segunda-feira, 10 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12819: Um avião seguro, feito por um carpinteiro guineense que trabalhava para o BENG 447 (José Almeida)

1. Mensagem do nosso camarada José Almeida, ex-1.º Cabo Mecânico Electricista do BENG 447, Guiné, 1971/73:

Caros tertulianos e ex-combatentes.
Quando vi a mensagem a perguntar quem foi ou quem gostaria de visitar aquela longínqua terra onde se passaram maus mas também bons momentos, lembrei-me disto que vos estou a enviar.
É seguro e de confiança pois foi feito por um africano que era um dos nossos carpinteiros que me disse:
- Tem que levar a minha fotografia.

Eu como sou conservador tenho-o guardado religiosamente, pois estou a pensar fazer uns voos picados sobre o capim.

A outra foto foi tirada em Bissau onde me deliciava com com aqueles banhos.

Abraço
José Almeida




Guiné 63/74 - P12818: Notas de leitura (571): "Nos Trópicos sem Le Corbusier - Arquitectura Luso-Africana no Estado Novo", por Ana Vaz Milheiro (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Setembro de 2013:

Queridos amigos,
Para quem gosta de procurar as ligações entre o meio, o urbanismo e a arquitetura, esta viagem pelas antigas colónias portuguesas abre surpreendentes perspetivas.
Temos aqui a teoria geral de como a arquitetura e o urbanismo funcionaram como entidades catalisadoras em África, e a Guiné como colónia modelo foi exemplar. É uma boa oportunidade para acompanhar os grandes empreendimentos a partir do governador Sarmento Rodrigues e perceber como em tão curto lapso de tempo se moldou um espelho onde se podia mirar uma civilização aglutinadora entre o luso e o trópico, goste-se ou não era essa a profunda convicção de Sarmento Rodrigues e dos seus extraordinários colaboradores.

Um abraço do
Mário


Nos Trópicos sem Le Corbusier: 
Arquitetura Luso-Africana no Estado Novo

Beja Santos

O livro “Nos Trópicos sem Le Corbusier, Arquitetura Luso-Africana no Estado Novo”, por Ana Vaz Milheiro, Relógio d’Água, 2012, reúne estudos de indiscutível importância sobre projetos da arquitetura concebida no Gabinete de Urbanização Colonial (posteriormente Gabinete de Urbanização do Ultramar) e que em muitos casos se concretizou nas diferentes colónias africanas. A Guiné é um caso paradigmático do trabalho desenvolvido sob a égide deste Gabinete.

O Gabinete de Urbanização Colonial (GUC) foi um organismo dependente do Ministério das Colónias, criado em 1944 pelo ministro Marcello Caetano, e com o objetivo de realizar projetos de arquitetura e urbanismo para as antigas colónias portuguesas. Ana Milheiro estudou estes projetos em diferentes arquivos e viajou até às realizações. O mínimo que se pode dizer, a despeito do património se encontrar degradado, é que ele constitui uma marca de identidade cultural única face aos países vizinhos. Bastava este facto histórico para dirigirmos a nossa atenção para tais expoentes arquitetónicos.

Antes de mais, um pouco de história. O GUC foi inicialmente chefiado pelo Eng.º Rogério Cavaca. Os projetos eram solicitados pelos governadores dos territórios coloniais ou diretamente pela tutela. Verifica-se que a sua produção acompanhou os ciclos impostos pelos quatro Planos Fomento que arrancaram a partir de 1953, simultaneamente na metrópole e nas regiões ultramarinas. Qual a ideologia subjacente? Procurava-se aperfeiçoar uma imagem arquitetónica inspirada nos estereótipos das construções tradicionais portuguesas, de modo a garantir uma ligação afetiva à metrópole.

Como constatou a autora em Bissau, o trabalho maior do GUC consistiu em reforçar o papel monumental do principal eixo viário – a Avenida da República (hoje Avenida Amílcar Cabral) e o caráter de zonamento que delimita as áreas específicas da cidade: as funções tanto de residência, como hospitalar, desportiva, escolar e militar. Não foram consentidas construções em altura, razão pela qual o centro histórico de Bissau passou a ter uma escala muito harmónica, convidativa e humana. Tudo começou com o mandato de Sarmento Rodrigues, o GUC durante um longo período esteve a trabalhar quase exclusivamente para as reformas propostas por este governador, e não foi só no porto de Bissau, no restauro da fortaleza da Amura, nos bairros sociais, na conceção do aeroporto de Bissalanca. O GUC saiu de Bissau, teve intervenções em Varela, Cacheu, Teixeira Pinto, Mansoa, Farim, Bafatá e Nova Lamego. Mas há que reconhecer que Sarmento Rodrigues privilegiou as grandes infraestruturas: ponte de Ensalmá, porto de Bissau, o arranque do aeroporto, o estádio de Bissau. Ir-se-á por sucessivas etapas, depois o liceu, a associação comercial e industrial, os bairros populares, o hospital, entre outros.

Durante cerca de 30 anos, o trabalho do GUC reflete as diferentes estratégias do Estado Novo. Seja como for, o clima tropical da Guiné exigia um investimento primordial nos aspetos técnicos relegando para segundo plano os aspetos artísticos. Como escreve a autora, a Guiné tornar-se-á um caso exemplar, em parte pelo modo como as tradições simbolizadas com a casa popular vão estabelecer um padrão residencial inventariado pelos arquitetos portugueses. Depois veio a guerra de guerrilhas, a partir daí, o pragmatismo associado à atuação militar acaba por definir o caráter de algumas povoações do interior que foram reordenadas durante os anos de 1970 e cujos vestígios ainda subsistem.

Entrevistada pelo jornal Público quanto ao interesse pela arquitetura colonial, Ana Milheiro não esconde a admiração pelas realizações: “Como é que um país pobre, atrasado, desenvolve um esforço de instalação num território fora do seu perímetro, dentro de um quadro político internacional que lhe é hostil? O Portugal rural de Salazar é um Portugal que nas colónias se transforma num Portugal urbano. Os planos, as avenidas, os equipamentos: há uma espécie de projeto megalómano de que a arquitetura e o urbanismo são entidades catalisadoras. Isto é também uma experiência única, porque na década de 1950 começam os processos de independência dos outros países e nós mantemos o nosso império colonial até 1974. Nós temos uma experiência que não há nos outros países e nas outras potências colonizadoras”. E havia também um móbil primordial que o arquiteto não podia descurar, como a autora também observa: “O mais importante era respeitar a organização social e familiar do habitante africano – melhorar a casa tradicional através de alterações funcionais da planta. As técnicas e materiais construtivos deveriam ser os conhecidos pelos povos africanos de modo a que estes pudessem construir – em sistema de autoconstrução – as suas habitações. Respeitavam-se ainda os lugares dos assentamentos populares por serem considerados os melhores face ao clima, ventos, etc.”.

É uma leitura aliciante, encontrar as respostas de como construir nos trópicos, esta arquitetura de representação nacional, aquela que está nos equipamentos públicos, nos hospitais, nos liceus, nos palácios do Governo, estava esquecida. Agora o leitor interessado tem à sua disposição um livro sobre o discurso ideológico na arquitetura, é uma leitura apaixonante sobre a casa como elemento civilizador, olhar as soluções que muitas vezes vinham da arquitetura popular portuguesa adaptada aos trópicos. O livro permite compreender melhor o que o Estado Novo entendia que devia ser o urbanismo e a habitação dos civilizados naquele território que dava pelo nome de Guiné portuguesa.
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Nota do editor

Último poste da série de 7 de Março de 2014 > Guiné 63/74 - P12805: Notas de leitura (570): "A Guiné... dos mil trabalhos", em "O Mundo Português", por António Florindo de Oliveira (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P12817 : Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (33): O racismo mal disfarçado na África Lusófona, tão complicado e difícil de contornar como a divisão étnica tradicional

1. Mensagem de António Rosinha [, foto atual à esquerda; fur mil em Angola, 1961/62, topógrafo da TECNIL, Guiné-Bissau, em 1979/93]: 

Data: 9 de Março de 2014 às 00:11
Assunto: Racismo mal disfarçado na África Lusófona, tão complicado e diíciil de contornar como a divisão étnica tradiicional.

Luís, boa noite e vê se é publicável, caso contrário…cest secção!.

Diz-se que Mandela venceu o apartheid sem expulsão de brancos e asiáticos e "madeirenses",  naturais ou estrangeiros.

Ao contrário, em Angola e ña Guiné Bissau, os partidos de Amílcar Cabral e Lúcio Lara substituíram gente natural e integrada, patriota, pacífica, civilizada e destribalizada,  profissionais de toda a ordem, por cooperantes,  «impróprios e impreparados», do mundo inteiro,  que confundiram países já confusos num continente completamente baralhado.

No Club-K, Angola, de 4 de Março,  respiguei estes trechos (actuais) apenas para ajudar a explicar o quão confusas eram as ideias de Amílcar Cabral e todos os fundadores do MPLA, PAIGC e FRELIMO.

Independentemente das lógicas e boas intenções sobre a Independência e de sair "debaixo do jugo colonial", estes homens esconderam, camuflaram, disfarçaram, esbateram sempre o grande problema do racismo da cor..
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Diz o artigo do stio Club-K.Net ["Racismo e Descriminação: Unitel, Instituições Bancárias e na Ilha do Cabo - Matumona dos Santos"]

"Luanda - A nossa capital tornou-se nos últimos 4 anos a cidade mas racista ou discriminada em África no que tange a critérios de selecção no ingresso de um emprego no nosso mercado de trabalho, nomeadamente no sector privado".

(...) "Não deveríamos permitir [que] esta tamanha retardação chegasse ao nível que hoje tomou (...) Venham, das 17h40 às 18h20 horário de saídas, testemunhar com os vossos próprios olhos, a enorme triste realidade que se vive no complexo da Unitel em Talatona, e procurar compreender, analisar e raciocinar o porquê que na saída de centenas de funcionários de uma Empresa são a maioria, mais de 94%  Mestisços ou Mulatos,  e apenas uns 6% a 5% são negros de cor preta, Porquê ?" (...)

 Ora este raciocínio sobre o Mestiço/Mulato "favorecido" aos olhos de quem tem a "cor preta", é tão antigo em Angola e em todas as ex-colónias portuguesas, que devia ter sido encarado de frente pelos MPLA, FRELIMO e PAIGC, e nunca foi feito, ou por medo, vergonha, ou outro complexo qualquer.

Hoje,  ao fim de todos estes anos de independências , e de tantos assassinatos dentro do PAIGC e do MPLA (27 de Maio e outros casos em Angola, 14 de Novembro, na Guiné) e em que se fala abertamente em divisões tribais e ideológicas, e que se deve falar francamente, cara a cara, e não disfarçadamente, mas raramente ou nunca debatem olhos nos olhos o complexo  puro e duro da diferença de cor.

Esses países foram imensamente prejudicados, com a fuga e abandono por perseguições promovidas pelos próprios partidos, de gente que eram patriotas, dispostos a continuar a viver e trabalhar na sua terra, muitos engenheiros, técnicos, médicos, enfermeiros, agricultores, etc. mas não eram de cor preta.

Os movimentos que se impuseram pelas armas ao exército colonial, aos movimentos adversários e aos povos pacíficos e desarmados, só souberam fazer mesmo a guerra, nunca a paz.

Todos os dirigentes usavam e continuam a usar o discurso das culpas do cólon pela atraso dos "indígenas" em favor dos brancos e mestiços, para justificar as próprias injustiças e incompetências próprias.

Esperemos que nunca os angolanos, moçambicanos e guineenses, venham um dia acusar «cara a cara» a colonização portuguesa por não ter praticado o apartheid. [Há teorias na cabeça de muitos brancos (loirinhos) e pretos pelo mundo fora, que Portugal fez os mulatos porque não tinha capacidade de viver em apartheid).]

Só gostava um dia de ver uma explicação descomplexada aos 3 movimentos porque não protegeram nem respeitaram nem cativaram os milhares de mestiços ou brancos naturais de Angola e Guiné principalmente, que iam desde médicos, engenheiros, agricultores e armadores de pesca, mecânicos e electricistas, jornalistas e escritores, músicos e poetas e professores.

Esses movimentos que também promoveram a formação de técnicos e universitários, nem essa gente cativaram e aproveitaram, pois que muitos nem regressaram à Pátria por desincentivo total.

Foi deprimente ver os guineenses do povo, cheios de fome em Bissau, perante milhares de cooperantes vindos desde Moscovo a Quito, passando pela Ucrânia e Chechénia, a dar palmadinhas nas corpulentas costas dos governantes do PAIGC de Luís Cabral e Vasco Cabral.

Claro que o povo não tinha alternativas de fuga como a maioria dos mestiços e brancos que foram para o Brasil, Portugal, França sem passar por Ceuta ou Lampedusa.

De facto não ficaram grandes registos da parte de Portugal nem em Luanda nem em Bissau de grandes cerimónias de arrear e hastear bandeiras no dia da Independência,  devido à guerra que esses movimentos nunca pararam.

Vai levar muitos e muitos anos para um dia recuperar aquela riqueza humana que se perdeu. É uma riqueza humana que não se mede nem por barrís de petróleo nem por troncos de madeira nem por donativos e ajudas de ONG.

O facto de eu nem mencionar o nome de outros movimentos, é pelo facto de ter conhecido um pouco de alguns, e nem me passa pela cabeça terem sido eles a dominar aqueles países. Embora para muitos Retornados como eu, não houvesse qualquer diferença entre uns e outros, o que não é o meu caso.

Se Spínola tem negociado com Marcelo Caetano em 1969/70, a entrega da Guiné a Amílcar Cabral, este não teria morrido mais cedo?

Cumprimentos

Antº Rosinha

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Nota do editor:

Últmo poste da série > 26 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12777: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (32): Mário Coluna (1935-2014) na verdadeira nação "Arco-Íris" (Portugal e Ultramar e a sua selecção de futebol)

Guiné 63/74 - P12816: Parabéns a você (701): Joaquim Cruz, Ex-Soldado Condutor Auto do BCAÇ 4512/72 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 8 de Março de 2014 > Guiné 63/74 - P12806: Parabéns a você (700): António Marques Lopes, Cor Inf Ref DFA (Guiné, 1967/69)

domingo, 9 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12815: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (23): Santarém, onde volto por necessidade, por gosto e por desgosto de ver desaparecer algumas das minhas referências (Hélder Valério de Sousa)

1. Mensagem do nosso camarada Hélder Sousa (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de 2 de Março de 2014:

Caro Editores

Já faz tempo que não colaboro com nenhum escrito para o Blogue.
Coisas da vida! Mas hoje resolvi enviar-vos este texto para ser enquadrado no tema da "Cidade ou Vila que mais amei ou odiei antes da mobilização".
Trata-se de Santarém e da sua EPC e Destacamento.
Ainda não tinha visto por aqui ninguém recordar essa passagem e entendi por bem fazê-lo. O problema é que não tenho fotos da época e por isso o texto pode ser pouco apelativo. Afinal tratam-se das minhas recordações e isso pouco pode interessar a terceiros, no entanto acho que por lá passou também muito boa gente e pode ser que se sintam encorajados a trazer a público as suas lembranças.

Abraços
Hélder Sousa


A CIDADE OU VILA QUE MAIS AMEI OU ODIEI, NO MEU TEMPO DE TROPA ANTES DE SER MOBILIZADO

SANTARÉM


Vista aérea da cidade de Santarém. Foto: InLut, com a devida vénia


Responder a esta questão não é fácil, porque as circunstâncias eram diferentes conforme se estava na recruta ou com uma ocupação mais ‘folgada’, aliás conforme já foi possível verificar por recordações de outros camaradas. Mas é uma boa questão, para se perceber melhor como é que nos relacionamos com essas recordações e se elas ainda ‘mexem’ connosco. Por isso, vou também entrar no jogo.

O meu percurso militar, antes de ser mobilizado, portanto, na “Metrópole”, foi Santarém, Lisboa (Batalhão de Telegrafistas), Tancos, novamente Lisboa, Porto e Lisboa (Adidos). Porque de todos esses locais guardo recordações, vou cingir-me hoje a Santarém.

E faço-o com muito gosto porque ainda não vi por aqui recordações da Escola Prática de Cavalaria [EPC], o que lamento, sabendo da importância que tal Escola teve nas nossas vidas, esperando sinceramente que possam surgir mais depoimentos.

Como o objectivo é saber, no fundo, como é que nos relacionámos ou interagimos com as terras e suas gentes, isto podia ser muito simples: antes de ir para Santarém, gostava muito, enquanto lá estive fui ganhando saturação ao ponto de pensar que “Santarém, nunca mais!” e hoje volto a ir lá por necessidade, por gosto e por desgosto de ver desaparecer algumas das minhas referências. É preciso dizer que sou ribatejano, que fui Furriel e até aqui estou coincidente com o Armando Pires, mas depois não fui enfermeiro nem fadista o que, valha a verdade, ainda bem, pois não tenho jeito.



Bissau - Bar de Sargentos. Santa Luzia. O Hélder Sousa com o Boavida, do seu tempo de recruta na EPC.

Ir a Santarém, antes da tropa, era normal. Ia lá muitas vezes, principalmente quando estava a passar alguns dias na minha aldeia. Fui lá às “sortes”. E apresentei-me no dia 15 de Julho de 1969 para integrar a 3.ª incorporação no 1.º Ciclo do CSM. Foi no Destacamento da EPC.

Durante esse tempo da recruta foram muito poucas as folgas, os dias em que se podia sair, dar uma volta pela cidade ou arredores, para que assim se pudesse conhecer melhor e dar agora a opinião. Como noutros locais em que se tinha que produzir rapidamente militares ‘prontos’, a formação era acelerada. E tenho a ideia que havia uma espécie de competição para ver quem fazia mais e melhores ‘sargentos milicianos’, nomeadamente entre a Cavalaria (Santarém), a Artilharia (Vendas Novas) e a Infantaria (Tavira), já que as Caldas da Rainha, não sei se só com fama se também com proveito, não contava para isso.

Essa competição fazia com que as recrutas fossem duras, por si mesmas, ou até por algum exagero para maior diferenciação. Devido às constantes actividades saía-se pouco à noite. O pessoal era fortemente castigado do ponto de vista físico, portanto tinha que descansar e as actividades nocturnas não eram raras. Daí que, para a generalidade dos ‘soldados-recrutas’, acredito que o conhecimento da cidade não pudesse vir a ser muito profundo. Já aqueles que depois, terminado esse 1.º ciclo, ficaram na própria EPC em qualquer das especialidades da Cavalaria, tiveram mais tempo e talvez mais oportunidades.

Não sei como era no curto tempo do fim-de-semana pois consegui vir sempre a casa, já que a distância não era muita (45 km) e havia ligações por camioneta e comboio. Quando se saía, os mais afortunados iam até Almeirim, às febras e à ‘sopa da pedra’. Fui lá 2 ou 3 vezes por força das amizades que sempre se vão fazendo com camaradas do Pelotão e que eram de lá, caso do Aranha Figueiredo e do Boavida, cujos conhecimentos ajudavam a ‘abrir portas’.

Refiro estes dois camaradas porque o Aranha, que foi para Moçambique, encontrei-o naquela “clara e límpida madrugada”, no Terreiro do Paço, onde pensávamos que íamos apanhar o barco das 07:00 para a Margem Sul onde trabalhávamos e o Boavida porque mais tarde me veio a encontrar em Bissau conforme foto anexa tirada no Bar de Sargentos em Santa Luzia.

A maior parte das vezes, quando havia dispensa de recolher, ficava-se ali perto, no “Verde Gaio”. Também ia até ao “Quinzena”. Visitar a “Adibis”, pastelaria fina, da elite ‘scalabitana’, das meninas estudantes, era quase proibitivo já que também estava ‘infestada’ de Oficiais. Enquanto civil, fui lá várias vezes, Enquanto militar, acho que só entrei uma vez e… chegou!

Santarém tem a particularidade de se espraiar por um planalto o que faz com que fosse para onde se fosse, para a carreira de tiro com acesso pela EN 3 a caminho do Cartaxo, para a outra carreira de tiro em Vale de Estacas, para a estrada da Estação da CP e ponte de Almeirim, fosse pelo “Colégio Andaluz” para a Quinta das Ómnias, à ida era sempre a descer e depois de completamente estoirados, o regresso seria naturalmente a subir, mas parecia sempre muito mais íngreme do que na descida. E quantas vezes, para ‘abreviar tempo’, se tinha que o fazer em ‘passo de corrida’? Daí que quando saí de Santarém tivesse pensado de forma determinada que nunca mais voltaria lá. Claro, puro engano!
Voltei lá, sim senhor, para tratar assuntos pessoais, para jantares de convívio, para rever locais, para visitar a minha mãe no Hospital e assisti-la no falecimento.

Tudo o que atrás disse tem a ver com a relação com a cidade, com os locais e as pessoas. Mas foi tudo condicionado pela actividade militar. Não será esse o tema mas não posso deixar de referir alguns apontamentos que me parecem relevantes ou interessantes. Muitas vezes tenho lido que o pessoal foi, na generalidade, mal preparado para a guerra, para o tipo de guerra que acabou por encontrar, principalmente na Guiné. A experiência que tive em Santarém diz-me o contrário. Lá, pelo menos naquele 3.º Turno do CSM, a preparação foi dura, exigente (talvez nada que se parecesse com os “especiais”, mas teve alguns pontos comuns), e fortemente voltada para o tipo de situações semelhantes à Guiné.

Claro que na altura não podíamos saber, mas eles, os instrutores, esforçavam-se por nos incutir a ideia que esse seria o nosso destino. Diziam isso amiudadamente e as nossas constantes idas às Ómnias podem hoje testemunhar como isso era verdade. Nas Ómnias, na orla do Tejo, com terrenos alagados, em charcos, em terrenos enlameados, em lagoas (numa das quais, mais funda do que se pensava, um dos instruendos do meu Pelotão ia lá ficando) encontrava-se e praticava-se em locais que quem teve o ‘privilégio de usufruir’ das bolanhas não deve ter achado estranho.

Particularmente duras foram as “24 horas de Santarém”, já no final da formação, em Setembro.
Nesse ‘evento’ todos os Pelotões saíram para um local comum, no Paúl, onde lhe foi dada a possibilidade de participar e assistir a progressões, emboscadas, golpes de mão, confrontos. Após isso, em que enquanto participantes estávamos lá em baixo no terreno cada vez mais enlameado por força da chuva e revolvido pelos passos dos ‘actores’ e enquanto espectadores estávamos num plano mais acima donde se podia assistir ao desenrolar dos acontecimentos, fomos agrupados em diferentes secções para desempenharmos as missões que nos foram dadas e das quais só podíamos regressar ao Destacamento às 08:00 do dia seguinte.

Como começou a chover uma chuvinha miudinha, mas persistente, praticamente desde que saímos do Quartel e que foi progressivamente engrossando e que durou todo o ‘santo dia’, aliviando já só sobre a madrugada alta, foram realmente umas “24 horas” de grandes dificuldades, em que se pode dizer que fomos ‘ensopados até aos ossos’. Recordo que cerca das 23:00 entrámos, o meu grupo (7?, 9?, não recordo) em Alcanede e habitantes apiedados da nossa situação e estado lastimoso, convidaram-nos a entrar para uma espécie de adega onde tinham um lareira e várias coisas para comer que nos facultaram. O pão soube divinamente, os chouriços, morcelas, queijos, etc., também, mas o que recordo ainda é o fumegar das nossas roupas, a evaporação da água incorporada, pois tirámos o que pudemos e ficou tudo junto à tal lareira.

Ficámos por lá até quase à madrugada e, conhecedores da região, foi então mais fácil dar conta da missão e chegar a horas ao Destacamento. Um dos elementos desse grupo era o Aranha, que levava a bazuca. Na formação no Destacamento estavam 3 Esquadrões. O 3.º do Tenente Cadavez, o 4.º do Tenente Guilherme, que me disseram nunca ter chegado a ir a África pois foi para a NATO, e o 5.º do Tenente Tavares de Almeida.

Eu pertenci ao 1.º Pelotão do 4.º Esquadrão que tinha como instrutores o Aspirante Teixeira (diziam que tinha pertencido ao Conjunto Maria Albertina) e um Cabo que, não sendo maus tipos, tinham assumido o ‘espírito da coisa’ e foram bastante duros connosco. Duros, mas leais, diga-se em abono da verdade.

Além dos já citados Aranha e Boavida faziam parte do meu Pelotão outros elementos (obviamente) de que me lembro agora dum tal Vozone, que era um nome conhecido da vela de competição, e o nosso camarada da Guiné, Luís Encarnação, da Companhia que esteve em Canquelifá do BCAV 2922, que ainda não pertence à “Tabanca” mas já esteve em almoços na “Linha”. Falando com ele recordei-me de várias peripécias, como os patrulhamentos ao longo do caminho de ferro, a escalada da escarpa das “Portas do Sol” (dizia o Aspirante Teixeira que era para imitar os soldados de D. Afonso Henriques) em que a cada dois metros de progressão escorregávamos um, das ‘cenas’ com um camarada que dormia de olhos abertos, de outro que foi enganado e utilizou “Baygon” pensando que era desodorizante, etc..

Foi tempo de conhecer um tal Salgueiro Maia, que nos deu instrução de granadas, de um tal Mário Tomé, ao tempo Oficial de Segurança da EPC e que foi o protagonista de uma cena-aviso do tipo “casamento na Parada”.

Esta passou-se na Parada da EPC, com todos os militares tanto da própria EPC como do seu Destacamento, ao qual pertencíamos, formados e a ouvir um raspanete a propósito, ou a pretexto, de uma mãe que se teria queixado de abusos à sua filha ocasionados por militar. Fiquei sempre com a sensação que se tratou de uma encenação, destinada à “acção psicológica”, mas a verdade é que o então Capitão Tomé disse mais ou menos isto: “…. têm a mania que são machões? Acham que a instrução não é suficientemente dura? Pois vão ver como será daqui para a frente! Vão ser ‘apertados’ de tal maneira que não terão força nem para levantar o ‘piçalho’….”

Foi tempo de um grande empenhamento em aprender as ‘artes militares’. Dediquei-me à formação com toda a energia. Aprendi a teoria. Não me baldei à prática. Achava que era importante aprender e obter conhecimentos que certamente iriam ser necessários para os tempos que, convictamente, ‘sabia’ que iriam ocorrer, inevitavelmente, embora ainda tivessem que decorrer quase 5 anos.

Tive boas pontuações de tal modo que fui convidado a ‘seguir outro caminho’, o que não aconteceu. Além disso também podia usufruir do conhecimento antecipado do resultado correcto dos testes de escolha múltipla que fazíamos sentados no chão. Como sabia? Não me recordo…. apenas me lembro que fazia sempre primeiro por meu conhecimento e depois ia ‘conferir’, sendo que, por ‘precaução’, falhava sempre uma ou duas.

Lembro-me, também, como se ia ‘moldando’ as vontades do pessoal. Primeiro procurava-se valorizar a ‘dispensa de fim-de-semana’ de tal modo que isso era uma espécie de prémio, para o qual todos deviam concorrer e para tal suportar tudo. E tudo servia de pretexto para ‘cortar’ essa ‘regalia’. Por exemplo, na revista aos Pelotões do meu Esquadrão chegou a participar um Alferes, com um ar propositadamente abandalhado, mal ataviado, com a barba por fazer e a exigir o máximo de aprumo e perfeição dos instruendos perfilados, para lhes provocar alguma reacção às injustiças sentidas quando os castigavam por os botões não estarem alegadamente bem brilhantes, por a camisa não estar devidamente fraldada, por a barba ‘não estar bem feita’ (mesmo que a cara já estivesse com vários cortes).

Suprema ironia era quando, propositadamente, pisava uma bota impecavelmente reluzente (diria quase envernizada com “Búfalo”) que assim ficava com algum pedaço esfolado e depois dizia para o Cabo apontar o corte da dispensa por ter as botas mal engraxadas. Tudo isto provocava revolta. Mas o pessoal continha-se. E, de contenção em contenção, as chefias pensavam que ‘domavam as vontades’, o que era possível que sim, pelo menos no momento, e que tinham o pessoal ‘enquadrado’, sendo que aqui se enganavam redondamente, pois as animosidades foram sempre em crescendo.

Portanto, em resumo, as recordações de Santarém são boas. O que se passou foi importante. Sempre valorizei essa passagem, compreendendo todos os seus passos. Isto em termos militares que, afinal, não podemos dissociar do resto.

Da cidade em si, da sua História, da sua importância, da sua monumentalidade, a capital do Gótico Português, diz-se, isso foram conhecimentos que já tinha antes da passagem pela tropa, pelo que não me acrescentaram nada.

Quanto a ódio-amor acho que já disse. Primeiro, amor. Depois, ódio, Agora, novamente, amor e tristeza.

Um abraço para toda a Tabanca!
Hélder Sousa
Fur. Mil. Transmissões TSF
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de Março de 2014 > Guiné 63/74 - P12810: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (22): Caldas da Rainha - Os primeiros dias da recruta (Mário Migueis da Silva)

Guiné 63/74 - P12814: Manuscrito(s) (Luís Graça) (23): Gostei de voltar a Tavira (Parte VI): E de rever as salinas, a estrada das Quatro Águas, Santa Luzia, Cabanas, Vila Real de Santo António...



Tavira > Convento das Bernardas Residence > 2 de fevereiro de 2014 > Piscina interior, de água salgada, de 400 m2.


Tavira > Convento das Bernardas Residence > 2 de fevereiro de 2014 > Vista das seculares salinas de Tavira... O que os velhos instruendos taklvez não saibam é que a Comissão Europeia atribuiu recentemente  a Denominação de Origem Protegida (DOP) ao produto “Flor de Sal de Tavira” ou ”Sal de Tavira”... As características únicas da Flor de Sal são reconhecidas nacional e internacionalmente pelos grandes chefes de cozinha...A designação DOP é atribuída a um produto ou género alimentício cuja produção, transformação e elaboração devem ocorrer numa área geográfica determinada a partir de um saber fazer reconhecido... A candidatura remonta a 2011... Mas o ten Madeira e outros instrutores do CISMI, na década de 1960,  já estavam avançados quase meio século, quando nos mandavam "trabalhar que nem mouros" para as salinas...


Tavira > Quatro  Águas > Parque Natural da Ilha Formosa > 2 de fevereiro de 2014 > Foz do Rio Gilão... O topónimo Quatro Águas designa o sítio da i(i) confluência do Rio Gilão, do (ii) Canal de Cabanas, do (iii) Canal de Tavira e da (iv) barra de acesso ao mar através da ilha de Tavira...


Tavira > Quatro  Águas > Parque Natural da Ilha Formosa >  2 de fevereiro de 2014 > Arraial Ferreira Neto (**)



Tavira > Quatro  Águas > Parque Natural da Ilha Formosa >2 de fevereiro de 2014 >  Barco de pesca


Tavira > Quatro  Águas > Parque Natural da Ilha Formosa > 2 de fevereiro de 2014   > O famoso Arraial Ferreira Neto, hoje transformado em umidade hoteleira (**)


Tavira > Quatro  Águas > Parque Natural da Ilha Formosa > 2 de fevereiro de 2014 > O barco que faz a travessia para a Ilha de Tavira


Tavira > Quatro  Águas > Parque Natural da Ilha Formosa > 2 de fevereiro de 2014 > Travessia Quatro Águas- Ilha de Tavira... Tabela de preços e horários... Como seriam os preços no final dos anos 60 ?



Tavira > Santa Luzia > 1 de fevereiro de 2014 > Marginal


Tavira > Santa Luzia > 1 de  fevereiro de 2014 > Ostras da ria Formosa... No nosso tempo, no tempo em que passámos pelo CISMI, não dávamos grande valor às ostras... Alguns de nós passaram a apreciá-las em Bissau e em Quinhamel...



Tavira > Santa Luzia > 1 de fevereiro de 2014 > Casa típica, tradicional...


Tavira > Santa Luzia > 1 de fevereiro de 2014 > Táxis marítimos: tabela de preços e horários... Não tenho ideia de haver estes serviços no tempo...


Vila Real de Santo António > 1 de fevereiro de 2014 > Praça Marquês de Pombal > A placa do obelisco erguido em 1775, a expensas do comércio local das pescarias, e que simbolizava o poder do rei D. José, e do seu Secretário Estado do Reino, o Marquês de Pombal, verdadeiro fundador da cidade... 

"Vila Real de Santo António foi fundada em 1774, por vontade expressa do Marquês de Pombal, perto da foz do Guadiana. A cidade constitui um testemunho histórico importante devido ao facto de ter sido construída de raíz em apenas dois anos, segundo o padrão iluminista do século XVIII, caracterizado pela planimetria, altimetria e volumetria. A vila começou a ser construída em 1774 com base num processo de pré-fabrico  e estandardização, técnicas que a Casa do Risco das Obras Públicas empregava desde a reconstrução de Lisboa, ficando em Agosto do mesmo ano concluída toda a parte destinada à Sociedade das Pescarias.Foi rápida a sua construção, pois assim o exigiam as contingências da política face a Espanha e a vontade férrea do Marquês de Pombal, ministro do rei D. José I (1714-1777)" (...) (Fonte: CM Vila Real de Santo António).

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2014). Todos os direitos reservados.


1. E damos por encerrado, aqui, o roteiro (breve) de Tavira, aonde regressei, com "olhos de ver" e sem "mágoa no coração", 45 anos depois de ter feito o 2º Ciclo do CSM, no quartel da Atalaia, CISMI, no último trimestre de 1968 (*)...

Fiquei alojado dois dias no Convento das Bernardas Residence,  acessível na época baixa... É um notável projeto de recuperação arquitetónico, com a assinatura de Eduardo Souto de Moura... Aproveitei, obviamente, para percorrer o caminho que  ia dar à ilha de Tavira, a famosa estarad dos Quatro Caminhos, onde se toma o barco, para atravessando o Gilão, se chegar à ilha de Tavira que alguns de nós conheceram, no tempo da recruta e/ou especialidade...

Essa estrada era também uma das estações do calvário dos milicianos,  havendo instrutores que adoravam pôr-nos de salmoura, nas salinas.. Também fui, ou fomos (, eu, a Alice, e os meusw cunhados do Porto, Nitas e Gusto,, a Santa Luzia, zona piscatória de Tavira,  para provar as especialidades gastronómicas de Tavira onde o polvo continua a ser rei... E ainda houve tempo para dar um salto à pombalina Vila Real de Santo António...

Faltou, por manifesta escassez de tempo, revisitar a Cacela Velha, um dos  lugares mais mágicos da costa algarvia (,. pertence já ao concelho vizinho, de Vila Real de Santo António, ) e sobre o qual escreveu a nossa grande poetisa Sophia de Mello Breyner Andersen (Porto, 1919-Lisboa, 2004):

As praças-fortes foram conquistadas
Por seu poder e foram sitiadas
As cidades do mar pela riqueza

Porém Cacela
Foi desejada só pela beleza


[A conquista de Cacela, in: Livro Sexto, Lisboa, Morais, 1962]
 ______________

Notas do editor:


Vd. poste anterior:

28 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12783: Manuscrito(s) (Luís Graça) (23): Gostei de voltar a Tavira (Parte V): No último trimestre de 1968, quando por lá passei, não tive condições físicas e psicológicas para descobrir a cidade, as suas ruas, o seu património e as suas gentes... Pairava já na minha cabeça o fantasma da guerra colonial...

(**) Sobre o Arraial Ferreira Neto:

CM Tavira > Património arquitetónico civil:

(...) Arraial Ferreira Neto (Monumento de Interesse Público)

Localização: Praia das Cascas, junto à foz do rio Gilão. Tavira.

O Arraial Ferreira Neto está implantado no lado nascente da foz do rio Gilão, perto de Tavira, numa zona denominada Quatro Águas (confluência do Rio Gilão, do Canal de Cabanas, do Canal de Tavira e da barra de acesso ao mar através da ilha de Tavira), perto da Fortaleza do Rato.

Como conjunto edificado o Arraial constitui um vestígio de grande importância das atividades económicas da Ria Formosa e da região e um dos poucos testemunhos arquitetónicos das instalações de apoio à pesca do atum de toda a costa algarvia, constituindo um exemplo perfeito da organização social, urbanística e arquitetónica do Estado Novo.

O atual conjunto veio substituir as instalações anteriores, demolidas pelo mar no ano de 1943, existentes na praia do Medo das Cascas, na Ilha de Tavira, mesmo em frente ao local onde se localiza agora o Arraial Ferreira Neto. O conjunto foi projetado pelo Eng.º Sena Lino em 1943, tendo por base o conceito de uma unidade urbana autónoma onde pudessem viver cerca de 150 famílias, com a sua zona industrial, as suas oficinas e a sua zona habitacional e de lazer. O Arraial era o local onde se concentravam os pescadores e família, que durante a campanha aí viviam e cuidavam nas oficinas os materiais e apetrechos necessários à faina da pesca do atum.

O Arraial - que é todo murado, apenas com duas portas externas de serviço- foi construído de forma a separar inteiramente a parte industrial da reservada às habitações, que é constituída por dois largos e cinco ruas. No seu conjunto é um autêntico bairro social piscatório, com o aspeto de "uma aldeia de linhas rústico-portuguesas" onde habitariam 400 a 500 pessoas, pois oferecia instalações adequadas ao exercício da atividade industrial, assim como o conforto necessário ao descanso dos pescadores e das suas famílias. Possui edifício escolar, balneário, forno, capela, posto médico, sanitários públicos e clube, além de uma rede completa de esgotos e cinco cisternas. Possui ainda um cais de embarque apetrechado com um guindaste manual na foz do rio Gilão.

Os projetos de arquitetura desenvolvidos no auge do governo do Estado Novo são um exemplo da racionalidade formal típica da época, com o seu aprumo volumétrico e a sua métrica "moderna", o uso de "materiais portugueses" (pedra bujardada, telha de canudo, ladrilhos de barro, painéis de azulejo e portas de madeira pintada com aldraba ou postigo de reixa), e as técnicas mais atuais da altura - fundações diretas em alvenaria ordinária, escadas em betão, paredes de tijolo cheio rebocado e estruturas da cobertura em asnas de madeira.

Com o declínio das capturas de atum até 1970 e 1971, data das últimas campanhas, o Arraial deixa de cumprir a finalidade para que fora destinado. Data de então a sua desafetação definitiva, tendo-se convertido mais recentemente em unidade hoteleira.

Fonte: IGESPAR (...)

Guiné 63/74 - P12813: Crónicas higiénicas (Veríssimo Ferreira) (4): Semanas para esquecer

Anúncio do sabão Lifebuoy, 1902.. Fonte:
Wikipedia. Imagem do domínio público.


1. Em mensagem do dia 4 de Março de 2014, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, Pelundo e Bissau, 1965/67) enviou-nos a sua habitual Crónica (semanal) Higiénica para publicação.





CRÓNICAS HIGIÉNICAS

4 - SEMANAS PARA ESQUECER

As duas últimas foram tramadas: amigos que nos deixaram sem mais nem ontem e que me fizeram pensar quão mais bera devo ser, considerando o dito "só morrem os bons".
PAZ LÁ ONDE ESTEJAM.

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Mas o blogue continuou cheio de adesões, pleno de colaborações, muitas fotos e mais histórias vividas.

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E no P12733, "O que fazer deste blogue", é sugerida uma ideia no sentido de criarmos algo para que possamos usufruir os merecidos cuidados que nunca tivemos por parte dos governantes cá da terra e até colaborar para que não continuemos esquecidos. Mas... e há sempre a porra dum "mas" eu disposto que estou a entrar nessa, devo contudo lembrar, que já muitas petições foram feitas não só por parte das Ligas... das Associações... dos blogues dos Combatentes, e também individualmente, por centenas, entre os quais me incluo e hoje mesmo 1 de Março, até protestamos ao vivo.

Será talvez, através da alteração do voto, que alguma coisa se conseguirá, considerando que botar o "X" nos habituais não tem resultado apesar de que quem o fez, o fez por acreditar no que dizem os seus mentores mentirosos compulsivos. Nanja eu que até democrata sou e aceito os resultados expressos nas urnas, mas desde que o Sporting deu aquela abada dos sete a um, ao Benfica, deixei-me de politiquices e de futebol e só me tenho dado bem.
Até esse dia fui adepto de vários partidos (nunca militante)... aos dezasseis aninhos era da esquerda, com todos os pobrezinhos que trabalhávamos lá na moagem da minha terra e em 1967, após o regresso vivo da nossa Guiné, até delegado sindical dos Bancários me atrevi a ser e continuei, apesar de me terem avisado:
- É pá se queres "subir" na vida, deixa-te disso agora... espera mais seis anos... aguarda pelo vinte e cinco do quatro de 1974, que aí sim valerá a pena. Vão haver "ocupações", os patrões deixarão de o ser, a Banca será nacionalizada e então sim: "quem tiver olho é rei".

E estava certo sim senhor, não totalmente pois que apesar de tudo, subi o que havia de subir, o que prova que os, trabalho e honradez, também tinham algum valor. Mas lá que vivi em liberdade, vivi sim senhor e durante catorze anos seguidos, mais propriamente, trabalhei na Avenida da Liberdade, junto aos Restauradores, como "caixa" do meu Banco e até fui considerado o melhor de todos, podem crer.

Aceito a democracia (que remédio...) mas aceito melhor a Fisioterapia. Nesta, passam-me a mão pelo lombo e as dores vão passando, naquela passam-me a mão pela carteira e dói... dói... dói cada vez mais. Penso até que nunca mais haverá lenitivo que resolva a situação. Daí que e como atrás digo, penso não valer a pena continuarmos a querer que nos olhem doutra forma, pois que eles mesmos (os deputados) têm plena consciência de quem somos, do que nos é devido e o que ambicionamos. Só que essas boas gentes decerto... filhos e enteados doutros que já por lá estiveram e se reformaram no máximo com doze anos de trabalho insano e também os das juventudes partidárias, não querem que existamos e em boa verdade, dentro de quinze ou vinte anos NÃO HAVERÁ MAIS COMBATENTES menos tempo do que Portugal pagará as dívidas contraídas por eles e os seus partidos.

Soluções em vez de críticas? Claro que as tenho, mesmo analfabruto que sou, mas os poderes oligárquicos que são, não aceitarão... era só o que faltava.
Olhando para aqueles excelentíssimos que fazem leis a seu favor, não vejo lá ninguém que nos represente. E então porque não poderá haver pelo menos um antigo Combatente no para lamento Parlamento? Em boa verdade há lá um, qu'até esteve na Guiné, mas as atitudes que tem tomado, mais parece ser contra nós.

Repito a ideia, que a coisa só se resolverá, com consciência de votar em quem mereça. Anarquia por anarquia... mentira por mentira... mais vale dar um pontapé nos fundilhos de quem muito nos tem prometido e melhor humilhado.
Tenho dito.

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Guiné > Bissorã > 1969: Quartel utilizado pela CCAÇ 13, localizado no centro de Bissorã 
Foto: © Carlos Fortunato (2005)

P12774: O Henrique Cerqueira, que pisou a Bissorã por onde passei uma semana e deixei pacificada, fala-nos daquela pequena dificuldade no atravessamento da fronteira. Também nós tínhamos uma, a d'Elvas, e aquilo era igual. Por isso fizémos outra em terra batida, em Sto. António das Areias, ali perto de Marvão e aquilo era sempre a aviar. Portugueses para lá, Espanhóis para cá e toda a gente sabia como fazer.
Quantas pastas de dentes Colgate bem como Whiskye "Dyc", "caraméis" licores, perfumes o que mais pudéssemos por ali passaram. Havia mais ou menos um acordo entre as autoridades dos dois países, para não chatearem e cumpriam.

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P12763: Esfalfou-se este marmelo a escrever para quê? Ó pá se queres um conselho... desiste. Vá lá vá... que mesmo assim tiveste um comentário, o que significa que ainda tens um leitor (decerto teu amigo... só pode) e a melhor forma de lhe agradeceres é... não mais o incomodares.
Vai por mim... enrola a caneta no saco e dedica-te à pesca. Vai pró teu monte... vai

Veríssimo Ferreira,
Fur. Mil. da CCAÇ 1422,
Guiné 65/67,
Mansabá, Pelundo, K3, Bissau.
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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12789: Crónicas higiénicas (Veríssimo Ferreira) (3): Esquecer? Nunca

Guiné 63/74 - P12812: Acordar memórias (Joaquim Luís Fernandes) (2): O primeiro contacto com a bibliografia da guerra colonial

1. Segundo episódio da série "Acordar memórias" do nosso camarada Joaquim Luís Fernandes (ex-Alf Mil da CCAÇ 3461/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1973 e Depósito de Adidos, Brá, 1974):


ACORDAR MEMÓRIAS

2 - O PRIMEIRO CONTACTO COM A  BIBLIOGRAFIA DA GUERRA COLONIAL

O meu regresso às minhas memórias da Guiné, iniciou-se quando um colaborador e companheiro de trabalho (que também escreve livros e com vários prémios literários, de pseudónimo Paulo Assim) me falou que tinha lido recentemente um livro sobre a guerra na Guiné e que referia um episódio, de que eu lhe falara, de um acidente com militares, que tinha provocado vários mortos e feridos, na sequência de uma desavença ocorrida num jogo de futebol; que deveria ser o mesmo episódio e que eu deveria conhecer o seu autor. Prontificou-se a adquirir-me o livro. “Diário da Guiné – Lama, Sangue e Água Pura”, de António Graça de Abreu. Li-o de seguida e com sofreguidão. Era a primeira vez que lia algo sobre a guerra da Guiné, onde também tinha estado e logo a falar-me dos lugares e de pessoas com quem tinha convivido, despertando-me assim para outros interesses...

Também, já há alguns meses me havia sentido “estranho”, ao constatar que a série televisiva “A Guerra”, de Joaquim Furtado, tinha mexido comigo, quando os episódios se referiam à Guiné. Dei comigo a discorrer sobre a condução política e militar de Portugal e da Guiné, a esse tempo, interrogando-me: como tinha sido possível que se tivesse deixado acontecer os “infernos” de Guidage e Guileje. Não era previsível o que aconteceu? Onde estavam os serviços militares de informação e reconhecimento? O que faziam? Por que é que não se actuou preventivamente? Porquê?... Onde estava a competência dos senhores da guerra? Se não havia capacidade para controlar, prever e contrariar a actividade do IN, o que andávamos a fazer? Eu, que não era militar nem guerreiro, via os erros que tinham sido cometidos, remediando tarde e em desespero de causa, com elevados custos humanos, morais e materiais, o que deveria ter sido prevenido e evitado. Mas logo, num ato de autocensura, abafei tais sentimentos, pensamentos e considerações. O que interessava agora pensar nisso? Para que serviria? Que parvoíce!... Os responsáveis já não estarão entre os vivos e ninguém responde pelas causas da guerra e pelos seus erros e consequências!


Sede do BCaç 3863 em Teixeira Pinto. Ao centro, edifício do Comando. À esquerda o das Transmissões.

Quanto ao Alf. Mil. António Graça Abreu, decerto que nos cruzámos em Teixeira Pinto, embora por pouco tempo. Teremos partilhado o mesmo bar ou até a mesma mesa, mas a minha memória não o acusava. Ou se apagara o registo, ou estava imperceptível. Lembrava-me sim do CAOP 1, da cena do simulacro de ataque ao quartel na minha primeira noite, dos acontecimentos do dia 1 de fevereiro de 1973, em que fazia pela primeira vez de Oficial-Dia; do Cor. Pára Rafael Durão e do seu porte e conduta militar, que até respeitava, dos seus frugais pequenos-almoços na messe de oficiais, em mesa separada, à base de frutas (grandes mangos da Índia).

O seu livro recordou-me o número de Batalhão a que eu pertencera, as Companhias que o constituíam, tornando-me possível acordar outras memórias. E agora estava disposto a libertar-me dos bloqueios que tinha montado, recordar e sentir a guerra da Guiné, pensar nos bons e maus momentos, poder analisá-la, criticá-la, não por saudosismo ou masoquismo, nem para condenar os envolvidos, governantes, políticos e militares, mas para reflectir sobre o que aconteceu durante esses anos: sobre a política que Portugal trilhou e as suas consequências, identificando os seus responsáveis, chamando os "bois" pelos nomes.

Mesmo considerando que os erros do passado são irremediáveis, sempre poderemos aprender algo com eles, para o presente e para o futuro e se possível minorar os seus efeitos, pela palavra e pela acção.

Iria também permitir-me procurar e saber dos meus antigos camaradas e talvez um dia encontrar-me com eles; principalmente com os do meu Grupo, o 4.º Pelotão, “Os Americanos”. Espero que ainda estejam todos vivos e de saúde. Mas por onde andarão?


Guião do BCaç 3863. Constituiu-se no RI 1 – Amadora. Esteve na Guiné de 22 Set.1971 a 16 Dez. 1973. Dados que obtive nas minhas pesquisas no Blogue.

Aqui chegado, o passo seguinte foi ir ao encontro do desconhecido e a via seguida foi ir à internet ver o que conseguiria, eu, que até então, pouco ou nada tinha navegado. (Já me bastavam as longas horas que passava agarrado ao computador por razões profissionais, quanto mais desperdiçar o meu tempo livre nesses luxos).

Eis-me agora nisto: Google > Bat. Caç. 3863 e entretanto estava a entrar no Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné. Desde então tem sido quase um vício. Pena é a falta de tempo, pois é um mundo que nunca mais acaba. A corroborar a máxima: “O Mundo é Pequeno e a Nossa Tabanca é Grande”.

(Continua)
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Nota do editor

Primeiro poste da série de 6 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12802: Acordar memórias (Joaquim Luís Fernandes) (1): Monte Real, 8 de Junho de 2013, o primeiro contacto com a Tertúlia

sábado, 8 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12811: Manuscrito(s) (Luís Graça) (26): As intermitências do amor ou uma canção ligeiramente desesperada, ao cair do pano do Dia Internacional da Mulher, para todas as nossas amigas de Alex, no país sem retorno...

As intermitências do amor

por Luís Graça

Na bicha das cinco da tarde,
no pára arranca do trabalho casa trabalho,
pára não pára,
arranca não arranca, empanca,
a vida, 

a vida tão cara, 
tão avara,
tão complicada às vezes,
à tarde, 

uma mulher só na cidade,
formiguinha no meio do grande formigueiro humano,
ouves o sax do velho Luís Morais,
evocando as cores das impossíveis ilhas tropicais,
às cinco da tarde, 
na RDP África,
Lura, essa voz magnífica,
amor ca tem
o amor que não há,
o amor que não chega, 
nem por e-mail,
toupeira, 

nas autoestradas das linhas de montagem
onde pára arranca empanca a vida,
em viagem,
ah! que pena, 
já não se escrevem mais cartas de amor,
diz o locutor de serviço,
com selo e lacre, 

envelope fechado 
e carimbo do correio,
entregue pelo moleque lá no musseque,
para certificar a data-hora dos nossos desencontros,
aqui e agora, 
ou lá no Puto, Portugal,
a propósito de alguém que se foi embora
e de quem não fizeste o luto,
o namorado que irá morrer na guerra colonial.

Tiram-te a pele, 

o tutano,
e, de permeio, o amor, 
o doce engano,
e não há coração que aguente
o pára arranca da bicha do trabalho casa trabalho,
a gigantesca centopeia de homens e mulheres sós na cidade,
na segunda circular, 

no IC 19,
na mesa a toalha barata, 
aos quadrados,
a sopa fria, 
os fugazes amores de verão,
os suores da meia estação,
veste, despe o robe,
e no outono a depressão,
e se há inferno é no inverno,
a massa fria polar

da solidão,
a caixa do correio cheia
por causa dessa coisa do spam,
desesperando por esperar
um toque de telemóvel, 
um msn, 
um sinal,
a campaínha,
a cama, 
os lençóis desfeitos,
à tarde, demasiado tarde para amar
no Monte Abraão,
uma mulher no pára arranca empanca da vida,
nos anéis circulares da cidade sitiada,

a cidade anaconda,
a paixão de quarentena
aos cinquentas e tais,
o corpo exangue, 

o desejo, surfando na onda,
a doença do amor, letal,
proibido amar,
diz o semáforo, vermelho,
e não é amor, é dor,
é saudade, diz a morna,
que o B.Leza faria cem anos
se ele ainda hoje fosse vivo,
lá no Mindelo piquinino,
às cinco da tarde a casa vazia,
os filhos que partiram
mas deixaram cá as fotos, emolduradas,
de quando eram bebés,

lindos de morrer,
ternurentos,
e eram filhos de sua mãe,
ah! as intermitências da liberdade vigiada,
o guarda-mor da saúde, totalitário,
mantendo tenso o cordão sanitário
que estrangula a vida,
a pele esticada, 
o tutano chupado,
a merda da vida, fodida,
que o aumento esperança média de vida te traz,
sobre os carris dos quilómetros 

do teu têgêvê sem futuro,
as contas por pagar,
a casa hipotecada à banca,

os anos que faltam para a reforma,
o risco de cancro da mama,
a carreira amorosa congelada como a feijoada,
o multibanco do coração cor de rosa fora de serviço,
os cheques que vencem 
antes de a paixão esfriar e morrer,
ao virar da última rua do quarteirão,
no pára arranca empanca
da casa trabalho casa,
e o Ribeiro Sanches, 
físico-mor do reino no exílio,
a dizer-te que não há cura para os males de amor
e, se a paixão é doença, 
não sei o que fazes aqui,
parada na maldita picada,

minada,
que te leva do trabalho para casa
e da casa para o trabalho,

e um dia para a casa mortuária,
o ninho da cegonha abandonado,

a casa vazia,
a sopa fria no prato,
o trabalho sem pica,
a vida sem sal, 

sem o teu chabéu de comer e chorar por mais,
stress, the kiss of death 
or spice of life,
cada meco a falar sozinho
para o boneco,
no bar do fast food,
emparedado,
no comboio do Cacém,
no autocarro da Carris,
na CRIL, na CREL
,
no carro comprado a prestações,
o último amante, romântico ma non troppo,

morto em Israel,
os amigos de Alex cada um para seu canto,
e o baile, combinado, dos anos sessenta
que ficou para as calendas gregas,
quando a crise acabar,
as flores no cabelo,
o Make Love Not War,

o All You Need is Love,
Vietname nunca mais,
black power
blá-blá…
em plena guerra fria a quente,
o terror do nuclear ao sol poente.

E a tua velha senhora no fim da estação da vida,
em casa à tua espera,

o Alzheimer devastador,
o avião  que não mais faz escala na tua África perdida,

na tua adolescência de Luanda e as suas ilhas, 
a restinga do Mussulo,
o meu tarrafe do Geba,
as balas tracejantes,
o teu Huambo sem meninos à volta da fogueira,
o comboio para Benguela metralhado,
os erros meus,
as doces ilusões,
terríveis as deceções,
as tuas negras emoções,
os amanhãs que não cantam mais,
o mundo que a gente queria mudar de repente,
assim com um toque de varinha mágica,
a crise de valores,
a profusão de cores,

o pilão dos teus cheiros e sabores,
e a muamba que já não é mesma muamba,
nem muito menos o óleo de palma,

a cachupa do nosso contentamento,
aos fins de semana,
o muzonguê frio no fim da rebita,
de manhã ao acordar, 
para mais um dia, sem pica,
para afivelar a máscara 
e desempenhar os papéis
que os outros esperam de nós,
l’enfer, c’est les autres,

o inferno são os outros...

Não te adianta, amiga,  chorar 
sobre o leite de coco derramado,
ou dizer que fizeste tudo errado,
o amor da tua vida, 

o curso, 
o emprego,
os filhos, 
o país de retorno que não era o teu,
o divórcio,
o século ao dobrar do milénio,
a liberdade avençada,
porque é esta é a tua história, 
mesmo indevida,
este é o teu tempo e o teu lugar,
e até pode ter um final feliz,
a tua telenovela das cinco
no pára arranca empanca da vida,
só depende da autora do guião
e do tempo de reflexão que antecede a ação,
deixa o carro na garagem, 
compra um passe social,
vai a pé ou de metro,
mas não trepes pelas paredes,
atira a matar, 

não de Kalash mas de ternura,
direitinho ao coração
que diz que não aguenta mais uma paixão 
aos cinquenta e tal,
querida amiga, afinal,
fomos feitos para amar 
e desamar, 
esperar e desesperar.
viver e morrer,
e não há volta a dar,
se há uma antídoto para a morte,
é o amor, 
escrevia o Saramago, o mal amado,
e eu acho que ele tinha razão,
mas o meu livro de culinária existencial
diz para lhe acrescentares
uma pitada de humor quê bê,
ao amor...
Se conseguires rir-te do amor, 
estás salva.

Carpe diem, amiga,
compra um bom vinho tinto, 
encorpado, 
do Douro ou do Alto Alentejo,
e põe um cêdê,
ouve a tua Mariza Monte
ou grita à janela do Monte Abraão
Amor I Love You,
porque gritar faz bem,
gritar à janela a plenos pulmões
liberta a tua energia negativa,
esses miasmas, esses iões,
manda à merda esses cabrões.
e depois senta-te,
no sofá,
desliga a droga da televisão
e põe a máscara da tua serenidade,
respira fundo,
dá tempo de antena a ti própria,

lambe as tuas próprias feridas,
que a vida não se delega, 
nem se congela,
nem se põe entre parênteses.
Ou então pinta um grafito 
nas muralhas da cidade.
Vi um há dias:
Amor ? Amor ? … Amor és tu!
Só podia ser de um adolescente,
apaixonado, doente, 
como tu,
no teu caso, eu sugeria 
uma pequena emenda, subtil:
Amor ? Amor ?... Amor sou eu!


E ninguém morre, louco, 
de amores intermitentes,
no píncaro do verão da nossa raiva, 
aos quarenta graus centígrados,
com as febres palúdicas,
com as velhas e malditas sezões da África nossa,
no pára arranca empanca do trabalho para casa
e da casa para o trabalho:
dizem que a vida é bela
e que, afinal,
somos nós... 
que damos cabo dela.

PS – Querida amiga de Alex, 
minha querida amiga,
no país sem retorno,
não sabia o que te dizer 
com princípio, meio e fim,
mas se isto fosse um poema, 
era recado,
uma canção ligeiramente desesperada,
a deixar no voice mail,
e seria uma coisa assim,
sem palavras a mais:
vais ver que a dor passa,
que, com esse  coração, ainda aguentas,
e que já não é pecado,
o amor aos cinquentas... 

e tais.

Alfragide, 15/12/2015. Revisto, 8/3/2014

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Nota do editor:

Último poste da série > 7 de março de 2014 > Guiné 63/74 - P12804: Manuscrito(s) (Luís Graça) (25): O Pepito que eu conheci... em 16/2/2006 e que, no fim da conversa de 1 hora, me fez um pedido algo insólito: um obus 14 para o Núcleo Museológico Memória de Guiledje...

Guiné 63/74 - P12810: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (22): Caldas da Rainha - Os primeiros dias da recruta (Mário Migueis da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Migueis da Silva* (ex-Fur Mil Rec Inf, Bissau, Bambadinca e Saltinho, 1970/72), com data de 24 de Fevereiro de 2014:

Olá Luís!
Já terás percebido que o tal desenho das Caldas que remeti ao Vinhal não passa de uma “ilustraçãozeca” inserta nos meus escritos da tropa, que pretendo possam vir a reflectir um pouco “aqueles anos de castigo” – falo por mim – em que, por paradoxal que isso possa parecer, o ridículo das situações, o humor e a boa disposição, andaram de mãos dadas com o medo, a ansiedade, a tristeza, a raiva, a dor, a própria morte.

O que até agora escrevi – não cheguei ainda à Guiné – nada tem, a não ser um pouquinho de raiva, dos últimos seis condimentos atrás referidos, consistindo, praticamente no seu todo, ao relato de curtos episódios por mim vividos, e, pois, verdadeiros, tão verdadeiros como caricatos e com carradas de humor.
Se conseguirei ou não transmitir com letras e algumas imagens auxiliares essas verdadeiras palhaçadas dos meus tempos das Caldas e de Tavira e também da própria Guiné - se bem que, por aqui, com a mudança brusca das coordenadas geográficas, o humor-humor se vá desviando para o chamado humor negro -, só o futuro, com o feedback daqueles que me possam vir a ler, poderá informar. Talvez tu próprio me possas dar, em primeira mão, esse retorno, o qual, pecando por insuficiente para valores estatísticos, terá, no mínimo, o condão de me motivar ou então, num gesto de sinceridade que agradecerei, a aconselhar-me a voltar os meus esforços para coisas menos exigentes e, porventura, mais frutuosas, poupando-me a desperdícios de tempo e vãos sacrifícios de memória. Nesse sentido, estou a anexar a tal “pontinha do trabalho” que, curioso que és, me estás a pedir (claro que seleccionei a parte do texto que o boneco já remetido ao Vinhal ilustra, ficando, assim, completas as duas páginas correspondentes ao “par de botas”, parte do primeiro capítulo, com o sugestivo título “Os primeiros dias da recruta”, que poderá vir a ser alterado para, por exemplo, “As primeiras impressões”, “Os primeiros dias de um soldado”, “Os primeiros banhos nas Termas da Rainha” – aceitam-se sugestões).

Quanto às “tintas da china de Tavira”, olha que eu falei-te de uns apontamentos a tinta da china e, no caso concreto, os ditos até foram feitos em papel de embrulho - que mais se podia esperar de um simples soldado instruendo a centenas de quilómetros da mesada dos papás?!... “De modos que” a qualidade, com o decorrer dos anos e com os ataques cerrados das traças, deixa muito a desejar, em nada abonando a valia do mestre e os pergaminhos da editora (leia-se “do blogue”). O que eu posso e tenciono, mais à frente, fazer é reproduzir para um suporte em condições e então, sim, estarão os apontamentos em condições de serem vistos e, eventualmente, publicados. De qualquer forma, vou compensar-te com um dos guaches que pintei nas Caldas (já como cabo miliciano), após levar cinco dias de detenção (oficial, pois claro), por ter “respondido mal” ao comandante do Regimento, quando este me interpelou na mini carreira de tiro, durante o tempo de instrução. Acho que tem muito a ver com “a cidade ou vila que mais odiei”, dando a ideia – no meu caso – de uma postura algo rebelde, com muita dificuldade em submeter-me à rígida disciplina militar, para a qual eram dirigidos os meus ódios e, não propriamente, para a cidade que, conforme referes, também a ti não deixou “particulares recordações”. Como o guache está em tamanho “A-3” e não estava ainda digiltalizado, tive que providenciar uma redução para A-4, razão pela qual só agora te estou a remeter o pretendido. Repara na data: 07/09/70. Na altura, ainda não estava mobilizado, mas, daí a mês e meio (18/11/70, véspera do meu aniversário), estava a embarcar para a Guiné).

E, então, onde param os infantes, que não dão a cara à luta, falando das recrutas e das especialidades, durante as quais levaram, como nós, “até ao céu da boca”?!... E a cavalaria?!... E a artilharia – pum! pum!... Ou avançam de uma vez ou então…

…“Siga a Marinha!...”

Confesso que, para além do mais, admiro muito em ti a tua entrega de corpo e alma a este bicho lindo que criaste e à energia que possuis ou inventas a cada instante para o manter vivo e vibrante. Assim o queiram todos os amigos e simpatizantes.

Um grande abraço,
Mário Migueis

P.S
Ainda a propósito das “tintas da china”, não sei se reparaste que o Fernando Gouveia, que, ao longo do tempo, se tem revelado grande entusiasta do blogue (penso que terás idêntica opinião), continuando a contribuir com interessantes textos e, muito especialmente, com belas fotografias da Guiné, com destaque para a interessantíssima Bafatá, que tínhamos ali a dois passos, comentou que também gostaria de ver os meus desenhos. Como vês, com a tua precipitação, deixaste-me ficar mal. Vê lá se arranjas maneira de me desculpar, talvez com a promessa de que o próximo boneco será servido em sua (dele) honra.

Para ele e para o Vinhal mais um abraço muito amigo.

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Os primeiros dias da recruta

…/…

Ai, pois é, e por isso é que me fazia espécie ter que me sujeitar aos desaforos e impertinências daquele simples 2.º Sargento da Companhia, que, cheio de despacho e com a colaboração de dois Cabos quarteleiros, superintendia na distribuição das fardas aos novos guerreiros do Império. Mal aquela besta me viu abrir a boca para dizer que calçava 44, enfiou-me, a correr, nas mãos, dois pares de botas n.º 47 e uma boina que, de tão grande e espalmada, achei atentatória da minha dignidade!... “Por amor de Deus!... Mas que raio de tropa é esta?!... “, pensei eu, indignado.
- Desenrasca-te!, - grunhiu o “sorja”, já voltado para a vítima seguinte.

O ar tristonho das "47-BL"

O Ferreira tivera mais sorte e, já defronte de um dos espelhos do balneário, ajeitava, com pedantismo, a micro boina à comando, que um dos quarteleiros, menos estúpido que o chefe, lhe reservara. Mas, este, se calhar, até tinha razão com aquela do “desenrasca-te!”, porque o que é facto é que, dois dias depois, já eu conseguira trocar as botas com um calmeirão de outra Companhia. Casualmente, vi-o a atravessar a parada, e o especial aspecto do seu trajar chamou-me imediatamente a atenção: devidamente fardado, com a lustrosa farda n.º 3 encimada por um quico que procurava encobrir-lhe uns olhitos envergonhados, calçava, não as botas da praxe, mas - espanto dos espantos! -, uns sapatos ténis “civis”, por sinal à beira de se desintegrarem, tal o seu estado de ruína. Aproximei-me, curioso, e, feita a verificação mais de perto, constatei que, sem dúvida para que o peito dos pés não lhe saltasse para fora dos “sapatões”, trazia estes amarrados com vária voltas de cordel, tal como os jogadores de futebol faziam antigamente com as “chuteiras”.

O "Calmeirão", ainda sem as "47-BL" 

- Eh, pá!, não tiveste direito a botas?!... - abordei-o eu com algum cuidado, não fosse melindrar o senhor de tão perigosas “solhas”.
- Os filhos da puta não têm botas para gente adulta! - respondeu o calmeirão, olhando, cabisbaixo, para a sua triste figura.
- Não têm botas para gente adulta?!... Não têm o caraças!... Então e estas, são para gente quê?!...

As bochechas do calmeirão, que era loiro, de peles muito sedosas e brancas como o leite, avermelharam-se de espanto perante a magnificência do meu calçado.

Nem era tarde, nem era cedo, poupámos as palavras e demos corda às botifarras.

Cheios de orgulho, já em frente à caserna da 2.ª Companhia – que era a dele -, eu e o meu novo amigo admirávamos o nosso novo par de botas: eu, nas 44 dele, que me serviam na perfeição, e ele, nas minhas 47, que só lhe apertavam um pouquinho no “dedão” do pé esquerdo.

- Arranja umas meias de nylon, que não enchumaçam tanto! – aconselhava eu ainda o calmeirão, cuja beiça inferior, avermelhada e grande como o dono, se babava de contentamento.

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Texto e ilustrações: © Mário Migueis da Silva (2014). Direitos reservados.
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de Março de 2014 > Guiné 63/74 - P12807: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (21): Caldas da Rainha, RI 5, os autocarros de fim de semana que iam até ao Porto e o maior cagaço que eu apanhei na minha vida... (Henrique Cerqueira)

Guiné 63/74 - P12809: Bom ou mau tempo na bolanha (47): De Encheia pediram reforços (Tony Borié)

Quadragésimo sétimo episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.



O Cifra abre o seu diário e vem lá aquilo que todos nós antigos combatentes já sabemos.
Numa página, que não tem data, diz que do destacamento de militares, que na altura se encontrava na povoação de Encheia, do lado de lá do rio, onde o único contacto físico com as forças militares mais próximas, que era o aquartelamento de Mansoa, apenas usavam uma pequena lancha, com motor fora de bordo, que não levava mais do que seis pessoas, que atravessava o rio, viajando depois por um labirinto de árvores rodeadas de água e lama, durante a maré cheia, pois era assim que recebiam semanalmente alguns alimentos de primeiras necessidade.

Continuando, pediram reforços, pediram ajuda, estavam mais uma vez debaixo de fogo, aqueles militares que lá se encontravam foram bastante sacrificados, eram flagelados quase dia sim dia não, eram parte de uma companhia do Batalhão de Artilharia 645, reforçada por uma secção do pelotão de morteiros, que não me lembra o número, que estava estacionado em Mansoa, deles, já aqui falei por diversas vezes, pois muitos deles eram os meus heróis.

Estavam a ser atacados e ainda não havia abrigos, onde se estava a improvisar um pequeno aquartelamento.
Noutra página, também sem data, vem lá a dizer que o Cifra foi a uma aldeia, um pouco retirada do aquartelamento, para os lados de Porto Gole, assistir à cerimónia do “choro”, onde estavam todos vestidos a rigor (foto em baixo), que era uma cerimónia onde velavam e enterravam um morto, o qual tinha sido uma pessoa importante quando vivo, mas que levou com duas balas mortíferas, “à queima roupa”, de um grupo de guerrilheiros que andava naquela zona a recrutar elementos para as suas forças revolucionárias, que lutavam pela independência do território. Como ele disse que não, pois era fiel às tropas portuguesas, até tinha uma pequena bandeira de Portugal, que lhe foi dada pelos militares, que sem saberem, ao dar-lha, sentenciaram a sua pena de morte. Foi eliminado, pois assim servia de exemplo.

Mais à frente diz que no dia 2 de Dezembro, que deve ser de 1965: Um grupo de militares, que tinha saído, pela manhã, em normal patrulha, regressa ao aquartelamento com um guerrilheiro de raça branca, fardado com roupa e equipamento militar de origem chinesa, com documentos em seu poder, que se considerava “capitão”, falava algum português, espanhol e inglês, e vinha sendo açoitado, pois a sua cara estava com algum sangue, por milícias de etnia “fula”.
Encontraram-no, descansando, ou dormindo, dentro de uma morança, junto de diversas raparigas que deviam de ser guerrilheiras, numa aldeia quase abandonada, que já estava debaixo de vigilância dos tais “fulas”, que também serviam de guias e tradutores, que auxiliavam as forças militares já havia algum tempo.
As raparigas, que poderiam ser guerrilheiras ou não, vinham amarradas umas às outras com uma corda, como era habitual, pelo menos naquele tempo. Os militares soltaram-nas a uns quilómetros do aquartelamento, a mando do Comando do Agrupamento, isto foi o que contaram ao Cifra, alguns militares. 

Os militares chamaram a polícia do estado, e nesse mesmo dia, o guerrilheiro que se considerava capitão foi para a capital da província de helicóptero.

O Cifra, não sabe onde é que foi buscar isto de etnia “fula”, pois o aquartelamento estava em zona “balanta”, mas é o que lá vem escrito e, também não sabe qual o destino do guerrilheiro, sabe só que foi de helicóptero para a capital da província.

O Cifra vai fechar o diário, já chega de guerra por hoje!

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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12785: Bom ou mau tempo na bolanha (46): Todos fomos cowboys (Tony Borié)