Passamos hoje a publicar o penúltimo poste da série "Últimas Memórias da Guiné", com o primeiro grupo de 3, de 6 Crónicas (ausentes) de "Tarrafo".
Diz o autor desconhecer como estas (6) histórias não saíram na edição daquele livro. Lembremos que o "Tarrafo" é composto por crónicas enviadas da Guiné para serem publicadas no Jornal da Bairrada, pelo hoje considerado o primeiro repórter da Guerra do Ultramar, Armor Pires Mota, que foi Alferes Miliciano da CCAV 488.
ÚLTIMAS MEMÓRIAS DA GUINÉ - 10
Por Armor Pires Mota (ex-Alf Mil da CCAV 488/BCAV 490, Bissau e Jumbembem, 1963/65)
CRÓNICAS (AUSENTES) DE TARRAFO - 1
Por qualquer motivo, não incluí na edição do
TARRAFO alguns textos que foram inseridos no Jornal da Bairrada. Ora aqui os recupero, passado meio século. Tal como aconteceu com o
“Diário de Bordo” que naufragou com a nau do esquecimento.
Bandeira branca [ou pontaria de maçaricos]
“Preso a uma cana esguia, no cimo tremulava um farrapo que, entre a sujidade e os buracos, tinha uma cor esbranquiçada.
A guerra fora ali perto, difícil. E o caminho era longo e escaldante e o cansaço juntava-se à sede para quase apetecer ficar por ali estendido à sombra de alguma árvore amiga. Mas a água daquela cântara, feita, um dia, pelas próprias mãos, de um barro quase escuro, fora uma fonte e uma bênção. Bebi duas ou três goladas, mas apetecia-me bebê-la toda, até sentir frescuras por todo o corpo ainda ensonado. Depois, estendi o corpo pesado à sombra de uma sebe que se estendia em volta da tabanca, feita de palmas secas entrelaçadas.
De arma ao lado nem sequer pensei que a vida, umas vezes corre atrás de nós com pedras na mão, como se fôssemos algum farrapo que alguém deitou fora e nos escorraça da sua porta sem dó nem piedade, mas também, outras vezes, nos coloca rosas na mão esquerda. Acho que era o caso.
Um velho que andava aí pelas 50 chuvas, a tremer de medo, nos matou a sede. Ali, ele e mais ninguém. E os filhos por que caminhos escuros andariam, onde nos esperariam eles àquela hora de incêndio no nossos ombros?
Quando o Américo, escarrando poeira, meteu a cântara à boca, do lado ouviram-se comentários e troças:
– Olha, a Amélia não tem vergonha… – E repetiam as palavras chocarreiras que ele, pouco tempo antes na luta, lançara ao vento, quando alguns invólucros do colega da esquerda lhe bateram no capacete:
– Ah, ladrões, que já me mataram… já fiz nas calças…
Mas o Américo calmamente tragou mais ou dois ou três goles e, entregando a cântara a outro, disse, muito senhor de si e com ares de quem os ia vencer e convencer pelo bom humor:
– Quem fez este, já não faz outro! – E sorriu-se.
O Américo é um daqueles tipos fanfarrões que têm os seus heróis, destemidos, audaciosos. Ele mesmo é um herói de trazer por casa, quer dizer pela caserna ou pela cozinha. Faz tudo. É capaz de matar manga deles e até esfolá-los, persegui-los. Mas isto só quando está longe dos apertos. Por isso, os colegas lhe chamam o Garganta. Justamente.
Partimos. O inimigo esperava-nos certamente noutro lugar, mais longe. Passados oito dias, Bigine era um monte de cinza abandonada, uma aldeia de paredes caídas.
O farrapo que posto ali pelo medo que era uma mentira naquele coio de bandidos (qual paz, qual quê?) poderia ter sido uma cilada.
Desde então, aprendi, todos aprenderam a andar no mato de pé atrás. A gente nunca sabe bem o terreno que poisa nem a água que bebe”.
Jornal da Bairrada, 3 Outubro 1964
[Esta operação visava capturar ao IN um helicóptero que, segundo informações do QG, vinha descarregando em Morés material bélico. Estiveram envolvidos o meu batalhão 490 e o de Bula (513), comandado pelo coronel Hélio Felgas. A operação deu em nada. No regresso, as companhias 487, 488 e 489, seguiam trilhos diferentes. O nervoso era algum e bastou alguém disparar um tiro para arrremessar para o bordo dos caminhos mais de 300 homens que não ficaram mais à espera de ordens. Encarniçaram-se em gorda metralha, até que alguém, o alferese Jaime Segura, apercebendo-se que o matraquear era todo das G3, pôs cobro àquele lamentável lapso, que poderia ter redundado em mortandade, mas a metralha passava felizmente mais alta ou mais baixa, mas não deu para fazer um único arranhão. Era pontaria de maçaricos].
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O Vicente
Mansabá, 10 Setembro 1963
O Vicente era Manjaco. Conheci-o naquele noite em que cheguei a Mansabá. Estendido no cimento, choramingava, de pés atados e presos a um dos prumos do telheiro da antiga escola primária, roupa manchada de nódoas, não sei de quê, e de chapéu Zorro no chão.
Para mim, era um homem igual a tantos outros. Depois, contaram-me a história, a história de tantos outros, e fui sabendo-a de cor à medida que as noites iam passando. Conheci-o nessa noite infernal para mim. Deitara-me na tenda que havia com o vento tentado deixar-nos à chuva e ao vento. Mas, constrangido, doíam-me todos aqueles gritos de dor ou de raiva e os tristes cânticos de morte que ele ia resmungando. Levantei-me. Tremia. Nessa noite assisti, constrangido ao máximo, ao julgamento, feito pelo capitão da companhia ali acantonada.
– Bó cúnhece bandido?
– Mim cá sibi…. Si fala, mim murre, capiton! – E citava alguns nomes.
Em cada suposta mentira ou falsidade em que fosse apanhado, um murro pesado estendia-o no chão, enquanto alguém o levantava pela roupa e o sentava de novo. Presidia uma grossa “menina” de cinco largos olhos, que caía, repetidamente, nos dedos dos pés, nos joelhos, nas unhas. E ainda uma ou outra vez uma faca o ameaçava.
– Bô cúnhece bandido, bô metido na coisa, hem?
Aquela noite gravou-se no meu espírito e não dormi. Os gritos arranhavam minha pele:
– Pelos meus filhos, capiton!
Eu, nada confortável em meus sentimentos, jurava a mim mesmo que não voltaria a assistir a tal julgamento. Tinha o acordo do médico. Vicente tremia todo como se estivesse como paludismo e, de vez em quando, trincava os lábios grossos e olhava para o chão com olhos duros e enormes, soluçando lágrimas.
– Pelos meus filhos, capiton!
O Vicente continuou preso e dava-me um dó enorme o seu aspecto. Agora, com os pés entalados numa tábua, sempre presa no mesmo lugar, sentado no chão, envolto em moscas e cismando não sei o quê, talvez no arrependimento.
A faca é que uma noite, em que de novo eu com o médico não quisemos colaborar naquele espectáculo macabro, é que lhe ia tirando a vida, usando-a pelas suas próprias mãos para se ver livre de uma vez por todas. Estava cansado de tanto interrogatório. Num repente, sacou-a de cima da mesa e nem sequer alguém teve tempo, ou intenção, de sustê-lo. Cravou-a no abdómen que se rasgou. Mas por quê deixá-lo morrer assim às suas próprias mãos? A vida de um homem é preciosa, seja ele quem for e o médico cumpriu a sua obrigação: meteu-lhe as tripas dentro. Coseu, coseu. Tratou-o e, passados dias, estava curado e bem disposto, dizendo graças. Tornou-se o chefe de outros prisioneiros que não tiveram aquele esquisito e brutal tratamento. Fez-se simpático. Dividia a comida, o pão e a água, que lhe dávamos, por todos. No fundo, tinha um bom coração.
Solto, o Vicente trabalhou, ajudando alguns dias na cozinha, e, dias depois, foi para casa para junto das duas mulheres e das filhas.
Vi-o no outro dia de bicicleta e de boina ao lado.
Jornal da Bairrada, 14 Novembro 1964
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Palhota sem luz
“24 de Maio de 1964
Naquela noite de luar, dependurado sobre a madrugada, os meninos tiveram a terra, o dia e o sol a aquecer-lhes a nudez, um tecto de colmo, o silêncio do mundo, mas não tiveram presentes, um berço pobre que fosse, as palhas de uma manjedoura ou o bafo quente de animais. Nada. Pobres como a nudez. Irmãos de tantas crianças iguais.
O pai morrera-lhes, há meses. A mãe de dor rebolara-se na terra batida da palhota e os meninos sentiram logo a dureza do chão a magoar-lhes a vida tão tenra e frágil. Sabia que por ali perto andava tropa. Em nomadização. Veio ao nosso encontro. Quando o médico [Dr José Hipólito de Sousa Franco, natural de Lisboa] lhe disse que ia mandá-la para o hospital, ficara mal do parto, embora tivesse vindo a pé até nós, ela desenhou nos lábios carnudos um sorriso triste, quase medroso. Depois, colocou no fundo de uma bacia, que fora esmaltada, mas em tal estado que se poderia ver o céu ou o mato por ela, uns farrapos sujos e neles aconchegou, com todo o carinho, os dois rebentos, cor esbranquiçada, [como nascem todos os meninos negros], e cobriu-os com as pontas dos farrapos com um olhar cheio e feliz.
Ela partia de jeep.
Eu tive que partir também para outro lugar. Nunca mais saberei nada da sorte da mãe e destas duas crianças. Mas sei que fiquei feliz pela mãe e por elas. Eram gente como nós”.
Jornal da Bairrada, 20 Fevereiro 1965
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Nota do editor
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