segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10396: Tabanca Grande (361): Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705 (Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66)

1. Mensagem do nosso camarada e novo tertuliano Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66), com data de 2 de Setembro de 2012:

Caro Luís Graça e demais Camaradas de Arrmas.

Sou Manuel Luís Lomba, ex-furriel mil da CCav 703, do BCav 705, os "Cavaleiros Marinhos", e penamos na Guiné, em 1964/66.

Estivemos um ano na Amura, como reserva às ordens do Comando-Chefe e terminámos a comissão no Sector de Nova Lamego - a Companhia 703 na quadrícula de Buruntuma, a 704 em Bajocunda e a 702 em Madina do Boé.

O BCaç 1856 foi render-nos, ficando a Companhia 1418 em Buruntuma e a 1416 em Madina do Boé, a qual causará a morte, em combate, a Domingos Ramos, um dos primeiros e dos mais competentes comandantes do PAIGC, ex-furriel mil desertado do Exército Português, por ter sido vítima de flagrante injustiça de superior hierárquico, quando era instrutor no CIM (Centro de Instrução Mililitar), em Bolama.

Nas muitas missões de intervenção interagimos com o BCav 490, os Sempre em Frente", com o BCaç 600 (desconheço a divisa), com o BCaç 619, as "Sentinelas do Sul", com o BArt 635, os "Águias Negras", com Companhias independentes, com Grupos de Comandos, a Companhia de Pára-quedistas e Destacamentos de Fuzileiros.

Chegado à reforma, entrei em correntes de escrita. Acabo de publicar o livro "Guerra da Guiné: A Batalha de Cufar Nalu", em edição de autor.

Manifesto o mais elevado apreço pelas vossas iniciativas e a minha vontade de adesão.
(Manuel Luís Lomba)


2. Em resposta, foi enviada em 7 de Setembro a seguinte mensagem ao camarada Manuel Lomba:

Caro camarada Manuel Lomba

À boa maneira do nosso Blogue vamo-nos tratar por tu.

Muito obrigado pelo teu contacto e pela vontade de pertenceres a esta família de ex-combatentes da Guiné. Na qualidade de relações públicas deste Blogue estou a receber-te e a sugerir que nos mandes uma foto do teu tempo de Guiné e outra actual (mais ou menos) para podermos proceder à tua apresentação formal à tertúlia.

Se quiseres desenvolver um pouco mais o texto da mensagem que nos mandaste servirá para a tua apresentação. Fala-nos um pouco mais do teu livro, manda-nos a capa digitalizada, e se há hipótese de algum interessado o adquirir, à cobrança, por exemplo.

Fica a teu critério outros pormenores para que te possamos ficar a conhecer melhor.

A tua correspondência deverá ser enviada sempre para luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com e simultaneamente para mim ou para o Eduardo.

Qualquer dúvida, é só perguntar.

Sem outro assunto de momento, fico ao teu inteiro dispor.
O camarada e amigo
Carlos Vinhal


3. No dia 9 de Setembro recebemos esta mensagem do camarada Manuel Lomba:

Meu caro Carlos Vinhal.

Grato pela sua resposta, a que tento corresponder em conformidade.

Envio duas fotos e acrescento um texto extraído do livro que acabo de publicar: "Guerra da Guiné: A Batalha de Cufar Nalu" (opto por escrever conforme a antiga ortografia).

Manuel Lomba


4. Do livro "Guerra da Guiné: A Batalha de Cufar Nalu",  de Manuel Luís Lomba:

Outras manobras, no contexto da manobra da rendição da CCav 703 pela CCaç 763, na nomadização de Cufar, em 18 de Março de 1965

Chegou ao cais do rio Meterunga o grosso do efectivo da Companhia de Caçadores 763, comandada pelo capitão Costa Campos, para a nossa rendição, dotada de 8 cães de guerra, treinados por si e por sua conta e risco, género de combatentes que os turras também já mobilizavam. Os cães vieram acrescentar-se aos passarinhos, às vacas, aos patos bravos, às árvores, à vegetação, a toda a magia da Natureza, na engrenagem da máquina de sacrifícios, de sofrimento e morte que era a guerra da Guiné. Pelos cães, pelo brasão e pelo guião, pusemos-lhe o nome da Companhia dos Cães. Os turras não terão visto o que vimos deles, mas sobrar-lhes-ão motivos para, posteriormente, os alcunhar de “lassas” (abelhas).

O abrigo do depósito de géneros do estacionamento estava escancarado e vazio. Havia dias que não se via o fumo das chaminés das cozinhas rodadas a elevar-se ao céu, a anunciar rancho quente, e o estado de ruína dos nossos aparelhos digestivos já tolerava melhor a fome que a ingestão das rações de combate da Manutenção Militar. Aqueles “periquitos” (fardas verdes) da rendição vieram de Bissau, com volumoso carregamento de mantimentos e de suficiência, ou soberba, na exibição do direito ao seu exclusivo proveito. Coube a nós, mais velhos e “maçaricos”, (fardas amarelas), manter os turras à distância, para a chegada das suas pessoas e bagagens e tivemos de continuar a contê-los, a seco, para o desembarque dos comes e bebes, próprios para gente refeiçoar. Alguém bichanou a ideia e começamos a magicar expedientes de como lhes surripiar um garrafão de vinho e um bacalhau, para dizermos o adeus às armas de Cufar com uma “punheta” (do dito).

A ambiência da guerra é vivida como de outro mundo; mas aqueles “periquitos” da Companhia dos Cães pareciam vindos de outro, tal era a disciplina e método incutidos à desestiva das lanchas e ao tráfego das suas provisões de géneros alimentícios. Treinavam os cães e parecia-nos que os cães os treinavam a eles. O seu furriel vagomestre supervisionava todos e tudo, omnipresente, e enviava uma espécie de “guia de remessa” pelos grupos que faziam o tráfego para o estacionamento, que o seu primeiro-sargento conferia no destino, presencialmente. Os garrafões partidos ou esvaziados por consumo na viagem eram-nos entregues, com a maior displicência, qual tarefa menor, pela nossa missão de segurança, para os levar a vazadouro, à montureira que o estacionamento havia criado, na margem direita do Meterunga, exterior ao perímetro da sua segurança, povoada por um bando de flamingos, originários do rio Cumbijã, e por uma colónia de abutres jagudis, que a putrefacção do lixo atraíra para ali.

Tamanha vigilância conseguia conter as nossas intenções predadoras. Justificava-se a falta de iniciativa da acção específica fazendo circular entre nós o trocadilho de que tínhamos “os cães da Companhia” à perna. Nenhum mal é absoluto e havia muito tempo que a vida nos ensinara a reverter em nosso proveito a pequena parcela de bem que todo o mal contém. A situação não nos escapará à melhor análise, para o desencadear da acção dela consequente. Um tiro de aviso seria decisivo; mas com coisas sérias não se brinca, a despeito de dispostos a fazer um séria brincadeira.

Saiu um aviso, dirigido àquele vagomestre, a alertar que os turras viviam a cerca de 2 km, com super-metralhadoras, morteiros e canhões, que a morosidade do serviço estava a colocar-nos em grande risco, pelo que a segurança disponibilizava dois elementos em seu reforço e ajuda.

A invocação da proximidade dos turras era eficaz a impor o respeitinho, monopolizador das atenções. A solicitude sensibilizou o vagomestre, a contribuir para a sua fragilização. Um dos disponibilizados encheu um garrafão vazio no rio, outro pegou num garrafão partido e começou a dissimular um desvio, em sentido oposto à montureira; ele deu em cima dele, a farejar furto, afrouxou a vigilância, já afrouxada pela solicitude e pela atenção a eventuais sinais dos turras, enquanto aqueloutro trocava o garrafão de água por um garrafão de vinho, que levou, na maior das calmas, a esconder na montureira. O vigilante voltou, contou e recontou os garrafões. Tudo em conformidade, tudo num ápice, como de um golpe de mão se tratasse. O inconfundível cheiro de bacalhau salgado andava no ar, a provocar-nos as suas memórias gustativas, libertado duma caixa rebentada, com dizeres “graúdo” a encimar o lote do dito, rabos e badanas esparramados - e as operações da desestiva das lanchas aproximavam-se do fim. A sorte protege a audácia, escrevera Virgílio, na Eneida. Ante essa iminência, a segurança instruiu e destacou um outro do seu efectivo, para ajudar “a esfolar o rabo” e dar fim a esse trabalho, que o vigilante se apressou a agradecer, sem reparar no pormenor de ele se apresentar com o dólmen camuflado, a contrastar com a generalidade, em tronco nu.

Era sabido que os turras não gostavam de andar à luz do dia e, partindo da ideia que estariam a descansar das suas noitadas operacionais, um vigilante foi destacado para irritar os abutres jagudis, que reagiram furiosamente, com o seu grasnar fúnebre, contagiando os flamingos e toda a passarada ao redor entrou em alvoroço. A segurança correspondeu ao alarido com a emissão do alerta de perigo, toda a malta se colou ao chão - o respeitinho que faltava, decisivo, pelos turras. O último “maçarico” disponibilizado para o “tráfego e estiva” mergulhou junto ao lote das caixas de bacalhau e atracou-se à rompida, para surgir a rastejar, no sentido da montureira, tendo alegado ao vigilante que ia “pela arma”. No sítio certo, largou dois bacalhaus, que levava sob o dólmen camuflado, badanas entaladas na cintura e rabos entalados nos sovacos, razão bastante e suficiente para provocar o imediato levantamento do alerta de perigo; logo ele foi retomar a sua tarefa de ajuda, agora com a arma, mas em tronco nu, tal como os “periquitos”.

Algumas horas passadas, aqueles dois bacalhaus estavam desfiados, dessalgados por açúcar, feitos em salada com as últimas cebolas picadas, regados com os restos de azeite e comidos (e “bebidos”), com a discrição aconselhável, no ventre do poilão sagrado, novo posto de sentinelas avançadas, no segmento que nos cabia na defesa da nomadização em Cufar. Os turras e o Irã da mata de Cufar Nalu portaram-se condescendentes. A irreverência não negligenciara a prudência; para não se correr riscos, como alvos de participação e acção disciplinar, a prevenir “porradas” e, também, pela ausência de confiança mútua, a praxe não foi respeitada, ao não se convidar o proficiente vagomestre da Companhia de Caçadores 763 a partilhar da petiscada, na nossa despedida da nossa estada de 65 dias naquele palco no coração da guerra da Guiné.


5. Comentário de CV:

Caro Manuel Lomba, à boa maneira do Blogue (onde é que já ouvi isto?) temos que nos tratar por tu.
Estás apresentado à tertúlia, e logo com um texto muito curioso do teu livro, onde falas dos Lassas, Companhia do outro nosso camarada Mário Fitas. Podeis trocar impressões sobre o tempo de sobreposição, se é que deu tempo para vos conhecerdes. Este nosso camarada, assinando-se como Mário Vicente, escreveu um pequeno livro, também edição de autor, patrocinado pela Junta de Freguesia do Estoril, com o título "Pami Na Dondo A Guerrilheira", passado em Cufar, uma história, segundo o autor, ficção e realidade, de uma prisioneira. Para conheceres a história, que foi publicada na íntegra no nosso blogue, clica no título sublinhado.

Fiquei agradavelmente surpreendido pela tua vinda a minha casa para me entregares de mão um exemplar do teu livro "Guerra da Guiné: A Batalha de Cufar Nalu". Não chegaste a dizer-me como é que os possíveis interessados em adquiri-lo o poderão fazer.

Durante a nossa conversa apercebi-me que os anos não passaram por ti, estás em boa forma, tens uma excelente memória, muitas recordações do tempo da Guiné "à flor da pele" e escreves muito bem. Pelo que acabo de dizer, poderás ser uma mais-valia para o nosso Blogue, ainda mais se acrescentar que estiveste mais recentemente na Guiné-Bissau, em trabalho, onde tiveste oportunidade de estar com ex-combatentes do PAIGC.

Depois do que acabo de dizer sobre ti, não poderás escusar-te a falar-nos da guerra que viveste nos meados dos anos 60 em Cufar e Buruntuma e do que viste na Guiné-Bissau já independente e soberana. Disseste-me que muitas das tuas fotos desapareceram, mas incluíste algumas no teu livro, e outras terás que nos poderás facultar para publicação.

Termino a tua apresentação enviando um abraço de boas vindas em nome da tertúlia e dos editores.

O teu camarada e novo amigo
Carlos Vinhal
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10381: Tabanca Grande (360): Manuel Serôdio, mais um camarada da diáspora, ex-fur mil at inf, CCAÇ 1787/BCAÇ 1932 (Bula, Bissau, Empada, Buba, Quinhamel, 1967/68)

Guiné 63/74 - P10395: Notas de leitura (404): Desvendar alguns segredos do crioulo da Guiné-Bissau (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 10 de Julho de 2012:

Queridos amigos,
Qualquer passeata pelo Google à procura de gramáticas e dicionários da língua crioula é uma agradável surpresa. O crioulo e o seu primeiro dicionário foram objeto do estudo paciente daquele que terá sido o primeiro investigador da língua, nativo da Guiné, o admirável investigador padre Marcelino Marques de Barros, que foi Vigário-Mor da Guiné e morreu em Portugal, muito velhinho. Quanto mais oiço o crioulo mais orgulho tenho na nossa língua e nas dádivas de comunicação que ela permitiu ao longo dos séculos. Diga-se o que se disser, é aquele crioulo que dá os fundamentos à identidade guineense, é uma das matrizes do seu caráter enquanto país independente.

Um abraço do
Mário


Desvendar alguns segredos do crioulo da Guiné-Bissau

Beja Santos

O crioulo guineense é uma língua veicular, um meio de encontro de povos e de culturas. É uma língua simples, concreta mas com exuberâncias e algum fogo-de-artifício. Um padre missionário decidiu estudá-la e cedo apurou que o crioulo estava longe de ser uma língua portuguesa mal falada; igualmente apurou que havia uma enorme incapacidade de apreciar as derivações e as divergências fonéticas e lexicais com a língua portuguesa. O trabalho do padre Luigi Scantamburlo começa por procurar as raízes deste crioulo. Segundo o estudioso padre Marcelino Marques de Barros, “Os povos Mandingas, de Dandu, os Colincas de Geba, Farim e Casamansa, e alguns Beafadas, foram os primeiros a conhecer e a crioulizar a língua da gente branca, numa altura em que ninguém aprendia línguas, mas somente o vocabulário”.

Historicamente está demonstrado que os colonizadores portugueses começaram a fixar-se ao longo do rio de Farim durante o século XVI e Cacheu foi construído em 1587-1588, era um posto comercial para transações com o interior do país. Outro estudioso, Raymond Wood, observa que “Os colonizadores portugueses tinham como objetivo a europeização da cultura africana. Este objetivo falhou, contudo, e os portugueses é que foram absorvidos pela cultura e maneira de vida africanas… por volta de 1620, os portugueses eram quase todos indistinguíveis dos residentes africanos ao longo da Gâmbia”. É nestes ambientes que se vai formar e falar o crioulo, em Cacheu, Geba, Farim, Bafatá e Bissau. Há especificações do crioulo, pode considerar-se que o de Bissau e Bolama é o mais completo seguindo-se o de Cacheu e São Domingos e o de Bafatá e Geba. Obviamente que a massificação do crioulo, a partir da independência, falado nos meios de comunicação social está a gerar uma normalização e a perda de aspetos típicos da língua.

O crioulo é praticamente a língua nacional da Guiné. Sobre o fenómeno emitem-se vaticínios, há quem sugira que as novas gerações irão falar o português dentro de algumas décadas. Mas a opinião mais generalizada é a de que o crioulo numa perfeita continuidade, irá evoluindo e acomodar-se à língua portuguesa, e aderir às suas regras gramaticais. Recorde-se que não existe um sistema oficial de escrita da língua crioula. O contributo do padre missionário com este livro foi exatamente o de procurar ajudar a resolver situações anómalas de que a gramática e dicionários revelam. Daí o autor apresentar um esquema da fonologia e ortografia crioulas. O crioulo tem 22 consoantes, 2 semivogais e 9 vogais. O acento não tem regras fixas em alguns vocábulos, há vocábulos com acento na última sílaba, outros na primeira.

Sendo uma língua também com expressão gutural, a letra h funciona como uma nasal entre duas vogais (luha em crioulo, lua em português, luhada em crioulo, luar em português). Há sons típicos como tchikeru (chiqueiro) ou chicotia (chicotear), o que vem adoçar o fonema. Em suma, temos uma fonologia própria que é indispensável conhecer para falar corretamente o crioulo. Quanto à ortografia, o autor refere fonemas como o k que se deve ler c (a letra k adotada no alfabeto das outras línguas africanas.

Passando para a morfologia, o autor destaca que muitos dos elementos do crioulo derivam da estrutura do português, reduzindo a flexão das palavras e suprimindo os artigos, por exemplo. A estrutura sintática parece mais simples em comparação com o português (um exemplo dado pelo autor: nós encontramos alguém a chorar (português) que se diz em crioulo "nó contra cu alguin i na tchora").

Após apresentar estes aspetos elementares da fonologia e ortografia, da morfologia e da sintaxe, o autor socorre-se do conjunto de textos para comparar o português com o crioulo. É exatamente do texto Criason di Mundu (Criação do Mundo) que se destaca um exemplo retirado do génese bíblico: “No princípio a terra estava misturada com a água. Não havia forma nenhuma, tudo estava na escuridão e o espírito de Deus pairava sobre a água”, que se escreve em crioulo: “Na cunsada terá e staba tudu iacasidu cu iagu. I ka temba nin uma forma nin nada. Tudu i sta scuru, i Spíritu di Deus i ta ianda riba di iagu”.

E por fim temos um dicionário português-crioulo guineense que é apresentado como uma primeira ajuda para iniciação do estudo mais profundo do crioulo. Aparecem cerca de 4 mil vocábulos que o estudioso recolheu entre Maio de 1975 e Dezembro de 1976 com a ajuda de professores e amigos em Farim, Bubaque e Bafatá. Rapidamente nos é dado a perceber que a maioria do léxico do crioulo provém da língua portuguesa com alterações fonéticas (orlodju, relógio; montia, montear ou caçar). Há vocábulos adotados da língua portuguesa que têm um significado mais rico no crioulo (pecadur é pecador mas também pessoa; fidju é filho ou filha mas também fruto ou cria). Na formação dos vocábulos, o crioulo emprega sufixos e prefixos, tal como na língua portuguesa (sinhu é o diminutivo zinho; ndadi é dade, para indicar estado ou situação e dis é des, para indicar negação). Há vocábulos que são derivados das línguas africanas da Senegâmbia (badjuda é rapariga; bulanha é arrozal; nhinhi é rir). O crioulo tem plasticidade, acolhe novos vocábulos da língua portuguesa e adapta-os (elicópter é helicóptero; guerrilha é comum para as duas línguas; independénsia é independência). O autor volta a citar observações de Marcelino Marques de Barros quanto à pronúncia do crioulo, isto num trabalho de 1902: “A pronúncia pode dizer-se sem exceções é muito branda e muito suave, tanto ou mais que no italiano: menos dura nas consoantes e menos viva nas vogais; e tão fluente e tão dúctil que, na conversação animada mal se destaca uma sílaba de outra sílaba, o que muitas vezes também acontece nas próprias palavras”.

Posto isto, o autor abalança-se ao dicionário e lá encontramos as muitas semelhanças e as muitas dissemelhanças: abalo é trimidura; abelha é baguera; aborto é dizmantchu; achincalhar é fasi mangason; adobe é dubi; ágil é lestu; barbaridade é salvazaria; boquiaberto é impasmadu; capitão é capiton di barcu ou capiton di tropa. E ficamos por aqui, está criada uma área de interferência, confrades como o Cherno Baldé ou o Nelson Hebert podem entrar na conversa e espraiar ricos ensinamentos sobre esta língua que o português ali deixou e o guineense moldou. Porque esta língua, venha ou não um dia a plasmar-se no atual português, é produto de um encontro de séculos, é o nosso património comum.

Aproveito para recomendar uma visita ao Google, o padre Luigi Scantamburlo aparece com regularidade quando se procura “Dicionário Crioulo Guineense Português”, há lá edições da Colibri, partes de dicionário de que se pode fazer download, etc.

Boa viagem até ao nosso querido crioulo, onde xarope se escreve charopi, Xícara, chicra e Zanga, raiba.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10383: Notas de leitura (403): Relatório do Conselho Superior de Luta ao III Congresso do PAIGC (1977) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P10394: Os nossos médicos (43): Amaral Bernardo e Mário Bravo, em Guileje, ao tempo do cap Jorge Parracho, comandante da CCAÇ 3325 (1971)




Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 3325 > 1971 > Álbum fotográfico do cor inf ref Jorge Parracho > Foto nº 26 > Bar/messe de oficiais:  convívio de oficiais de duas companhias, presidido pelo cap inf Parracho (ao fundo, ao centro)... O segundo à esquerda, parece-me o cap mil Abílio Delgado, o então mais jovem capitão do exército português (com 21 anos!, se não me engano)... À direita, em primeiro plano, o alf mil médico Amaral Bernardo... É possível que esta foto tinha sido tiradas em finais de 1971, na sequência da rendição da CCAÇ 3325 (Cobras de Guileje) pela  CCAÇ 3477 (Gringos de Guilejm, nov 71/dez 72). Tanto o Abílio como o Amaral são nossos grã-tabanqueiros.


Foto: © Jorge Parracho / AD - Acção para o Desenvolvimento, Bissau (2007) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados. [As fotos de Jorge Parracho foram disponibilizadas à ONG AD- Acção para o Desenvolvimento, com sede em Bissau, em 2007, no âmbito do projecto de criação do Núcleo Museológico Memória de Guiledje. Não têm legendas, vêm apenas numeradas. Legendagem da responsabilidade de L.G,, que recorreu às informações já aqui publicadas pelo Orlando Silva sobre a CCAÇ 3325].



1. Comentário do nosso camarada [José Maria Ferreira do ] Amaral Bernardo [, foto atual, à direita,]  ao poste P10390:

Com emoção, reconheço-me na foto nº 26; sou o último à direita, o então alf mil médico Amaral Bernardo.

Só quem teve o "privilégio" de ir a Guileje nessa época, pode entender como era possível, no meio da maior adversidade, num minúsculo redil de arame farpado, perdido algures em África, com condições de sobrevivência no limite...haver alguém para quem a dignidade e a autoestima de todos os militares era uma preocupação prioritária. A porta de armas e a messe são só a parte aparente desse esforço. Quem conhece o então cap Parracho, sabe do que falo.

A última vez que nos encontramos foi num almoço em Quinhamel que teve a gentileza de oferecer.

Abraço rijo, Coronel Parracho

Amaral Bernardo, alf mil médico, CCS/BCAÇ 2930 (Catió, 1970/72)

2. Comentário de Mário Bravo [, foto atual, à esquerda,] ao poste P10362


Amigos e Camaradas. Nas rápidas idas a Guileje, como médico e estacionado em Bedanda, tive o grato prazer de conhecer o Cap. Parracho. Mal vi a foto publicada no blogue, fácilmente o reconheci. Pouco tempo depois, foi suibstituido pelo Cap. Abílio Delgado com quem contactei durante mais tempo. Como recordação desses tempos, possuo dois crachás - da C.Caç- 3325 e da C.Caç.3477. Apesar das fracas condições de vida dessa época, gostei desses dias. !!

Mário Bravo (alf mil méd, CCAÇ 6, Bedanda,  e HM241, Bissau, 1971/72)

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Nota do editor:

Último poste da série > 1 de agosto de 2011 >  Guiné 63/74 - P8624: Os nossos médicos (42): O Teles de Araújo, o Morais Sarmento, o Horta e Vale e o Fernando Garcia (J. Pardete Ferreira / P. Santiago / M. Amaro / A. Paiva / J. Câmara / C. Cordeiro)

Guiné 63/74 - P10393: O PIFAS de saudosa memória (14): Garcez Costa e mais alguns camaradas do seu tempo (1970/72)


Guiné > Bissau > PFA - Programa das Forças Armadas > c. 1970/72 > Álbum de Garcez Costa > Foto nº 7 > O Zé Pifas, alcunha do Garcez Costa...



Guiné > Bissau > PFA - Programa das Forças Armadas > c. 1970/72 > Álbum de Garcez Costa > F
oto nº 1 > Da esquerda para a direita: Arlindo  de Carvalho e Camacho Costa [, Arlindo de Carvalho é uma figura pública: gestor e político, militante e dirigente do PSD,  foi presidente do conselho de administração da Radiodifusão Portuguese, e ministro da saúde, do XI e do XII Govermo Constitucional]



Guiné > Bissau > PFA - Programa das Forças Armadas > c. 1970/72  > Álbum de Garcez Costa > Foto nº 2 > O Garcez Costa e o João Paulo Diniz (ao volante)


Guiné > Bissau > PFA - Programa das Forças Armadas > c. 1970/72 > Álbum de Garcez Costa > Foto nº 4  > Da direita para a esquerda:  Garcez Costa e João Paulo Diniz, à porta das instalações do Comando-Chefe das Forças Armadas




Guiné > Bissau > PFA - Programa das Forças Armadas > c. 1970/72 > Álbum de Garcez Costa > Foto nº 3> O João Pauio Diniz



Guiné > Bissau > PFA - Programa das Forças Armadas > c. 1970/72 > Álbum de Garcez Costa > Foto nº 5  >  Maria Eugénia, a popular "senhora tenente", esposa do 1º sargento Silvério Dias



Guiné > Bissau > PFA - Programa das Forças Armadas > c. 1970/72 > Álbum de Garcez Costa > Foto nº 6 > António (Tony) Carvalho


Fotos: © Garcez Costa (2012). Todos os direitos reservados



1. Mensagem do nosso camarada Garcez Costa, com data de ontem [O Garcez, locutor do PIFAS, foi apresentado à nossa Tabanca Grande no poste P10366 (*); foto atual à direita]


No passado guineense já fui o Zé Garcez e Zé Pifas mas aqui sou o Garcez Costa pelo que determino e mando publicar que seja retirada a referência ao Tony Sacavém destas páginas, pois a mesma faz parte de uma certa dissimulação, de quem utiliza endereços do Messenger, a fim de evitar a invasão de trojans e outros afins. Também espero não estar a invadir a privacidade de cada qual ao remeter estas fotos de arquivo:


1ª - Arlindo de Carvalho / José Camacho Costa

2ª - Garcez Costa / João Paulo Diniz

3ª - João Paulo Diniz

4ª - João Paulo Diniz / Garcez Costa

5ª - Maria Eugénia (a senhora tenente)

6ª - António (Tony) Carvalho

7ª - Eu, já menos puto, de cara rapada mas cabelo um pouco crescido além do permitido, enfim, um miúdo mais homenzinho a ficar "apanhado pelo clima".


Em relação às tuas questões (*) talvez quem sabe numa tertúlia tudo fique melhor respondido. Posso adiantar que ainda não "matei o bicho", no sentido das imagens de som, visto ter instalado em casa um miniestúdio para gozo pessoal e protestos dos vizinhos. 


No regresso da Guiné era impossivel a minha integração nos quadros da Emissora Nacional, pois estava na lista negra, por motivos não alheios à minha vontade, e de ter sido até apelidado por uma alta patente de "subversivo".

Para a próxima seguem gravações audio.

Adeus e até ao meu regresso.

G.C.
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Nota do editor:


(*) Vd. último poste da série > 11 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10366: O PIFAS de saudosa memória (13): O ex-fur mil Garcez Costa, que trabalhou como radialista, ao lado do 1º srgt Silvério Dias, do José Camacho Costa e do João Paulo Diniz... É o nosso grã-tabanqueiro nº 577

domingo, 16 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10392: Blogues da nossa blogosfera (54): A Página do nosso camarada Carlos Silva "Guerra na Guiné 63/74" atingiu o milhão de visitas

1. Em mensagem de há momentos, o nosso camarada Carlos Silva (ex-Fur Mil Inf CCAÇ 2548/BCAÇ 2879, Jumbembem, 1969/71), deu-nos a notícia de que o seu blogue atingiu o milhão de visitas, facto que merece os nossos parabéns:

Caros Amigos
É com satisfação que vos informo que o Site entrou na "era dos milhões", pois hoje foi ultrapassado o milhão de visitas.
Devagar, devagarinho, mas a rapaziada vai colaborando.

Com um abraço amigo
Carlos Silva
16-09-2012



Mais informamos que a página do nosso camarada pode ser visitado sem medo em: http://www.carlosilva-guine.com/ e que está livre dos problemas que teve há umas semanas.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 9 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10355: Blogues da nossa blogosfera (53): Nova ligação para aceder ao Blogue Lapland-Key West (Tabanca da Lapónia) (José Belo)

Guiné 63/74 - P10391: (Ex)citações (195): Considero que todos os ex-combatentes do ultramar são Heróis (António Melo)

1. Mensagem do nosso camarada António Melo (ex-1.º Cabo Rec Inf, BCAÇ 2930, Catió e QG, Bissau, 1972/74), com data de hoje 16 de Setembro de 2012, a propósito do livro "Heróis do Ultramar", de autoria do jornalista Nuno Castro, divulgado no poste P10389:

Camaradas e amigos ex-combatentes
Aqui me encontro de novo a comentar algo com que estou em desacordo.

Ao ler hoje no nosso blog o pedido de divulgaçao do livro escrito por Nuno Castro, com o titulo heróis do ultramar que escrevo com letra minúscula de propósito porque me repugna o título e não penso lê-lo.

No pouco que li escrito pela sra Maria Teresa Almeida que pede a sua divulgação, e que conste que isto não é nada contra a senhora mas sim pelo que escreve, nem sequer pela sua divulgação pelo nosso blog, pois tudo o que se escreve merece ser divulgado, mas sim porque eu com a minha fraca opnião considero que todos os ex-combatentes do ultramar são HERÓIS e passo a explicar.

Para mim todos são heróis todos aqueles que saídos do seu ambiente familiar e levados para uma guerra de interesses e que não sabiam se voltariam a ver os seus entes queridos (pais, esposas, filhos, oitros familiares) como aconteceu com milhares dos nossos camaradas.

Todos aqueles que carregaram com seus camaradas às costas, uns mortos outros feridos; todos os que tiveram que cavar seus abrigos; os que carregaram água para nos banharmos; os que foram apanhar lenha para que se cozinhar; os que rotos e sujos tiveram que trabalhar a abrir as picadas para nos movimentarmos; os que carregaram material de guerra para nos defendermos, às vezes exaustos de dor pelo peso; os que dormiram em qualquer lado menos numa cama; os que molhados de barro e água, cansados e tinham que caminhar (recordo-me do título de um filme que é caminha ou rebenta); os que tinham que trabalhar fora dia e noite para que ao outro dia estivesse operacional um camião ou qualquer outro meio de transporte para sair; os que muitas vezes doentes tiveram que sair para qualquer missão e se calavam para serem solidários com os camaradas ou porque pensavam: - com o aspecto que tenho não me vão fazer prisioneiro, mas estava verdadeiramente e a sua honra e coragem era heróica; os que para salvar um camarada da morte, como os médicos e os enfermeiros, sem meios, tiveram que fazer intervenções cirúrgicas em qualquer lado no mato e muitas vezes correndo perigo da sua própria vida; os jovens oficiais e sargentos que tão jovens como nós, nos tinham que conduzir e muitas vezes corrigir; também os que se destacaram na frente de combate aos que se referem no citado livro, todos foram heróis por isso discordo do titulo que ressalta uns quantos.


2. Comentário de CV:

Caro camarada António.
Não pondo em causa a justeza da tua apreciação, apenas venho esclarecer-te do seguinte:

A senhora D. Maria Teresa Almeida, funcionária da Liga dos Combatentes e senhora que dedicou toda a sua vida ao serviço do combatentes do ultramar, e nos considera a todos de igual modo quer nos conheça quer não, apenas pediu para divulgar o livro já que nele eram entrevistados camaradas da nossa tertúlia. Eu, que editei o poste, é que pesquisei na internete a sinopse do livro assim como a sua capa. Se lesses bem verias lá a indicação da sua procedência, no caso o site da Fnac.

Não ires ler o livro é uma opção pessoal que se respeita, mas não pode ser baseada nos argumentos que referes. Julgo que as entrevistas são uma amostragem, que foram ouvidos aqueles militares como poderiam ter sido outros quaiquer, dos tais que tu muito bem referes e que como milhares e milhares de camaradas (eu e tu incluídos) serão verdadeiros HERÓIS anónimos que nunca constarão da História.

Muito obrigado pela tua opinião que, como vês, mereceu a nossa melhor atenção.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 12 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10371: (Ex)citações (194): O então cap mil Jorge Saraiva Parracho foi o meu primeiro comandante de companhia, a CCAÇ 462, em Chaves e em Ingoré, 1963/64 (José Marques Ferreira)

Guiné 63/74 - P10390: CCAÇ 3325, Cobras de Guileje (1971/73): Parte VIII: Mais fotos do álbum do cor inf ref Jorge Parracho, que integram hoje o Núcleo Museológico Memória de Guiledje


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 3325 > 1971 > Álbum fotográfico do cor inf ref Jorge Parracho > Foto nº 16 > O com-chefe gen António de Spínola numa duas visitas que efetuou a Guileje em no espaço de um ano. Foto possivelmente tirada pelo nosso alf mil José Orlando Almeida e Silva.



 .
Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 3325 > 1971 > Álbum fotográfico do cor inf ref Jorge Parracho > Foto nº  7 >   Bar/Messe de Oficiais, possivelmente em dia de festa de aniversário: da esquerda para a direita, cap inf Parracho, alf Rodrigues, alf Cristina 8cmdt do 5º Pel Art) e alf Cunha. Tudo indica que a foto tenha sido tirada pel alf mil José Orlando Almeida e Silva.



Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 3325 > 1971 > Álbum fotográfico do cor inf ref Jorge Parracho > Foto nº 21 >  O alf mil art Cristina, comandante do 5º Pel Art, possivelmente na sua festa de aniversário...



Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 3325 > 1971 > Álbum fotográfico do cor inf ref Jorge Parracho > Foto nº 21 >  Os "bartmen", ordenanças do bar/messe de oficiais "vestidos a rigor" (não sei que indumentária é aquela, mas seguramente pouco ou nada de acordo com o RDM))... Quem serão estes camaradas ? Onde viverão hoje ? Que comentário poderiam fazer a esta foto ? Que recordações guardam deste tempo de passagem por Guileje ?



Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 3325 > 1971 > Álbum fotográfico do cor inf ref Jorge Parracho > Foto nº  26 >   Bar/messe de oficiias: jantar (?) presidido pelo cap inf Parracho... Ao fundo, de pé, os ordenanças (afinal,. eram três)... Como era praticamente generalizado no TO da Guiné, as "três classes militares", oficiais, sargentos e praças,  não se misturavam nos aquartelamentos a nível de companhia e batalhão... Apesar das duras condições de vida no mato e dos riscos comuns a todos os militares, quer em subunidades de quadrícula quer de interervenção (incluindo as tropas especiais: páras, comandos e fizos)... Havia honrosas, saudáveis e surpreendentes exceções, mas creio que muito poucas... A camaragem que é hoje possível no nosso blogue, era impensável em teatro de guerra, e num exército como nosso... 



Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 3325 > 1971 > Álbum fotográfico do cor inf ref Jorge Parracho > Foto nº 27  >  Uma alegre confraternização entre oficiais... No topo da mesa, o cap inf Parracho.


Fotos: © Jorge Parracho / AD - Acção para o Desenvolvimento, Bissau (2007) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados. [As fotos de Jorge Parracho foram disponibilizadas à ONG AD- Acção para o Desenvolvimento, com sede em Bissau, em 2007, no âmbito do projecto de criação do Núcleo Museológico Memória de Guiledje. Não têm legendas, vêm apenas numeradas. Legendagem da responsabilidade de L.G,, que recorreu às informações já aqui publicadas pelo Orlando Silva sobre a CCAÇ 3325].

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Nota do editor

Último poste da série > 12 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10370: CCAÇ 3325,Cobras de Guileje (1971/73): Parte VII: Mais fotos do álbum do cor inf ref Jorge Parracho, que integram hoje o Núcleo Museológico Memória de Guiledje

sábado, 15 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10389: Bibliografia de uma guerra (64): Heróis do Ultramar, de Nuno Castro (Maria Teresa Almeida)

1. Mensagem da nossa amiga tertuliana D. Teresa Almeida (Liga dos Combatentes) com data de 11 de Setembro de 2012:

Boa Tarde meu Estimado Combatente Dr. Luís Graça
Verifico agora que o Livro HERÓIS DO ULTRAMAR, que peço divulgação no blog, tem depoimentos escritos dos nossos Amigos e Combatentes na Guiné: José Eduardo Oliveira, Belmiro Tavares, do Sr. General Tomé Pinto e vários.

Um abraço muito amigo
Teresa Almeida


Sinopse*:

Entre 1961 e 1974, centenas de milhares de portugueses combateram em Angola, em Moçambique e na Guiné. Mas, como acontece em todos os conflitos, só alguns combatentes se destacaram. Heróis do Ultramar traça o retrato de um punhado de homens que se distinguiram nos campos de batalha da Guerra Colonial e que ainda hoje são recordados pela sua bravura extrema. Portugueses que, independentemente do curso da História, da política ditada pelo governo de Lisboa, das suas próprias convicções e até das suas personalidades por vezes polémicas, demonstraram uma extraordinária capacidade de liderança debaixo de fogo e uma determinação inabalável perante a adversidade e o terror que só uma guerra consegue despertar. Escrito a partir de vários testemunhos e das memórias dos combatentes, Heróis do Ultramar reúne alguns dos episódios mais ousados e dramáticos das três frentes do conflito português em África, na perspectiva dos seus principais protagonistas no terreno.

Autor: Nuno Castro
Editora: Oficina do Livro
Lançamento: Agosto de 2012
N.º páginas: 192
Encadernação: Capa mole

(*) Com a devida vénia a Site da FNAC
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10266: Bibliografia de uma guerra (63): Uma foto de 1972 que documenta a visita da Cilinha a Cufar (Armando Faria)

Guiné 63/74 - P10388: Do Ninho D'Águia até África (9): Orquídea Negra da lama da bolanha (Tony Borié)

1. Continuação da narrativa "Do Ninho de D´Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (9)

Orquídea Negra da lama da Bolanha

O Cifra, desde que foi ferido com estilhaços de granada de morteiro, tinha um projecto em mente que queria realizar. Era a construção de um abrigo com alguma segurança, próximo do centro cripto. Falou com os outros companheiros do centro cripto, e nas horas de folga começaram a escavar a terra numa certa área, onde ainda não havia construção. Os seus superiores, ao vê-los em tal projecto, apoiaram a ideia, e recomendaram que usassem alguns prisioneiros para os ajudarem.

Tanto o Cifra, como os companheiros, pensaram que seria boa ideia, pois deste modo sempre estariam pelo período de algumas horas ao ar livre, onde podiam fazer alguns exercícios físicos. Assim, pela manhã, quase todos os dias, alguém iam buscar dois ou três prisioneiros, dos mais jovens e melhor porte físico, para os ajudarem nessa tarefa.

Passado uns dias de convivência com os ditos prisioneiros, um dos mais novos que falava um pouco de português, dizia ao Cifra, mais ou menos isto:
- Mi, não saber porque estar preso. Mi, querer ser militar do Portugal, como Cifra. Mãe, e irmãs necessita de mi, para trabalhar bolanha e trazê manga de arroz para pessoal comê. Mi, viver próximo do quartel da tropa. Não é justiça estar preso, já não ter pai, quando família necessita de mi

Uma série de palavras que deixou o Cifra a pensar. Num dos próximos dias, ao entregar uma mensagem decifrada, directamente ao comandante, o Cifra, na sua inocência e boa fé, contou a história do prisioneiro.

O comandante, depois de ouvir o Cifra, dá-lhe uma tremenda repreensão, dizendo numa voz um pouco alterada:
- Isto é uma ordem, não deves falar com os prisioneiros, isso são assuntos que não te dizem respeito, nem a mim tu deves falar nesses assuntos, e a partir de hoje, não usas mais esse prisioneiro na escavação do abrigo. Entendidos?

A palavra “entendidos”, foi dita lá de cima, do lugar de comandante, a falar para as tropas. No entanto, tomou nota do nome do prisioneiro.

O Cifra era um militar razoável, mas um fraco guerreiro. Ficou com algum receio do comandante e nos dias seguintes tentava não o enfrentar, procurando todos os truques possíveis. Entregava as mensagens decifradas a qualquer militar, no comando, que trabalhassem junto dele, e que lha fizesse chegar às mãos, o que lhe importava era que assinassem a folha de entregas.

Passado um tempo, quando o Cifra vai ao comando entregar uma mensagem decifrada, sempre tentando evitá-lo, o comandante ouve a sua voz, sai do seu gabinete, e entre outras palavras diz-lhe:
- Anda cá, oh Cifra, vem aqui ao meu gabinete.

O Cifra, não levava nada vestido, a não ser uns calções, já um pouco coçados, ficou ainda mais embaraçado, e a muito custo entrou no gabinete do comandante. Fez uma saudação muito mal feita, dizendo:
- Dá-me licença meu comandante!. Vossa Excel...

O comandante não o deixou acabar a palavra, e diz-lhe:
- Deixa-te de salamaleques e vamos ao que interessa. Põe-te à vontade, parece que o teu comandante já não existe. Ouve bem, pois tenho uma missão para ti. Vamos libertar o prisioneiro, de quem tu me falaste, e se ele vive perto do aquartelamento, tenta visitá-lo, ele já te conhece, se vires alguma coisa suspeita, como visitas, armas ou qualquer outro objecto, lá na sua casa ou à sua volta, que te desperte a atenção, informa-me, talvez não seja como ele diz, pelo menos as informações que temos são diferentes, mas vamos ver como as coisas correm.

As coisas correram perfeitamente.

O Cifra, passou a ser amigo dele. Tinha duas irmãs. Ambas tinham os olhos azuis, talvez descendentes dos padres da ordem religiosa francesa que existiu na área, antes das tropas portuguesas se instalarem na povoação. As duas gostavam do Cifra e faziam tudo para lhe agradar, mas uma delas, de nome Cumba, é que afirmava a pés juntos que era a lavadeira do Cifra e era com essa que o Cifra mais simpatizava. Lavava e passava a ferro as camisas, calções e meias do Cifra, que andava sempre limpo, o que levava a que o Curvas, alto e refilão, comentasse:
- Porra, que o Cifra agora anda vestido, como se fosse um “Maricas”!.

Ela colocava sempre uma flor de cheiro em cima da roupa lavada. Enfim, “era um amor de rapariga”, como se dizia na sua aldeia do vale do Ninho d’Águia, e se a sua mãe Joana, visse a maneira com que ela cuidava da roupa, e não só, de tudo o que dizia respeito ao Cifra, com certeza que diria, “mas que rapariga mais prendada o meu filho arranjou”. Naquele tempo, as mães tinham alguma influência nas decisões dos filhos. Isto tudo, sem ter visto os dotes físicos com que o Criador a beneficiou.

Mas continuando com a narração, o Cifra bebia aguardente de palma, comia papaia fresca e fruta de caju, andava pela beira do rio a ver as raparigas a lavarem a roupa na maré cheia. Andava durante o dia, e numa certa área, à volta do aquartelamento, sem arma ou qualquer protecção, ia para a “bolanha”, que era o pântano onde crescia o arroz, na companhia do amigo, da sua Cumba, da irmã e da mãe, e ajudava-os, algumas vezes, em algumas tarefas. Também andava de canoa, na altura da maré cheia, o que bastante o divertia, enfim, parecia que tinha uma família, e algumas vezes fechando os olhos, pensava que estava na sua aldeia em Portugal. O Setúbal, sempre que estava livre, ia com ele, pois simpatizava com a outra irmã.

Quando iam para a “bolanha” trabalhar, a bonita e apaixonada Cumba, sempre a brincar e com um ar sensual, com uma mão cheia de lama, pintava a cara ao Cifra dizendo que assim era mais parecido com ela, tal qual um africano, e abraçava-o, ficando os dois corpos quase nús, colados um ao outro, encharcados em lama, que caíam abraçados e felizes, ficando por algum tempo juntos, rebolando-se na água e na lama da “bolanha”, tal como dois animais selvagens da savana africana, em plena época do cio, beijando-se e mordendo-se, e das suas gargantas saíam uivos e gritos de dor e prazer. Nessa altura o sabor e o cheiro, feminino e sensual daquilo a que se podia chamar “Orquídea Negra da lama da Bolanha”, ferravam tal como um demónio, as mais profundas entranhas do corpo do Cifra, para não mais sair, durante o resto da sua vida. Quando isto acontecia, o amigo, a outra irmã e a mãe, fugiam para longe, falando uma linguagem alegre, pensando que tudo o que eles faziam devia ser feito, em paz, sem olhares indiscretos e no mais profundo silêncio, somente interrompido pelos seus uivos e gritos de dor e prazer, que saíam das suas gargantas.

Os leitores vão por certo perdoar a maneira como descrevo esta fase de recordações da juventude, passada na guerra, que talvez não faça parte do contexto da história da guerra vivida em África, mas isto é um retrato da verdade, os povos amam-se, sómente os governos se guerreiam, e pensando bem até faz parte dessa mesma guerra, pois todos nós combatentes, talvez pelo isolamento a que estivemos sujeitos, quando havia contacto com a população, e havendo raparigas, tivemos a nossa pequena ou grande aventura de amor em África, e quando há amor, também há dor e sofrimento, por isso estávamos a sofrer, num lugar de conflito, é isso que a nossa história nos diz. Mas continuando com a narrativa, durante o tempo em que o Cifra conviveu com esta família, nunca suspeitou de nada, ou algum contacto fora do normal com forças de guerrilheiros, do movimento de libertação, ou talvez o Cifra não visse, pois era uma fase da sua vida, em que andava feliz.

Tanto o Cifra como o Setúbal, uma vez por semana, esperavam que abrissem as latas de chouriço de conserva que se consumiam no aquartelamento, e levavam parte de uma lata, com o consentimento do sargento da messe, que era amigo do Cifra, para a família. Pão, levavam quase todos os dias, a princípio, não gostavam do pão, mas depois já queriam mais. Também levavam comida do aquartelamento, sempre que sobrava. O Comandante ia perguntando ao Cifra por novidades, e o Cifra respondia:
- Meu comandante, se Vossa Excel... E o comandante, não o deixava terminar e dizia:
- Deixa-te de salamaleques, e diz-me com vão as coisas. E então o Cifra dizia:
- Eu não percebo nada de espionagem, mas nunca me apercebi de nada fora do normal, e duma coisa estou certo, durante o dia, pois não sei o que se passa durante a noite, e principalmente nas horas que passo com a família, são das coisas melhores que me aconteceram na guerra. Ainda não reparou, como agora ando limpinho!. Até já uso camisa.

O comandante mostrava um pequeno sorriso e mantinha-se calado. Algum pessoal, no comando que ouvia esta conversa, ria-se pela calada, e alguns, até mandavam piadas ao Cifra.

Passou algum tempo, até que um pelotão de reconhecimento regressa ao fim da tarde ao aquartelamento, com um guerrilheiro que tinham encontrado, por casualidade, deitado debaixo de uma árvore, dando a intender que adormeceu mascando “cola”, pois eram esses os indícios que vinham da sua boca, ou talvez se tenha deixado mesmo adormecer, esperando pela noite, para continuar com a sua missão. Estava fardado, trazia uma metralhadora e uma catana segura na sua cinta, e era possuidor de diversos documentos e alguma quantidade de dinheiro, dando a entender que devia ser mesmo um mensageiro.

Chegados ao aquartelamento com o guerrilheiro, que estava com as mãos amarradas com uma corda, vão ver o comando, onde aparece um major que fazia parte do serviço de operações especiais, a quem o Cifra nunca viu um sorriso na face durante os dois anos de comissão, e que para ele todos os naturais eram “terroristas”, se não eram agora, iriam ser no futuro, pelo menos era o que diziam a seu respeito, que ao ver o guerrilheiro fardado, aproxima-se, e no momento em que o guerrilheiro, talvez vendo as divisas de major, diz mais ou menos isto, num português que se compreendia:
- Sou um guerrilheiro do movimento de libertação PAIGC.., e quero ser tratado como um prisioneiro de guerra.

Alguns militares, não percebendo a mensagem, riram-se, e o major, aproxima-se mais um pouco e desfere uma enorme bofetada na cara do guerrilheiro, que parecia mais um soco, pois o guerrilheiro com as mãos amarradas, desiquilibrado, caiu no chão imediatamente, dizendo com uma voz de fúria, mal contida:
- Levem este “terrorista” para o local dos interrogatórios.

Resultado do interrogatório.

Este guerrilheiro, que devia ser um mensageiro que fazia a ligação entre as diferentes bases do movimento de libertação que actuavam na zona, pois trazia dinheiro em alguma quantidade e documentos que comprometiam o tal amigo do Cifra que queria ser militar de Portugal, cuja a irmã era a lavadeira, e que era nem mais nem menos, que o informador dos guerrilheiros que actuavam na zona do aquartelamento.

Veio também a saber-se que parte da comida, que o Cifra e o Setúbal levavam para a família, à noite, era entregue a alguns guerrilheiros, sendo este um deles.

Também informava os guerrilheiros de toda a movimentação das tropas que saíam e entravam no aquartelamento. Antes de conhecer o Cifra e ser preso a primeira vez, quando houve um ataque ao aquartelamento, em que o Cifra e outros militares foram feridos por granadas de morteiro, era ele que dava o sinal, com tiros de pistola, por código, mais para o sul, ou mais para o norte, de modo a acertar com mais precisão no alvo, que neste caso era o aquartelamento. Imediatamente uma secção de combate foi recapturar o dito amigo do Cifra, que muito admirado com a atitude dos militares, em o levarem preso de novo para o aquartelamento, dizia mais ou menos isto:
- Que quer o pessoal da tropa de mim? O Cifra está no quartel da tropa?

Interrogado na frente deste guerrilheiro e perante os documentos que o comprometiam, confessou e explicou que sentia orgulho no que tinha feito, pois era africano e esta era a sua terra. Mais disse, que a base de onde recebia ordens era em determinado local, mas que já deviam de ir tarde para a destruírem. Nomeou por diversas vezes o nome do Cifra, sem nunca o comprometer ou o acusar, mas que o queria ver. 

Ainda hoje o Cifra está para saber porque é que ele, vendo chegar o guerrilheiro mensageiro, que ele devia conhecer, preso no meio dos militares que regressaram ao aquartelamento, pois vigiava todos os movimentos das tropas, não fugiu. Talvez pensasse que estava protegido pelo Cifra e que nada lhe ia acontecer. O Cifra ainda hoje lamenta se ele pensou assim, pois não tinha qualquer influência, era um simples militar que tentava sobreviver em ambiente de guerra e considerava o tempo que passou com a sua família, uma dádiva do destino, pois o Cifra, também se entregou com o coração e nunca pensou que talvez estivesse a ser usado, e o comando, que tratava os guerrilheiros por “terroristas”, não lhe ia perdoar, pelo que ele tinha feito antes.

Continuando, portanto já não queria ser “militar do Portugal”, como dizia anteriormente ao Cifra, agora era africano e esta era a sua terra. Toda esta informação do interrogatório, ninguém sabe como, mas correu de boca em boca, pelo aqurtelamento, alguns militares brincavam com o Cifra e com o Setúbal, dizendo:
- O vosso amiguinho afinal era guerrilheiro. Que era africano já nós sabíamos, pois a cor não enganava. Quanto às irmãs, ainda vão ficar viúvos, coitadinhos...

Alguns, como era o caso do Curvas, o tal soldado atirador, alto e refilão, não escondia a sua reles linguagem e dizia:
- Se eu tiver oportunidade, eu faço-lhe a folha. Então o filho da puta era o que dava os tais sinais de pistola! Porque é que eu não o matei antes?

Ninguém sabe se era coincidência ou não, mas durante o tempo em que o Cifra e o Setúbal conviveram com essa família, o aquartelamento nunca foi atacado pelos guerrilheiros. Passado algum tempo, e quando os guerrilheiros começaram de novo a atacar o aquartelamento, levou a que o Cifra fosse interrogado pela tal polícia do Estado, que tinha a sua central na capital da província mas que se passeava por algumas áreas do aquartelamento, umas vezes de passagem de rotina, outras vezes convocadas para interrogatórios de grau elevado, que quase sempre acabava em morte dos interrogados, e metia o nariz em tudo o que no seu entender lhe parecia suspeito. Alguns até diziam que esta polícia mandava mais que o comando e andava por ali para o fiscalizar. Numa dessas passagens pelo aquartelamento chamaram o Cifra ao local onde era costume fazerem os interrogatórios, onde foi bombardeado com perguntas por dois arrogantes polícias durante uns longos vinte minutos, tempo esse que o Cifra considerou um dos momentos mais difíceis e humilhantes da sua passagem por este cenário de guerra. As perguntas não eram do género do polícia bom e do polícia mau, eram perguntas com frases já feitas e escritas num papel, que tanto um como outro queriam pôr na boca do Cifra e que finalizavam quase sempre com as palavras “anda confessa", "diz que sim” ou “nós sabemos que tu sabes, diz que sim”. Isto tudo intervalado com algumas perguntas estúpidas a respeito de sexo. Quando estas perguntas eram feitas os olhos brilhavam à espera de resposta, dizendo sempre qualquer coisa como “elas eram boas, não eram, até tinham olhos azuis”, dando a entender que estes miseráveis polícias não deviam ter tido sexo há um milhão de anos. O comandante, talvez por obra do destino ou porque alguém o avisou do que se estava a passar, aparece no local e diz:
- Quem autorizou todo este interrogatório? Terminem imediatamente com este disparate, pois fui eu que lhe dei ordens para conviver com o prisioneiro e sua família, pois havia um plano que entretanto abortou, mas mais tarde ficou completo com a chegada de novas informações.

O Cifra nunca chegou a saber que plano era esse e se iria servir de cobaia nesse referido plano, mas pensou que o comandante se referia à prisão definitiva, do seu suposto amigo, irmão da lavadeira. Por uma fracção de segundos ainda pensou se o comandante não entraria no interrogatório, fazendo de polícia bom, mas não, o comandante veio pôr as mãos nas costas do Cifra e tentou levá-lo para fora do local dos interrogatórios.O Cifra, ouvindo estas palavras do comandante, recuperou alguma coragem e disse, sem qualquer controle, tudo o que lhe ia na alma, usando a linguagem do Curvas, alto e refilão, e terminando mais ou menos assim, referindo-se aos polícias:
- ...vocês, são os maiores filhos da puta que encontrei em toda a minha vida!

Para alguma tristeza do Cifra e do Setúbal, as duas irmãs e a mãe, pois o pai há muito que tinha falecido com uma doença que lhe comeu parte das pernas, diziam que era a lepra ou coisa parecida, desaparecem da aldeia na noite em que o suposto amigo do Cifra foi de novo levado pelos militares. Passado um tempo houve informações, que passaram pela mão do Cifra, que os guerrilheiros, informados da prisão do irmão e do guerrilheiro mensageiro, vieram buscá-las, e claro, mudaram imediatamente a localização das suas bases na região.

O Cifra, a partir desse momento, ficou com quase a certeza que elas já eram guerrilheiras, mesmo antes de conhecerem o Cifra e tinham recebido treino, sendo instruídas e mentalizadas para fazerem tudo, mesmo tudo, sem qualquer restrição, a favor do seu movimento de libertação, vendo no Cifra uma potencial fonte de informação, mas nesse aspecto não tinham sido bem treinadas, pois o Cifra era um razoável militar, embora fosse um fraco guerreiro, que exercia o seu trabalho com seriedade e todo o sigilo, para que tinha sido treinado, nem ele sabia porquê, mas tinha assimilado essa vertente do treino. Mas voltando ao assunto, sem querer cortar o fio à meada, o comando, imediatamente, organiza uma operação para destruir a base que o suposto amigo do Cifra citou e também para verificar se era verdade o que ele tinha dito. Uma operação destas não era simples, mas também não era complicada. Normalmente incluía a força aérea e algumas unidades do exército. Esta começou com parte de um pelotão de morteiros e de uma companhia de intervenção, onde actuavam alguns militares africanos, onde ia o suposto amigo do Cifra que seria o principal guia, forçado, claro. Talvez com promessas de libertação.

(A história de acção, que se segue, foi descrita por alguns intervenientes, após chegada ao aquartelamento, contudo o relatório oficial, que seguiu para o comando territorial, na capital da província, era um pouco diferente.)

Saíram ao amanhecer do aquartelamento, pois de noite ninguém circulava em viaturas auto. Quando próximo do objectivo, e em lugar que entendessem ser de alguma segurança, deixaram as viaturas, onde ficou parte da força militar a manter a sua segurança. Os restantes militares seguiram a pé por pouca distância, comunicaram à força aérea, que fez deslocar um avião que largou umas bombas que normalmente continham napalma, que praticamente destruíu o objectivo. Depois é só esperar que o fogo, que as bombas produziram termine, e segue-se o serviço de limpeza e recuperacão de algum material do inimigo que ainda possa ter sobrevivido às explosões das bombas, como armas, documentos ou qualquer outros objectos que possam ter interesse militar. Mas normalmente depois da actuação das bombas do avião, nada ficava que fosse possível recuperar.

(Creio que na altura havia um ou dois aviões na base aérea da capital da província que largavam estas bombas e que uma organização internacional com o nome de ONU, a que o governo de Portugal pertencia, tinha proibido esse mesmo governo de usar esses aviões neste cenário de guerra de guerrilha. Nessa altura já não tinha o suporte de um terço dos seus membros, para lhe dar essa legitimidade, não sei se estou certo, mas creio que sim. Na altura passaram pelas mãos do Cifra mensagens com alguma informação nesse sentido, por ocasião de uma possível visita de enviados ao território para inspecção, por essa organização internacional. Talvez os meus camaradas, mais bem informados e ainda vivos, possam esclarecer com mais detalhes).

Mas continuando com a narração, por vezes o pelotão de morteiros era fundamental com o lançamento de algumas granadas quando havia alguma força de guerrilheiros em actividade, o que não era o caso nesta situação, porque se houvesse actividade, e se por tal motivo fosse necessário, tinha vindo uma força de tropas pára-quedistas, ou até um grupo de comandos da capital da província, que nessa altura se estavam a formar, e que era composto quase na sua totalidade, por naturais. Diziam que estes comandos, como grupo de tropas de acção, era o mais eficaz na guerra de guerrilha. A base, no momento, e como se esperava, não tinha actividade, foi destruída e não houve contacto com o inimigo.

Terminada a operação, já no regresso, antes de chegarem às viaturas auto, executaram o principal guia, neste caso o suposto amigo do Cifra. Ninguém sabe porque o mataram, talvez porque deixou de ter interesse militar ou pelas informações do interrogatório que andaram de boca em boca no aquartelamento. Foi muito simples, para quem anda na guerra, para quem perdeu quase todos os sentimentos de dignidade, derivado ao local e ambiente onde se encontra, que é de constante conflito, angústia e sobrevivência, ou seja estar vivo todo o momento, nem que para isso tenha que praticar as coisas mais horríveis, que um ser humano, alguma vez pensou em fazer, enfim, para quem foi instruído e treinado para matar.

Um certo grupo de militares deixou-se atrazar dos demais, onde se incluía o dito amigo do Cifra. Soltaram-no, e disseram:
- Estás livre, vai-te embora.

O desgraçado, vendo-se livre, correu em direção oposta ao grupo. Nesses momentos há sempre um militar, como no caso do Curvas, alto e refilão, que num acesso de fúria, derivado à sua pouca educação escolar, porque carrega uma enorme frustração de algo que ainda não conseguiu realizar na sua ainda curta vida, porque na sua ignorância quer mostrar que é mais valente que os colegas ou até às vezes um natural que colabora com os militares, e que também leva uma arma, servindo de guia e tradutor, que não simpatizando com o homem pois é de diferente etnia, que dispara um tiro, ou uma rajada de G3 nas costas do prisioneiro.

Não foi o militar que o matou, mas sim, o regime que o treinou para matar, que lhe dizia na altura da instrução básica qualquer coisa como: não importa, vai em frente, tens a razão do teu lado, em força, contra tudo, mata, tens uma arma na mão, estamos a ensinar-te a manuseá-la, usa-a, pois quando ganhares, serás um herói. Embora neste caso, a situação não seja a mesma, mas o sentido do treino e da formação, estava lá, e alguns militares absorveram, enfim, aprenderam a lição que os instrutores lhe explicavam e exemplificavam no seu próprio corpo, por centenas de vezes, a melhor maneira de matar um ser humano, com uma faca, uma metralhadora, com morte rápida, ou com prolongamento de dor.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10365: Do Ninho d'Águia até África (8): O "Arroz com pão"

Guiné 63/74 - P10387: Passatempos de verão (11): Foto(de)composição ou o fim de um (passa)tempo...ou simplesmente uma sequência fotográfica à procura de uma legenda (Luís Graça)










Candoz > Quinta de Candoz > 24 de setembro de 2011 > Fim de um (passa)tempo. Fim do verão.  Fim das férias... na Tabanca de Candoz... Foto(de)composição... O medo guarda a vinha, as árvores de fruto, os muros, a casa, as minas, o passado, o presente, o futuro,,, Fim de um (passa)tempo inocente. Ou talvez não. Talvez a foto ou sequência de fotos mereça uma outra legenda, com a cumplicidade, a conivência,o humor,  a imaginação e a paciência dos nossos leitores. 

Fotos: © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados

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Nota do editor:

Último poste da séreie > 27 de agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10303: Passatempo de verão (10): As árvores também choram... (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P10386: Parabéns a você (472): Ribeiro Agostinho, ex-Soldado da CCS/QG/CTIGuiné (1968/70)

Para aceder aos postes do nosso camarada Ribeiro Agostinho, clicar aqui
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 10 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10357: Parabéns a você (471): Rui Batista, ex-Fur Mil da CCAÇ 3489 (Guiné, 1971/74) e TonY Grilo, ex-Soldado Art.ª da BAC 1 (Guiné, 1966/68)

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10385: Estórias dos Fidalgos de Jol (Augusto S. Santos) (11): Futebol, coraminas, e não só...

1. Mensagem do nosso camarada Augusto Silva Santos (ex-Fur Mil da CCAÇ 3306/BCAÇ 3833, Pelundo, Có e Jolmete, 1971/73), com data de 14 de Agosto de 2012:

Olá Camarada e Amigo Luís Graça,
Sabendo que o "meu" habitual editor Carlos Vinhal se encontra em gozo de merecidas férias, tomo a liberdade de te enviar directamente mais uma estória relacionada com a minha passagem por terras da Guiné, deixando ao teu critério a sua possível publicação.
Junto ficheiro da mesma juntamente com mais algumas fotos do meu álbum.

Para ti, para o Carlos Vinhal, restantes editores, e camaradas em geral, um grande e forte abraço.
Um bem-haja para aqueles que têm a paciência de ir lendo estes meus relatos.
Augusto Silva Santos


ESTÓRIAS DOS FIDALGOS DE JOL (11)
 

Futebol, coraminas, e não só…

Na sequência do comentário a uma das minhas estórias sobre Os Fidalgos do Jol (P10286 - O Tarzan do Jol) por parte do nosso camarada e amigo Manuel Carvalho (que tal como eu também passou por Jolmete), mais propriamente sobre a “pica” que lhe deu depois de tomar uma das famosas pastilhas de coramina, veio-me à lembrança um episódio com estas de certa forma relacionado.

Estando a aproximar-se o final da comissão e, já com os índices de saturação a roçar os limites, o que era perfeitamente natural, alguém resolveu promover (não sei se em boa hora) um “campeonato” de futebol entre Grupos de Combate, na tentativa de suavizar a situação.

Pelo que tenho tido oportunidade de ler aqui no blog, esta era uma prática comum em praticamente todas as unidades, infelizmente nem sempre com os resultados finais mais desejáveis, que deveriam ser de descontracção, distracção e sã camaradagem. É que jogo é jogo, e ninguém gosta de perder nem a feijões.

O “campeonato” lá foi decorrendo de acordo com a disponibilidade dos Grupos, com uns jogos mais “quentinhos” com o aproximar da parte final e, nalguns casos, a acabar prematuramente, face ao número de expulsões.

Eram discussões muito acaloradas que, só por mero acaso, por vezes não davam mesmo em confrontação física. Se isto ainda acontece com profissionais nos dias de hoje, não era de admirar que, num cenário daqueles, com o pessoal psicologicamente bastante afectado, não tivesse também acontecido. Felizmente que, na maioria dos casos, se tratou apenas de jogos assim mais para o “durinho”.

É aqui que entram as famosas “pastilhas quadradas”, se não me falha a memória embrulhadas em prata, e que eram muito famosas entre grande parte dos “atletas seleccionados”. Nos dias dos jogos era vê-los à socapa dirigirem-se até à enfermaria, em diálogo mais ou menos disfarçado com os seus camaradas daquele sector. Depois de “emborcarem” umas coraminas, era vê-los correr, por vezes mais do que a própria bola. Quase parecia mais atletismo do que futebol.

Num desses jogos em que fui convidado a participar, tive a infelicidade de provocar um incidente, por sinal com aquele que considerava ser o meu melhor amigo em Jolmete. Ainda me lembro que, dos meus 1,82 de altura e mais ou menos 80 quilos de peso, e a jogar a defesa central, vejo uma figura franzina (por certo com menos uns 20 quilos que eu) vir direita a mim para disputar uma bola lá nas alturas mas, ao chocar comigo, foi projectada devido ao impacto, e eis que o Cabo “Bigodes” cai desamparado no “relvado” de terra batida, gritando de dor.

Não era para menos, pese embora de início julgarmos ser um pouco de teatro, do tipo que os jogadores profissionais nos habituaram, mas infelizmente não era o caso, pois rapidamente se chegou à conclusão que acabara de partir a clavícula ao meu amigo Borges.

Dali para a frente não quis participar em mais nenhum jogo, pois foi um acontecimento que marcou durante bastante tempo, mas obviamente muito mais a ele que teve de andar de braço ao peito durante algumas semanas. Mais tarde, já na “peluda”, viria mesmo a ter de ser operado, tal foi o estrago que lhe provoquei no ombro.

Felizmente que este “pequeno” incidente em nada alterou a amizade que iniciámos em terras da Guiné, bem antes pelo contrário, pois perdura até aos dias de hoje.

Brá, Dezembro de 1971 > Visita aos arredores

Jolmete, Fevereiro de 1972 > Visita à Tabanca

Pelundo, Abril de 1972 > A caminho do abrigo

Jolmete, Abril de 1972 > A treinar para a carta de condução

Jolmete, Abril de 1972 > Na messe com o Fur Mec Auto

Jolmete, Abril de 1972 > Convivio na messe

Jolmete, Junho de 1972 > Entrada da Capela

Jolmete, Outubro de 1972 > Quem ganhou não interessa... O meu amigo Borges é o da t-shirt vermelha 
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10286: Estórias dos Fidalgos de Jol (Augusto S. Santos) (10): O Tarzan do Jol

Guiné 63/74 - P10384: Convívios (474): 25.º Almoço do pessoal da CCAÇ 557, dia 27 de Outubro de 2012 em Benavente (José Colaço)

O Coronel Ares, Comandante da CCaç 557 no discurso de encerramento no almoço de 2011


25.º ALMOÇO/CONVÍVIO ANUAL DA CCAÇ 557

DIA 27 DE OUTUBRO DE 2012 EM BENAVENTE

Caro amigo Luís Graça e editores se for possível publiquem no blogue.
Numa eu tenho de agradecer ao blogue é que este ano vou ter participantes no almoço de camarigos do blogue, que fazem questão como ex-combatentes da guerra da Guiné, confraternizar com os velhinhos do Cachil, CCaç 557.


Programa 

O almoço será serviço no Restaurante o Miradouro

- Concentração às 11 horas no parque do restaurante para os cumprimentos da praxe e respectivos quebra-costas
- Por volta do meio-dia serão servidas as entradas, a que se seguirá uma pequena palestra para apresentar uns companheiros da CCaç 557, que nas minhas pesquisas consegui descobrir e nos honram com a sua presença pela primeira vez.
- Segue-se o almoço com sopinha da pedra para almofada, os pratos de peixe, carne, bebidas a gosto, vinho, cerveja, sumos ou agua, café e as espirituosas. 

- Terminado o almoço há a exibição dos dotes de alguns dançarinos com música ao vivo dos anos 60, mas também há o apita o comboio e Quim Barreiros que dá para os pés de chumbo.
- Segue-se o discurso oral e de improviso do Comandante Ares. 
- Cerca das 17 horas será servido o lanche com os parabéns e o bolo de aniversário
- Termina com as castanhas assadas, oferta do nosso prezado, companheiro, amigo e camarada ex-1.º Cabo João Casimiro Coelho que todos os anos faz questão de nos presentear.

Obrigado. 
O organizador José Botelho Colaço. 
Ao vosso dispor: 
O meu contacto ver na lista de contactos da tertúlia.
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Notas de CV:

José Colaço foi Soldado Trms da CCAÇ 557, CachilBissau e Bafatá nos anos de 1963/65

Vd. último poste da série de 12 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10367: Convívios (473): Almoço do pessoal da CCAÇ 2791 a realizar no dia 29 de Setembro de 2012 em Penafiel (Luís Faria)

Guiné 63/74 - P10383: Notas de leitura (403): Relatório do Conselho Superior de Luta ao III Congresso do PAIGC (1977) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 9 de Julho de 2012:

Queridos amigos,
Trata-se do III Congresso do PAIGC, ainda se vivia no mito da unidade Guiné-Cabo Verde.
O postulado ideológico aparece claramente definido, a ligação entre partido e movimento de libertação, o centralismo democrático consorciado com a dinâmica revolucionária. Aristides Pereira refere sucessos industriais que no ano seguinte, Luís Cabral, noutro documento já aqui apresentado, não ilude insucessos, desvios, inviabilidades. Tudo faltava à Guiné e confundiram-se desejos com a política praticável. As fábricas fecharam, os financiamentos volatizaram-se, a divida externa acumulou-se. Começava a espiral infernal de onde nunca mais se saiu.

Um abraço do
Mário


Relatório do Conselho Superior de Luta ao III Congresso do PAIGC (1977)

Beja Santos

Com o intuito de se juntar toda a documentação que permita seguir a evolução política do PAIGC no período de pós-independência, procede-se a um resumo das matérias abordadas no seu relatório por Aristides Pereira no decurso do III Congresso do PAIGC. Convém recordar que o II Congresso ocorrera em 1973, havia que eleger uma nova Direção após o assassinato de Amílcar Cabral e definir a linha de rumo que desembocasse na independência.

A Guiné-Bissau estava agora confrontada pelo modelo de desenvolvimento na era pós-colonial. Aristides Pereira lembra as dificuldades vividas durante o período da libertação total (que ele denomina por “política de abertura em relação aos nacionais que, enganados pela demagogia colonialista, tenham combatido nas fileiras do inimigo”), refere o novo Estado como confrontado pela ausência de infraestruturas básicas, pelo desequilibro e dependência do comércio externo e por uma grave falta de quatro técnicos qualificados. A seguir, debruçou-se sobre os fundamentos da orientação política e ideológica do PAIGC e recorda: “Desde a sua criação o PAIGC definiu-se como a vanguarda e o motor da luta. Cabral dizia que uma luta, para poder avançar a sério, tem que ser organizada e só pode ser organizada a sério por uma direção de vanguarda. Que o PAIGC adotara a designação de partido porque, para dirigir um povo para a libertação e para o progresso é fundamentalmente preciso uma vanguarda. O PAIGC nasceu, assim, como um verdadeiro partido político”. Seria esta a riqueza da dualidade Partido-Movimento, e voltou a citar Cabral: “Nós, que lutamos contra o colonialismo português somos todos um movimento de libertação nacional, toda a gente é partido. Mas só entra de facto no partido aquele que de verdade tem uma só ideia, um pensamento que só quer uma coisa e tem que ter um dado tipo de comportamento na sua vida privada e social”. Isto para justificar porque é que o PAIGC é a força política dirigente da sociedade no estádio de desenvolvimento que exige a direção de um processo revolucionário num contexto de democracia nacional.

Depois, a sua exposição dirigiu-se para o desenvolvimento económico e recordou que o PAIGC favorecia um modelo de planificação, de estatização, sem perder de vista a necessidade do desenvolvimento e modernização da agricultura, da reforma agrária (em Cabo Verde) e da nacionalização das terras e de outros bens pertencentes a inimigos provados da liberdade do povo; o controlo do comércio externo e a coordenação do comércio interno era o corolário lógico do modelo estatista. Procedeu a um balanço do que estava a ser feito quanto ao dinamismo industrial, elencando as realizações: fábricas de parquete-mosaico e de pranchas, fábrica de sumos e compotas, fábrica de espuma para colchões e almofadas, fábrica de cerâmica de Bandim, restruturação da CICER, criação da companhia de eletricidade e águas de Bissau. Para o período até 1980 encarava-se a hipótese de instalar mais indústria: complexo industrial de Cumeré, produção de mel e cera no Gabu; cerâmica em Bafatá; fábrica para a produção de oxigénio e acetileno de Bissau; fábrica de farinha e óleo de peixe de Cacheu; fábrica de curtumes; fábrica de artigos de plástico; fábrica de leite reconstituído; fundição e oficinas metalo-mecânicas; unidade de transformação da castanha de caju; unidade de fabrico e de coloração de tecido em bandas. Referiu-se igualmente ao desenvolvimento da rede de energia elétrica, a criação de uma empresa para estudar o aproveito das bauxites, a criação de três empresas mistas de pesca, mais adiante falou no défice do comércio externo, dos armazéns do povo e da necessidade de encontrar resposta para a rede de transportes, área em que já se criara a Silo Diata, que possuía 37 autocarros e a Guinémar.

Quanto à definição do Estado, Aristides Pereira é inequívoco: “O Estado nasceu como um instrumento ao serviço do Partido para a realização do seu programa. É ao Estado sob a direção do Partido que incumbe a execução do seu programa económico, social, cultural, de defesa e de segurança. A direção do Estado pelo Partido deverá fazer-se na base de uma relativa autonomia e aí intervêm a administração central e os escalões intermédios e de base". O capítulo referente à unidade Guiné-Cabo Verde revela-se nebuloso, uma vez mais fica-se com a ideia que se tratava de um preceito assente na areia: “Partindo da análise das nossas realidades históricas e tendo em conta que no mundo atual a unidade é uma exigência da luta dos povos pela sua liberdade e progresso, Amílcar Cabral teve a lúcida visão de inscrever a opção da unidade como um princípio de base da nossa organização partidária e da nossa luta pela realização da suprema aspiração do nosso povo à liberdade e ao progresso". As afirmações não passam de verbosidade: “Se é certo que a unidade pressupõe diferenças entre as partes componentes, não é menos evidente que, tratando de nações, para que a unidade seja uma força, a formação jurídico-política da unidade deve ser antecedida pela materialização gradual da unidade de existência dos povos traduzida por formas superiores de cooperação e comunhão, através das novas realizações de intercâmbio e complementaridade (...) para além de todos os fatores históricos, étnicos, culturais, que podem fundamentar a unificação de uma nação ou a associação de dois ou mais povos, será preciso possuir-se um conjunto de interesses comuns, conscientemente definidos, para que a unidade seja bem-sucedida”. E deixou um aviso: “Hoje, é cada vez mais premente a necessidade dos nossos Estados definirem uma estratégia comum de desenvolvimento, a qual permitirá evitar o estabelecimento de estruturas concorrenciais ou divergentes, que esvaziariam a unidade do seu conteúdo”.

Posto isto, analisou o funcionamento das organizações de massa e o funcionamento do PAIGC. Este é reafirmado no centralismo democrático, mediante crítica e autocrítica e com uma direção coletiva. Faz-se um apelo à formação permanente dos militantes e quadros. A política externa continua no não alinhamento, o PAIGC aparece imbrincado com o MPLA, a FRELIMO e o MLSTP, em sintonia com a organização da unidade africana, havendo que não descorar relações de excelente vizinhança com a Guiné-Conacri e o Senegal. Foram endereçados agradecimentos à URSS, a Cuba, à OLP e à FRETILIN. Decorrente desta alocução que abrangeu as principais áreas políticas, o congresso aprovou uma resolução geral onde importa destacar: - o PAIGC é um movimento de libertação no poder e pratica uma política de unidade nacional; haverá que consagrar nas leis fundamentais dos dois países o princípio de que o PAIGC é a força política dirigente da sociedade, o PAIGC deverá continuar a praticar a política de democracia nacional revolucionária, o que implica que todas as camadas sociais sejam mobilizadas para participarem ativamente nas tarefas do desenvolvimento nacional e o Estado deve organizar as suas estruturas e instituições e controlar as suas atividades em observância estrita do princípio da defesa intransigente dos interesses das massas trabalhadoras.

O III Congresso terminou em 20 de Novembro de 1977. Em Dezembro terão lugar uma série de execuções de antigos comandos guineenses. Nos bastidores do Congresso travou-se luta renhida para a constituição da nova lista da Direção, os guineenses protestaram com uma alegada desproporção de nomes cabo-verdianos. E em 1978 tornou-se indisfarçável o descalabro do aparelho económico e a rutura financeira agravou todos os problemas. As cúpulas passaram a contar as espingardas e a participação popular evaporou-se.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Setembro de 2012> Guiné 63/74 - P10380: Notas de leitura (402): "Les Héros de la Guinée-Bissau: La Fin D'Une Légende", de Lourenço da Silva (Francisco Henriques da Silva)