quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12394: Convívios (552): IX Encontro do pessoal da CART 1742 (Os Panteras), levado a efeito no passado dia 26 de Maio de 2013 em Campeã - Vila Real (Abel Santos)

ALMOÇO/CONVÍVIO DO PESSOAL DA CART 1742 (OS PANTERAS) 
BURUNTUMA E NOVA LAMEGO, 1967/69 


Realizou-se no dia 26 de Maio de 2013 na bonita cidade transmontana de Vila Real, com ponto de encontro no Parque da Quintã, integrado na freguesia da Campeã, local onde os convivas apreciaram o coaxar das rãs que habitam no imenso lago ali existente.

De seguida a malta deslocou-se para a Igreja Matriz para acompanharem a Missa de Sufrágio por aqueles que já partiram.

Dali a malta dirigiu-se para o restaurante “ Do Alberto”, local onde fomos presenteados com um lauto manjar.

Depois da barriguinha (e não só) bem aconchegada, procedeu-se à distribuição, aos participantes, do certificado de presença do 9.º Encontro, acompanhado do Diário do anfitrião Mário Alves, que fala dos dias da actividade da CART durante a campanha na Guiné.

O 10.º encontro já está marcado para Leça da Palmeira, cujo anfitrião é o Abel Santos, e será no dia 31 de Maio de 2014, último sábado deste mês.

E assim, esta família passou mais um dia memorável, recordando o passado, mas vivendo o presente.

Um abraço e, já agora, um santo e feliz Natal para todos os combatentes.
Abel Santos.


Abel e Jaime Mendes, o nosso Porta-Guião

O anfitrião Mário Alves e Abel Santos

Foto do conjunto na frente da Igreja Matriz

Bolo comemorativo

Grupo musical que animou o convívio

O nosso anfitrião, Mário Alves, na difícil tarefa de partir o bolo
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Notas do editor:

Abel Santos foi Soldado Atirador da CART 1742 - "Os Panteras" que esteve em Nova Lamego e Buruntuma nos anos de 1967/69

Último poste da série de 29 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12362: Convívios (551): I Encontro dos "Errantes" da 3.ª Companhia do BCAÇ 4615/73 (Bassarel, 1973/74), acontecido no passado dia 8 de Setembro de 2013 em Lamarosa (António Tavares Oliveira)

Guiné 63/74 - P12393: O que é que a malta lia, nas horas vagas (6): Banda desenhada, coboiadas e o meu livro de cabeceira, "Manual de Medicina Doméstica", do dr. Samuel Maia, de mil páginas, que tinha como subtítulo "higiene, dietética, gimnástica, enfermagem, farmácia caseira, definição e tratamento das doenças, socorros de urgência" (Adriano Moreira, ex-fur mil enf, CART 2412, Bigene, Binta, Guidaje, Barro, 1968/70)





Anúncio do livro de Samuel Maia, "Manual de Medicina Doméstica" [1ª edição, Portugal-Brazil, 1910], in Ilustração, nº 242, 16 de janeiro de 1936, nº 242, 11º ano [Revista que custava na época 5$00 escudos, e era Propriedade da Livraria Bertrand.] (Cortesia da Hemeroteca Municipal de Lisboa...)


1. Comentário (*) do nosso camarada Adriano Moreira [, ex-fur mil, enf, CART 2412, 1968/70, foto da época, à esquerda]

É engraçado,  na Guiné em todos os sítios onde estive, acho que nenhum tinha biblioteca ou até qualquer arremedo de biblioteca. Não tenho ideia nenhuma de mesmo em Bigene haver.

Sendo assim só li banda desenhada e cowboyadas [coboiadas].

O único livro sério que levei e li as vezes que precisei,  foi o Manual de Medicina Doméstica,  escrito pelo médico dos Hospitais de Lisboa,  Samuel Maia.

Ajudou-me muitas vezes a tirar dúvidas e a proceder mais correctamente onde os meus apontamentos eram demasiado vagos, ou em capítulos [em que esses apontamentos eram omissos].

Por aquilo que me lembro,  achava também que não tinha o ambiente adequado à leitura de grandes obras.

Um grande abraço para todos.

Adriano Moreira,
Ex-Fur Mil Enf, Cart 2412
Bigene, Binta,  Guidage, Barro.

2. Comentário de L.G.:

É verdade, Adriano, a Guiné (, não digo Bissau ou Bubaque...) não foi propriamente uma colónia de férias para a maior parte de nós... Dizes, e muito bem, que no mato não havia "o ambiente adequado à leitura de grandes obras"... Muitos dos nossos aquartelamentos eram um amontoado de chapas de bidão, troncos de cibe e argamaça, a que chamavamos abrigos...

A segurança era a nossa primeira preocupação. E só muito depois é que vinha a decência, o conforto, o bem-estar (físico)... Alguns de nós levaram livros para a "comissão de serviço" no TO da Guiné,  mas depressa nos apercebemos que não estávamos propriamente em férias, num país tropical...

Por outro lado, poucos dos oficiais, que nos comandavam, se preocupavam com o que fazer nas "horas vagas" (... e muito menos com "os nossos seres, saberes e lazeres")... Alguns incentivaram, e bem,  a criação de postos escolares militares, abertos à população local amis jovem e às praças  sem  a escolaridade obrigatória (na época, equivalente à 4ª classe)...

Tínhamos, à epoca da guerra colonial, um problema sério de analfabetismo na população portuguesa, sem falar do analfatismo funcional (aplicável aos individuos que,  mesmo sabendo "ler, escrever e contar", não tinham desenvolvido a capacidade de interpretar textos e fazer operações matemáticas).  Recorde-se que em 1960, segundo o o censo, a percentagem da população residente com 10 e mais anos que não sabia ler nem escrever era de 26,6% e 39% para os homens e para as mulheres, respetivamente. Baixou, em 1970, para 19,7% e 31%, respetivamente. Infelizmente, não dispomos de dados do analfabetismo por grupos etários... (Fonte: Pordata  > Analfabetismo).

As nossas praças, sem escolaridade obrigatória, iam em geral para os serviços básicos (cozinha, etc.). Eram, depreciativamente, apelidados de "básicos". Na minha CCAÇ 2590 (mais tarde, CCAÇ 12), havia dois soldados básicos  o João Fernando R. Silva e o Salvador J. P. Santos, num total de meia centena de quadros e especialistas de origem metropolitana, E dos soldados dos recrutamento local, em cerca de 100, só 1 (o 1º cabo José Carlos Suleimane Baldé) sabia ler e escrever português...

Mas quantos aquartelamentos dispunham de "bliotecas ou de arremedos de bibliotecas" (leia-se: um armário com livros) ? A tua pergunta é pertinente.  E a tua resposta, espontânea, sincera, nada tem de "provocador":  "É engraçado,  na Guiné em todos os sítios onde estive, acho que nenhum tinha biblioteca ou até qualquer arremedo de biblioteca"

Ou seja, por onde andaste, em 1968/70, na região do Cacheu (Bigene, Binta,  Guidaje, Barro) não te lembras de ver umas simples prateleiras de livros, à disposição de oficiais, sragentos e praças... Restavam-te os livrinhos aos "quadradinhos", as coboiadas... e o teu livro de cabeceira, que para um furriel enfermeiro era uma "ferramenta de trabalho", o célebre "manual" do dr. Samuel Maia, de cerca de mil página, que tinha um título do tamanho de um comboio: Manual de medicina doméstica : higiene, dietética, gimnástica, enfermagem, farmácia caseira, definição e tratamento das doenças, socorros de urgência... Segundo as minhas contas, a primeira edição deveria remontar a 1910. Foi tendo sucessivas reedições, e pelo que vejo chegou ao teu/nosso tempo!

Fui encontrar, na revista Ilustração (num exemplar disponível, "on line", digitalizado pela  valiosíssima  Hemeroteca Municipal de Lisboa, correspondente á edição de 16/1/1936),  um anúncio do "teu" manual... Faço questão de publicar a respetiva imagem, em tua honra e dos nosos bravos furrieis enfermeiros...

Já agora ficas a saber algo mais sobre o Samuel Maia, um  um escritor popularíssimo, polifacetado, autor de vários bestsellers, no campo da literatura de divulgação médica, mas também da ficção e de outros domínios, e hoje completamente esquecido. Sobre ele diz a Infopédia o seguinte:

Médico, romancista, poeta e dramaturgo português, de nome completo Samuel Domingos Maia de Loureiro, nascido em 1874, em Ribafeira, Viseu, e falecido em 1951, em Lisboa. A ficção de Samuel Maia reflete uma evolução da tradição naturalista para a narrativa regionalista, centrada no contexto social e geográfico beirão. Colaborou em publicações periódicas como O Século, Jornal de Notícias, Diário Populare Ilustração. Fonte: Samuel Maia. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2013. [Consult. 2013-12-05]. Disponível na www:

Por mera curiosidade, tens a seguir uma lista de 49 títulos do Samuel Maia, de acordo com a pesquisa feita na Porbase - Biblioteca Nacional.

Sabemos que foi também diretor da Ilustração, entre 1933 e 1935. Formado na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, nos finais do séc. XIX), o médico viseense é, além disso,  considerado um escritor, ficcionista,  de algum mérito, como antecessor do neorrealismo, com direito a referência na clássica História da Literatura Portuguesa, de António José Saraiva e Óscar Lopes.
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 4 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12389: O que é que a malta lia, nas horas vagas (5): Amante de Jorge Amado, Ferreira de Castro, Banda Desenhada, em A Bola as crónicas de Carlos Pinhão e dos muitos livros que me roubaram (Jorge Teixeira - Portojo)


 (**) Lista de obras da autoria de Samuel Maia (Viseu, 1874 -
Lisboa, 1951), de acordo com pesquisa na Porbase -Biblioteca Nacional
(organizada por ordem alfabética dos títulos)

[Foto do autor, à direita. Cortesia da página do Instituto Politécnico de Viseu]

A actividade celular e o vinho / Maurice Loeper ; com uma nota prévia do Dr. Samuel Maia. Lisboa : Ministério da Agricultura, 1937.
Acção das cantinas escolares / Samuel Maia de Loureiro. Lisboa : Instituto Geral das Artes Graphicas, 1909.
Augusto Monjardino / Francisco Gentil, Ferreira de Mira, Samuel Maia. [S.l. : s.n.], 1941.

Banhos de sol / Amílcar de Sousa ; pref. de Samuel Maia. Porto : Livr. Civilização, 1937.
Boa comida gôsto da vida : as velhas dietas e as actuais / Samuel Maia. Lisboa : Bertrand, 1940.
Braz Cadunha / Samuel Maia. Lisboa : Portugal-Brasil, 192 .
Breviário de medicina preventiva : para uso das famílias / Samuel Maia. Lisboa : Bertrand, 1942.

Congresso Nacional de Mutualidade : da acção da mutualidade maternal e infantil : criação de maternidades e de dispensários de assistencia infantil : as gotas de leite / Samuel Maia. [S.l. : s.n., 1900.

Dona sem dono / Samuel Maia. Lisboa : Bertrand, 1935.

Elogio do vinho / Samuel Maia. Lisboa : Livraria Bertrand. 1932.
Entre a vida e a morte / Samuel Maia. Lisboa: Rio de Janeiro : Companhia Editora Americana : Portugal-Brasil, 1920.
Este mundo e o outro / Samuel Maia. Lisboa : Bertrand, 1937.

Folclore e turismo / Samuel Maia. Lisboa : [s.n.], 1936.

História maravilhosa de Dom Sebastião imperador do Atlântico / Samuel Maia. Lisboa : Bertrand, 19 .
História maravilhosa de Dom Sebastião Imperador do Atlântico / Samuel Maia. [S.l. : s.n.], 1940.

Lingua de prata / Samuel Maia de Loureiro. Lisboa : Portugal Brasil, 192 .
Lingua de prata / Samuel Maia. Lisboa : Portugal-Brasil, 19 .
Livro da alma : versos / Samuel Maia. Porto : Oficina Occidental, 1894.
Luz perpétua : romance / Samuel Maia de Loureiro. Lisboa : Portugal-Brasil, 1923.

Manual de medicina doméstica / Samuel Maia. 6a ed. [S.l. : s.n.], 1947.
Manual de medicina doméstica / Samuel Maia. 5a ed. Lisboa : Bertrand, 194 .
Manual de medicina doméstica : higiene, dietética, gimnástica, enfermagem, farmácia caseira, definição e tratamento das doenças, socorros de urgência / Samuel Maia. 5a ed. Lisboa : Bertrand, 19 .
Manual de medicina doméstica / Samuel Maia. 4a ed. [S.l. : s.n.], 1940.
Manual de Medicina Doméstica / Samuel Maia. Segunda edição / Por Samuel Maia... Lisboa : Livr. Bertrand Rio de Janeiro : Livr. Francisco Alves. 1934.
Manual de medicina doméstica / Samuel Maia. Lisboa : Portugal-Brazil, 1910.
Methodo de leitura / Samuel Maia. Porto : José Figueirinhas Júnior, 1904.
Mudança de ares / Samuel Maia. 2a ed. [S.l. : s.n., 1938.
Mudança d'ares / Samuel Maia. [S.l. : s.n.], 1916.

O diabo da meia-noite : romance / Samuel Maia. Lisboa : Bertrand, 19 .
O diabo da meia-noite : romance / Samuel Maia. Lisboa : Bertrand, 194 .
O meu menino / Samuel Maia. 10a ed. Lisboa : Bertrand, 1961.
O meu menino : como o hei-de gerar criar e tratar se adoecer / Samuel Maia. Nova ed. Lisboa : Bertrand, 1955.
O meu menino / Samuel Maia. 8a ed. [S.l. : s.n., 1949.
O meu menino / Samuel Maia. 6a ed. [S.l. : s.n.], 1944.
O meu menino / Samuel Maia. 5a ed. [S.l. : s.n.], 1942.
O meu menino : como o hei-de gerar, criar e tratar se adoecer / Samuel Maia. Sétima edição. Lisboa : Livr. Bertrand, 1940.
O meu menino : como o hei-de gerar, criar e tratar se adoecer / Samuel Maia. 4a ed. Lisboa : Bertrand, 1938.
O meu menino / Samuel Maia. Lisboa : Portugal-Brasil, 1920.
O meu menino : como o hei-de gerar, criar e tratar se adoecer / Samuel Maia. 2a ed. Lisboa : Portugal Brasil, 1915.
O vinho : propriedades e aplicações / Samuel Maia. [S.l. : s.n.]. 1936.
O vinho : propriedades e aplicações : resumo de comunicações e pareceres aprovados nos últimos congressos médicos / Samuel Maia. 2a ed. Lisboa : Imprensa Portugal-Brasil. 1936.

Por terras estranhas / Samuel Maia. Lisboa : Typ. Mendonça, 19 .

Quem não viu / Samuel Maia. Lisboa : Bertrand, 194 .
Quentura sadia, friamente doentia / colab. Samuel Maia. Porto : Lit. Nacional, 1939.

Sexo forte / Manuel Maia. 4a ed. [S.l. : s.n.], 1941.
Sexo forte / Samuel Maia. 3a ed. [S.l. : s.n.], 1935.
Sexo forte / Samuel Maia. Lisboa : Portugal-Brasil, 1917.

Tratamento da prisão de ventre / Samuel Maia. Lisboa : Ofic. Ilustração Portugueza. 1915.

Variantes de prosódia / Samuel Maia. [S.l. : s.n.], 1948.

Guiné 63/74 - P12392: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (8): Último dia nos Bijagós, em Bissau e na Guiné. Até um dia destes

1. Oitavo e último episódio da série do nosso camarada José Martins Rodrigues (ex-1.º Cabo Aux Enf.º da CART 2716/BART 2917, Xitole, 1970/72), dedicada às suas viagens de saudade à Guiné-Bissau, a primeira efectuada em 1998.




CRÓNICAS DAS MINHAS VIAGENS À GUINÉ-BISSAU

A PRIMEIRA VIAGEM - 1998

8 – Último dia nos Bijagós, em Bissau e na Guiné... até um dia destes

Eram as últimas horas em Bubaque e o retorno a Bissau, com a amarga sensação de que estes dias memoráveis na Guiné estavam a chegar ao fim. Como o voo para Bissau seria logo após o almoço, levantámo-nos bem cedo para desfrutarmos de mais umas horas na pequena, mas acolhedora piscina de água salgada. Foi uma manhã muito agradável, na companhia do jovem casal de noivos, e esticada até ao limite do possível antes do apronto final das bagagens e do último almoço nesta ilha.

Enquanto nos deliciávamos com uns mergulhos, apercebemo-nos da chegada do avião que nos levaria de regresso a Bissau. Acabado o almoço, na companhia de todos os hóspedes, ficamos aguardar ainda algum tempo que nos transportassem até à “pista” porque a tripulação da aeronave teria ido almoçar a outro lugar.

Durante a espera dei comigo a pensar que, exceptuando-se as semelhanças da natureza no interior da ilha, esta sociedade animista, fortemente baseada na influência das mulheres, não tinha qualquer registo nas minhas memórias. Esta estadia em Bubaque mostrou-me também uma outra realidade. Conheci uma Guiné que não se sente prisioneira de memórias da guerra, tal como é latente em qualquer pequeno rincão e nos habitantes do seu espaço continental.

Pensamentos! E por falar em pensamentos, é inevitável que nos assaltem alguns receios quanto ao voo para Bissau, já que não é fácil esquecer o atribulado episódio da aterragem que até aqui nos trouxera. Mas, como não havia alternativa, só nos restava confiar nos homens e na máquina.

De novo no jipe lá seguimos a caminho da “gare”, uma pequena construção de tijolos e chapa de zinco, uma torradeira aquela hora do dia para quem se atrevesse a ficar lá dentro. Aqui chegados, fomos surpreendidos pela presença de dois aviões estacionados. Um, era naturalmente o nosso já conhecido velhinho biplano, e o outro era um pequeno mas moderno, elegante e colorido aparelho em que predominava o azul e branco.
Perante a nossa admiração, o condutor do jipe informou-nos de que o aparelho pertenceria ao casal homossexual, que eram também hóspedes do hotel.

Chegara a hora da partida. Para além de nós e da tripulação, embarcaram também dois outros europeus que não conhecíamos, sendo um deles bastante “robusto” e que nos disse depois que era o proprietário do aparelho. Motores em marcha para o aquecimento e feitas as verificações finais o aparelho começa a mover-se lentamente, quando se gera algum burburinho a bordo. Alguém se terá apercebido de que uma nova passageira, que em marcha acelerada se dirigia para o aparelho, fazia sinais para que esperassem por ela. Imobilizado o aparelho, a senhora guineense bastante cansada e ofegante lá subiu e se acomodou num dos lugares ainda vagos. Este episódio fez-me lembrar situações semelhantes que acontecem na minha cidade com os transportes públicos. Tudo resolvido e o avião faz-se à pista. A descolagem decorreu normalmente e o avião deixa Bubaque, sobrevoando a praia que frequentamos e a ilha de Rubane.

Calados, expectantes e ansiosos, rogamos aos céus para que tudo corresse bem. Os últimos minutos da aproximação a Bissalanca foram de alguma turbulência mas, apesar disso, o aparelho tocou a pista com suavidade. Respiramos fundo. Com a recordação sempre presente da aterragem em Bubaque, exclamamos: desta já nos safamos.

Seriam cerca das 15 horas e aqui o calor apertava. Na gare, para além dos ocupantes do aparelho, não se via uma só pessoa. De malas nas mãos dirigimo-nos para a praça defronte da gare para se arranjar um táxi que nos levasse até ao Hotti Bissau. Também aqui era o vazio. Percebi que havia falhado ao imaginar que esse elementar serviço num qualquer aeroporto estaria sempre disponível. Estávamos a conhecer a realidade guineense e a “saborearmos” mais um dos encantos da África. O proprietário do aparelho, atento e percebendo o desconforto da situação em que nos encontrávamos, apressou-se a oferecer-nos boleia na sua viatura que estaria a chegar.

Deixou-nos depois no hotel, desta feita por poucas horas. Aqui instalados, fizemo-nos à magnífica piscina para um resto de tarde de relaxe e da contemplação do bonito enquadramento em que estava integrada. Outros europeus, sobretudo cooperantes, eram a nossa companhia neste hotel que era um pequeno paraíso neste pobre, mas único país. Programamos para marcar o fim da nossa estadia, um jantar no restaurante do hotel e convidamos o Candé a partilhá-lo connosco, aquele a quem passamos a considerar como Amigo e que muito contribuiu para o sucesso desta viagem.
Depois do prolongado jantar era a hora do transporte para o aeroporto, com uma paragem no Lusófono para uma última bebida antes do regresso a casa.

O avião partiu com o meu coração muito apertadinho por tantas emoções, mas de uma coisa eu tinha a certeza; voltarei um dia. Senti que uma semana é sempre muito pouco tempo para um primeiro retorno à terra em que vivemos uma parcela da nossa juventude, aquela fase da vida em que escolhemos e confirmamos as nossas opções para o futuro. Mas apesar disso, e como escreveu um dia a esposa de um amigo, nesta terra é possível num só dia lançar a semente à terra, ver crescer a planta e colher as suas flores. É assim nesta terra, os dias parecem imensos e vive-se docemente sem o stress da vida agitada da nossa sociedade. Aqui, são tantas e tão intensas as emoções que nos envolvem e tão grande o choque com as realidades sociais e humanas, que acabamos por crescer e a aceitar o mundo com as suas diferenças e aprendemos a ser mais tolerantes e solidários. Por isso, quando se vem à Guiné é indispensável trazer na bagagem uma atitude mental de disponibilidade para se aceitar as realidades que vamos encontrar. Não devemos comparar nada. Não comparem os preços nem as condições de higiene, não comparem a qualidade dos transportes nem a qualidade de vida. Não comparem nada, mesmo nada. E sobretudo, aceitem e respeitem os diferentes usos e costumes das diferentes etnias. Não se vem à Guiné para se provar nada. O que aqui me trouxe foi a procura das minhas memórias, dos lugares, das imagens e dos interlocutores das vivências do meu passado. Vim ao encontro da minha juventude. Em troca, recebi afectos que julgava perdidos e as mais efusivas demonstrações de amizade, de respeito e até de gratidão. Vá-se lá encontrar a explicação para esses sentimentos. Talvez até nem seja difícil.

Como algo fica sempre por fazer ou por ver, como a não concretização do ansiado encontro com Galé Djaló, voltarei um dia de coração ainda mais aberto, para rever esta terra e as suas gentes. Para os que me acompanharam nesta viagem, em especial a minha esposa que da Guiné só guardava os aerogramas do nosso tempo de namorados, todos ficaram maravilhados com o povo Guineense.
Abençoada viagem.

Neste momento, em que alinhavo os últimos retoques para dar por finda esta série (8) “CRÓNICAS DAS MINHAS VIAGENS À GUINÉ - A MINHA PRIMEIRA VIAGEM – 1998”, preparo-me para iniciar os contactos para voltar à Guiné em 2012, na minha quarta viagem. A seu tempo, para não correr o risco de ser repetitivo, vos darei um resumo dos momentos mais interessantes do conjunto das posteriores visitas e, por considerar que é no relato da primeira viagem que reside o maior encanto e a magia do reencontro com um passado, que é património da personalidade de cada um de nós.

Zé Rodrigues

Hotti Bissau, acesso à piscina

Deliciosos momentos

Restaurante Asa Branca, último almoço em Bissau

Regresso a Lisboa, paragem no Lusófono com o Candé

A minha primeira viagem à Guiné - 1998 (6) - Vôo para Bissau, estadia e regresso a Lisboa
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Nota do editor

Postes da série de:

17 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12162: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (1): A asfixiante e inadiável ideia de voltar

24 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12195: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (2): A minha primeira viagem em 1998

31 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12226: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (3): A minha primeira viagem em 1998 - A descoberta da nova realidade

7 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12260: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (4): A caminho do Xitole, 26 anos depois

14 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12290: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (5): O dia seguinte no Xitole com as pessoas

21 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12322: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (6): Bubaque, a outra Guiné com sabor a férias
e
28 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12356: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (7): Segundo dia em Bubaque, na descoberta do povo Bijagó

Guiné 63/74 - P12391: O nosso livro de visitas (170): O crachá da CCAÇ 1498, Có, Binar e Bissau (Joaquim Vidigueira Ferreira, ex-fur mil, Amadora)



Crachá da CCAÇ 1498 (Có, Binar e Bissau, 1966/67)

Foto: © Joaquim Vidigueira Ferreira  (2013). Todos os direitos reservados

1. Mensagem de 30 de novembro passada, enviada pelo nosso leitor Ricardo Vidigueira Ferreira

Luís Graça,
Junto envio emblema da companhia do meu pai (Furriel Miliciano Joaquim Vidigueira Ferreira), CCAÇ 1496,  BCAÇ 1876, para adicionar ao seu blogue.

Melhores Cumprimentos,
Ricardo Vidigueira Ferreira


2. Comentário de L. G.:

Muito obrigado, Ricardo, pela oferta, é sobretudo um gesto de ternura, para com o seu pai e os seus camaradas, querer partilhar connosco o crachá da CCAÇ 1498. É algo que eu muito aprecio nos filhos e netos dos meus camaradas da Guiné. Mas deixe-me dizê-lo, o blogue, este blogue, não é meu, é de todos os camaradas da Guiné que nele escrevem, que o editam, que o leem, que nele publicam fotos e histórias, que o divulgam, que o alimentam...

Dê um abraço ao seu pai e diga-lhe que queremos que ele se junte a nós!... Temos só 2 (duas) referências a esta companhia (*), ao fim de quase dez anos a blogar... Mande-nos fotos com legendas, incluindo uma foto antiga e outra atual do seu pai... Ele que se apresente à rapaziada, dizendo-nos por onde andou, com quem andou, o que se lembra da Guiné e das suas gentes, e já agora o que faz, onde mora hoje...  Quanto ao crachá, de "os vagabundos", diga-lhe que eu não conhecia, e que gostei: é singelo e original, e o seu lema é poético ("Chorou-vos toda a terra que pisastes").

Um abraço. Luis (**)

PS1 - A CCAÇ 1498 foi mobilizada pelo Regimento de Infantaria nº 2, em Abrantes, embarcou para o TO da Guiné em 20/1/1966 e regressou à metrópole em 4/11/1967. Esteve em Có, Binar e Bissau. Teve 3 comandantes: (i) ten inf Manuel Joaquim Fernandes Vaz; (ii) cap cav Miguel António Carvalho Santos Melo e Castro; e (iii) cap mil art Luis Filipe Anacoreta Soares.

PS2 - O BCAÇ 1876 foi mobilizado pelo RI 2, seguiu para o TO da Guiné em 20/01/1966 e regressou a 04/11/1967. Esteve em Bissau e em Bula. Comandante: Ten Cor Inf Jacinto António Frade Júnior. Companhias de quadrícula: CCAÇ 1496 (Bissau, Pirada e Bula), CCAÇ 1497 (Bissau, Fajonquito, Binar, Bissum-Naga e Bissau) e CCAÇ 1498 (Có, Binar e Bissau).


3. Resposta do Ricardo Vidigueira Ferreira, com data de hoje;

Boas, espero que desta o crachá chegue em condições. [Vai em formato.jpg].

Quanto ao meu pai, ele já tem 70 anos e mesmo sendo TOC/ROC [técnico e revisor oficial de contas] e continuando a exercer,  nunca foi voltado para as novas tecnologias (não usa nem sabe mexer num PC). No entanto já passei o endereço do vosso blogue a um camarada do meu pai e penso que oportunamente entrará em contacto convosco. (**)

Abraço,
Sent from my iPhone
Ricardo Vidigueira Ferreira
Alfornelos - Amadora
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Notas do editor:


Guiné 63/74 - P12390: Parabéns a você (659): Manuel Carvalho, ex-Fur Mil da CCAÇ 2366 (Guiné, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12376: Parabéns a você (658): Herlânder Simões, ex- Fur Mil das CART 2771 e CCAÇ 3477 (Guiné, 1972/74)

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12389: O que é que a malta lia, nas horas vagas (5): Amante de Jorge Amado, Ferreira de Castro, Banda Desenhada, em A Bola as crónicas de Carlos Pinhão e dos muitos livros que se me extraviaram (Jorge Teixeira - Portojo)

1. Mensagem do nosso camarada Jorge Teixeira (Portojo), (ex-Fur Mil do Pelotão de Canhões S/R 2054, Catió, 1968/70), com data de 2 de Dezembro de 2013:

Caros camaradas.
Esta coisa vai para o Vinhal, que julgo ser (ainda) o editor de serviço.

Não sei se se lembram, mas já lá vão uns tempinhos, que deixei a "boca" que era capaz de ser boa ideia criar-se uma série para as nossas músicas e livros dos velhos tempos. Seria uma forma de sair do ramerrame em que na altura a Tabanca se encontrava.

Pois bem, adiro esta causa com prazer. E com fotos.

Uma delas, muito imagem pessoal. Creio que é do Natal.68. Já navegou muito, a dita. Na messe nova dos Sargentos de Catió, assim chamada, haviam por lá as Bandas Desenhadas do Mikey e outras cenas equivalentes.
Claro que a foto foi feita para mandar para a família. Não me lembro de haver outro género de literaturas por lá. Nem quem levou para lá os livrinhos.


Fui sempre um amante de leitura deste pequeno. Era cliente habitual de um alfarrabista na Rua do Almada, por acaso era uma senhora a dona. Camiliana de todos os costados. Aprendi muito com ela. E comprava também livros na Civilização em suaves prestações de 20 escudos mensais.

Havia um senhor Sírio em Catió com uma loja tipo tem tudo - cujo nome não há maneira de me lembrar - a quem comecei a comprar livros entre outras coisas. Músicas também. Melhor discos. Como já conhecia Jorge Amado (Gaca 3, Paramos-Espinho, Dezembro 67 - Capitães da Areia lido na clandestinidade) tudo que consegui deste autor fui adquirindo. O único que chegou aos dias de hoje foi os Pastores da Noite. Os outros, incluindo uma edição antiga de Gabriela Cravo e Canela, alguém em Catió ficou com eles.

Como vim antes do pelotão para Bissau para fazer aquelas porcarias dos espólios e passagem do acervo para o substituto e etc., pedi para me encaixotarem as minhas coisas. Chegou tudo direitinho menos os livros. Que seriam mais de 20. Na minha colecção estava incluída uma edição recente (1967 ou 68) da Antologia Erótica e Satírica de Autores Portugueses da autoria de Natália Correia. Clandestino. Foi-me vendido pelo meu alferes Xarez na altura da nossa mobilização a trabalhar no ramo, ainda no Barco Niassa. 

Durante a minha estadia no Hospital Militar em Bissau, frequentei a Biblioteca que lá havia. Foi aí que conheci Ferreira de Castro e a Selva. Quando estive adido à CCS do BART 2865, do saudoso Tenente Coronel Belo de Carvalho e do tristemente célebre Major Melo, um 1.º Sargento, gente boa, de quem não me lembro o nome, natural de Coimbra, emprestava-me livros que tinha trazido consigo. Confidenciava-me que se sentia estúpido por não ter acesso a "coisas" para ler. E no meio de tanta ignorância, salvam-lhe as brincadeiras e os passatempos com alguns furriés. Bebíamos dele a sua sabedoria.



Os meus Pais de vez em quando mandavam-me o Jornal A Bola. Gostava desde há muito de ler o Jornal e especialmente as crónicas do Carlos Pinhão. Eram crónicas de Português puro e foi ele que me ensinou a distinguir "Estória" de "História".

A Selva comprei-a em 1970.
A Gabriela, provàvelmente a minha aquisição n.º 4 deste livro tem dois anos.
Todas as outras desapareceram com empréstimos.

Caro Carlos, aproveita daqui o que quiseres.
Um abraço do
Jorge
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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12385: O que é que a malta lia, nas horas vagas (4): a revista "Flama", o jornal "A Bola"... e o livro de contos e narrativas do Armor Pires Mota, "Guiné, Sol e Sangue" (Braga, Pax ed., 1968) que havia na biblioteca... (Luís Nascimento, ex-1º cabo cripto, CCAÇ 2533, Canjambari e Farim, 1969/71)

Guiné 63/74 - P12388: Estórias avulsas (73): O Dia das Sortes na aldeia de Brunhoso (Francisco Baptista)

Vista parcial de Brunhoso


1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 30 de Novembro de 2013:

Éramos homens, tínhamos força, confiança, tínhamos sonhos, queríamos conquistar as mulheres, queríamos conquistar o mundo, queríamos ser nós a governar a nossa vida.
Éramos capazes de transportar sacos de trigo de 80 quilos ou mais, de ceifar três sucos de trigo como os mais velhos, de varejar as oliveiras e cavar tanto as oliveiras como as vinhas.
Sabíamos lavrar com vacas como com bestas, sabíamos semear o trigo e o centeio, plantar as batatas, as abóboras e as hortaliças.

Estávamos confiantes e preparados para entrar na sociedade dos adultos, era o nosso dia e toda a aldeia de Brunhoso iria ter orgulho nos seus filhos que tinham atingido a maioridade.
Tínhamos 20 anos e tinha chegado o dia das sortes.

Pela manhã fomos todos, a pé, até à vila, eram só cinco quilómetros e nós estávamos habituados a calcorrear os carreiros e caminhos do termo da aldeia. No dia anterior tínhamos ido todos, como a tradição mandava, tomar banho ao ribeiro da Lagariça.

Vestimos as nossas melhores roupas porque o dia era solene e de festa. Éramos quatro nascidos em 1947, o Amílcar, o José Luís, o Ernesto e o Chico (sou eu, pronuncia-se quase tchico por lá).
Outros quatro já tinham emigrado, eram eles, o António Borges e o Adelino para o Brasil, o José Maria e o Manuel da Glória para Angola.

Os meninos mortos de 1947, pois morriam tantos nesse tempo, não eram nomeados, nem chorados, pois eram anjos que tinham ido diretamente para o céu. Importa falar dos vivos e de todos, presentes ou ausentes, porque a tradição estabelecia uma irmandade entre todos os nascidos no mesmo ano.

Os da mesma idade eram os praças. A razão deste tratamento teria a ver com o facto de todos assentarem praça no mesmo ano. O dia das sortes significava naquelas terras o dia da passagem à idade adulta, o dia da emancipação.

A inspeção não foi muito demorada. Numas instalações que a Câmara Municipal punha à disposição das Forças Armadas despíamo-nos e íamos passando pelos médicos militares que avaliavam a nossa masculinidade e a nossa saúde.

Ficamos os quatro aptos para o serviço militar o que era sempre motivo de contentamento para o grupo, pois ninguém gostava de ser excluído. Era sinal de saúde e de que passávamos a ser cidadãos capazes de defender a nossa terra.
Ficar excluído era um anátema terrível que marcava um homem pela vida fora.

Ainda recordo tal como ele contava, a história da inspeção do "tio João Passarinho" que ouvi várias vezes, pois ele trabalhou muitos anos à jeira na casa do meu pai e já tinha trabalhado antes na casa dos meus avós paternos.
O tio João Passarinho era um homem valente e trabalhador, que sabia fazer todos os trabalhos do campo melhor do que ninguém. Desde cortar a erva nos lameiros à gadanha para feno, a tirar a cortiça dos sobreiros ele sabia fazer tudo com destreza. Era todavia um homem franzino e baixo, com um metro e cinquenta de altura ou pouco mais. Viveu até aos oitenta ou mais anos e trabalhou sempre enquanto pôde.
Nunca teve férias nem reforma, como a maioria dos trabalhadores do campo desse tempo. Hoje se fosse vivo já teria mais do que 110 anos pois conheço um filho dele, o Joaquim, muito parecido com ele que apesar da idade avançada continua a trabalhar, já com 85 anos.

O tio João talvez nunca conformado por ter ficado isento do serviço militar, nos anos 20 ou 30 do século passado e porque gostava de efabular, contava que quando foi visto pelo médico militar no dia da inspeção ele lhe disse:
- Aqui está um homem bem constituído, alto, forte, espadaúdo. Temos um marinheiro!

Nunca eu o contrariei quando ele fazia estas afirmações e ouvi-as várias vezes. Tinha muito respeito por ele, desde menino fui criado na companhia assídua dele, era um homem respeitável, bondoso e trabalhador.
Sempre soube que dizia uma grande mentira, bastava olhar para ele, mas ele tinha direito a ter os seus defeitos e essa mentira, como outras em que era pródigo, não prejudicava ninguém.

Comprámos quatro foguetes e muitos rebuçados e regressámos à aldeia. Quando estávamos a um quilómetro, numa colina sobranceira, lançámos o primeiro foguete, os outros foram lançados já na aldeia. Demos a volta a todas as ruas a distribuir os rebuçados pelas raparigas, sendo naturalmente mais saudados pelas da nossa idade. Éramos amigos, tínhamos crescido perto uns dos outros, tínhamos entrado na escola ao mesmo tempo, tínhamos sobrevivido aos desejos próprios da adolescência com estoicismo e às restrições que uma moral rígida imposta, através da mãe, do pai, do padre, da professora e do falar do povo nos era imposta.

Por elas, vá lá e pelas outras, tínhamo-nos batido, em dias de festa ou de baile, com os rapazes duma terra vizinha. Muitas vezes os escorraçámos à pedrada, porque elas eram nossas e eles não se podiam atrever a conquistá-las ou a dançar com elas se algum dos nossos não gostasse. Toda a aldeia nos saudava com agrado, éramos os heróis do ano.

Fomos todos almoçar a casa dos meus pais, pois a minha santa mãe quis convidar-nos e fez-nos um almoço melhorado, um almoço de dias de festa.
Há dois anos o José Luís falou-me nesse almoço que eu já não recordava. Dos quatro que fomos à inspeção, o Amílcar e o Ernesto foram mobilizados para Angola, eu pra Guiné, o José Luís como foi sempre um bocado despistado, deve ter perdido o barco que o levaria para algum lado e fez a tropa por cá.

Quando acabou a tropa eu emigrei para o Porto os outros três para França. Dos outros, o António Borges, que nunca mais vi desde a adolescência continua no Brasil, o Adelino continua por lá também tendo-o visto nas duas vezes que ele visitou a aldeia. O José Maria e o Manuel da Glória regressaram de Angola com a descolonização, tendo o primeiro infelizmente morrido o ano passado de doença em Lisboa onde se tinha estabelecido com um negócio de padaria-confeitaria.
Ao Manuel da Glória nunca mais o voltei a ver, disseram-me que morará na Beira Alta ou Beira Baixa.

As "raparigas" da nossa idade, que eram dez, somente uma mora na aldeia depois de ter vivido cerca de 30 anos em França. Só uma delas foi além da quarta classe tal como eu. Pertencia a uma família numerosa, com poucos recursos, mas era uma pessoa muito inteligente e sendo sobrinha bastarda da professora, que pertencia a uma das três casas grandes da terra, terá sido provavelmente ela que a encaminhou para um convento de freiras. Na maioridade deixou o convento, constituiu família e passou a dar aulas no ensino secundário.

Desloco-me com alguma frequência à aldeia para relaxar no contacto com a natureza e sentir o ar mais puro, quente ou frio, conforme a estação, mas sempre agradável. No inverno chego a sentir saudades do ar frio e seco da minha terra. Da varanda da casa, agora quase sempre vazia, avista-se grande parte do casario da aldeia bem como pinheiros, sobreiros e alguns freixos que fazem parte da área agrícola e florestal da terra, e ao longe a paisagem típica dos montes e vales de Trás-Os-Montes que se estende por muitos quilómetros.

Ouço o silêncio duma terra que foi morrendo, que eu por vezes procuro preencher com memórias de há quarenta ou cinquenta anos, e então ouço o barulho próprio de uma casa onde viviam nove pessoas, o palrar das vizinhas, os gritos das brincadeiras dos garotos, o chiar dos carros de bois, os sons dos diferentes animais domésticos e o pregão da minha vizinha, a tia Clementina, a anunciar a sardinha.

Um caudal de memórias como o do Rio Sabor na primavera, que corre num dos limites da área agrícola da freguesia. Recordo estes rapazes e raparigas, conterrâneos da minha idade, e as vidas duras e difíceis que tiveram na aldeia e depois nos caminhos da diáspora.

Dizer que seriam pobres seria uma ofensa para eles, pois por lá os pobres eram os miseráveis que tal como os ciganos andavam a pedir de porta em porta. Os pais deles teriam uma pequena horta, algum campo para semear trigo e talvez algumas oliveiras. O sustento para a família vinha sobretudo das jeiras diárias, em tempo de colheitas para os lavradores. Sei que muitas vezes só comiam pão, batatas e caldo, mas nunca os ouvi queixar-se a mim que pertencia a uma família que sem ser rica era mais abastada.

Mas falar sobre esse mundo antigo e quase feudal é um assunto que dá pano para mangas.
Fica para outra oportunidade.

Bom Natal para todos e um grande abraço
Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12347: Estórias avulsas (72): Aníbal: um inadaptado, um marginal ou um anarquista? (Francisco Baptista)

Guiné 63/74 - P12387: Memórias da minha comissão em Fulacunda (Jorge Pinto, ex-alf mil, 3.ª CART/BART 6520/72, 1972/74) (Parte IV)



Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Foto nº 1 A > Ensinar a ler e escrever a criançada. Era um ponto de honra. Juntamente com a escola regimental é do que mais me orgulho do tempo vivido na Guiné. Além das crianças também muitos soldados tiraram a 4ª classe e puderam tirar a carta de condução.´

[O segundo miúdo, a contar da direita para a esquerda, tem fenótipo (feições) caucasiano, devendo ser filho de um militar branco... LG]




Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Foto nº 1 > Ensinar a ler e escrever a criançada.


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Foto nº 2 A > Passeando pela Tabanca de Fulacunda.


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Foto nº 2 > Uma "rua" da tabanca.


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Foto nº  3A > Conversando na tabanca. Estes momentos eram bons. Ao fim da tarde, antes do jantar, alguns militares passeavam pela tabanca (foto nº 2) e normalmente havia sempre companhia para “dois dedos de conversa”. Os temas eram diversos: Como era Fulacunda antes da Guerra, os piores ataques que tinham sofrido durante Guerra, familiares que viviam no mato, Ramadão e as alterações às rotinas da vida, falta de arroz na tabanca, brigas dos homens com as suas mulheres, poligamia…


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Foto nº  4A > Criançada, junto messe oficiais. Era a hora de se beber uma fanta, sentados nos degraus de acesso à messe, enquanto as mães lavadeiras faziam a entrega da roupa lavada.

[A menina está sentada à direita do Jorge  tem fenótipo (feições) caucasiano, devendo ser também filha de um militar branco... LG]


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Foto nº  5A  > Em primeiro plano, lavadeiras fazendo entrega de roupa.


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Foto nº  5  > Parte central do quartel, casernas e torre  de transmissões, edifício comstruído  pelos "boinas negras" (CCAV 2482, 1969/70).



Guiné > Região de Quínara > Mapa de Fulacunda (1955) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Fulacunda > Principais eixos de ataque do IN: (i) (i) oeste, áerea de Bianga, (estrada de Tite); (ii) noroeste, área de Cantora (estrada que partia do fim da pista na direção de Cantora, Garsene, na margem esquerda do Rio Geba) ; (iii) e norte, área da bolanha de Guebambol (estrada que seguia até Uaná Porto, na margem esquerda do Corubal.

Infografia. Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2013)



Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Foto nº 6 > Vista aérea da pista, da tabanca e do aquartelamento de Fulacunda... no sentido leste oeste... Tentativa de reconstituição do perímetro de arame farpado (linha a branco), dos espaldões de obus 14 (a círculo vermnelho), dos demais espaldões (morteiiors e breda) e abrigos (rectângulo a vermelho) e da área cultivável em redor do arame farpado (linha a verde... No sentido su-sudeste / nor-noroeste. vê-se a pista e o heliporto... Reconstituição feita com o aval do  Jorge Pinto ..(LG)

Fotos: © Jorge Pinto (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem da foto nº 6: L.G.]


1. Continuação da publicação das Memórias da minha comissão em Fulacunda (Jorge Pinto, ex-alf mil, 3.ª CART/BART 6520/72, 1972/74) (Parte IV)


[Foto  do Jorge Pinto, na épco, à direita]


1.1. Pedidido de informação adicional ao Jorge Pinto, por  parte do editor

Jorge: 

Corrige-me a foto nº 7 do poste P12379 (*)...Nunca estive em Fulacunda, como sabes...Podes redesenhar, com o programa Paint, a planta do quartel...Fui pelo relevo e pela intuição, comparando a "planta" de Fulacunda com a de Bambadinca... Mando-te uma imagem ampliada (3
MG) para poderes ver melhor os pormenores e anotares... Um abraço. Luis

PS - Donde vinham os ataques ? De norte para sul, presumo, mas também de leste para oeste... E que armas pesadas (morteiro 81, Breda...) tinham ? Havia um pelotão de artilharia, com 3 obuses 14 ? É isso ?... Assinala os espaldões e os abrigos, mais ou menos..

1.2. Resposta do Jorge Pinto:

Luís, fazes uma leitura bem correta da fotografia.

Pormenorizando um pouco mais, adianto que os ataques eram essencialmente provenientes de:

(i) oeste, área de Bianga, (estrada de Tite);

(ii) noroeste, área de Cantora (estrada que partia do fim da pista na direção de Cantora, Garsene, na margem esquerda do Rio Geba);

(iii) e norte,  área da bolanha de Guebambol (estrada que seguia até Uaná Porto,  na margem esquerda do Corubal).

Havia um pelotão de artilharia constituído essencialmente por soldados fulas, furriéis e alferes da metrópole.

Os espaldões dos três obuses 14 estavam no topo norte/noroeste do aquartelamento. Os morteiros 81 estavam junto dos abrigos a norte/nordeste. A metralhadora Breda estava instalada num abrigo a nordeste.

Havia abrigos defensivos em redor do aquartelamento e interligados por vala: três ao longo da pista, (oeste/noroeste), dois do lado norte e ainda mais dois a este/sudeste.

A sul a defesa estava "entregue" ao pelotão de milicias que vivia na tabanca.

Os ataques provenientes de Sul eram pouco prováveis devido à existência dos braços de rio [, o rio Fulacunda, afluente do Rio Grande de Buba].

Havia ainda outros abrigos, no interior do quartel, mas sem função defensiva: torre de transmissões, cripto, mecânicos...

Quanto às subunidades que passaram por Fulacunda, informo que a minha  companhia, 3ª C/Bart 6520/72, partiu do RAL 5 em 26.06.72 e regressou a 21.08.74. Teve como comandante o capitão mil  inf João Mouzinho Serrote. Penso existir alguma confusão com o Bart 6520/73, do qual eu não tenho informações.

Recebe mais um alfabravo,

Jorge Pinto [, foto atual à esquerda]
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Nota do editor:

Último poste da série > 2 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12379: Memórias da minha comissão em Fulacunda (Jorge Pinto, ex-alf mil, 3.ª CART/BART 6520/72, 1972/74) (Parte III)

Guiné 63/74 - P12386: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (5): Ilha do Como - Operação Tridente

Guiné, 14 de Janeiro de 1964 - Tropas embarcadas, rumo à Ilha do Como

Guiné, Janeiro de 1964 - Desembarque das forças do Batalhão 490 na Ilha do Como

ÚLTIMAS MEMÓRIAS DA GUINÉ - 5

Por Armor Pires Mota (ex-Alf Mil da CCAV 488/BCAV 490, Bissau e Jumbembem, 1963/65) 

Ilha do Como - “Operação Tridente”

Foi desgastante a guerra do Como, onde, no fim de contas, não houve claros vencedores (deixámos uma Companhia no Cachil) nem vencidos (haviam de voltar a ocupar a Ilha, como é normal neste tipo de guerra). O IN no início estava bem moralizado, estava em seu território e mandaria nele. Tentou forçar a saída das nossas Companhias, sediadas em Cauane e em Curcô, com ataques contínuos, mas apenas conseguiu tal intento na posição de Uncomené. Mostrava-se nesta altura “bem instruído, manobrador, muito agressivo e com um poder de fogo extraordinário, no entanto as numerosas baixas que sofreu, foram-lhe abatendo o moral e desorganizando-o, a ponto de, no final da operação, os pequenos grupos dispersos, sem qualquer agressividade e famintos, fugirem ao menor contacto com as nossas tropas”, conforme consta da “História da Unidade”. Foram destruídos dois acampamentos, num total de 62 casas de mato, houve 76 mortos confirmados no terreno (contra 8 de toda a tropa envolvida) e com mais de 100 “mortos prováveis”; feridos confirmados, 15, contra 29 da nossa parte, mas aquele número era muito mais elevado. Além da recolha de vário material de guerra, no entanto, não tanto como seria previsível

O comandante Nino, ao princípio, fez-nos a vida negra, mas a fúria e o poder de fogo foram abrandando à medida que as populações desertavam. Com 21 mortos, com poucos efectivos operacionais e com a população a fugir, segundo estratégia delineada por Amílcar Cabral, Nino chegou a pedir ajuda a muitas bases, segundo carta encontrada, mais tarde, pelas nossas tropas, numa operação em Gampará, assinada por este comandante.

Guiné - Ilha do Como, 1964 - Alf Mil Bretão e Fur Mil Lima, da CCAV 488, atravessando ponte feita de palmeiras destinada aos abastecimentos das tropas em acção

Esta guerra não foi fácil para ambas as partes. Mas, no fim da operação, já um pelotão (o do Jaime Segura) atravessava sem problemas a ilha. Nela se integrou o Comandante da denominada operação “Tridente”, a maior operação da guerra contrasubversiva até aí realizada nas três frentes, pelos meios e forças utilizadas, que iam do nosso Batalhão a Companhia de Fuzileiros, comandados pelo lendário Alpoim Calvão, que hoje tem negócios em Bolama. Uma das poucas vezes que o vi nesta ilha foi a apontar uma faca ao tronco de uma árvore. Não falhava um só golpe. A operação envolvia também, pela primeira vez, um grupo de comandos, paraquedistas, força aérea, canhões, montados numa bela praia, e um navio transformado em hospital de apoio. Que, felizmente, não foi muito utilizado, apesar dos terríveis medos e previsões não muito optimistas, esta é a verdade.

Guiné - Ilha do Como, 1964 - Tropas atravessando bolanha

A operação “Tridente”, devido ao clima e inicial força do IN, foi difícil, terrível em muitos aspectos, mas não foi muita da mentira que a jornalista Felícia Cabrita fez publicar no "Expresso", uma grande reportagem feita, decorridos 30 anos sobre a operação “Tridente”. Como tive possibilidade de saber pessoalmente da boca de alguns que foram ouvidos, as afirmações de alguns ou foram mal contextualizadas ou deturpadas. Além disso, só publicou o que poderia diminuir as Forças Armadas Portuguesas. Houve muita outra gente entrevistada de quem não apareceu uma única palavra na dita reportagem com o título de “A Campanha do Medo”. A verdade e a isenção não interessam a muita gente como é o caso. Houve medos, mas ninguém fugiu para Dakar e dali para Paris como muitos que assim procederam. Assim tendo feito, são considerados heróis, e os que deram o corpo ao manifesto, após o 25 de Abril eram tratados como verdadeiros criminosos. Passados 30 anos, para alguns ainda havia complexos, fantasmas.

Guiné - Ilha do Como, 1964 - No final de uma refeição

Como ali não havia bajudas nem mulheres, só nos matos fechados, acontecia que nós é que tínhamos de cuidar das nossas roupas, a começar pela lavagem de cuecas, calças, camisas, meias, etc, etc.. No final, eu já cuidava também das minhas barbas, penteava-as, assim como os meus longos cabelos e procurava torcer o meu bigode, criar-lhe pontas à boa moda do princípio do séc. XX.

Finda a guerra, nos meados de Março, o meu último aerograma tem a data de 12 e dava conta de algum sossego e de um macio mascote. Tratava-se de um cordeiro que cabriolava brincalhão no acantonamento e com o qual a malta brincava. Era bonito, preto e branco e mansinho, de tal forma que dormia com os soldados. Era como que o anúncio da paz, ainda que temporária. A guerra ia continuar por outras partes.

Guiné - Ilha do Como, 1964 - A hora do correio e da partilha das alegrias

Na batalha do Como para onde nos deslocámos em Janeiro de 1964 em meios navais, ainda participou por algum tempo o alferes Fernando Correia. O meu pelotão teve aí 6 feridos e a 487 dois mortos e dois feridos. Mas o Fernando tinha então um grande problema de audição. No buraco, onde dormíamos, percebendo mal o zunir das granadas, saídas das bocas dos canhões estacionados na praia, perguntava-me o que era aquilo… Aquilo era o assobio das granadas, explicava-lhe. Perante isso e temendo o pior, o Comandante do Batalhão, que sabia bem o que era a surdez, sofria do mesmo mal, mandou-o evacuar para a Metrópole, a fim de ser operado. Acontecia em 25 de Março, “por doença adquirida em serviço”. Neste interim, chegava a 25 de Março de 1964, e dava, solene e publicamente, o nó com a Lurdes Espanhol, passados quatro dias, ou fosse no dia 29, que coincidia com o dia de Páscoa. Belas e doces amêndoas! (Tinham casado no registo civil por procuração no dia 4 de Janeiro desse mesmo ano).

Submeteu-se a uma cirurgia no Hospital da Estrela. Pouco tempo depois embarcava de novo para Bissau, onde acabou por ser colocado no Quartel General como responsável pelo sector dos abastecimentos. Ou fosse na 2.ª Secção de Transportes da 4.ª Repartição, após a apresentação do relatório do médico que o operara. Isso permitiu que trouxesse para Bissau a noiva e fosse viver com o Jaime Segura e a Manuela, primeiro.

Ilha do Como, 1964 - Embarque de vário material de regresso a Bissau

Fotos (e legendas) : © Armor Pires Mota (2013). Todos os direitos reservados. [Edição: CV]

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12378: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (4): Cinco dias no Niassa; A primeira grande experiência e Dois alferes de uma só vez

Guiné 63/74 - P12385: O que é que a malta lia, nas horas vagas (4): a revista "Flama", o jornal "A Bola"... e o livro de contos e narrativas do Armor Pires Mota, "Guiné, Sol e Sangue" (Braga, Pax ed., 1968) que havia na biblioteca... (Luís Nascimento, ex-1º cabo cripto, CCAÇ 2533, Canjambari e Farim, 1969/71)



Guiné > Região do Oio > Canjambari > CCAÇ 2533 (1969/71) > Foto nº 1 >  "O Crioulo, lendo a 'Flama' à porta do abrigo de transmissões, com fundo decortado a manjericos, e sentado em cadeira de verga artesanal... Enfim, o meu pátio alfacinha"...

[Na opinião de Patrícia Fonseca, a "Flama" foi "uma das revistas mais marcantes do século passado, sobretudo na segunda metade dos anos 60 e início dos anos 70 (...) a par de outras revistas, como O Século Ilustrado ou a Vida Mundial", tendo introduzido "nos hábitos de leitura dos portugueses o gosto pelas newsmagazines, que há muito faziam sucesso noutros países"].





Guiné > Região do Oio > Canjambari > CCAÇ 2533 (1969/71) > Foto nº 2 > "Leitura junto à Morança Nova, tabanca de Caanjambari".



Guiné > Região do Oio > Canjambari > CCAÇ 2533 (1969/71) >  Foto nº 3 > "Sentado junto ao  abrigo das transmissões, bebendo uma 'bazuca' e fazendo as palavras cruzadas de um jornal ou revista.


Guiné > Região do Oio > Canjambari > CCAÇ 2533 (1969/71) > Foto nº  4 > "Ali no fim do mundo também se lia a 'Bola', na companhia do Borges, cantineiro, e outro camarada. Ao fundo o depósito de géneros, sem telhado, após tornado que levou a companhia a comer arroz com marmelada durante 15 dias"...



Guiné > Região do Oio > Farim  > CCAÇ 2533 (1969/71) > Foto nº 5 > "Em Farim, à noite, na cama, lendo possivelmente a Flama".


Guiné > Região do Oio > Canjambari > CCAÇ 2533 (1969/71) >  Foto nº 6 > "Velho moicano, ao fim de 22 meses de comissão, já apanhado pelo clima, de pera e bigode, muito do agrado do cap Sidónio, o 'Cabra',  que prometeu dar-me uma porrada e não cumpriu".

Fotos (e legendas) : © Luís Nascimento (2013). Todos os direitos reservados. [Edição: L.G.]


1. Mensagem do Luís Nascimento, enviada ontem, através da sua neta Jessica Nascimento (como habitualmente):

Boa noite Sr. Luis Graça,

Junto envio texto e fotos das histórias do meu avô. Abraço do Sr. Assassin.


2. Pedido do editor a todo o pessoal da Tabanca Grande, enviado a 2 do corrente:

Amigos e camaradas: Foi aberta uma nova série no nosso blogue, "O que é que a malta lia, nas horas vagas"... E eu aqui, faço um apelo, mais uma vez, à vossa generosa participação, para que nos enviem textos e fotos dos momentos de ócio, ao sol, no abrigo, no bar, lendo livros, jornais, revistas... Em muitos aquartelamentos havia pequenas bibliotecas alimentadas pelo Movimento Nacional Feminino... É possível que também chegassem pelo correio jornais e revistas... Ainda se lembram de quais ? Um ou outro assinava publicações periódicas... Enfim, essa informação interessa-nos para melhor documentar o nosso quotidiano naquela terra verde e vermelha onde passámos alguns dos nossos verdes anos.. Luís Graça, editor.


3. Resposta do Luís Nascimento > Acerca do que se lia na Guiné…

Eu, como encarregado da biblioteca, tinha ao meu dispor uma gama de literatura abundante. Lembro-me de ler a “Flama”, o “Século ilustrado” e mais edições da Agência Portuguesa de Revistas, com sede na Saraiva de Carvalho, ali a Campo de Ourique.

Foi na biblioteca de Canjambari que li o primeiro livro à cerca da guerra na Guiné “Guiné Sol e Sangue” de autoria de um Alferes [, Armor Pires Mota, nosso grã-tabanqueiro!], que esteve em Jumbembem e contava a história de um ex-turra de nome Faustino que vim a apurar mais tarde, ser um civil que trabalhava na cozinha da 33, como copeiro (era ele que lavava os panelões) e ia dormir à tabanca onde perdeu um olho por se ter enganado na mesma, pois ali morava um soldado milícia com a sua bajuda e onde arranjou manga de chatice por levar a cabeça grande de “água de Lisboa” [vinho tinto].


[Foto acima, à esquerda: capa do livro "Guiné, Sol e Sangue: Contos e Narrativas", de Armor Pires Mota, editado pela Pax Editora, Braga, 1968, 162 pp.]

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Nota do editor:

Último poste da série > 2 de dezembro de  2013 > Guiné 63/74 - P12381: O que é que a malta lia, nas horas vagas (3): o trissemanário "A Bola" (Garcez Costa, ex-fur mil, radialista, Com-Chefe, Repartição de Assuntos Civis e Acção Psicológica, Serviço de Radiodifusão e Imprensa, Programa das Forças Armadas, Bissau, 1970/72)