é verdade, mas indica possíveis saídas para o pântano fétido em que vivemos.

Que futuro para Portugal? (…)
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Nota do editor: 

(*) Vd. último poste da série > 25 de fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9531: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (10): As vozes da nova música popular portuguesa (incluindo o Zeca Afonso) que chegavam ao CAOP1 através das ondas hertzianas da rádio

Guiné 63/74 - P9593: Álbum fotográfico de João Martins (ex-Alf Mil Art, BAC1, Bissum, Piche, Bedanda e Guileje, 1967/69) (1): Viagem de Bissau a Piche, pelo Geba e pela picada, com 3 peças de arilharia 11.4, em setembro de 1968


Foto nº 63/199 > Setembro de 1968 >  LDG 101, no cais de Bissau



Foto nº 64/199 > Setembro de 1968 > Cais de embarque, em Bissau




Foto nº 68/199 > Setembro de 1968 >  A bordo da LDG (ou LDM ?)... Inclino-me mais para a LDG (não sei como se metem 3 peças 11.4 numa LDM mais a tralha toda de um Pel Art)... Contudo, também não imagino como ela, a LDG,  podia subir o Geba Estreito e chegar a Bambadinca (mesmo na maré-cheia)...


Foto nº 72/199 > Setembro de 1968 > No Rio Geba, aproximando-se do Xime ou de Bambadinca (?)... Parece estarmos no Geba Estreito, que era navegável até Bambadinca, pelo menos [No meu tempo, 1969/71,  as LDG ficavam no Xime, as LDM conseguiam navegar no Geba Estreito: também não tenho a certeza se este navio, que transportava o Pel Art,  é uma LDG ou uma LDM. De qualquer modo, a embarcação prepara-se para atracar e o sítio não é seguramente o Xime, parece mais ser o porto de Bambadinca. Aliás, o Martins não faz referência ao Xime]
  

Foto nº 76/199 > Setembro de 1968 >  Em Bafatá, com as peças 11.4 à espera de prosseguirem, em  coluna auto, até Piche, via Nova Lamego.



Foto nº 81/199 > Setembro de 1968 >  Partida de Bafatá


Foto nº 81/199 > Setembro de 1988 > Picada a caminho de Nova Lamego (nesta data ainda não havia estrada alcatroada, Bafatá-Nova Lamego)



Foto nº 82/199 > Setembro de 1968 >  Chegada da coluna a Nova Lamego




Foto nº 84/199 > Setembro de 1968 >  Agora a caminho de Piche, a última viatura (onde ia o Alf Mil Art Martins) teve um furo e ficou separada da coluna...






Foto nº 89/199 > Setembro de 1968 > A caminho de Piche, observando a paisagem...






Foto nº 92/199 > Setembro de  1968 > Chegada da coluna ao seu destino, em segurança



Foto nº 94/199 > Setembro de 1968 > Finalmente as peças em posição e com bidões de proteção




Foto nº 95/199 > Setembro de 1068 >  O régulo de Piche veio, em nome da população, dar as boas vindas ao Pel Art e ao seu comandante, o Alf Mil Art Martins. Fim da jornada. (Não sei quantos dias levou...).


Fotos: © João José Alves Martins (2012). Todos os direitos reservados. (Fotos editadas por L.G.; legendas do autor das fotos e do editor).




1. O João José Alves Martins foi Alf Mil Art do BAC 1 (Bissum, Piche, Bedanda e Guileje, 1967/69). Entrou para a Tabanca Grande em 12 de Fevereiro de 2012.



Na sua página, no Facebook, tem um notável álbum fotográfico, com 199 imagens, obtidas a partir de diapositivos, relativas à sua comissão de serviço no TO da Guiné. Parecem estar ordenadas cronologicamente e uma boa parte delas estão legendadas. O que nos permite, por exemplo, seguir o o nosso camarada e o seu Pel Art, ao longo da viagem do BAC 1, em Bissau, até Piche em setembro  de 1968.


Recorde-se que ele chega a Bissau em 19 de dezembro de 1967 (e só regressará à metrópole nos princípios de janeiro de 1970).


Pertence à Bataria de Artilharia de Campanha [BAC] nº 1, unidade de recrutamento da província com cerca de 25 pelotões de soldados de todas as etnias, espalhados por muitos dos aquartelamentos do território da Guiné.


É colocado em Bissum, com o seu Pel Art (três obuses 8.8).  E, no regresso das férias, em julho de 1968, é enviado para Piche, juntamente com três peças de artilharia 11.4 (vulgarmente confundidas pelos infantes com os obuses 14). É essa longa viagem - primeiro de LDG até Bambadinca,  e depois por estrada, já na época das chuvas - que estas fotos pretendem ilustrar:


(...) "  Em agosto [e não julho, de 1968], vim de férias, e no regresso deram-me um outro pelotão, agora com três peças 11. 4 rumo a Piche. Passámos [ em setembro de 1968]  por Bambadinca, Farim [, lapso do autor, que queria dizer Bafatá,] Nova Lamego e finalmente Piche, que foi o único aquartelamento onde não conheci a dureza dos combates e onde se estava relativamente bem,  o que me levava a aventurar-me, passeando 'inconscientemente e perigosamente' pelo interior da Guiné, mas contactando populações extremamente amigáveis, como são os fulas e os futa-fulas" (...).


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Nota do editor:


Vd postes anteriores:


30 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9291: Facebook...ando (14): João José Alves Martins, ex-Alf Mil PCT (BAC1, Bissau, Bissum-Naga, Piche, Bedanda, Gadamael, Guileje, Bigene, Ingoré, 1967/70)


16 de fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9493: Tabanca Grande (321): João José Alves Martins, ex-Alf Mil Art,  BAC 1 (Bissum, Piche, Bedanda e Guileje, 1967/70)

sexta-feira, 9 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9592: O Nosso Livro de Visitas (128): José Faia Pires Correia, Cor Art Ref, último comandante do GA7 (Bissau, 1974)


Guiné > Bissau > Finais de 1967 > Messe de oficiais da BAC 1 (Bateria de Artilharia de Campanha nº 1). Foto nº 21/199, do álbum do ex-Alf Mil Art, João José Alves Martins (BAC1, Bissum, Piche, Bedanda, Guileje, 1967/70).

Foto: © João José Alves Martins (2012). Todos os direitos reservados.


1. Comentário do nosso leitor (e camarada) que se assina por Zé do Fratel ao poste P4201:


Por mero acaso vim aqui parar, com alguma surpresa e não menos emoção, diga-se, porque fui o último Comandante do GA7, depois de ter sido 2º. Comandante.

Anteriormente, estive como oficial de operações num Batalhão de Artilharia em Bambadinca [, o BART 3873].

São raros os contactos que mantenho com camaradas do GA7 ou do BART [3873], até porque já morreram os dois oficiais que comigo partilharam os últimos meses no Grupo e com os quais mantinha grande ligação: Tenente-Coronel Jaime Simões da Silva e Coronel Alberto Jorge Ribeiro Amaral (este foi Comandante da Bateria de Comando e Serviços e, depois de promovido a Major, foi o último 2º. Comandante)


José Faia Pires Correia
Cor Art Ref

2. Comentário de L.G.:

Caro camarada Zé do Fratel: está cientificamente provado que estar inserido num grupo de autoajuda é bom para a saúde, a qualidade de vida e a esperança de vida... A Tabanca Grande, ou melhor, a comunidade virtual, aqui representada no blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, é também isso mesmo, um grupo de autoajuda, que todos os dias pratica a técnica da blogoterapia: partilhamos memórias e afetos, choramos os nossos mortos, celebramos o milagre da vida, cultivamos a amizade e a camaradagem...

Camarada (, deixa-me tratar-te por tu, como é timbre e  norma dos camaradas da Guiné): não fiques na sala de visitas, senta-te aqui, à sombra do nosso poilão, e deixa a tua memória fluir... Tens recordações de Bambadinca (onde eu vivi, sofri, combati, nos anos 69/71), tens lembranças de Bissau, tens seguramente saudade(s) da rapaziada da artilharia, tens documentos, tens fotos... Ainda és capaz de te emocionar ao visitar um blogue como este!... Bom sinal, sinal de que estás vivo, e que a Guiné - mesmo sendo tu um oficial de carreira - mexeu contigo.

Se quiseres estar mais perto de nós, ex-combatentes de todas as armas, de todas as especialidades, de todos os postos, de todos os lugares, de todos os anos..., manda-me duas fotos, uma do antigamente e outra mais atual... E fala um pouco mais de ti, de Bambadinca, do GA7, e por isso fora... Serás recebido de braços abertos, por estes bravos soldados da terra, do ar e do mar que partilham este espaço... Boa saúde, camarada. Aparece. Escreve para: luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com.

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Nota do editor:

Último poste da série > 22 de fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9519: O Nosso Livro de Visitas (127): Carlos Alberto Morais dos Santos, ex-1.º Cabo Mec Auto da CCAV 1749 (Mansabá, 1967/69)

Guiné 63/74 - P9591: Notas de leitura (340): Guerra Colonial & Guerra de Libertação Nacional 1950-1974: O Caso da Guiné-Bissau, de Leopoldo Amado (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Fevereiro de 2012:

Queridos amigos,
Faltaria à verdade se não dissesse que este documento oferece uma leitura aliciante e polémica. Tem por detrás uma laboriosa e séria investigação, dentro dos parâmetros do que é uma tese de doutoramento. É nos alvores do nacionalismo, na identificação dos grupos, na evolução da guerra que esta leitura oferece, em condições ímpares, uma interpretação lógica e cronologicamente coerente. É controversa quanto à gama de presunções em torno das chamadas contradições e lutas internas dentro do PAIGC, como se dirá mais adiante, a interpretação do assassinato de Cabral refere a responsabilidade moral da PIDE/DGS, facto comprovado, e alude a um conjunto de maquinações e círculos concêntricos da conspiração que, por falta de fundamento histórico, são inadmissíveis em documentos desta natureza.

Um abraço do
Mário


Guerra Colonial versus Guerra de Libertação Nacional:
O caso da Guiné-Bissau (4)

Beja Santos

“Guerra Colonial versus Guerra de Libertação Nacional – O Caso da Guiné-Bissau” é a publicação em livro dos conteúdos mais significativos da tese de doutoramento do nosso confrade Leopoldo Amado (IPAD, 2011). É, como se tem insistido, um documento de referência para todas as investigações que doravante venham a ter lugar, incluindo os trabalhos que cruzem as atividades das Forças Armadas portuguesas, neste teatro de operações, para as quais já se possuem importantes elementos oficiais publicados e estudos ou documentos dos diferentes ramos das Forças Armadas. Até agora, tem-se procurado resumir os dados fundamentais que orientam os quatro pilares em que se estrutura a obra, com destaque para: conceitos ideológicos, caracterologia do teatro de operações, ideologia colonial e conceitos de guerras revolucionárias e contra-subversão; apresentação das forças nacionalistas e deflagração da luta armada; evolução e consolidação da guerrilha, tendo como parâmetros o Congresso de Cassacá, o incremento das ações militares e a definição do termo de áreas libertadas, a presença cubana junto do PAIGC, as guerras de contrainformação e a infiltração do PAIGC pela PIDE/DGS; a era de Spínola, o 25 de Abril, o legado político de Amílcar Cabral e conclusões.

Nesta recensão o enfoque prende-se com os anos da governação Spínola. Ele chega à Guiné em Maio de 1968 e manda imediatamente proceder à elaboração de estudos que irão durar cinco meses, será partir daí que ele traçará a sua linha de ação “Por uma Guiné melhor”, um plano orientado para a captação das populações, dando prioridade à promoção económica e social, colocando uma boa parte do dispositivo das Forças Armadas ao serviço da realização dos serviços provinciais e, no setor estritamente militar, revendo a implantação desse dispositivo e criando uma nova toada ofensiva. Arrancam ou continuam a construção de estradas de asfalto, a criação de centro materno-infantis, maternidades e dispensários, apetrecha-se uma escola de formação de professores, tudo sob o lema “viver em paz, trabalhando para uma vida melhor, ou viver na intranquilidade da guerra e na vã esperança de uma independência que conduzirá ao desaparecimento da Guiné e a uma vida pior”. O objetivo é retirar ao PAIGC a possibilidade de controlar certas populações, reagrupando-as em aldeamentos. Para dar um sinal de magnanimidade e benevolência, mandou restituir à liberdade um elevado número de presos políticos que estavam na colónia penal das Ilhas das Galinhas. No ano seguinte, em 3 de Agosto, haverá um cerimonial em que Rafael Barbosa tomará a palavra e se revelará arrependido. A guerra psicológica irá refinar-se com o uso da radiodifusão, a profusão de cartazes, as próprias diretivas que determinam aos militares ações psicológicas em torno do bem-estar e do conforto das populações. Leopoldo Amado enumera algumas dessas iniciativas envolvendo programas radiofónicos, entre outros.

O dispositivo militar também se reconfigurará. Spínola elevará a parada em Lisboa pedindo cada vez mais apoios necessários para a continuação da guerra. Logo em Novembro de 1968 irá fazer uma exposição no Conselho Superior de Defesa Nacional onde apontará a possibilidade de derrocada e acusando os chefes militares que o antecederam de não terem posto o problema com verdade. O autor observa: “Data desta reunião a cisão nítida entre Spínola e a maior parte dos altos comandos das Forças Armadas, os quais passam a tê-lo por vaidoso, ambicioso e fanfarrão, ao passo que o novo comandante da Guiné não se coíbe de manifestar o desprezo que sentia pela incompetência que neles verificava”. A relação com Marcello Caetano parece ser idílica, as suas declarações estão manifestamente em consonância. Na Guiné, os três ramos das Forças Armadas confluem para o Comando-Chefe, este passa a ser o centro nevrálgico de toda a atividade operacional. Com a libertação de espaços, irão intensificar-se os bombardeamentos, haverá mesmo zonas exclusivas de intervenção do Comando-Chefe. Igualmente haverá uma africanização da guerra, mais Companhias de Caçadores, de Comandos, de Fuzileiros. Para Leopoldo Amado, enquanto se procura o equilíbrio militar, começa a haver notícias de dissensões no seio do PAIGC, sobretudo entre os dirigentes máximos guineenses e cabo-verdianos, teria havido mesmo desentendimentos entre Amílcar Cabral e Osvaldo Vieira. O PAIGC parecia capaz de anular os efeitos devastadores da ação psicológica da era Spínola mas estava permeável ao trabalho de infiltração da PIDE/DGS em estreita articulação com os Serviços e Informação e Ação Psicológica. Em Maio de 1970, alguns dirigentes do PAIGC irão ser presos e comprovadamente acusados de colaborar com a polícia política.

Leopoldo Amado repertoria a evolução da guerra. Consolida-se, por parte do PAIGC, a utilização de corredores a partir do Senegal e da Guiné-Conacri. O PAIGC reorganizou-se, o Comité Central transformou-se no Conselho Superior da Luta, mantém-se o Conselho de Guerra do qual dependem os Corpos do Exército e as Frentes Militares. Entrou-se num período de reconhecimento internacional e reassumiu-se o potencial de combate e mobilização. Em 1970 tem lugar o Congresso dos Povos da Guiné, no “chão manjaco” uma vasta operação desencadeada para neutralizar o PAIGC na área acaba num massacre de oficiais. Num esforço para sair do impasse, e com a anuência de Marcello Caetano, tem lugar a operação “Mar Verde”, irá saldar-se num desaire diplomático. A recuperação da supremacia militar, por parte do PAIGC, é notória em 1971, Amílcar Cabral consegue mais apoios, Spínola procura reagir com um programa de progressiva autonomia da Guiné, assim se chega a conversações com Senghor, é admissível que Spínola tenha procurado uma iniciativa no quadro do anúncio da revisão constitucional de 1971. Recorde-se que recrudesceram a partir de 1972 os violentos ataques aos centros urbanos. Logo em Janeiro, Bafatá, depois um ataque-surpresa ao aeroporto de Catió. Refere o autor que a rivalidades e as contradições dentro do PAIGC, por essa época, também subiam de tom. Na contrainformação, foi lançado o boato de que Osvaldo Vieira teria assumido as funções de secretário-geral do PAIGC, os filhos da Guiné estavam descontentes porque Amílcar Cabral só os mandava para o mato enquanto os cabo-verdianos ocupam funções de comandantes. Um outro boato referia que Rafael Barbosa tencionava eleger um governo provisório. É nesse contexto que uma missão da ONU se desloca à Guiné e o seu relatório era bastante favorável ao trabalho do PAIGC. O ano acaba com o princípio da deterioração no relacionamento entre Caetano e Spínola, este sentiu-se preterido por não ter sido indigitado como candidato à presidência da República.

Estamos perante um documento de intenso labor, com uma recolha impressionam-te de informação. O próximo e último texto será dedicado às teses sobre o assassinato de Amílcar Cabral, a independência da Guiné-Bissau, a leitura de Leopoldo Amado faz da herança política e ideológica de Cabral e as respetivas conclusões.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9560: Notas de leitura (339): Guerra Colonial & Guerra de Libertação Nacional 1950-1974: O Caso da Guiné-Bissau, de Leopoldo Amado (3) (Mário Beja Santos)