segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Guiné 63/74 - P13841: Notas de leitura (647): “Triângulo de Guerra”, de António Garcia Barreto, Edição de Maria Simão, 1988 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Março de 2014:

Queridos amigos,
Ainda hoje é operacional a máxima de Ortega e Gasset “Eu sou eu e a minha circunstância”. A nossa circunstância na guerra de África foi aquele tempo, aquele local, aquela missão.

Chamou-me a atenção este livro de António Garcia Barreto, que fez comissão em Moçambique. O seu romance assenta numa sólida arquitetura, num domínio soberbo da linguagem, numa manipulação bem doseada entre bares, sexo pago e a tempestade na vizinhança da guerrilha. Um romance que é um bom termo de comparação com a nossa guerra na Guiné: no universo de Garcia Barreto há milhares de quilómetros, há colunas de reabastecimento intermináveis e a atmosfera do Índico.

Para ler, para saborear boa literatura, e poder comparar.

Um abraço do
Mário


Triângulo de guerra: Um livro soberbo, injustamente esquecido (1)

Beja Santos

“A guerra é o vértice de uma geometria especial, em que os outros dois são a bebidas e as mulheres do acaso, envolvendo-nos como uma tempestade da qual não sabemos como vamos escapar, obrigando-nos a ir de um vértice para outro, ora de encontro à dureza dos dias no confronto com a guerrilha, ora à procura do apaziguamento momentâneo e fogaz que nos faz esquecer a ansiedade e o medo que muitas vezes se veste de um despreendimento insensato perante o perigo, de um desprezo pelo que nos possa vir a acontecer”.

“Triângulo de Guerra”, de António Garcia Barreto, Edição de Maria Simão, 1988, é uma obra de um autor com créditos firmados tanto na literatura infanto-juvenil, ensaio e ficção, é uma narrativa muitíssimo bem urdida de alguém que faz uma comissão militar numa região portuária, aparentemente vital (Nacala?), tempo missão reabastecer quartéis no território da guerrilha.

Por uso e costume, confino-me à literatura da guerra da Guiné, abro-me exceção quando leio relatos poderosos e primorosos que não devemos ignorar. O escritor António Garcia Barreto traça perfis admiráveis (direi inultrapassáveis), trata o tédio com cor, forma, razão e desrazão, é capaz de descrições de cortar o fôlego como aquela em que apresenta a localidade onde tem a sua faina ao serviço dos reabastecimentos: 

  “Já lá vão longos meses, tantos que lhes perdi o conto na voragem dos dias sem sono, desde que aportei a este enclave de casario baixo de adobe e pedra de entre o qual sobressai um ou outro casarão de matriz colonial e desponta a velha igreja caiada de novo, onde cheira ao incenso que o padre missionário queimou na última cerimónia litúrgica. Batidos pela água do mar verde-azulado há restos da antiga fortaleza guardiã de impérios da pimenta, defendida por meia dúzia de canhões adormecidos, conservados numa grossa capa de ferrugem e verdete, postados entre as ameias como velhos à janela, desconsolados da vida, sonhando glórias passadas”.

Há um tenente tarimbeiro, que ele designa por Cabeça de Tuba, pertence, por inerência àqueles recortes militares dignos da galeria da estilística: 

“A estética do seu porte e a eficácia do seu gesto assumiam o valor de um arcabuz na guerra moderna. Conseguiu os galões após vinte anos de tarimba a comer feijão com massa, a remoer desditas e a decorar o código de disciplina militar. Foram anos difíceis, é de crer, marcando passo ao som de clarins roufenhos tocados por músicos de coreto distraídos da função e recebendo ordens sobranceiras de superiores atacados por crises de bílis que sonhavam com campanhas napoleónicas. Pavoneava os galões com o orgulho tosco de quem chegou no fim da jornada e recebeu um prémio de consolação. Mas isso era o menos, o pior é que era mau ou fazia por sê-lo. Os negros fugiam dele como da encarnação de um espírito maligno, não se atrevendo a enfrentar aquele buldózer de carne e músculos que, se fosse preciso, levantava a mão da pandeireta e estatelava-a na face amedrontada do tarefeiro. Com a tropa era mais brando, mas o sorriso escasseava e os soldados evitavam-no, escapando aos seus temperos cíclicos que se manifestavam como borrascas tropicais”.

Há sexo automático, desanuviador, há as operações de carga e descarga, apresentam-se os colaboradores deste oficial de reabastecimento: 

“O gordo que ali vai transportando o corpo com a elegância de um pato-marreco, é o Colaço, mas os camaradas tratam-no por Rapa-Malgas, cognome nascido no refeitório da recruta quando o viram comer com gula maior, sem ligar à qualidade nem à substância. O outro que o acompanha chama-se Rodolfo, é citadino de bairro limítrofe, com muita astucia no trato e um tanto gozão. Podia ainda falar-vos de um outro elemento que com aqueles faz um trio que irão conhecer melhor. Chama-se Belarmino, mas como é prematuramente calvo, todos o referenciam por Venerável Careca”

Temos autor mordaz, perscrutante, fazendo águas-fortes destes seus colaboradores: o Rapa-Malgas tem uma figura grotesca, um quase hipopótamo, o pessoal às vezes abusa do álcool, há cenas pancadaria, é depois necessário negociar com a polícia militar.

É um autor que sabe arrancar com mestria qualquer capítulo, não nos deixa capitular a atenção: 

“É domingo e cheira a pó. Pássaros compõem no arame farpado uma coreografia de pequenos saltos, pios e bateres de asas, indiferentes aos espigões de arame. Ao longe, por um trilho inclinado, vem a lavadeira trazer-me a roupa lavada e engomada com um esmero de ferro a carvão, de que há inelidíveis sinais: vejam-se estas pequeninas marcas de fagulhas rebeldes que pousaram na minha camisa”

Sabe-se que estamos num espaço amplíssimo, Moçambique, daí a naturalidade com que o autor escreve: 

“Recebo notícias de fortes ataques a 200 quilómetros desta cidadezinha costeira onde reparto as angústias por dias incertos”

De vez em quando, ele integra colunas de reabastecimento e vai relatando as experiências, especifica a carga de tensão, nunca deixando de conferir lucidez à vida que leva nessa retaguarda, mesmo a aturar o Cabeça de Tuba, o pandemónio da logística. África espanta-o, deixa-o pequeno perante uma natureza que se debate entre o colossal e o medonho: 

“Uma trovoada esparsa nasceu por detrás do morro a norte da cidade a avançou sobre a baía numa medonha alegoria de clarões e raios caldeado de chumbo e ocre, logo seguida por uma bátega de água intensa e pesada que tudo lavou e alagou nos breves minutos da sua passagem. Sob os telheiros de chapa ondulada ficou a ressoar, no silêncio da manhã uma música de cristais de chuva. Assusta-me e fascina-me esta grandeza tão própria de África. As distâncias não contemporizam com desejos de apressadas viagens, são longas rotas de milhares de quilómetros que se medem pela paciência em percorrê-las ao sabor do imprevisto. São extensos os principais rios e lagos, a dar com o tamanho do continente, como são grandes e descarnados os imbondeiros, esqueletos desiludidos no meio da chana”.

E a morte entra em cena, o alferes vai perder dois soldados que morreram e outro que desapareceu quando o posto avançado de reabastecimento onde estavam deslocados sofreu um ataque inesperado, era a primeira vez que tal acontecia a um apoio logístico, quem sobrou estava em estado de choque, vagabundeava por ali sem tino nem destino. A narrativa começa a ensopar-se pela exaustão, torna-se mole, escrevem-se aerogramas com fingimentos, há que disfarçar que tudo parece correr bem dentro daquele triângulo em que o autor apascenta o tédio. O Cabeça de Tuba é omnipresente, vociferante, inquisitorial, untuoso com os superiores e com os fornecedores, afinal ele é um senhor todo-poderoso no reino dos comes e bebes. E há um restaurante, um oásis entre os bares do cais, algo importante, o Galo Dourado com receitas portuguesas, a começar pela caldeirada à pescador. A guerra corre, o tempo escorre.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13824: Notas de leitura (646): “Os congressos da FRELIMO, do PAIGC e do MPLA: Uma análise comparativa”, por Luís Moita, CIDAC/ULMEIRO, 1979, e "Aprender português na Guiné-Bissau": Um manual do aluno datado de 1994 (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P13840: Parabéns a você (810): TGen António Martins de Matos, ex-Tenente Pilav, BA 12 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 2 de Novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13836: Parabéns a você (809): Abílio Magro, ex-Fur Mil Amanuense do CSJD/QG/CTIG (Guiné, 1973/74)

domingo, 2 de novembro de 2014

Guiné 63/734 - P13839: História da CART 3494 (1): A ACTIVIDADE OPERACIONAL DA CART 3494. A OPERAÇÃO «GUARIDA 18» -XIME-03FEV1973 (Jorge Araújo)

1. Mensagem do nosso camarada Jorge Araújo (ex-Fur Mil Op Esp / Ranger, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/1974), com data de 27 de Outubro de 2014:


Caríssimos Camarada Luís Graça,

Os meus melhores cumprimentos.

Durante os treze meses em que o contingente da CART 3494 marcou presença no Xime, permitiram-nos quantificar um vasto leque de ocorrências, em muitas delas colocando o universo do seu efectivo em situação difícil, como é possível conferir pelas sucessivas narrativas que produzi e já publicadas anteriormente (ver postes).

Os factos a que me reporto no presente texto, sendo específicos à participação numa acção concreta – a Operação «Guarida 18», realizada em 03FEV1973 – eles pretendem sinalizar quão problemática sempre foi a Actividade Operacional naquela região, com destaque para a segurança terrestre e marítima, patrulhamentos, emboscadas e diferentes operações, reforçando os testemunhos incríveis de outras épocas.

Com efeito, para a minha história cronológica, a participação nesta operação coincidiu com a última missão em que estive envolvido nesse território – o XIME… e que missão. Este relato é ainda a resposta prometida aos camaradas João Silva e Hélder Valério que, a seu tempo [P12141], me questionaram sobre este tema. 

A ACTIVIDADE OPERACIONAL DA CART 3494
(A OPERAÇÃO «GUARIDA 18» –– XIME-03FEV1973)
A minha última missão… entre a Ponta Varela e Lisboa 

I– O XIME - DESTINO DA CART 3494 EM 1972

I.1 -ASPECTOS SOCIOGEOGRÁFICOS

ACART 3494, a terceira e última unidade operacional do contingente do BART 3873, chegou à localidade do Xime no dia 28JAN1972, 6.ª feira, um dia depois de ter concluído no C.I.M. [Centro de Instrução Militar], na Ilha de Bolama, o seu período de I.A.O., realizado entre 28DEC1971 e 27JAN1972. A deslocação da Companhia, bem como das restantes unidades do Batalhão, foi feita em L.D.G. [Lancha de Desembarque Grande] até ao seu Cais.Aí chegados, a CCS, a CART 3492 e a CART 3493 seguiram em coluna-auto para os seus respectivos Aquartelamentos, respectivamente, em Bambadinca, Xitole e Mansambo, enquanto os militares da CART 3494 apenas tiveram necessidade de percorrer [+/-] duzentos e cinquenta metros para se instalarem nos seus novos apartamentos no designado «Aquartelamento do Xime».

Mapa referente à distribuição geográfica do contingente do BART 3873

Foto 1 – Cais do Xime [Maio/1972]. Estrutura construída em troncos de palmeira, cravada no tarrafo do Rio Geba, encimada por um estrado de tábuas. Do lado esquerdo é a margem direita e do lado direito a margem esquerda. O guindaste era utilizado no transfere de madeiras, animais e outros objectos mais pesados, dos barcos para o cais ou vice-versa. A localidade imediatamente a seguir ao Xime, para leste, era Bambadinca, sede do BART.

I.2 -MISSÕES

De entre as diversas missões atribuídas diariamente à CART 3494, sobressaía a relacionada com o conceito «segurança», por efeito da sua situação sociogeográfica, merecendo destaque a rede hidrográfica, com a qual se estabelecia a fronteira terrestre, de que são exemplos os rios Geba e Corubal [mapa e foto 1].

Vinte e quatro sobre vinte e quatro horas, aquele que é o fundamento de qualquer missão militar em contexto de guerra, o efectivo da CART 3494 desenvolvia as suas missões/acções de modo a garantir a normal circulação no interface das duas principais vias de comunicação com a Zona Leste do território da Guiné: a marítima e a terrestre, assumindo, para o efeito, papel relevante não só a nível do que se considerava reabastecimento, como na protecção de pessoas e bens, quer fossem unidades militares ou elementos civis.

No contexto estritamente militar todos os Batalhões e/ou Companhias Independentes, vindos de Bissau, ou no seu regresso para a capital, tinham, nesta época, obrigatoriamente de passar pelo Xime, localidade situada na margem esquerda do Rio Geba e, por isso, considerada o “fim da linha”, uma vez que a via marítima era o meio mais exequível de ligar os dois pontos, em particular por razões operacionais. Desta relevância global, o Xime e consequentemente o contingente militar ali instalado, era considerado elemento estratégico por excelência nas suas dimensões política, militar e económica.

Foto 2 – Cais do Xime [Agosto/1972]. Vêm-se civis e militares. As cabras preparam-se para seguir viagem até Bissau.

Foto 3 – Cais do Xime [Julho/1972]. Quando da chegada de algum contingente militar ao Xime [de ou para Bissau], sempre que possível, elementos da CART 3494 estavam no Cais para os receber. Na foto, da esquerda para a direita, os ex-Alferes Maurício Viegas, CMDT do 20.º Pelotão de Artilharia; Manuel Carneiro e Manuel Gomes e o ex-Cap Pereira da Costa, CMDT da CART 3494 [de 22Jun1972 a 10Nov1972].

Estas actividades diárias que sempre foram consideradas de alto risco, principalmente porque visavam garantir a segurança possível ao tráfego rodoviário que circulava no troço que ligava o Xime a Bambadinca, e que deste se ramificava até ao extremo leste do território, de que são exemplos: Bafatá, Nova Lamego, Piche, Canquelifá, Galomaro, Mansambo, Xitole, Saltinho, entre outras localidades,influenciavam, e de que maneira, o nosso quotidiano, por atribuir-nos uma dupla responsabilidade, na justa medida em que fazia depende do nosso sucesso o sucesso dos outros.

Daí terem ocorrido nos primeiros dez meses dois combates com grupos de guerrilheiros do PAIGC, de que resultaram baixas para ambos os lados, entre mortos e feridos, na sequência de duas emboscadas na Ponta Coli, a primeira no dia 22Abr1972 e a segunda no dia 01Dec1972 [vd. P9698 + P9802 + P12232].

Para além desta missão importante, outras faziam parte da nossa “agenda” como sejam patrulhamentos, emboscadas, segurança a embarcações que navegavam no Rio Geba, com chegada ou saída do Xime. Acresce a tudo isto a realização de outras missões com objectivos mais específicos, denominadas «Operações/Acções», com recurso à mobilização de maior número de meios humanos e logísticos, algumas vezes fazendo apelo a apoios aéreos. É desta actividade mais problemática que vos dou conta no ponto seguinte.

II– A OPERAÇÃO «GUARIDA 18» –– XIME-03FEV1973 

- a minha última missão… entre a Ponta Varela e Lisboa -

Quarenta e um anos depois, revisitei a História do BART 3873, em particular as memórias [e as imagens!] das grandes experiências contabilizadas no contexto da actividade operacional da CART 3494, no Xime. Este recuo no tempo foi influenciado pela publicação dos diferentes fascículos que têm vindo a acontecer de modo faseado no blogue, documento do nosso camarada António Duarte [ex-Fur.Mil. da CART 3493/CCAÇ 12, que nos viria a substituir no Xime].Para o efeito, recuperámos os dois últimos [10.º/Fev1973-P13699 e 11.º/Mar1973-P13751], onde estão inventariados, entre outros, os principais factos e feitos das subunidades. 

Porque em alguns deles estive envolvido e porque a história nada nos conta em relação aos detalhes [não podia, porque o historiador/relator limitava-se a analisar o seu conteúdo e/ou a transcrever o que chegava ao seu gabinete de trabalho, provavelmente com censura pelo meio], aqui vos deixo o antes, durante e depois daquela que viria a ser a minha última missão no Xime e que, para além desse valor numérico, selou um espaço e um tempo carregado de muitíssimo significado pessoal, e também colectivo.

Reza o documento dactilografado da História da Unidade [BART 3873], no 10.º fascículo; Fevereiro de 1973, ponto 74. «NOSSAS TROPAS»; alínea a) Acções e Operações Mais Importantes; o seguinte:

- “Acção «GUARIDA 18» de 030500 a 031130 com patrulhamento, emboscada e montagem de armadilhas na região de PTA VARELA. Intervieram 03 Gr Comb da CCAÇ 12 e 03 (-) da CART 3494. O IN teve 02 mortos e 01 ferido confirmados e as NT 01 ferido ligeiro” (p.46).

O que seguidamente se relata traduz a verdade dos factos vividos na primeira pessoa, e é nessa qualidade que tomei a iniciativa de os tornar públicos, com o objectivo de ampliar os elementos historiográficos da minha CART 3494/BART 3873.

Tomei conhecimento desta Acção/Operação na véspera, dia 02Fev1973, 6.ª feira, de modo informal/formal [não sei como classificá-lo] directamente do meu CMDT de Companhia.Registei a informação e na sequência do diálogo que estabelecemos recordei-lhe que tinha sido combinado entre nós que pela manhã do dia seguinte, sábado, seguiria para Bafatá com o objectivo de apanhar transporte aéreo para Bissau e depois para Lisboa, esta viagem agendada para o dia 05Fev73, data do início do meu segundo período de férias.

Na impossibilidade de se poder cumprir com o acordado anteriormente, causa/efeito atribuído ao reduzido número de quadros de comando, naquele período, na Companhia, levou a quea minha presença fosse considerada imprescindível naquela missão, acabando por respeitar [obviamente] a decisão tomada. Entretanto, para minimizar eventuais prejuízos que pudessem vir a ocorrer por redução do tempo útil até ao embarque para Lisboa, foi acertado novo compromisso. Este sugeria que antes do início da operação, deixasse tudo preparado com “mala feita” para que, após a sua conclusão, seguisse de imediato para Bafatá ainda a tempo de se concretizar o plano anterior. E foi isto o que veio a acontecer.

No sábado de madrugada, dia 03FEV1973, do aquartelamento do Xime saiu uma força mista de cerca de cento e trinta militares, entre guineenses e continentais, operacionais da CCAÇ 12 e CART 3494, conforme referi anteriormente.

Sector L1 [Bambadinca] – XIME > Zona de intervenção da CART 3494, com particular destaque para o território à esquerda da linha vermelha

A missão estava a decorrer com normalidade, sem sinais no terreno que suscitassem alertas particulares, ainda que a atenção/concentração fossem, como sempre, conceitos a respeitar.Eis senão quando o que se considerava ser uma possibilidade meramente académica aconteceu mesmo.

Numa coluna mista, em que os diferentes grupos de africanos e europeus se encontravam intercalados na progressão, neste caso numa frente que podia, a espaços, atingir algumas centenas de metros, as dúvidas/incertezas eram maiores, desfeitas quase sempre a partir do equipamento e/ou do vestuário.

Em determinado momento do itinerário utilizado pelas NT, na zona da Ponta Varela, na parte inferior (sopé) de um terreno com declive acentuado, avistei um elemento do PAIGC, com farda escura, vagueando por ali aleatoriamente. Ainda lhe fiz sinal do cimo do declive mas não sei se me viu, uma vez que a progressão continuava o seu curso… e ele por lá ficou.

Com este facto na memória, e sem certezas quanto ao que deveria ter feito e não fizera, eis que percorrida uma vintena de metros (+/-), ao contornar uma zona de vegetação com passagem por uma clareira, aqui fiquei diante de um outro vulto humano, de camuflado amarelado e portador de um RPG7. Ficámos frente-a-frente a uma distância a rondar os dez metros, havendo ainda tempo para trocámos olhares, num lapso de tempo que não é possível contabilizar, mas que impunha uma decisão pronta. Ao meu primeiro sinal [tiro] iniciou-se o «jogo de sobrevivência» que caracteriza estes contextos, e que o episódio anterior me tinha servido de alerta.

[…] Ao ficar sem munições naquela situação [clareira] ou devido à arma ter-se encravado (?!) [não houve oportunidade para saber a verdadeira razão], procurei proteger-me atrás de uma árvore ali próxima para trocar de carregador, tendo-me caído nas costas, alguns segundos depois, um pequeno tronco dessa árvore, mas sem consequências físicas para além do natural susto. À minha frente, mas próximo da vegetação, o cabo Miranda, especialista de dilagramas, contemplava os acontecimentos em perfeito estado hipnótico [?], pois não saiu da sua posição vertical enquanto decorreu o combate.

A vida na guerra tem destas coisas.

Chegado ao aquartelamento, são e salvo, dei cumprimento ao plano pré-definido, seguindo para Bafatá e depois para Bissau, onde pernoitei.

No dia 05FEV1973, à hora marcada, lá estava eu no Aeroporto de Bissalanca [hoje Aeroporto Internacional Osvaldo Vieira], aguardando, ansiosamente, por outro momento pleno de significado: gozar o segundo período de férias em Lisboa, até ao dia 10Mar1973, em família. Era a última etapa do itinerário iniciado na Ponta Varela (Xime) e concluído em Lisboa, quarenta e oito horas depois.

Foto 5 – Aeroporto de Bissalanca [05FEV1973]. Momento de descontracção, antes do embarque na TAP para gozo do segundo período de trinta e cinco dias de férias. A mala vermelha, outra companheira que me acompanhou durante o serviço militar de três anos, está hoje cheia de histórias e de memórias.

III– O REGRESSO AO XIME 

III.1 - A viagem em sentido contrário ou o regresso às origens

De regresso a Bissau no dia previsto [10Mar1973], para cumprir a derradeira etapa [que seria superior a um ano], a expectativa era chegar ao Xime o mais rápido possível, uma vez que não era funcional andar com a bagagem de um lado para outro na capital, situação que dificultava, em muito, a nossa mobilidade.

De entre as várias hipóteses, a mais rápida e a mais barata era ir à boleia, por via marítima claro está, utilizando um dos barcos que diariamente sulcavam as águas do Geba até ao Xime, ou até Bambadinca.

E assim foi, basta observar a imagem abaixo.

Foto 6 – Bissau (Cais) [11MAR1973]. Preparação da saída da embarcação que nos levou até ao Xime, vendo-se à direita a mala vermelha transportando mais histórias, agora das férias, e uma caixa de “pilhas recarregadas” para ajudar a resistir às adversidades que certamente ainda teríamos de suportar, superando-as. Os militares que se vêm na foto são: o ex-furriel Faia (CCS/BART 3873) e o outro, em camuflado, um elemento da CART 3494.

III.2 - Chegada ao Xime

Chegados ao Xime, foi com espanto que soubemos da transferência da CART 3494 para Mansambo,no dia 06Mar1973, substituindo a CART 3493, que foi deslocada para Cobumba. Por sua vez, a CCAÇ 12, sediada em Bambadinca, e que era uma Companhia de Intervenção do CAOP 2, substituiria a CART 3494 no Xime.

III.3 - Chegada a Mansambo

Depois de uma viagem atribulada no regresso ao mato, com estadia de uma noite em Bambadinca, eis-nos a caminho de um novo aposento, ainda desconhecido para nós: Mansambo.O baptismo foi um refrescante banho na fonte, local de visita e de paragem obrigatória para o colectivo da CART 3494 (fotos abaixo). 



Um abraço,
Jorge Araújo.
Fur Mil Op Esp / Ranger, CART 3494

Guiné 63/74 - P13838: Memórias de Gabú (José Saúde) (43): Delegação do PAIGC em Bafatá. O tempo de afirmação.



1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.


AS MINHAS MEMÓRIAS DE GABU

Camaradas,

Delegação do PAIGC em Bafatá
O tempo de afirmação


Na minha conceção, admitindo opiniões porventura contrárias, a afirmação do PAIGC no seio da população não assumiu cunhos de verdadeiro repúdio. A forma pausada como os guerrilheiros lidaram com a conjuntura foi, digamos, estudada ao pormenor e a sua aparição pública objeto de saudação.

Reconheço, contudo, que a sua aceitação não terá sido literalmente assumida com unanimidade. Havia quem exercesse cargos de obediência à tropa da Metrópole, logo a sua posição apresentava-se dúbia.

Rezam os anais da história que os então subservientes rapazes que há muito pisavam os nossos trilhos e que eram, somente, “irmãos de sangue” da tribo IN, se questionavam sobre o dia de amanhã: Qual será o meu futuro?

Não vou, por razões lógicas, debruçar-se sobre a tese do “dia seguinte”. E da Guiné têm-nos chegado ao longo dos anos de Independência as mais díspares notícias. Relatos horrendos. Alguns impensáveis e sobretudo inaceitáveis. A luta entre etnias tem levado a conflitos internos sangrentos e cujos registos são-nos hoje conhecidos.

Neste indulto de questões concertadas, o meu propósito é deixar explícito que no pós Revolução de Abril, aquela dos Cravos que teimam paulatinamente murchar neste País livre e outrora sonhado, o PAIGC assumiu o comando político do território e a Guiné tornou-se um país independente.

Desses tempos de delírio, a que acresce a chegada dos guerrilheiros à cidade, guardo no meu álbum de recordações uma foto com uma delegação do PAIGC, em Bafatá, onde não faltava a bandeira – vermelha, amarela e verde - e sua enorme fogosidade ante um povo que começava a aprender as leis do novo regime.

Olhava para as suas caras e interrogava-me: Serão estes alguns dos rostos com os quais combatíamos no terreno? Ficava a dúvida. Talvez, a certeza!

Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:


Guiné 63/74 - P13837: Postes Escolares Militares (2): Com os meus camaradas já no Puto, fui destacado para fazer exames da 4ª classe, em Mansabá, a soldados metropolitanos... Ao chegar, sem arma, apanhei logo um forte ataque IN... No dia seguinte, deixei passar metade dos examinandos... (Paulo Salgado, ex-alf mil op esp, CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72; professor primário, administrador hospitalar, cooperante)



Guiné > Região do Oio > CCAV 2721 (Olossato e Nhacra, 1970/72) > O alf mil op esp Paulo Salgado... Embora essencialmente operacional,  não se coibia de dar uma mãozinha quer no posto sanitário quer na educação de adultos.

Na foto acima, vemo-lo, no Olossato, prestando ajuda como voluntário ao fur mil enf Carvalho. Professor primário, ele já tinha vocação, na época, para a administração de serviços de saúde. E particular motivação e sensibilidade para as questões da cooperação e da solidariedade. Irei encontrá-lo, mais tarde, em 1982 em Lisboa, como aluno do Curso de Especialização em Administração Hospitalar, da Escola Nacional de Saúde Pública. Mas só depois da criação do blogue, é que demos conta, por volta de setembro de 2005,  que éramos também "camaradas da Guiné" e tínhamos uma "paixão comum por África"...

O Paulo (e a sua inseparável companheira, a Conceição Salgado, economista, também ela nossa grã-tabanqueira, tal como a filha de ambos, doutorada em biologia, investigadora no Reino Unido,  Paula Salgado) vive neste  momento entre Vila Nova de Gaia e Luanda.

O casal (o Paulo e a São) regressam a Luanda neste domingo,   à sua suite, na baía de Luanda, na Clínica da Sagrada Esperança. Boa viagem, camarada Paulo, e amiga São! Um kandandu para os nossos amigos comuns!... Vocês são feitos da massa dos portugueses de Quinhentos!...

PS - O Paulo é  nosso grã-tabanqueiro desde a  primeira hora (setembro de 2005) (*).

Foto: © Paulo Salgado (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: LG]


1. Mensagem do nosso camarada e amigo Paulo Salgado, cada vez mais angolano, sem perder as suas raízes transmontanas e muito menos a alma lusa:


De: Paulo Salgado

Data: 20 de Outubro de 2014 às 07:39

Assunto: Aprender a ler (**)...


Meu Caro Luís,

Grande Tertuliano,


Havia dois professores na companhia: o furriel Carvalho (enfermeiro) que dava aulas aos camaradas, e eu, menos disponível, dava uma ajuda.

O manual era o quadro preto com invenções nossas e os livros usados pelos tugas por esse "império" mal construído...eram os do  Continente...como poderíamos fazer de outra maneira?

Mas uma história que penso ter contado: a companhia estava já no puto [, metrópole,] e este modesto escriba e mestre-escola foi destacado para fazer exames da 4.ª classe em Mansabá para onde foi transportado de propósito. 

Nesse dia, ao entardecer, um forte ataque do IN e...para onde ir...? No dia seguinte, ao ditado - que fazia parte do exame - reparei que ao primeiro parágrafo cada palavra seu erro; solução: cópia...

Lá passaram mais de metade para, ao menos escreverem, sem interposto camarada, o aerograma à mulher, à noiva, à madrinha de guerra. E para "tirar" a carta de condução...

No final de dois dias, lá vim de coluna, sem arma, com a farda n.º 2...sem qualquer emboscada.

Saudação tertuliana

Paulo Salgado

 NOTA: No mato, os livros utilizados pelos professores do PAIGC de Cabral eram didáctica e pedagogicamente mais correctos e apelativos...Eles ensinavam o português...Sou testemunha.



Guiné-Bissau > PAIGC > Novembro de 1970 > s/l > Uma escola algures numa "região libertada". Imagem do fotógrafo norueguês Knut Andreasson (com a devida autorização do Nordic Africa Institute, Upsala, Suécia). A fotografia não traz legenda. Tudo indica que tenha sido tirada na Guiné-Conacri, numa base de rectaguarda do PAIGC, talvez Boké, ou mais provavelmente na própria capital, Conacri, onde havia desde Março de 1965 uma escola-internato para os filhos dos militantes, dirigentes e guerrilheiros.

Fonte / Source: Nordic Africa Institute (NAI).  Foto / photo: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a autorização do NAI / courtesy of NAI) (Edição / Edited by LG]



Guiné-Bissau > PAIGC > s/l> s/d> Foto do secretário geral do PAIGC, incluída em O Nosso Livro,  2ª Classe, editado pelos Serviços de Instrução do PAIGC - Regiões Libertadas da Guiné (sic). Tem o seguinte copyright: © 1970 PAIGC - Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde. Sede: Bissau (sic)... A primeira edição teve uma tiragem de 25 mil exemplares, tendo sido impresso em Upsala, Suécia, em 1970, por Tofters/Wretmans Boktryckeri AB..

[Wretmans Boktryckeri AB era um tipografia, fundada em 1889, por Harald Wretmans, tipógrafo com formação alemã, e que  faliu em 1973, depois de ter passado por várias mãos, e de ter 40 funcionários na década de 1940. Tinha fama de apresentar boas encadernações.]

Foto: Fotógrafo desconhecido. [Imagem reproduzida e editada por LG, a partir de um exemplar gentilmente disponibilizado pelo nosso camarada Paulo Santiago].

Imagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2014). [Edição: LG]




PAIGC > Imagem do livro da 1ª classe, também editado em 1970, impresso e encadernado pela Wretmans Boktryckeri AB, Uppsala, Suécia.  Exemplar apreendido em 1973, no Cantanhez. numa operação "para lá do bolanha de Cafal " (Cortesia de Manuel Maia).
2. Comentário de L.G.:

No interior da Guiné, no "mato", nas "regiões libertadas", não havia estruturas, escolas, hospitais ou outros equipamentos sociais, de pedra e cal... Pela simples razão, que eram um alvo fácil para a aviação portuguesa, bem como para a artilharia e forças terrestres (que continuaram sempre a ir a todo o lado, com maior ou menor resistência dos guerrilheiros). Por outro lado,  eram difíceis os caminhos que levavam às bases de retaguarda, na Guiné-Conacri (e mais tarde, no Senegal). 

Além disso, sabemos que eram duríssimas as condições de vida e de trabalho tanto das populações controladas pelo PAIGC como dos guerrilheiros... [Por exemplo, no interior da Guiné, na zona leste, no setor L1, que eu conheci  bem, enquanto graduado da CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71]....

 A propaganda para consumo essencialmente externo, contava outra história, orientada para a heroicização dos combatentes da liberdade da pátria, homens e mulheres, quer na retaguarda quer na frente... Acontece isso em todos os movimentos revolucionários. O PAIGC, de inspiração marxista-leninista, não fugia à regra. Por seu turno, Amílcar Cabral era um líder carismático e um homem sedutor, a par de um hábil diplomata,  tendo conseguido um importante capital de confiança em países nórdicos como a Suécia onde eram impressos, por exemplo, os manuais escolares do PAIGC, pelo menos os livros da 1ª e 2ª classes, ainda antes da independência...  Depois os nórdicos cansaram-se da Guiné-Bissau,,, contrariamente aos portugueses, pelo menos a alguns portugueses como nós... (LG)

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Notas do editor:

(*) 18 de setembro de 2005 > Guiné 63/74 - P175: Tabanca Grande: Paulo Salgado, ex-Alf. Mil. da CCAV 2721 (Olossato e Nhacra, 1970/72)

(...) Penso que nos cruzámos na Escola Nacional de Saúde Pública,  por volta de 1982... Do outro lado da mesa [estava] o assistente, e deste lado o aluno de Administração Hospitalar. Foi assim, não foi?

Mas nunca tivemos OPORTUNIDADE DE conversar ... o raio do peso institucional... da Escola. Vou gostar de participar neste blogue.

Fiz a minha comissão no Olossato e Nhacra entre Abril de 1970 e Março de 1972.

Fiz uma segunda comissão em 1990/92, como cooperante na área da saúde. Matei fantasmas; chorei no Olossato; ri-me com as crianças que rodearam a minha viatura; revisitei o Suleiman que me reconheceu passados vinte anos!!! E depois vieram alguns homens grandes...e imensos...

Tenho ido várias vezes a Bissau desde 1996 - os amigos que tenho feito...! As desilusões que tenho sentido da parte dos guineenses. Mas também a esperança. Irei fazer outra comissão de um ano, dentro de poucos dias...! Loucura? Utopia? Talvez. (...)



(...) Aqueles de nós que foram professores primários, nos postos militares escolares, como o Carvalhido da Ponte (Xime), o Manuel Amaro (Aldeia Formosa) ou o Manuel Joaquim (Bissorã), podem falar, com propriedade e autoridade, sobre as dificuldades, perplexidades mas também sobre o prazer de ensinar, com o eventual apoio dos nossos velhos manuais escolares ou de outros textos (que eu desconheço se havia outros manuais na Guiné), a língua, a cultura e a história portuguesa aos putos das tabancas guineenses... É que nos nossos manuais bem sequer havia uma simples imagem com a cara do "pretinho da Guiné"... (...)

Guiné 63/74 - P13836: Parabéns a você (809): Abílio Magro, ex-Fur Mil Amanuense do CSJD/QG/CTIG (Guiné, 1973/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 1 de Novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13831: Parabéns a você (808): José Carlos Gabriel, ex-1.º Cabo Op Cripto do BCAÇ 4513 (Guiné, 1973/74)

sábado, 1 de novembro de 2014

Guiné 63/74 - P13835: (Ex)citações (245): Dia dos Fieis Defuntos: o povo sabe que nas campas no final fica só terra sobre terra mas para ele essa terra é sagrada (Francisco Baptista, Brunhoso, Mogadouro)

 1. Comentário de Francisco Baptista ao poste P13833 (*):


[ Foto à esquerda, Francisco Baptista, ex-alf mil inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72); transmontano de Brunhoso, Mogadouro


Quando eu era garoto, em Brunhoso, os mortos tal como os vivos tinham um tratamento pobre. No cemitério não havia campas nem jazigos. Minto,  havia somente dois jazigos de duas famílias mais ricas. A minha avó paterna, viúva desde os 40 anos, farta de amealhar DINHEIRO das tiragens da cortiça, que nunca dividiu com os filhos, também quis ser rica depois de morrer e vai daí mandou construir um grande jazigo para família.

Esse jazigo foi construído teria eu oito ou nove anos, a minha avó terá durado mais dois ou três. Nesse tempo os mortos eram enterrados, os ricos com grande pompa com missas celebradas por muitos padres, os pobres somente com o padre da paróquia. Não havia carros funerários nem para uns nem para outros, os parentes próximos, com possibilidades fisicas, transportavam a urna.

Não havia flores para o morto, a gente da minha terra nesse aspecto era muito prática, para quê flores se o morto não as vê. Havia muita gente da aldeia, quase toda, e das aldeias próximas, que aumentava na medida da riqueza ou do prestigio do morto. No cemitério o padre rezava os responsos, à medida que as moedas de uma croa ou mais iam caindo na bandeja. Finda a cerimónia cada um ia à sua vida e o morto ficava no seu descanso.

No dia de finados, dia 2 de Novembro, instituido há secúlos pela Igreja Católica ( o dia 1 de novembro sempre foi o dia de todos os santos, talvez por ser feriado as pessoas dos grandes centros passaram a homenagear os seus mortos nesse dia). A minha aldeia mais obediente à curia romana homenageava os seus mortos no dia dois. De manhã cedo o padre rezava a missa e no final ia com todos os crentes em procissão ao cemitério onde rezava alguns responsos a pedido de uns e de outros.

No final as pessoas tinham o dia livre para poderem ir para as suas fainas. Ninguem tinha a preocupação de arranjar as campas onde a erva crescia por vezes a bastante altura já que não havia animais que a pastassem. Se os falecidos não se incomodavam com o aspecto do cemitério, e aquele relvado com papoilas, malmequeres e outras flores até nem era feio, porque se haviam de incomodar os vivos. Até um dia em que o coveiro pela primavera vendo erva tão tenra e viçosa no cemitério decidiu meter lá duas mulas que tinha, de noite. Alguém do povo viu e espalhou a notícia e o povo que no seu intimo e nas suas orações respeitava muito os seus mortos, mesmo sem os visitar nem lhes enfeitar as campas, não gostou e despediu o coveiro.

O povo sabe que nas campas no final fica só terra sobre terra mas para ele essa terra é sagrada, é a melhor terra da aldeia, a terra dos seus antepassados ou filhos e não deve ser pisada por outros animais além do homem.



Portugal > Bragança >  Mogadouro > Brunhoso >  Terra com história, património e gente de carácter. Foto de Aníbal Gonçalves, grande divulgador da sua região, em particular o nordeste transmontano. Professor, alia a fotografia ao geocaching.  É natural de Bragança, vive em Vila Flor. Tem página no Facebook. Cortesia da sua  página dedicada a Brunhoso.

Isto,  camarada Luís Graça, poeta e escritor que aprendi a admirar muito para lá de reticências e preconceitos iniciais, é o poema sem rima e a prosa que não explica tudo do manancial que os povos de todas as latitudes têm para expressar a sua compreensão do sagrado, do eterno, enfim desse grande abismo que nos aguarda.

Eu, como tu,  gostava de encontrar lá esses jovens que morreram na Guiné dos nossos tempos, nessa guerra anacrónica mas em que muitos acreditaram que eram uma guerra patriótica e eu,  respeitando as ideias e a forma de sentir de uns e outros,  digo que viva Portugal.

Para acabar,  amigo Luís Graça quero dizer-te que gostei do teu poema tão expressivo e tão longo, e desejar-te muitos anos de vida, para que a tua voz não se cale e que continue a lembrar e homenagear esses nossos camaradas que tão novos nos deixaram e que com eles levaram parte da nossa alma e da nossa vida.

Um grande abraço, Francisco Baptista.



Portugal > Bragança > Mogadouro > Brunhoso > Cemitério local > 5 de novembro de 2011 > "A tradicional visita ao cemitério que costuma fazer-se no Dia dos Fieis Defuntos (que foi no dia 2 de novembro)". Foto de Aníbal Gonçalves. Cortesia da sua página dedicada a Brunhoso, freguesia do concelho de Mogadouro, distrito de Bragança.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 1 de novembro de 2014 >  Guiné 63/74 - P13833: Manuscrito(s) (Luís Graça) (41):Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris

Guiné 63/74 - P13834: Bom ou mau tempo na bolanha (73): Da Florida ao Alaska, num Jeep, em caravana (13) (Tony Borié)

Septuagésimo segundo episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGRU 16, Mansoa, 1964/66.




Resumo do décimo terceiro dia

A cidade de Homer, que muitos chamam “fim da estrada”, querendo dizer que para a frente é só água, e na verdade é, pois está localizada no sudoeste da “Península do Kenai” e distingue-se porque tem um cabo de terra, a que chamam de “Homer Spit”, em parte feito pelo homem, que entra pela baía de “Kachemak”, por uma distância de aproximadamente 4,5 milhas, ou seja 7,2 quilómetros, que dizem que é a estrada mais longa em todo o mundo, entrando em águas do oceano.


O tempo era bom, céu quase azul, fresco, mas agradável. Quem como nós nasceu na encosta da montanha, perto do mar, esta povoação piscatória tem tudo para nos prender a atenção, não importa a direcção em que colocamos o nosso olhar. William Shakespeare, escreveu: “Se a morte predomina na bravura do bronze, pedra, terra e imenso mar, pode sobreviver a formosura, tendo da flor a força a devastar”.

Nós, modestamente, acrescentamos: “se o olhar começa no pico da montanha coberta com neve, pedra e terra, terminando num imenso areal, de restos de lava de um vulcão, rodeada de um mar calmo, parecendo mais um lago, onde o espelho da água é quebrado pela rede de alguns barcos pescando, aqui não há lugar nem pensamento para a morte, é vida pura, não importa a direcção em que coloque o seu olhar, aqui sim, pode sobreviver a formosura, onde as flores e alguma vegetação, têm força para a terra e a pedra desvastar”.

Porra, já não sei onde íamos, perdi-me, vamos tomar “o fio à meada”, como dizia a minha querida avó, tudo isto está aqui retratado, onde por sua vez existe uma entrada artificial de água, (fishing hole), a que orgulhosamente chamam “The Nick Dudiak Fishing Lagon”. Quando a maré sobe, enche essa área que faz a delícia dos pescadores. Os turistas como nós, que chegam por terra, não são muitos, chegam e partem, usam os pequenos restaurantes, peixarias e casas que vendem “lembranças”, ao longo deste cabo de terra, onde também existe uma marina para barcos de pesca e, um ancoradoiro de um terminal para barcos tipo “ferry”, que levam viaturas e passageiros para as Aleutian Islands, para onde viaja, sobretudo jovens na procura de aventura.


Nas proximidades, quando a maré está baixa, fica uma área de quilómetros de extensão seca, onde muitos aproveitam para fazer reparações no casco dos barcos e onde alguns até residem. Também lá existe o famoso Salty Dawg Saloon, que é considerado um monumento em Homer, pois foi uma das primeiras casas construídas no “Homer Spit”, por volta do ano de 1897, servia de farol de sinalização, casa dos correios, estação dos caminhos de ferro, loja de conveniência e escritório de uma companhia de minas de carvão por muitos anos. Em 1909 fizeram uma segunda casa que serviu de escola, correios e loja de conveniência, mais tarde foi casa onde viveram três adultos e 11 crianças.


Em 1940 um homem de negócios comprou o edifício e passou a ser o escritório da Standard Oil Company e, finalmente em 1957, abriu como Salty Dawg Sallon, que é um bar típico do Alaska, como era no princípio do século passado, com o chão térreo e serradura, onde se pode falar de tudo, dizeer asneiras, cuspir e atirar as cascas dos amendoins para o chão, e fazer tudo o que nos der na real gana, como é normal dizer-se, claro, sem insultar ou provocar alguém e, beber cerveja local à temperatura da casa, por canecas muito grandes, algumas de barro ou porcelana. Tudo isto, além de ser talvez o local em todo o território do Alaska onde existe a maior comunidade de águias de colar branco, que passam o tempo pescando.


Saímos de Homer, seguindo pela mesma estrada, só que agora rumo ao norte, atravessando de novo a “Peninsula do Kenai”, parando na povoação de Cooper Landing, cujo nome no ano de 1884 foi dado por Joseph Cooper, um mineiro que aqui descobriu ouro, todavia, a história diz que já no ano de 1848, Peter Doroshin, um engenheiro de origem Russa, aqui tinha identificado ouro, juntamente com outros prospectores.

Esta povoação é bastante popular, principalmente no verão, sendo o destino de muitos turistas, principalmente pescadores amadores, porque não só podem pescar salmão no “Russian River”,  quando os peixes querem subir o rio, como podem apreciar a floresta.

Foi o que fizemos, ocupámos um espaço no parque de campismo, tirámos licença para dois dias, equipamento vestido, cana pronta e, depois de atravessar o rio, numa jangada que aqui existe, eis-nos no “fighting zone”, ou seja na zona de luta, junto de muitos outros pescadores amadores.


A princípio, não havia experiência e, foi ver os outros pescarem, mas depois de saber “dar-lhe a volta”, também pescámos salmão, que foi limpo ali mesmo no rio e cozinhado passadas umas horas.



Foi o resto do dia, e da manhã do próximo, pescando e desfrutando da beleza da paisagem, com os peixes saltando no rio, “desejosos que os pescassem”, e as gaivotas e águias voando rasteiras, pescando também. Foi dos dias que não esqueceremosmos mais, a água pura do “Russian River”, não gelada, mas transparente, vendo-se as rochas no fundo, em alguns lugares revoltosa, os peixes a saltar na nossa frente, com um cenário, sobretudo, selvagem.

Neste dia, percorremos apenas 217 milhas, com o preço da gasolina variando entre $4.22 e $4.37 o galão, que são aproximadamente 4 litros.

Tony Borie, Agosto de 2014
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Nota do editor

Último poste da série de 25 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13800: Bom ou mau tempo na bolanha (71): Da Florida ao Alaska, num Jeep, em caravana (12) (Tony Borié)

Guiné 63/74 - P13833: Manuscrito(s) (Luís Graça) (41): Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris

Lembra-te, ó homem, que és pó!...

por Luís Graça

[em dia de finados, 
lembrando os nossos entes queridos, mais os amigos e camaradas, todos os  que já partiram à nossa frente...]

O cemitério enche-se de flores,
ostensivamente;
é um jardim de mármore e granito,
com centenas de velas acesas
que à noite se transformam em fogos fátuos 
e libertam fortes odores.
Durante toda a tarde as famílias da freguesia
visitam as campas e os jazigos dos seus mortos
e convivem, ruidosamente, umas com as outras,
os vivos com os mortos,
os mortos com os que hão-de morrer.
Mistura-se a tristeza com a alegria,
mas vai-se ao cemitério de dia,
nunca de noite.

É a festa dos mortos,
mas também a celebração da vida,
a afirmação da convivialidade,
a reafirmação do poder da vida sobre a morte,

o reforço dos laços dos vivos,
que são vizinhos uns dos outros,
parentes, 

familiares,
amigos,
e que também estão na lista dos candidatos ao além.
Não sabem, porém,
nem quando, 

a que dia, hora e minuto,
nem em que lugar,
nem como nem porquê…
E mais: 

recusam-se a marcar passagem…
Só o velho barqueiro de Caronte
é que tem a lista dos passageiros
e os horários
e os percursos da última viagem
da terra dos vivos.
Aquela que poucos fazem de bom grado...

É também quiçá a recusa da morte,
da partida definitiva,
do fim da peregrinação terrena,
a reivindicação da imortalidade,
o pecado da usurpação do poder divino,
é, enfim, a manifestação da culpa por se estar vivo
em lugar daqueles de nós,
que nos eram muito queridos,
e se calhar muito melhores do que nós,
e que morreram (ou partiram),
injustamente,
antes de nós,
muito antes de nós,
alguns em tenra idade
sem sequer terem conhecido 
os sabores do leite e do mel
da terra que lhes fora prometida ao nascer...

Quem vive mais longe 
(Porto, Lisboa e até Paris...),
vem de propósito neste dia
enfeitar as campas e os jazigos dos seus mortos,
aqui erigidos neste cemitério.
em terra de antigos rendeiros,
camponeses pobres,
que ainda hoje cultivam a memória do Zé do Telhado,
herói do banditismo social oitocentista,
e que fazem questão de mostrar,
aos ricos 

e aos fidalgos de antigamente,
que a democracia e a liberdade trouxeram também
a igualdade de oportunidades
e a miragem da mobilidade social,

e o sonho do sucesso na vida,
tipificados no brasileiro 
e no francês do século passado...

No meio do pequeno cemitério da freguesia,
construído tardiamente, 
em finais do século XIX,
há ostensivamente uma capela,
a da família da casa
que, foi desde os tempos do liberalismo,
a verdadeira dona e senhora desta terra
e dos seus habitantes,
dona dos seus corpos 
e até das suas almas...
No cimo da porta da capela,
em estilo neogótico revivalista,
pode ler-se a frase niilista,
em poético latim:
Memento, homo, quia pulvis es
et in pulverem reverteris.

Como os antigos pobres rendeiros não sabiam ler,
e muito menos o latim 
dos frades absolutistas e dos juristas liberais,
alguém terá escrito a giz, branco,
no mármore liso.
a corresponde tradução em português chão:
Lembra-te, carago, que és pó
e em pó te hás-de tornar...


Mesmo na morte, os homens tentam,
pateticamente,
inutilmente,
bizantinamente,
reproduzir a segregação socioespacial,
a distância, que mantinham entre si, em vida,

conforme a classe em que nasceram
ou a que ascenderam...
É por isso que eu gosto da designação, 

filosoficamente irónica,
dada a alguns cemitérios públicos no sul, no Alentejo:
Campo da igualdade...
Metaforicamente falando,
a gadanha da morte ceifa tudo e todos,
ceifa rente a vida,
e não poupa tanto a espiga de trigo
como a erva do campo,
a papoila vermelha e o saramago,
a raposa e a abetarda,

a lebre e o cágado,
a mondadeira e o patrão,
a rosa e o espinho,
o rico e o pobre,
o herói e o cobarde,
o general e o soldado,
a bonita e a feia,
o novo e o velho,
o amo e o servo,
o poeta e a sua musa,
o médico e o doente,
o santo e o pecador,
o amigo e o inimigo...

Passei por lá,
pelos cemitérios 
de Paredes de Viadores
e Paços de Gaiolo,

a serra de Montemuro em frente,
o vale cavado pelo rio Douro, a meio,
e havia gente à volta das campas,
de todas as campas, menos de duas...
Tirei fotografias 

aos grandes,
vistosos 

e dispendiosos arranjos florais,
sobre as pedras de mármore ou granito polido,
que devem ter custado os olhos da cara 
aos parentes dos mortos...
Fotografei grupos de familiares e amigos
em amena 
 (e aqui e acolá alegre, 
viva,  franca,  saudável) cavaqueira. 
Quem disse que o cemitério não pode ser uma passerelle ?
Percebi que a homenagem aos mortos
é também (e sobretudo ?) um pretexto
para os vivos se reencontrarem
e se mostrarem uns aos outros...
e para dizerem, alto e bom som,
que estão vivos,
e de boa saúde,
e que estão prósperos,
bem de vida,
com os seus Mercedes de matrícula K,
com os exames e análises em dia,
e o certificado de robustez física,
enfim, com o corpo e todas as miudezas 

dentro do prazo de validade.
Em suma, estão vivos,
sãos,
e recomendam-se...

Mas que também têm sentimentos,
não importa se pequenos ou grandes.
E que sabem mostrar 
que têm decência
e recato e memória e saudade...
E que sabem chorar, 
sinceramente, os seus mortos,
os seus entes queridos,
que, mesmo contra toda a evidência,
estarão algures numa galáxia
a zelar por eles,
ínfimas partículas do sistema solar.
Muito simplesmente, são
ou parecem ser gente feliz
com uma lágrima furtiva ao canto do olho.
Em dia de festa dos mortos,
ou melhor, em Dia (feriado) de Todos os Santos
que é também, para o povo, 
 o Dia de Finados ou dos Fieis Defuntos.
Um dia , ao mesmo tempo,  de tristes e doces lembranças.

No sul, da Reconquista, 
de onde eu venho,
e a que eu pertenço,
mix de bárbaro, romano, judeu,
visigótico, mouro, franco, africano,

também há o culto antiquíssimo, 
megalítico, pagão,
dos mortos,
de que as antas, os menires e os cromeleques 
são um magnífico exemplo arqueológico.
Mas aqui, no norte, o cristianismo
(e a Igreja Católica Apostólica Romana)
soube quiçá enquadrá-lo melhor,
dar-lhe a necessária dimensão
escatológica, cultural, gregária, 

simbólica, normalizadora...
Por todo o país, no Portugal profundo
(ou no que resta desse mito),
os mortos são lembrados no seu dia,
e no seu sítio,
convenientemente apartados dos vivos.
All souls' day, diz-se em inglês,
o dia das alminhas 

(que ternura de termo!),
diz o nosso povo.
Leio na Enciclopédia Católica
(cuja origem remonta a 1917):
"A fundamentação teológica desta festa
é a doutrina segundo a qual
as almas que, ao partirem do corpo,
não estejam perfeitamente limpas dos pecados veniais,
ou não tenham totalmente expiado
as suas transgressões passadas,
ficam privadas da Visão Celeste.
No entanto, os fiéis sobre a terra podem ajudá-los,
por intermédio de orações, esmolas
e sobretudo do santo sacrifício da Missa".

Não sei, contudo, 
qual é o entendimento da Igreja Católica
em relação aos seus membros 

que morrem em combate,
sejam quais forem as causas, boas ou más,
por que se tenham batido...
No passado, nas Cruzadas,
ou dilatando a fé e o império, 

ao serviço do rei,
mais tarde pela Pátria, 

conceito republicano e burguês.
Pode ser-se herói,
e herói da Pátria,
e mesmo assim não se estar na lista dos eleitos,

que são todos os nomeados e lembrados...
Pode ter-se morrido pela Pátria
e mesmo assim esse sacrifício 

ter sido perfeitamente inútil...
Ou no mínimo, branqueado,
ignorado,
esquecido,
ocultado
ou até mesmo denegado.
Pode-se ter morrido pela Pátria, Mátria ou Fátria
(que o mesmo é dizer

morrer-se pelo pai, pela mãe, pelo irmão),
em Angola, Guiné ou Moçambique,
e mesmo assim ser-se completamente olvidado
(que é o pior dos abandonos),
nos nossos cemitérios,
no dia da festa dos mortos...

Para onde irão as almas dos combatentes?,
pergunta, ingénuo, o poeta…
Quase sempre, muitas vezes, 
em toda a parte,
em todos os tempos,

vão para o limbo, 
vão, quando muito, 
para o silêncio dos arquivos e das estatísticas,
vão para o purgatório do olvido,
que é esquecimento 

mas também letargia, adormecimento. 
Como em Paços de Gaiolo,
do antiquíssimo concelho,
já extinto, de Bem Viver,
ou em tantas outras freguesias
do nosso querido Portugal profundo,
que já foi medievo, mouro, visigótico, romano, celta, lusitano...
Como estas duas campas, rasas, 

de dois bravos
que deram a vida aos vinte anos, 
no ultramar português,
Joaquim Araújo, 

Francisco Soares…
Deram a vida por alguém, 

por alguma coisa,
a que eles e os seus, carinhosamente,
chamavam Pátria,
Morto pela Pátria…
Eterna saudade de mãe e irmãos…


De facto, a guerra do ultramar nunca existiu.
Os mortos do ultramar nunca existiram.
Há uma amnésia geral
em relação aos nossos mortos do ultramar,
uma espécie de má consciência,
de denegação,
de branqueamento,
de alívio...
Mesmo que hoje comecem a aparecer,
nas nossas cidades, vilas e vilórias,
monumentos ao combatente,
como antigamente proliferaram
os monumentos ao soldado desconhecido
da I Grande Guerra.
Pode-se monumentalizar os mortos,
e esquecer os vivos.
Pode-se exorcizar os fantasmas,
mas não desformatar o disco rígido
de toda uma  geração.
Por que o fim da guerra colonial
(ou do ultramar, como quiserem),
foi literalmente o fim de um pesadelo...
Para os jovens da minha geração,
um milhão e trezentos mil que por lá passaram,
fora os duzentos mil 
que não se apresentaram às sortes...
E é bom que os jovens de hoje, 
os nossos filhos e netos, 
saibam isso,
que havia então o serviço militar obrigatório
e que era altíssima a probabilidade de se ser mobilizado
para uma das três frentes de guerra,
ou teatros de operações,
que Portugal mantinha em África...
Hoje há ainda algum pudor em falar dessa guerra,
de baixa intensidade,
mas que consumia vidas e cabedais.
mesmo que o suicídio, 
os acidentes rodoviários,
os acidentes de lazer,
e os acidentes de trabalho,
matassem muito mais 
que todas as três guerras juntas...
Só o suicídio mata mais, por ano,
em todo o mundo,
que todas as guerras juntas,
locais, regionais e interbacionais..
Pudor, 

lassidão,
talvez vergonha, 
quiçá culpa...
Da guerra e dos seus mortos, 

de ambos lados,
dos trasladados e dos insepultos,
dos seus desaparecidos,
dos seus estropiados,
dos seus mortos-vivos, 

dos seus vivos-mortos,
dos que não vieram nem em caixão de chumbo,
dos que vagueiam, ainda hoje, como fantasmas
pelas margens dos Rios da Guiné,
Geba, Corubal, Mansoa,
Cacheu, Buba, Cumbijã, Cacine...
Ou dos rios de Angola e de Moçambique
cujos nomes os poetas, os bandeirantes e os geógrafos
já esqueceram...

Se calhar a amnésia é recíproca:
de nós, felizardos, safados,
que estamos vivos 
(mesmo que mais velhos, mais tristes e mais pobres),
em relação a eles 

que tiveram o supremo azar de morrer
(em combate, ou de acidente, doença,

ou até de homicídio e suicídio);
e, se calhar,  deles em relação a nós,
já que não mais nos visitam, 

escrevem,
assombram,
incomodam,
interpelam,

imploram,
gritam,
atormentam
ou questionam...

No dia dos Fiéis Defuntos, 
na festa dos mortos,
os que morreram de morte natural,

ou de morte matada
no campo de batalha, 

nas picadas
e nos aquartelamentos,
na África remota,
distante,
dos séculos passados,
na antiga vila e freguesia da germânica Fandinhães
(substituída do tempo do Marquês de Pombal
por Paços de Gaiolo),

não têm,  no cemitério local,
uma menção especial,
um pequeno talhão,
uma atenção especial,
um arranjo floral,
umas simples flores de plástico,
ou até uma singela frase
escrita a pau de giz, branco,
na pedra oxidada e suja da sua campa...

Mas será que deveriam tê-lo ?
Hoje são apenas pó,
na terra dos homens,
e sobretudo, o que é mais triste,
na memória dos vivos...

Candoz, 1/11/2008
Versão 10, revista em 1/11/2014

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Nota do editor:

Último poste da série > 2 de outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13680: Manuscrito(s) (Luís Graça) (40): Selfies /autorretratos: o meu amigo F..., pintor, e eu... Queria que fôssemos, a salto, até Paris, em 1965...