quarta-feira, 20 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11283: Um Amanuense em terras de Kako Baldé (Abílio Magro) (9): Rancho melhorado

1. Em mensagem do dia 8 de Março de 2013, o nosso camarada Abílio Magro (ex-Fur Mil Amanuense. CSJD/QG/CTIG, 1973/74), enviou mais uma crónica para a sua série Um amanuense em terras de Kako Baldé.


Um Amanuense em terras de Kako Baldé 

(Para quem não sabe, Kako Baldé era o nome por que era conhecido, entre a tropa, o General Spínola. Kako – (caco) lente que o General metia no olho. Baldé – Nome muito comum na Guiné)

9 - Rancho melhorado 

Tal como nas outras Unidades militares, segundo creio, também no QG/CTIG as refeições para o Oficial de Dia, Oficial de Prevenção e Sargento da Guarda, provinham das respectivas Messes e eram levadas por um ordenança até aos militares em serviço naquelas tarefas.

Durante mais um serviço de Sargento da Guarda que fiz ao QG/CTIG, fui inesperadamente contemplado com um rancho melhorado como nunca mais fui até ao fim da comissão.
Não era o dia da Unidade, nem o dia do meu aniversário!
Seria uma gentileza do Brig. Banazol pelo meu aprumo e competência no comando da Guarda de Honra?! Quem sabe!

"Isso agora não interessa para nada e vamos é 'enfardar' isto e o que for, soará!" - Pensei eu com os meus botões.

"Abarbatei-me" ao apetitoso conteúdo do prato e, à medida que "metia p'ra blusa", mais aumentava a empatia entre mim e o serviço de Sargento da Guarda.
Efectivamente sentia que, finalmente, alguém dava valor ao esforço e empenho que eu colocava na execução de uma Guarda de Honra a um Comandante estrelado. No resto..., nem por isso, mas agora também não interessa nada.

Terminado o faustoso repasto, abeira-se de mim o Capitão - Oficial de dia - que simpaticamente me pergunta:
- Já almoçou?! Então, e o almoço estava bom?
- Sim, obrigado, por acaso hoje até que nem estava nada mau.

E a simpatia continuava, levando-me a pensar que estaríamos com toda a certeza no dia do "Sargento da Guarda". E porque não, ele há dias para tudo?!

Pergunta-me então:
- E um cafezinho, não ia agora?

Nessa altura até já me apetecia dar-lhe um beijo na boca, tanta era a simpatia com que me tratava!
- Ah sim, obrigado, por acaso agora até caía bem um cafézinho.

Ao contrário do que sucedia com muitos oficiais, a este Capitão os galões não o impediam de ter um gesto de cortesia para com um seu subordinado. E se ia pedir ao ordenança para lhe trazer dois cafés (para ele e para o Oficial de Prevenção) que lhe custava pedir que trouxesse mais um para o desgraçado do Sargento da Guarda?!

O café não fazia parte do "Menu do dia" e teria de ser pago. Achei que não seria correcto da minha parte entregar-lhe, logo ali, o dinheiro correspondente ao meu "cimbalino" (1 escudo, salvo erro) e não o fiz, até porque seria pouco provável que o Capitão o aceitasse (julgo eu).

Sentia-me que nem um Abade e, sentado à mesa, de papo cheio, debaixo da ventoinha da Casa da Guarda, aguardava o cafezinho, imaginando até o Capitão a providenciar para que o "cimbalino" fosse devidamente acompanhado com um bagacito pr'ajudar à digestão.

Os minutos foram passando e o café não aparecia. Comecei a pensar que talvez o Capitão tivesse ficado chateado por eu não lhe ter pago o café antecipadamente, mas isso parecia-me pouco plausível.
Também não me parecia normal que o café já tivesse chegado e que fosse o Capitão a trazer-mo à Casa da Guarda. Assim, fui passando várias vezes pela porta do Oficial de Dia (mesmo em frente à do Sargento da Guarda) para ver se o café já tinha chegado. Também pensei que, quando chegasse, o Capitão me chamaria com toda a certeza.

O tempo continuou a passar e, de café, nem cheiro!

Era também estranho que, não havendo café p'ra ninguém, não tivessem a gentileza de me informar.
Rebobinei a cassete toda e comecei a rever o filme. Juntei algumas peças do puzzle e, de repente, fez-se luz no meu espírito!

Um almocinho "à maneira" - o Capitão a perguntar: "E um cafézinho, não vai agora?!... "Querem ver que o ordenança trocou as "marmitas" e eu "mamei" o almoço do Capitão e esta conversa do cafézinho é só tanga?!

Pois, aquele "E um cafézinho, não vai agora?!", não se tratava de qualquer cortesia do Capitão, mas sim de alguma ironia de quem se via na contingência de almoçar "que nem um Sargento".

Resumindo:
Entregaram-me o almoço, estava bem servido e eu estava com fome - atirei-me a ele!
E, digo-o com toda a sinceridade, nunca supus que tivesse havido troca, tanto mais que do outro lado eram dois almoços e, a haver troca, a mesma seria imediatamente detectada. Provavelmente o Alferes também se aviou primeiro, não sei. Apenas sei que almocei melhor do que era costume.
O cafezinho é que, pelos vistos, tinha ficado na Alfândega!

Durante a minha vida militar no TO da Guiné, vários pequenos episódios sem grande importância foram acontecendo e a sua grande maioria estava já no arquivo morto e só agora, depois que me tornei escriba desta grande Tabanca, é que alguns me têm vindo à memória. Parecendo-me, no entanto, que o pessoal das "bolanhas" demonstra algum interesse em conhecer este tipo de episódios vividos pelo pessoal do "ar condicionado" e ainda que sejam, realmente, episódios insignificantes do meu dia-a-dia no QG/CTIG, continuarei a relatá-los até que alguém me mande calar, tenha eu "pachorra" e tempo para o efeito.

Convencido que estou de que isto não sairá daqui por me encontrar entre ex-camaradas da Guiné, vou, aqui e agora, fazer uma confissão que nunca fiz publicamente, para que se perceba minimamente o contexto em que alguns episódios se deram e tendo em conta que estávamos num Quartel General em pleno Teatro de Operações da ex-Província Ultramarina da Guiné (considerada, na altura, zona 100% operacional).

Como já deveriam ter percebido, este vosso ex-camarada, cujas acções militares na Guiné roçaram, ainda que ao de leve, as façanhas do famoso Rambo, fez vários serviços de Sargento da Guarda ao QG/CTIG.
Durante esses serviços nunca visitou nenhuma guarita, nem nunca quis saber, sequer, onde se situavam as mesmas.
Acredite quem quiser, mas é realmente verdade e passo a justificar:

Como sabem, havia sempre uma senha e uma contra-senha para efeitos de ronda. A senha era-me transmitida pelo Oficial de Dia através de uma carteira de fósforos, ou outro artefacto do género e era usual (para mim acho que foi sempre) utilizarem nomes de frutos (banana/pêra - uva/maçã - cereja/morango, etc.). Pelo mesmo método eu transmitia as senhas ao Cabo da Guarda.

O pessoal era sempre guineense com excepção do Cabo da Guarda que, uma ou outra vez, era europeu. Imaginem a confusão que se poderia fazer com uma salada de fruta de senhas e contra-senhas!

Nunca efectuei qualquer ronda, nem sabia onde ficavam as guaritas (eu era Amanuense, porra!). Estão a imaginar-me na escuridão da noite a aproximar-me de uma sentinela e não me lembrar de qual era a fruta da época e o "bacano" já ter entornado alguma "água de Lisboa"?! "Bai lá bai, até o Barack Obama!"

Recordo-me de uma certa noite, já com os portões fechados, me aparecer do lado de fora e agarrado às grades do portão, um soldado negro a quem só se via o "teclado" de tanto se rir e apenas dizia:
- "esfuriel... esfuriel... esfuriel".

Estava com uma "tosga do caraças", pois tinha abandonado a guarita para ir até à messe, onde trabalhava, beber uns copos.

Aquela triste figura só me dava vontade de rir, mas, por outro lado, tinha receio que o Oficial de Dia se apercebesse (nessa dia era um Capitão do QP) e lá estaria eu metido em sarilhos e aquele desgraçado com a vida estragada, pois a tropa era o seu ganha-pão (ou arroz). Abrir-lhe o portão para ele entrar, podia alertar o Capitão.

Disse ao Cabo da Guarda, também negro, que colocasse um substituto no posto e que fosse dar a volta ao Quartel, saindo pela CCS, e o trouxesse caladinho e o enfiasse na cama. Assim fez e tudo correu sem problemas.

Uma outra vez, sendo o Oficial de Dia novamente um Capitão do QP, aparece-me um 1º Sargento, daqueles que gostam de mostrar serviço, com uma G3 na mão dizendo que tinha encontrado uma sentinela a dormir e que lhe tinha sacado a arma. Sugeria que eu fosse lá à guarita ver o homem e fazia-o em voz alta para o Capitão ouvir e me tramar a vida a mim e ao soldado. Já algo furioso com ele, lá consegui que baixasse o tom de voz e me entregasse a G3.

Resumindo:
O pessoal, que era quase sempre o mesmo, já devia conhecer o meu modo de actuar e, quando eu estava de Sargento da Guarda, era uma "rabaldaria do caraças"! Eu só queria que não dessem muito nas vistas. Quanto ao resto, cada um que se desenrascasse que eu tentava fazer o mesmo, papando os almoços aos Oficiais de Dia.

Ainda uma outra vez em que me encontrava de Sargento da Guarda, logo pela manhã aparece-me esbaforido o Cabo da Guarda informando-me de qualquer coisa que se estaria a passar na casa de banho.

Para lá me dirigi de imediato e encontrei no chão, acometido de um ataque epiléptico, um nosso camarada que estava de Sargento de Dia. Lá providenciei para que o levassem de Jeep ao HMBIS.

Era um camarada ainda mais franzino do que eu e deixei de o ver durante uns tempos. Teria sido evacuado para a Metrópole?! Não!
Num outro dia em que voltei a fazer serviço de Sargento da Guarda, lá estava ele novamente de Sargento de Dia.

"Que Deus me perdoe, mas eu adoro isto aqui"
(Frase do General George Patton proferida no decorrer de uma batalha).

"Que Deus me perdoe, mas eu piro-me já d'aqui"
(Frase do Furriel Abílio Magro proferida no decorrer de um serviço de Sargento da Guarda).
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 14 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11250: Um Amanuense em terras de Kako Baldé (Abílio Magro) (8): O meu "25 de Abril"

Guiné 63/74 - P11282: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (10): À volta de uma fotografia

1. Em mensagem do dia 15 de Março de 2013, o nosso camarada  Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, BissauBissorã e Mansabá, 1965/67), enviou-nos a sua décima "Carta de Amor e Guerra".


CARTAS DE AMOR E GUERRA

10 - À volta de uma fotografia

[Ao início da manhã do dia seguinte à chegada da CCaç 1419 a Bissorã, um grupo ruidoso de jovens mulheres oferecendo os seus serviços de lavagem de roupa “atacava” a “casa dos furriéis” (como era conhecida uma vivenda no centro da vila, “herança” da CCaç 816, segundo julgo).

De entre essas mulheres fixei-me numa que sobressaía pela beleza, pelos cuidados postos na sua apresentação física (magnífica), pela calma e segurança na atitude e pelo brilho do olhar, que me confundiu. E ela percebeu a minha confusão, tenho a certeza!

 “Apanhado”, fiquei à sua espera enquanto ela cirandava na conquista de clientes e me dirigia um olhar furtivo, de vez em quando, como que a dizer “já estás no papo, já tratamos do assunto”. Embevecido, fiquei à espera a apreciar aquele comportamento, típico de alguém que sabia dos efeitos do seu uso. E foi “tiro e queda” quando se me dirigiu. Caí logo, fizemos logo contrato. Com fotógrafo perto, ia lá eu perder uma imagem daquele momento com aquela beleza! E saiu esta foto (foto 1).

Não é a primeira vez que me refiro a esta menina-senhora de há 47 anos. Os seus serviços de lavadeira foram impecáveis, o nosso relacionamento foi magnífico. Passei bons momentos com ela, no seio da sua família. “Honni soit qui mal y pense”, preciso sempre de dizer, pois o nosso relacionamento físico nunca ultrapassou as relações inerentes ao seu trabalho. Mas foi um relacionamento que me deixou boas lembranças.]

Foto 1: Bissorã, 24/10/1965. Linda, a minha lavadeira! 
© Manuel Joaquim 

Lisboa, 9-Dez. 1965

Queridito: 
É muito gira é, a tua lavadeira. Sabes escolher o que te convém e atrevo-me a afirmar que não te envergonharás de a teres a teu lado. Serve-te, não é verdade? Óptimo. 
Como facilmente depreenderás, vi a foto que enviaste à tua Mãe.[foto 1] (…), sem querer, instintivamente, senti um certo mal-estar como se, nesse momento, tudo me fugisse ao olhar-vos. 
Agora (…) reconheço, sem sombra de dúvida, que foi uma reacção descabida, uma reacção sem sentido que valha justificação. Em suma, uma reacção estúpida e indigna de mim. Mesmo assim, não deixo passar a oportunidade de te expor os meus pontos de vista sobre o assunto. 
Por que não enviaste à tua D. um exemplar da foto que enviaste à tua Mãe? Dirás que sou parvinha, que estou com ciúmes e a dar tanta importância ao que não a merece. Sou ciumenta mas posso perfeitamente afirmar que o que senti não foi de modo nenhum ciúme. (…). Senti-me um pouco desgostosa ao ser apanhada de chofre e por atribuir o teu procedimento ao facto de já não confiares em mim, de duvidares sobre qual seria a minha reacção perante a foto. Temias a minha reacção. Foi isso, meu querido?! 
Mas ouve-me, (…). Escuta-me e depois dirás se tenho ou não razão para ficar magoada. 
Ora, se não há nada de anormal, e eu acredito nisso, em contratares uma mulher para te tratar das roupas e do mais que te for necessário, em aproveitares uns momentos de folga para tirares umas fotografias, com que intenção me quiseste ocultar esse facto? (…).
Eu poderia agora, como medida de precaução, ficar de pé atrás, (…). Segundo minha opinião deverias também ter-me confiado essa “pose”. 
Há uma atenuante que ainda formulo para tornar mais branda, menos injusta a tua atitude. Dar-se-ia o caso de teres assim procedido por quereres evitar-me possíveis sofrimentos (…)? 
Mesmo assim, a minha conclusão ao analisar o teu procedimento foi esta: falta de confiança na tua N. Não sabias qual seria a minha reacção e, então, vá de ocultares-me o que poderia induzir-me em erro, levar-me a magicar, a imaginar algo com sentido completamente antagónico ao que a verdade representa. 
Espero e peço-te mesmo que nunca mais assim procedas. Por que não hei-de aceitar com agrado a tua presença junto de uma pretinha? Tanto mais que ela te é indispensável enquanto aí te retiverem! Aceito com certeza, meu amorzito. 
Há sempre uma certa tendência para exagerarmos certos factos, para procurar dar-lhes até um cunho de “maldade” quando se descobre que estão a correr em segredo. Isso desperta a nossa curiosidade e a nossa tendência para uma má interpretação. (…). 
E agora que me justifiquei, vamos pôr uma pedra sobre o assunto exposto. Não é motivo que valha a nossa discussão. 

(… …. ……) 

Para ti, os beijos e abraços que quereria dar-te neste momento. 
Sou a tua N. 


Bissorã, 12dez65 

(…) recebi hoje a tua última carta que, (…), provocou (…) um certo sorriso “malicioso” mas, ao mesmo tempo, também muito carinhoso. 
Com que então ficaste aborrecidita com uma fotografia toda pinocas, (…). 
(…) mandei-a para a minha Mãe, precisamente porque pensei que ela se iria divertir muito mais do que tu. E parece-me que foi isto mesmo que aconteceu. 

Começas por afirmar que não é questão de ciúmes mas, (…), cais em contradição com o que dizes à frente. Se calhar sou capaz de ficar por aqui a criar garotinhos mulatos. É que eu, sabes, gosto tanto da Guiné, adoro a Guiné, vai ser a minha futura pátria! 

Gostava de saber, minha querida, que género de controvérsias o caso poderia vir a provocar entre nós. (…). Julgas então que não te enviei a fotografia por pensar que ias ficar tão magoada que daqui poderia haver um rompimento dos laços que nos unem? 
(…). 
(…) afirmares a hipótese de ficares de pé atrás, como medida de precaução, (…) é “do arco da velha”. Oh D.! Não procures atenuantes para a minha atitude. Não te mandei uma foto igual porque não tinha mais nenhuma. Só isto. Como nem sequer pensei em enviar-ta. A que tinha estava destinada à minha Mãe. Mais nada. 
(… … …) 
Bem, como também afirmas, e eu corroboro essa tua afirmação, não sei onde está a importância do caso. Mas se aquilo que disse te levar a qualquer aflição, (…) peço-te encarecidamente que não te cales e que exponhas o que te aflige, (…). 
(… … ….). 
(…).Os beijos e abraços de sempre do teu M.

Foto 2: Mansoa, 1970, Lavadeiras.
Bela foto do camarada desta Tabanca Grande, César Dias, retirada com a devida vénia de http://bcac2885.com.sapo.pt/index.html
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 13 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11247: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (9): Saída de Bissau para Bissorã

Guiné 63/74 - P11281: Álbum fotográfico de Abílio Duarte (fur mil art da CART 2479, mais tarde CART 11/ CCAÇ 11, Contuboel, Nova Lamego, Piche e Paunca, 1969/70) (Parte VII): Bafatá, uma piscina para três mil...


Foto s/ nº > Reprodução de foto publicada numa revista lou brochura  da época... A piscina de Bafatá e ao fundo, do lado esquerdo,  o estabelecimento comercial da Casa Gouveia


Foto s/ nº > Diz o Abílio, legenda em cima da própria foto: "Três mil soldados para uma piscina" (...fora os civis). Ao fundo vê-se a estátua  ddo governador João Augusto de Oliveira Muzanty (1906-1909), e o estabelecimento local da Casa Gouveia.[, salvo erro] [LG]


Foto s/ nº > O Abílio descansando na psicina de Bafatá, que tinha o nome de Guerra Ribeiro, e foi inaugurada em 1962 . [Este Guerra Ribeiro deve ter sido o administrador da circunscrição ou concelho de Bafatá, na época. Também terá sido, antes ou depois,  administrador de Bissau: o seu nome estará ligado á construção do bairro da Ajuda. ]




Foto s/ nº > O Abílio, com um camarada não identificado


Foto s/ nº > O Abílio, no cais fluvial de Bafatá, no Rio Geba Estreito, que era navegável até aqui...

Guiné > Zona Leste > CART 2479/CART 11 (Contuboel, Nova Lamego, Piche, Paunca, 1969/71) > "Na piscina em Bafatá. Bons tempos!... Ainda conseguíamos pirar-nos de Contuboel e passar uns bons momentos em Bafatá. Perto da piscina havia um restaurante [, A Transmontana, seguramente,] muito bom".


Fotos (e legendas): © Abílio Duarte (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complemenetar: L.G.]


1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do Abílio Duarte, ex-fur mil art da CART 2479 (mais tarde CART 11 e finalmente, já depois do regresso à Metrópole do Duarte, CCAÇ 11, a famosa
companhia de “Os Lacraus de Paunca”) (Contuboel, Nova Lamego, Piche e Paunca, 1969/70). (*) Na época a cidade de Bafatá era, a seguir a Bissau,  porventura a maior, a mais bonita, moderna e limpa da província da Guiné. [Ver aqui fotos posteriores, do Humberto Reis, de 1996].


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Guiné 63/74 - P11280: Blogpoesia (329): No Dia Mundial da Poesia... Eugénio de Andrade (1923-2005): (i) Sobre o Tejo; (ii) Três ou quatro sílabas; (iii) Canção da mãe de um soldado de partida para a Bósnia


Lisboa, Rio Tejo, 21/2/2012... >1. Celebrando o Dia Mundial da Poesia, 21 de março de 2013...



Lisboa, Rio Tejo, 21/2/2012... > 2. Celebrando o Dia Mundial da Poesia, 21 de março de 2013...




Lisboa, Rio Tejo, 29/5/2012... > 3. Celebrando o Dia Mundial da Poesia, 21 de março de 2013...



Lisboa, Rio Tejo, 2/5/2012... > 4. Celebrando o Dia Mundial da Poesia, 21 de março de 2013...

Fotos: © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados.


Sobre o Tejo

Que soldado tão triste esta chuva
sobre as sílabas escuras do outono
sobre o Tejo as últimas barcas
sobre as barcas uma luz de desterro.

Já foi lugar de amor o Tejo a boca
as mãos foram já fogo de abelhas
não era o corpo então dura e amarga
pedra do frio.

Sobre o Tejo cai a luz das fardas.
É tempo de te dizer adeus.

Eugénio de Andrade [1923-2005]

Véspera da água (1973).
In: Poesia: Eugénio de Andrade.
Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2000. pag. 200.

Três ou quatro sílabas

Neste país
onde se morre de coração inacabado
deixarei apenas três ou quatro sílabas
de cal viva junto à água.

É só que me resta
e o bosque inocente do teu peito
meu tresloucado e doce e frágil
pássaro das areias apagadas.

Que estranho ofício o meu
procurar rente ao chão
uma folha entre a poeira e o sono
húmida ainda do primeiro sol.


Eugénio de Andrade [1923-2005]

Véspera da água (1973).
In: Poesia: Eugénio de Andrade.
Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2000. pag. 192


Canção da mãe de um soldado

de partida para a Bósnia

É muito jovem, sem tempo ainda
de ser triste. Demora-se nos meus olhos
enquanto leva a maçã à boca.

Nenhuma fala obscura escurece a tarde,
a cabeleira solta é a sua bandeira;
os pés brancos, irmãos
da chuva do verão, anunciam a paz.

Suplico à estrela da manhã
que lhe guie os passos, agora que partiu;
que tenha em conta a sua ignorância,
não só da morte, também da vida.


Eugénio de Andrade [1923-2005]

Os Lugares do Lume  (1998).
In: Poesia: Eugénio de Andrade.
Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2000. pag. 568.


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Nota do editor:

Último poste da série > 12 de março de 2013 > Guiné 63/74 - P11244: Blogpoesia (328): Dos meus poemas de juventude (Cherno Baldé)

terça-feira, 19 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11279: Estórias do Juvenal Amado (47): Aquelas postas de bacalhau eram ouro

Galomaro > Porta de Armas

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 15 de Março de 2013:

Caros Luis, Carlos, Magalhães e restante Tabanca Grande
Gostava que fosse mais uma estória despretenciosa e que ela não carregasse o sentimento de perca que neste momento é praticamente impossível ignorar.
Mas isto também serve para honrar os amigos e para preencher o vazio que ficou. Por outras palavras fazemos o luto necessário ao nosso equilíbrio.
Juvenal Amado


ESTÓRIAS DO JUVENAL AMADO

47 - AQUELAS POSTAS DE BACALHAU ERAM OURO

O Caramba* tinha recebido da terra uma encomenda. Enganaram-se os que pensaram que era uma coisa especial, que era o tesouro gastronómico alentejano. Na verdade a encomenda resumia-se a umas quantas postas de bacalhau salgado e seco, como era tradição cá na terra, na vez de liofilizado como o recebíamos lá.
Aquilo para o Caramba era ouro puro e tratou de o guardar com mil cuidados, começou logo a magicar como o iria fazer, sim porque aquilo não era um manjar qualquer, tinha que ter honras de iguaria fina.

Por mim achava que umas postas de bacalhau não mereciam tanta deferência, mas o Caramba era um homem que gostava das coisas da terra, que cultivava a sua ruralidade e que fazia questão de não esconder as suas origens. Contava ele que ainda moço ia com o pai para o negócio da compra e venda de fruta, com um naco de pão, umas azeitonas britadas, um dente de alho e uma posta de bacalhau demolhada, que depois passava pelas brasas feitas num intervalo do seu labor.

Eu, oriundo de operariado urbano que nem quintal tinha, apreciava quando ele falava da sopa de beldroegas, do licor de poejo, dos coentros, do gaspacho, as caldeiradas de peixe da barragem, da sopa de cação, enfim, coisas que eu não conhecia mas que quando regressei tive oportunidade de saborear nas inúmeras vezes que com ele privei. Ele chegava a trazer do Alentejo as ervas aromáticas e mais os necessários, para fazermos os petiscos em minha casa na Boavista de Alcobaça, para onde eu fui viver depois de casar. Visitava-me então amiúde quando vinha carregar fruta da região que depois transportava para os mercados do baixo Alentejo e Algarve.

Mas voltemos ao “fiel amigo” que o pai lhe tinha mandado.

O destino do manjar foi uma p……. de bacalhau que ele preparou dentro de uma das terrinas de aço inox quem eram usadas no refeitório.
Era o que se podia chamar uma grande tachada.

Nessa noite a partir das oito horas da noite, ele, eu e Aljustrel estávamos de reforço à porta de armas no primeiro de cinco, que tínhamos apanhado por castigo e foi mesmo ali que fizemos as honras ao dito.

Está claro que não comemos sozinhos, alguns camaradas que regressavam do Regala bem com um ou dois furriéis a troco de um rodada de cerveja, também se associaram na terrina. Mais tarde até o Santos que estava preso, ajudou a acabar com ela e de caminho ficou de reforço connosco até de manhã.

O Santos na sua qualidade de preso, todo dia enfiando num pequeno cubículo no abrigo STM, onde mal cabia uma pequena mesa e dois beliches, não lhe custou nada ficar de reforço por nós que bem bebidos não nos aguentávamos com os olhos abertos. Quando começou a raiar o dia chamou-nos e foi-se enfiar na sua cela, onde se preparou para apanhar mais um dia naquilo que poderia chamar-se “frigideira”, tal era o calor dentro daquelas quatro paredes.

O Santos por esperteza era soldado básico. Natural de Grijó, passava o dia às ordens do tenente Raposo, nem arma tinha distribuída. Não me lembro do que ele fez mas sei que levou uma porrada com prisão agravada pelo Comando-Chefe, passando assim duas vezes pelo encarceramento. Está claro que quem estava de serviço à porta de armas à noite lhe abria a porta para ele vir para o fresco, e por vezes, quando era levado à casa de banho passava pela cantina para beber uma bem fresca. Tudo isto nas barbas do nosso comandante e mais oficiais do quadro, de onde podia haver problemas. Dos milicianos nós não tínhamos medo neste caso.

Fica aqui mais um apontamento onde as figuras centrais foram o nosso camarada João Caramba e o Santos dois amigos que já nos deixaram.

Voltando à figura do Caramba, uma das minhas passagens por sua casa, estava ele de convalescença de uma intervenção cirúrgica e por isso já com muitos dos problemas que a partir de certa altura o foram afligindo. Brincamos com a velhice que se ia apoderando de nós e à minha pergunta de como estava, respondeu-me, com um ar maroto, apontando para a televisão onde se passava uma cena de amor entre uma bonita mulher e um homem, assim com alguma filosofia e fino humor:
- Ora vamos indo não fazendo nada e para aqui estamos vendo o que outros estão fazendo

Dito isto, fez com a boca um trajeto trocista para que não houvesse duvidas, ao que se estava a referir.

Um abraço
Juvenal Amado

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 10 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11227: In Memoriam (144): João António Branquinho Caramba, ex-1.º Cabo TRMS da CCS/BCAÇ 3872 (Galomaro, 1971/74)

Vd. último poste da série de 5 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11196: Estórias do Juvenal Amado (46): Este gajo não tem uma cunha, tem um barrote

Guiné 63/74 - P11278: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (24): O Sampaio armadilhou os seus tomates e deu mesmo estouro

1. Mensagem do nosso camarada Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, BissorãOlossatoMansoa, 1965/67), com data de 13 de Março de 2013:

Caríssimos Luís, Vinhal e M. Ribeiro.
Votos de muita saúde e bem-estar, sempre, só que desta vez desta vez acompanhados de mais um Salpico que foi buscar às minhas memórias.
Passem bem, muito bem mesmo.
Rui Silva


Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra. 

Do meu livro de memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa” 

24 - O Sampaio bem soube armadilhar os seus tomates,… e não é que deu mesmo estouro!

O amigo do Sampaio, o cabo fiel da arrecadação, e a quem bem podíamos de alcunhar de “mão para toda a obra”, pois passava a vida a engendrar isto e aquilo, e diga-se de passagem, que as suas obras saíam sempre perfeitas e sobretudo de boa utilidade.
Era realmente possuidor de muita habilidade e sobretudo de grande poder de imaginação. Uma espécie de self made man. Na arrecadação nada falhava.
Muita habilidade para tudo, só que a sorte nem sempre o acompanhou, como veremos adiante.

Entre as diversas engenharias dele, sobressaiu a armadilha nas suas plantações de tomates, plantações estas que ele tinha ali mesmo ao lado da arrecadação. Soube ele bem aproveitar aquela meia dúzia de metros quadrados, com muito esmero e dedicação, e então aquela terra era tão fértil!… Quantas vezes por ano pensava o Sampaio fazer a safra!

Mas, assim que os tomates começaram a aparecer maduros (e até mesmo ainda longe disso), começaram também a aparecer os seus apreciadores, oportunistas e amigos do alheio, e que, a coberto da noite, vinham lá de visita e… principalmente de colheita.

Então o amigo Sampaio vê a improficuidade do seu trabalho e arranja lá maneira de pregar um grande susto a tal clientela e, vai daí armadilha a plantação com detonadores, a começar pela pequena cancela de madeira que era a porta (?) da horta, já que em toda a volta havia uma sebe que tornava mais difícil o acesso à pequena mas cuidada plantação. Os detonadores não demoraram a estoirar apanhando os mais incautos e os tomates foram assim preservados; os que ficaram, naturalmente.
Quase se pode dizer que o Sampaio mal virou as costas após montar os detonadores, eles estouraram…

Meter-se com o bom do Sampaio não era assim tão fácil sair a ganhar.

Recordo-me de uma pequena mesa em madeira que ele fez para o meu quarto, e do Luís José, ainda em Bissorã, ainda nós com muito pouco tempo de Guiné, mesa essa toda feita à mão com ajuda de rudimentar ferramenta, o que logo ali mostrou toda a sua habilidade.

Então o Sampaio, numa das suas engenhocas, havia de pagar um alto tributo, pois aconteceu o que ele menos esperava, e que também passo a contar:

O Sampaio, na qualidade de responsável pela arrecadação do diverso material, incluindo munições, era amiudadas vezes incomodado de noite, quando já se deleitava com um sono retemperador. Isto já no Olossato (tínhamos estado um tempo em Bissorã). Assim, de vez em quando, lá aparecia um “fora d’horas” a importuná-lo, ou a pedir óleo para limpar a arma, ou a pedir munições para a operação no mato que se ia fazer, ou isto ou aquilo. Às vezes parecia que o objetivo era alvoraçar o bom do Sampaio

O Sampaio, às vezes, primeiro que se visse despachado era um dia de juízo. Acordar em sobressalto e por coisa que não se justificava, a maior parte das vezes, não, não podia continuar. Até parecia que faziam de propósito, até parecia…

Então o Sampaio há que pôr a imaginação a trabalhar e tratou de arranjar o antídoto para aquele estado de coisas e pôs mãos à obra. Coloca um latão, daqueles de 25 litros, cheio de água em cima da porta da arrecadação e ata-lhe um fio que se estendia até à sua cama, o que ainda distava uns bons metros.

Assim, ele, sem se levantar, e até sem ter que se movimentar muito, comandava por meio do dito fio, o movimento do latão. Assim que alguém o viesse chatear a horas impróprias e desadequadas, ele, da sua cama, sem se levantar, puxava primeiro o fio que abria a porta (este sempre existiu) e depois já com o ilustre e inoportuno visitante do lado de dentro, puxava um outro fio que fazia virar o latão e despejar toda a água pela cabeça abaixo do insolente cliente. Bom, até aqui tudo muito certo, até porque o Sampaio tinha direito ao seu descanso como qualquer comum dos mortais, e alguém teria de levar uma ensinadela, agora o que nunca passou pela cabeça do Sampaio era que o primeiro cliente a levar com a água pela cabeça abaixo seria, nem mais nem menos e, vejam lá (!)… o Capitão!!
Isso mesmo: O Comandante da Companhia.
De perto de 200 homens havia de aparecer o que ele menos contava.

O Sampaio naquela noite de estreia, com tudo preparadinho e afinadinho ao pormenor, como só ele o sabia fazer, deitou-se concerteza com um sorriso a aflorar-lhe os lábios, imaginando o que queria gozo, todo encharcado.

Aconteceu porém, que naquela noite, que já tinha principiado há muito, o Capitão, em pijama tropical, resolve ir à arrecadação para dar um recado ao Sampaio, o que nunca aconteceu ou muito raramente acontecia. Bateu à porta, uma, duas vezes, esta abre-se e de seguida catrapus, temos o Capitão molhado dos pés à cabeça. E ele que ia só com um fino pijama sobre a pele.
Foi mesmo em cheio ou aquilo não fosse projeto do Sampaio. Eu, claro, não vi, mas faço uma pequena ideia da cara do Sampaio ao constatar quem foi o primeiro a morder o isco.
O Capitão, é que não gostou da brincadeira, e trata logo de saber quem fez aquilo e no final das contas também constatou que havia cúmplices. O castigo foi fazer alinhar o Sampaio e os seus acólitos em duas operações ao mato, entre eles o bom do Zé corneteiro

O Cabo Zé corneteiro, (falecido cá já há alguns anos - paz à sua alma-), que também tomava conta da nossa messe, e que tinha sido um dos colaboradores do Sampaio, nunca mais deixou de tremer, ao saber da sua sorte.
O quê?, ir para uma operação no mato, coisa que tal nunca tinha acontecido, nem estava previsto acontecer? Afinal ele era só corneteiro: "Oh meu Furriel, como é que eu faço?” - pergunta o sobressaltado do Zé.

Apanhou por tabela o engenho mal sucedido, embora moralmente bem intencionado, do “engenheiro” e seu colega de apartamento, o Sampaio
O Zé até fez sandes de ovos estrelados para levar para o mato com o “medo de poder enfraquecer!…” (palavras dele)
Pois é verdade, o Capitão não condescendeu e eles cumpriram mesmo o castigo.

Aquela engenhoca desta vez tinha ficado cara ao habilidoso do Sampaio. O Sampaio, esse, de sorriso simples e constante, esqueceu-se deste por uns dias. Mas só por aqueles que andou por o mato.

O sorriso que o Sampaio ainda hoje o tem (semelhante ao da Gioconda) e que logo se amplia quando eu lhe lembro o episódio dos tomates, nos Convívios que ainda hoje e sempre fazemos.

À hora da partida para o mato, já pela noite dentro, era vê-los aos dois ali alinhadinhos junto ao “cavalo-de-frisa” e metidos bem debaixo dos capacetes, como bons operacionais. Muita gente à frente deles na fila indiana. Pelo menos puderam escolher a posição. Impressionou-me eles a tremerem quando frio era coisa que não existia naquelas paragens, e a cor deles também não era das melhores para além, claro, da inusitada tremedeira.

Mas voltaram sãos e salvos às lides do Aquartelamento: o Zé volta a tocar a gaita com todo o vigor ao alvorecer e com rara mestria, e o Sampaio voltou a sorrir e a atender o pessoal na Arrecadação mas aqui já com cuidados recíprocos.

Quanto à plantação dos tomates não mais valeu a pena. Agora só dava para coçar… a história.

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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 25 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 – P11004: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (23): As emboscadas

Guiné 63/74 - P11277: Do Ninho D'Águia até África (59): A saída de Mansoa com destino ao cais de embarque (Tony Borié)

1. Quinquagésimo nono episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177:


DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA - 59



O Cifra tinha feito pelo menos quatro vezes a mala de papelão e fibra nos cantos, amarrada com uma corda, pois as dobradiças e fechadura, há muito que se tinham partido e desfeito com a ferrugem, pois naquela altura sempre havia falsas notícias de regresso, mas um dia, o comandante reúne todo o comando, que está na foto em baixo com o Cifra a dizer se será desta que regressa, que foi tirada pouco antes de deixarem o aquartelamento de Mansoa, como podem ver era um comando sem armas, mas que infelizmente directa ou indirectamente dava ordens para matar, junto do carro da psico-social, e emocionado, diz entre outras coisas:
- Obrigado a todos, e vamos regressar na próxima semana. O comando que nos vai substituir, já saiu de Portugal e regressaremos no mesmo barco.

Dois dias depois volta a reunir o comando e diz, ainda mais emocionado:
- Já não iremos para a semana que vem, pois o comando que vem a caminho foi destacado para outra zona, onde a guerra se está a desenvolver cada vez com mais intensidade, mas prometo-vos que iremos na próxima viagem que o navio “Uige” fizer, têm a minha palavra.


Todos ficaram desolados, menos o Curvas, alto e refilão, quando o Cifra lhe contou, que murmurou:
- Aqui, estou na guerra, mas tenho a vossa companhia, são a família que nunca tive, mas agora que nos vamos separar, é que dou o valor ao que é uma família. Lá, sem vocês, vou ser um desgraçado, sem amigos nem ninguém.

Mas continuando, agora essa mala estava feita, feita de vez.
Estava ao lado da cama e só usava o saco de lona do exército. Ai colocava o resto dos trapos, que era a sua farda do dia-a-dia, tinha uns calções com algumas nódoas, que não eram visíveis a olho nu, pois eram nódoas do medo que o Cifra sentiu algumas vezes, quando eram atacados durante a noite por granadas de morteiro e rajadas de metralhadora, uma camisa e um par de meias rotas na frente, assim como as botas melhores, no fundo do saco, tudo para o tão desejado dia. O resto por cima, era só trapos, e alguns sujos.

Neste momento, tal como os seus companheiros, só pensava em Portugal, na sua aldeia, no seu lugar, era melhor que não se metesse com ele, ou o provocasse, era melhor assim, pois de contrário, iria haver um desastre, pois a sua mente já estava cansada do aquartelamento, do arroz com peixe da bolanha, dos tiros, dos rebentamentos, dos estilhaços, dos abrigos cheios de lama e água suja, da farda camuflada e rota, das ordens, da obediência, onde não podia haver um simples não, em caso de uma provocação, não sabiam como ia responder, pois ainda vivia num cenário onde havia armas e granadas por tudo o que era lugar, que usadas, podiam matar pessoas, e o Cifra, às vezes pensava só para si: Estou com um fraco carácter, estou muito pior que o Curvas, alto e refilão.

No meio de todo este desespero, o tão esperado e desejado dia chegou finalmente e foi ele próprio quem decifrou a mensagem. Não ficou contente nem triste, uma onda de nostalgia percorreu-lhe todo o corpo, fechou os olhos, ergueu as mãos para cima e exclamou emocionado: OBRIGADO!


No dia seguinte, por volta das dez horas da manhã, a coluna militar estava pronta a seguir para a capital, houve alguns abraços de despedida, deu algumas moedas a alguns africanos, que foram seus companheiros, e um último olhar pelo que ajudou a construir, e que nunca lhe pareceu tão selvagem, tal qual um campo de concentração, como na hora da despedida. Os nossos companheiros combatentes têm mostrado fotografias do aquartelamento, mas na altura em que o Cifra o deixou, tinha só cinco pavilhões, ou seja três e mais dois, todos na direcção de Este/Oeste, todo cercado de arame farpado, só com uma porta pequena onde circulavam militares a pé, e uma abertura maior, sem qualquer protecção, virada para a vila, onde entravam ou saíam viaturas militares.

A coluna militar, foto em baixo, antes da ponte de Mansoa, percorreu os setenta quilómetros até à capital, largando o grupo do Cifra no cais. Aí permaneceu dois dias, tempo que durou o desembarque das tropas novas e o embarque das velhas, que era feito em lanchas pequenas do cais para o barco.


O comando a que o Cifra pertencia não chegava a trinta militares, sendo mais de dois terços os militares graduados. Enquanto esperavam pelo embarque, alguns dormiram na fortaleza de S. José da Amura, onde estava a polícia militar estacionada e onde o Governador da província se deslocou, com todo o seu aparato militar, para dar a todos umas insígnias com as cores da bandeira portuguesa, dizendo que representavam a medalha da campanha militar da Guiné, pois não havia medalhas para todos, o Cifra ainda hoje guarda essas insígnias como um “amuleto de boa sorte”.

Todos os haveres dos militares do seu comando estavam num grande monte, quase à entrada do cais de embarque e eram guardados por militares que faziam a sua guarda por turnos, pois iam regressando do interior outras unidades para embarcar, que faziam o mesmo, e deste modo, antes do embarque, quase todo o cais estava ocupado por diversos montes de malas e sacos, era um pandemónio, mas era um pandemónio feliz, pois avistava-se o barco ao longe, que os havia de levar de regresso a Portugal.

Chegou o grupo do Furriel Miliciano, a fumar um cigarro feito à mão, onde vinha o Setúbal, o Curvas, alto e refilão, o Trinta e Seis, o Marafado, o Mister Hóstia e outros, e a partir daí, o pandemónio, passou a ser maior, estavam vestidos e rodeados de equipamento militar, mas já se sentiam pessoas civis, e andavam pela cidade, bebendo, passeando, e fazendo algumas compras, onde o Cifra comprou uma boina nova, e uns sapatos à sua medida, o Curvas, alto e refilão, caminhando sempre na frente, procurando ser o chefe, dizia:
- É tudo muito lindo, para vocês, mas eu vou perder a minha família, que são todos vocês!.

E num momento em que devia de haver alguma alegria, chorava, e fazia chorar o Cifra e os seus companheiros.

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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 16 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11261: Do Ninho D'Águia até África (58): A tripeça (Tony Borié)

Guiné 63/74 - P11276: Convívios (501) 14º almoço/convívio da CCS do BCAÇ 1861 (Buba, 1965/67): Sertã, 27 de abril de 2013 (Boaventura Videira)


1. Mensagem de Boaventura Alves Videira, que foi enfermeiro no BCAÇ 1861, Buba, 1965/67 [, foto à esquerda],   enviada através do endereço do nosso camarada Júlio César [membro da nossa Tabanca Grande desde Julho de 2007, ex-1º Cabo, CCAÇ 2659 / BCAÇ 2905, Cacheu, 1970/71]:


Agradeço publicação no nosso blogue

Um abraço

Boaventura Videira


“Realiza-se no próximo dia 27 de Abril, o 14º almoço/convívio da CCS do Batalhão de Caçadores 1861.
O almoço/convívio será no Ponte Velha Restaurante, na Sertã.
Os interessados em participar devem contactar Boaventura Videira, pelo telefone 964534332
Participa”


Contactos:

Boaventura Alves Videira
Praça da República, 26
4815-475 Vizela
Telemóvel 964 534 332



2. Comentário do editor

Camarada Videira: Espero que o vosso encontro seja mais uma grande oportunidade de reforçar os laços de amizade e camaradagem do pessoal da tua CCS/BCAÇ 1861, que passou por Buba, entre 1965/67. Vejo, com pena, que não há nenhum representante do teu batalhão - salvo erro - na nossa Tabanca Grande. Vou pedir ao Júlio César que formalize o teu pedido de ingresso nesta grande família dos amigos e camaradas da Guiné. Tu mereces, de resto. Tens sido o organizador dos convívios dos últimos dos teus camaradas da CCS. Fico à tua espera. Manda as duas fotos da praxe mais um história do teu tempo de Buba. Um Alfa Bravo. LG 
.
PS - Já agora diz-nos onde e quando tiraste a foto que reproduzimos acima (e é a única que temos de ti).  Terá sido em 1965, em Cufar ?  A "bicha" que tu trazes pendurada ao pescoço parece tratar-se de uma pitão africana, uma "Pyton sebae", popularmemte conhecida como "irã cego". na Guiné-Bissau... Pode atingir os 6 metros de comprimentos, não é venenosa e não constitui um perigo real para os seres humanos... A nossa malta na Guiné chamava-lhe erradamente jibóia... As  jiboias só existem no Novo Mundo (América Central e do Sul).

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Nota do editor:

Último poset da série > 12 de março de 2013 > Guiné 63/74 - P11245: Convívios (500): Reportagem da reunião da magnífica Tabanca da Linha levado a efeito no passado dia 7 de Março (José Manuel M. Dinis)

Guiné 63/74 - P11275: Meu pai, meu velho, meu camarada (37): Memórias do Mindelo, São Vicente, Cabo Verde, no dia do pai...



Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo >  1942 > "Depois da pareada, o desfile das viaturas. No dia 14 de agosto de 1942. Algumas das tantas autoambulâncias e outras viaturas. Mindelo. São Vicente". [Marca, modelo e ano... Alguém sabe ?]


Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo >  1942 > Igreja de S. Vicente [, julgo chamar-se N. Sra. da Luz]. À esquerda, a Casa do Leão, na época uma importante casa comercial. Edifício hoje classificado e recuperado [LG].





Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Lazareto > 1942 > "A antiga cãmara [municipal] de Mindelo que hoje é hospital de soldados. Julho de 1942. Luís Henriques". [É hoje de novo, o edifício da Câmara Municipal do Mindelo, LG]


Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > 1942 > "Homenagem do Mindelo a Sacadura Cabral e Gago Coutinho. Cabos da 3ª Companhia do 1º Batalhão Expedicionário do R.I. 5. Luís Henriques" [`, último do direita, na primeira fila]. [Há quem confunda este monumento com a Àguia do Benfica...].


Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Lazareto > 1941 >"Lazareto em festa. 1/12/1941. Canto coral no dia da Restauração de Portugal. Lazareto. São Vicente. Luís Henriques".


Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Lazareto > 1941 > "Uma das partes mais brilhantes do programa da festa da restauração: a ginástica. No dia 1 de dezembro de 1941. Lazareto, São Vicente, Cabo Verde. Luis Henriques".


Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Lazareto > 1942 > "Um aspeto da missa campal no dia da nossa festa no Lazareto, 23 de julho de 1942. Luís Henriques"


Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Lazareto > 1941 > "Apresentando armas à Bandeira Nacional no dia da Restauração. 1/12/1941. Lazareto. Ao fundo, o Monte Cara. São Vicente. Cabo Verde. Luís Henriques"


Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Lazareto > 1942 > "Um número de ginástica, feito pela 2ª Companhia, que deixou boa impressão à assistência. Lazareto en festa, aos 23 de julho de 1942. Luis Henriques".



Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Lazareto > 1942 > "Um dos números representados pela minha companhia no dia da festa do aniversário da nossa chegada a São Vicente. 23/7/1942. Luís Henriques".


Lourinhã, estrada Lourinhã-Peniche, 7/9/1942... Uma fotografia com amigos, contemporâneos do m,eu pai... Nenhum deles está hoje vivo, se bem os reconheço. O segundo do lado esquerdo, é o tio, irmão do meu pai (dois anos mais novo) e meu saudoso padrinho, Domingos Henriques Severino. O quarto é o Carlos Fidalgo e o quinto o José Frade. A foto, enviada para Cabo Verde, está assinada pelo Domingos Severino.


1. Lembrando o meu saudoso pai, meu velho e meu camarada, Luís Henriques (1920-2012), e em homenagem a todos os nossos pais, no dia do pai, 19/3/2013.

[Foto à esquerda: Luís Henriques, em Candoz, c. 1988/89,  com o seu neto, João Graça. Foto de L.G.].

Luís Henriques (1920-2012) foi  1º cabo inf,   nº 188/41, 1º Pelotão, 3ª Companhia, 1º Batalhão, Regimento de Infantaria nº 5 (Caldas da Rainha), mais tarde integrado no RI 23. Esteve no Mindelo, Ilha de S. Vicente, Cabo Verde, entre Julho de 1941 e Setembro de 1943. Alguns dos sítios da ilha de que ele se recordava bem, até ao fim da sua vida:  Mindelo, Lazareto, Matiota, São Pedro, Calhau, Monte Verde, Monte Cara, Ribeira São João...  Falava sempre com muita ternura e saudade deste seu tempo de vida, apesar das duras condições em que viveu na ilha (26 meses, 4 dos quais hospitalizado). As fotos (e as legendas) que reproduzimos acima, são do seu álbum.

Fotos: © Luís Graça (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados

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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P11274: Prosas & versos de Ricardo Almeida, ex-1º cabo da CCAÇ 2548, Farim, Saliquinhedim, Cuntima e Jumbembem, 1969/71) (5): Farim (Poema de saudade e nostalgia), K3 (Homenagem às mulheres que tratam da seara da mancarra), Bissau (À janela do HM 241)



Bajuda no Cais de Bambadinca. Quadro a óleo pintado, em 2007, por Jaime Machado, ex-Alf Mil Cav do Pel Rec Daimler 2046, Bambadinca, 1968/70, e membro da nossa Tabanca Grande. Edição e reprodução, com a devida vénia.


Foto: © Jaime Machado (2008). Todos os direitos reservados.


1. Três poemas  Ricardo Almeida (ex-1.º Cabo da CCAÇ 2548/BCAÇ 2879, Farim, Saliquinhedim, Cuntima e Jumbembem, 1969/71)... Três poemas de amor e guerra... Para celebrar a primavera que chega e o Dia Mundial da Poesia (21 de março de 2013).


Poema de saudade e nostalgia,
escrito em Farim,

no regresso duma operação arriscada


Como barco naufragado,
Encalhado,
Rolando ao sabor das ondas,
Vou procurar-te ao passado,
Fracassado,
Onde quer que tu te escondas.

Voo  nas asas do vento
Porque o amor neste momento
Clama por ti.
Quero-te:
Quero beijar tua boca
E, por saber-te aqui,
Quero beijar teu corpo,
Teus cabelos e teu rosto;
E deixando-te louca,
Inundando-te de amor.
Quero beijar teus seios.
O teu ventre,
E sentir no ar o teu odor a canela!

Quero beijar o teu ninho de langor
E, sem pudor
Provar-te inteira.


Homenagem às mulheres que tratam da seara da mancarra,
no K3


Uma rosa vem beijar-me
Ao peitoril da janela,
E diz que vem beijar-me
Porque eu não vou com ela.

Neste queixume sentido,
E seu perfume diluído
Em nuvens de solidão,
Vai entrando devagarinho,
Até com certo jeitinho,
P'ra não acordar meu coração.

Diz que ele pode ser de outra
Mas que isso não importa,
Que foi quem me viu primeiro,
E estar em lugar cimeiro
Na ordem da sedução;
E, até se eu quiser,
Para mais vezes me ver
Muda-se para outro canteiro...

À janela do Hospital Militar 241,
Bissau

Vi-te passar apressada,
Nem chegámos a falar
Mas ias muito calada,
P'ra quem gosta de cantar!

E teu coração abrasado
De tanto amor desperdiçado,
Sendo por mim tão amado,
Que ás vezes chego a pensar
Ser castigo lá do alto!
Por de ti tanto gostar,
E viver em sobressalto
Porque não sei se é reciproco...
Este amor tão verdadeiro,
Deste ser tão altaneiro,
Que não gosta de te ver
tão apressada passares
E, por um momento olhares,
Mesmo sem gostares,
Não passes tão apressada!!!
___________


Nota do editor:


Último poste da série > 17 de março de 2013 > Guiné 63/74 - P11265: Prosas & versos de Ricardo Almeida, ex-1º cabo da CCAÇ 2548, Farim, Saliquinhedim, Cuntima e Jumbembem, 1969/71) (4): Já não sei quem sou

segunda-feira, 18 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11273: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (16): É guerra é guerra... (será?)


Gondomar > Fânferes > Tabanca dos Melros > À esquerda o nosso tertuliano Silva da CART 1689 com o protagonista desta história, o camarada Dionísio 


Gondomar > Fânferes > Tabanca dos Melros > Nesta  foto, parece que o Dionísio conta a sua aventura ao Silva, enquanto que de pé, seguem atentamente a narrativa, os camaradas Antero, à esquerda, e o (outro) Silva, à direita.


Fotos (e legendas): Jorge Teixeira (Portojo) /José Ferreira da Silva (2013)


1. Em mensagem do dia 12 de Março de 2013 o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta história verídica para as Ouras memórias da sua guerra:


Outras memórias da minha guerra

16 - É guerra é guerra… (será?)

Eu estava sentado à mesa, já na ponta final do abundante almoço/convívio na Quinta dos Melros, em Fânzeres, Gondomar. Tinha à minha direita o José Carvalho, herói de Gadamael, na guerra da Guiné, e à minha esquerda o meu amigo Jorge Teixeira, que foi da CCS do nosso BART 1913, sediado em Catió (que, agora, é muito conhecido por “Portojo”, na sua actividade de fotógrafo de arte). Este já havia aberto uma garrafa de conhaque “caseiro” especial oferecida pelo Bateira de Cinfães que, pelos vistos, destinava à próxima quadra natalícia. 

Na nossa frente estava uma garrafa de água (a única em toda a mesa), ainda por abrir. Uma mão, vinda de trás de mim, estendeu-se pela nossa frente, procurando alcançar a dita garrafa. Surpreendido, perguntei:
 – Quem  está doente?

Logo a resposta veio célere:
  – É para lavar o copo. Vou tomar um remédio especial.

E como eu não tinha ainda travado conhecimento com este ex-combatente, perguntei-lhe:
 – Onde  andaste?
 – Estive na Guiné, na 3ª Companhia de Comandos, a do Álvaro Cardoso, marido da artista Paula Ribas.
 – Éh, pá, estive selecionado em Vendas Novas para integrar essa Companhia – disse-lhe, enquanto ele se afastava para junto do topo sul da mesa.

O Portojo aproveitou logo para falar do Dionísio, portador de uma história curiosa e que ele já andara tentado em conseguir.

Não levou muito tempo para que o Dionísio aparecesse, junto de nós e já bem “medicado”, com a firme disposição de contar a sua história. Logo se fez uma rodinha de curiosos, bem atentos, saboreando todas as palavras.

E foi assim:

É o quarto dos seis irmãos nascidos e criados pelo casal José e Rosalina, de Valbom. Na escola, o Dionísio entrou directamente para a 2ª Classe, uma vez que já sabia ler.

Com oito anos já trabalhava de manhã num ourives, onde ganhava 5$00 por semana. À tarde frequentava a escola.

Aos 12 anos entrou para a Fundição Herculano, no sector dos componentes eléctricos.

Aos 18 anos apaixonou-se pela Ângela, com quem namorava às escondidas, em virtude de ela só ter 15 anos. Um ano depois, já farto de andar a esconder o condicionado namoro, resolveu ir falar com o futuro sogro, um homem analfabeto mas de palavras muito sábias. Aproveitando um bom momento das suas relações, atirou:
  – Senhor Zé,  tenho uma coisa para lhe dizer, mas até me custa falar.
  – Desembucha,  rapaz. Sabes que até gosto de te ouvir – respondeu.
  –  Ando a namorar com a sua filha há um ano, sei que ela é muito nova, mas queria que me autorizasse a namorá-la à frente de toda a gente. – disse o Dionísio.
 –Olha, rapaz: cada um que trate de si, porque eu já estou servido há muito tempo.

E foi assim que namorou 8 anos com a mulher que escolheu e que, ainda hoje, ama e admira.

Em Julho de 1964 foi à Inspecção. Recorda ter sentido alguma revolta quando verificou que o colega da escola primária, Júlio Sousa, o “Matulão”, filho do patrão Albino das Indústrias de marcenaria, um destacado dirigente da União Nacional, ficou “LIVRE”, ao contrário dele, um “caga-tacos” à sua beira, que ficou “APURADO PARA TODO O SERVIÇO MILITAR!” Ele, futuro engenheiro, abastado e disponível, ao contrário do Dionísio, que era pobre e amparo da mãe e de dois irmãos menores.

Foi para Espinho (GACA 3) em 25 de Outubro de 1965. Confessou que teve um Aspirante que o tratava muito bem e que odiava um tal Ten Grilo, que o castigara injustamente. Fez ali a escola de cabos e seguiu para os Comandos de Amadora. Aqui também mereceu alguns castigos, que o forçavam a apoiar o Refeitório. Porém, o Cabo do Rancho acabou por o rejeitar devido ao prejuízo que dava. Dali seguiu para Lamego, onde formaram a 3ª Companhia de Comandos.

Seguiram de barco para a Guiné no dia de S. João de 1966, depois de uma noite mal dormida no Ralis de Lisboa.  Foram directamente para o Quartel de Brá, em Bissau.

 –  Então como foi isso lá na Guiné? – perguntei. 

E ele iniciou:
 – Tive muitas operações, muitos combates e algumas aventuras. Mas há uma que me marcou imenso e foi considerada uma loucura. Aconteceu nos primeiros dias de Maio de 1967.

Fomos de lancha para participarmos numa operação no Olossato (“OP Azimute”), na zona do Oio. Levávamos um guia, que se perdeu, o que nos obrigou a retirar. Viemos por outro lado e ouvimos barulho de pessoas. Aproximamo-nos em progressão lenta, fizemos o assalto, tal e qual como era costume.

Avançavam as equipas de 2 de cada vez para cada lado, enquanto os outros faziam o fogo. De seguida, avançavam estes, enquanto os outros disparavam. Envolvemos o objectivo e após despejarmos bastantes munições, entrámos no pequeno acampamento. Encontrámos alguns corpos baleados, caídos e, entre eles, estavam três mulheres mortas, com os respectivos filhos ainda amarrados nas costas. Vivos.

Eu agarrei numa garotinha, linda, que, sem chorar, se abraçou a mim, enquanto dois dos meus companheiros, pegaram as outras duas crianças. Que fazer com as crianças, foi o problema. Abandoná-las, à mercê dos animais? Deixá-las a fazer barulho? Trazê-las? E para onde?

Disse que queria ficar com a minha (a que tinha ao meu colo) mas o Sub-Cmdt Rodrigues disse que isso não era possível e insistiu que teriam que ser caladas. E acrescentou:
 – Cada  um cala a sua e rapidamente, porque estamos já a correr muitos riscos.

O Dionísio, já com a voz embargada, parou e aproveitou para limpar os olhos. E continuou:
 –Após  algumas hesitações, os meus companheiros resolveram o problema, e eu também ia fazer o mesmo. Pousei a criança no chão e, quando ia a puxar o gatilho, ela estendeu a mãozita na direcção da ponta da arma. Senti-me quase sem acção, indeciso e sem forças. Reagi, apontei a arma de novo e disparei na direcção do chão, evitando atingir a criança. Os outros não se aperceberam e corri rapidamente para junto do grupo, que já se afastava.

Entrámos para a lancha e dei comigo a matutar naquela situação e noutras a que a guerra me havia obrigado. As imagens não me saíam da cabeça.

Estávamos aquartelados em Brá – Bissau e era para lá que sempre regressávamos. Quando chego ao Cais da Amura verifico, mais uma vez que ali, ao largo, se encontrava o Navio Uíge, que havia trazido mais militares (Bat.1913) e que regressaria a Portugal com outros, já com a sua missão cumprida.

Já andava a sofrer há muito com as saudades da minha Ângela, da minha família, dos meus amigos de Gondomar e estava cheio da guerra e, agora, com as imagens dessa última operação, comecei a pensar na hipótese de fugir.

As saudades eram cada vez maiores. A cabeça já não pensava noutra coisa. E já tudo me parecia possível. Meti algumas coisas nos bolsos e fui para o cais na expectativa de me meter no barco. E não foi nada difícil.

Quando dei por mim, já lá andava dentro à vontade, sem que ninguém me exigisse qualquer formalidade. Andei de um lado para o outro e cheguei a integrar um grupo de amigos na maior das confianças. Talvez pensassem que eu fora em rendição individual. Entre os vários passatempos, a maior parte do tempo era passado a jogar as cartas.

Quando cheguei a Lisboa fui aos CTT mandar um telegrama para casa, para não chegar lá sem ser esperado.  Meti-me no comboio e à noite já estava junto da minha namorada. No dia seguinte, por coincidência, quando ia para a matinée com ela, o Carteiro perguntou-nos por um endereço (que era o de minha casa) para entregar o tal telegrama.

Dois dias depois já estava a trabalhar normalmente, na Fundição Herculano Azevedo, nos componentes para energia eléctrica.

Os meus colegas de trabalho perguntavam-me coisas sobre a guerra mas eu desviava o assunto. Sabia que era perigoso falar disso porque a PIDE andava atenta e ainda mais por constar que eu era comunista.
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Entretanto, em Brá, o Capitão Álvaro Cardoso não queria acreditar no desaparecimento do Dionísio e dizia: 
 – O Dionísio era valente e patriota, portanto não ia fugir para os turras.

Alguns dos amigos mais chegados, conhecendo o seu aparente descontentamento recente, ainda esperaram ouvi-lo através da Rádio Argel, no Portugal Livre, programa do conhecido Manuel Alegre.
Depois, a hipótese mais provável era a de que ele fora sozinho ao bairro negro Pilão, porque era um gajo sem medo e fora apanhado e morto.

Desaparecido ou morto eram as palavras constantes na participação efectuada pelo Capitão Álvaro.

Num domingo, ao fim da tarde, 42 dias depois da fuga, estava o Dionísio a namorar quando a sua mãe o foi avisar:
 –Olha, disseram-me que anunciaram na RTP que te andam a procurar e que te deves apresentar do Quartel-General do Porto.
 – Ó, mãe, não se aflija, vai ver que não é nada de especial. Amanhã ou depois, vou lá ver o que querem.

No dia seguinte, eram umas 10h30 quando o altifalante da empresa chamou:
 – Atenção Dionísio Cunha, por favor venha ao escritório!... Atenção Dionísio Cunha, por favor venha ao escritório! 

Duas praças da Policia Militar, esperavam-no.  Estava entregue, 24 horas depois, à sua companhia de Comandos, em Brá. 

Quando chegou ao Aeroporto de Bissalanca encontrou o condutor Formiga, que costumava ir buscar o Correio e lhe deu boleia. Surpreendido com o Dionísio, alarmou-o:
 – Estás fodido, pá. Como desertor, vais direitinho para a cadeia.

Uns minutos depois já estava a ouvir do Capitão:
 – Já vieste? Fazes alguma ideia daquilo em que te meteste? Sabes o que se faz aos desertores? Sabes, ou não?
 – Ó meu Capitão, eu andava muito abatido, cheio de saudades e, ao ver o Uíge, ali a receber malta para regressar, não resisti à tentação.
  – Pois, e agora vais ver a malta a ir embora e tu ficas aqui a fazer outra Comissão de Serviço. Eu não te quero fazer mal algum, mas tens um processo a correr, devido à tua fuga. Vai-te apresentar ao teu Alferes Sampaio Faria.

 –Participei em muitas Operações. Nem sei bem por onde andei. A nossa Companhia ganhou 2 vezes a Flâmula de Honra em ouro. No aspecto disciplinar, lembro-me de uma aposta que fiz com o Condutor/Comando Garcia que correu mal. Ele gabava-se que mais ninguém era capaz de pôr o Unimog a trabalhar. Apostámos e eu, em pouco tempo, pus-me a dar voltas com o Unimog na parada. Por azar, a cena foi vista pelo Sargento Mariano Agapito que logo foi fazer queixa ao Capitão. Como eu não tinha carta de condução, a coisa agravou-se para o Garcia, que apanhou 10 dias de prisão. Eu, solidário com ele, fiz-lhe companhia permanente até ele sair. Conversávamos, jogávamos às cartas, às damas e dominó.

Finais de Março de 1968. Está em preparação uma das maiores e mais perigosas operações militares realizadas na Guiné:  “Op. Bola de Fogo”,  para a implantação de um quartel (Gandembel), na zona do “corredor de Guileje”, no coração do Cantanhez, zona controlada pelo PAIGC. Foram mobilizadas forças extraordinárias quer em qualidade, quer em quantidade. 

Na 3ª. Companhia de Comandos, também convocada para esta Op., o ambiente não era favorável para a sua participação voluntária. Como faltava pouco tempo para regressarem à Metrópole, o Capitão teve dificuldades em fazer-se representar com 2 grupos.

O mau ambiente está retratado na história da Companhia, através do ex-Furriel João Borges, já falecido (mulher, filhos e netos continuam a participar no Encontro anual da 3ª Companhia), acusando o “método insólito e discriminatório” usado, uma vez que “o voluntariado nunca foi posto em causa” e que não podiam aceitar a divisão criada entre os camaradas. Chegou-se ao ponto das mesas separadas e dos reforços específicos só para os novos voluntários.

 –  Entretanto, o Sargento Agapito, que parecia nunca ter gostado da minha pessoa, um dia, nesta fase final, teve a amabilidade de, em voz alta e em público, avisar-me: Ouve lá, ó Dionísio, vai arrumar as tuas malinhas para ires para os Adidos, para alinhares noutra Comissão de serviço.

O Dionísio, chateado, ainda perguntou:
– Quem  foi que lhe disse que vou para os Adidos?
 – Foi a informação que chegou do Quartel-General. – Respondeu o Sargento.

O Dionísio, saiu ao encontro do Capitão.
  – Então, meu Capitão, pedi-lhe para ficar integrado na 5ª Companhia e o Sargento diz-me que vou para os Adidos. Não foi isso que lhe pedi.
 – Ouve lá, ó Dionísio, tu não fazes parte do grupo de voluntários para a última operação? – Perguntou o Capitão.
 – O meu Capitão sabe que sou sempre voluntário, desde que cheguei a Lamego, para formarmos a 3ª Companhia.
 – Vamos lá para o Cantanhez e depois vamos ver o que se poderá fazer pela tua situação. – Disse o Capitão. 

Antes da “Op Bola de Fogo”, a 3ª Companhia de Comandos ainda participou em acções de flagelação próximo do local do futuro aquartelamento Gandembel, na “Op Rollis Royce”. Foram 2 grupos a participar nessas operações de apoio.

(A Op Bola de Fogo teve início em 8 de Abril de 1968. A minha CART 1689, já experiente neste tipo de tarefa de apoio à construção de novos aquartelamentos, desempenhou o seu papel na progressão e escolha do local, bem como na sua defesa. Lá permaneceu até15 de Maio, regressando para junto do Batalhão, em Catió, no dia 24, tendo sofrido 53 ataques, durante esta Operação).

Poucos dias antes da 3ª Companhia de Comandos regressar a Lisboa, o capitão chamou o Dionísio, para o informar de que, graças ao seu comportamento em toda a comissão e em particular no exemplo de voluntariado que deu nesta última Operação, havia conseguido anular o seu castigo e que ele iria regressar com os seus camaradas.

O Dionísio afirmou ter sentido uma das maiores alegrias da sua vida.
 – Todos os meus camaradas se sentiram felizes por este desfecho, o que justificou uma grande farra e uma das nossas maiores bebedeiras de sempre.
 
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Notas do autor:

1 - Hoje, o Dionísio, um grande colaborador do Centro Social e Paroquial de Valbom, tornou-se num dos responsáveis promotores de Cursos sobre a Pastoral da Família, Preparação para o Matrimónio, Pais e Padrinhos, Acompanhamento de Casais com Problemas e Celebrações de Casamentos e outras festas religiosas.

2 - Logo que chegou da guerra, o Dionísio tratou do seu casamento e, como tal, teve de se confessar. E como vivia preocupado com o passado recente da guerra, abriu-se com o padre, a quem expôs a sua preocupação:
 – Sr. Padre, tenho uma preocupação que não me sai da cabeça.
– O que é isso, rapaz, que não se possa resolver?
– Olhe, eu tenho a certeza de que matei gente, e agora, como é?
– Deixa lá, Dionísio, matar na guerra não é pecado. Deus perdoa-te, até porque quem não mata, morre.

Foi então que o Dionísio rematou:
 – Pois é, padre. Tudo bem se o Deus for branco, porque se for preto, estou fodido.

Silva da Cart 1689
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 24 DE MARÇO DE 2012 > Guiné 63/74 - P9650: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (15): Promessas