domingo, 22 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14399: Brunhoso há 50 anos (3): Festejos do Entrudo (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Brunhoso - Com a devida vénia


1. Em mensagem do dia 17 de Março de 2015, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), fala-nos dos festejos do Caranaval de antigamente da sua terra, Brunhoso.


Brunhoso há 50 anos

3 - Festejos do Entrudo

Como em quase todas as terras do nordeste transmontano e provavelmente na maioria das aldeias do interior do país, em Brunhoso celebravam-se três festas anuais: o Carnaval, o Natal e festa a um santo que nem sempre coincidia com o santo padroeiro.

No Carnaval, festa do tempo frio de Fevereiro, comia-se em excesso, sobretudo ao almoço, era o tempo das casulas com o bulho, noutras terras chamado butelo, o pé de porco, a orelha, a linguiça, tudo cozido numa grande panela de ferro à lareira. Bebia-se em excesso sobretudo vinho, durante o dia e noite, até as forças e as pernas o permitirem.

Os rapazes todos os anos faziam um grande boneco, com roupas velhas, que enchiam de palha, muitos deles vestiam-se com roupas de mulher ou disfarçados doutras formas, eram os caretos, passeavam pela aldeia, esse boneco, que era o Entrudo, num carro de vacas ou às costas de uns e outros, ao som de quadras improvisadas referidas ao dia e à figura, com muitas bombas de carnaval e bombas de lágrimas coloridas (rasca-pés na gíria do povo). Essa figura, da qual desconheço a origem e a idade, ganhou tanta importância que só recentemente entendi por que é que os meus conterrâneos falavam sempre no dia de Entrudo e não no dia de Carnaval. No Carnaval o rei era o Entrudo, um rei maltratado com violência física e verbal.

Acredito que quase toda a aldeia perdeu a memória da palavra Carnaval para se fixar somente no Entrudo, essa figura trágica, tão maltratada. O Carnaval ou Entrudo que dizem alguns eruditos terá origens em cultos anteriores ao cristianismo, tem um pouco de todos esses excessos dalgumas festas gregas, celtas, romanas e doutros povos, é pois natural que tenha uma origem muito antiga. Sendo uma festa popular, de brincadeiras, excessos vínicos e outros, sobretudo masculinos, pois era uma festa de rapazes e homens.

Festa que as mulheres toleravam e em que passivamente participavam, mostrando bastante medo, real ou ficticio pelo Entrudo e pelos caretos, e na alimentação melhorada em doces e petiscos que faziam, sabendo que estavam a contribuir para melhorar essa grande farra que era sobretudo deles, dos seus homens e dos seus filhos.

Caretos de Trás-os-Montes

O trabalho era muito, era duro, quase não havia dias de folga, os homens tinham direito a esse dia de descontração e de abandono das regras a que essa vida dura os obrigava. A Igreja, embora contrariada, também tolerava essa festa que não era dedicada a nenhum Deus ou Santo do seu calendário. A Quaresma estava à porta e os homens seriam obrigados a cumprir muitas penitências.

O antigo regime sendo tão austero e pouco tolerante com manifestações populares, sempre admitiu esse desvario, esse excesso com tanto álcool, bombas e arruaças.

Nunca se deve impedir a respiração da alma de um povo, Salazar, um ditador bastante erudito, criado junto do povo, compreendeu isso. A democracia, oxalá se mantenha, tem procurado acabar com o Carnaval. Para mim isso é das ofensas mais mesquinhas que têm tentado fazer ao povo, e estou a falar do povo mais humilde, que é o que mais se diverte nesse dia. É muito grave tirar-lhe o pão, mais grave ainda é querer tirar-lhe a alma e a alegria de viver.
Quem quis ou quem quer acabar com o Carnaval, nunca bebeu um copo de vinho numa roda na praça de uma aldeia, a passar de boca em boca, nunca conheceu nem amou esse povo simples e trabalhador.

Quando se fala tanto e se promovem patrimónios materiais e imateriais de Portugal para turista estrangeiro ver, ouvir, apreciar, porquê querer destruir a alma de um povo naquilo que ela tem de mais antigo, tão antigo, que ele encontra e abraça, uma multidão de parentes e amigos, que consigo vêm confraternizar nessa grande festa, nesse convívio tão pleno de emoções, tão alargado aos que partiram para longes terras, aos que continuam a sobreviver lá, em condições cada vez mais difíceis e aos que partiram para lá da vida.

VIVA O CARNAVAL! VIVA O ENTRUDO!

Saudações Transmontanas!

Um abraço
Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14381: Brunhoso há 50 anos (2): As Autoridades - Continuação (Francisco Baptista)

Guiné 63/74 - P14398: Convívios (659): Encontro do pessoal da CCAÇ 816 (Bissorã, Olossato e Mansoa, 1965/67), dia 23 de Maio de 2015 em Fátima (Rui Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 17 de Março de 2015:

Caros e considerados amigos Luís, Vinhal e Magalhães Ribeiro
Recebam os maiores votos de uma boa saúde e também de uma boa forma (sempre) para sustentar este extraordinário Blogue.

Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.

Queiram publicar no Blogue o anúncio de mais uma Festa anual da Companhia de Caçadores n.º 816 - Guiné Portuguesa 1965 / 67, e do qual se junta em anexo.

Passem bem (!) e daqui vai também um grande abraço.
Rui Silva

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Nota do editor

Último poste da série de 18 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14382: Convívios (658): Almoço do pessoal da CCAÇ 2464/BCAÇ 2861, dia 18 de Abril de 2015 em Vila Real (António Nobre)

Guiné 63/74 - P14397: Libertando-me (Tony Borié) (9): Este fui eu

Nono episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.




Esta personagem fui eu, mas penso que, talvez em parte, também eras tu, que nasceste entre os anos trinta e cinquenta do século passado ou talvez até antes ou depois, andaste por aí, sobreviveste e hoje até tens a pachorra de me estar a ler.

Isto não é impressionante? Sobrevivemos, sendo filhos de mães que não se alimentavam com todas aquelas proteínas necessárias para o bom funcionamento do organismo, comiam queijo e toucinho gorduroso, andavam de “de barriga à boca”, até ao último dia, sempre a trabalhar na agricultura, sujas, com as pernas cheias de “varizes”, que eram umas veias saídas nas pernas, muito perigosas, devido ao esforço despendido e, talvez não só, algumas bebiam álcool, enquanto estavam grávidas, sem nunca fazerem um simples teste de diabetes. Nascemos. Fomos colocados para dormir, em berços ou numa simples canastra, cobertos com cobertores, farrapos ou panos feitos com tintas coloridas, feitas à base de chumbo, à base de brilhantes, de barriga para baixo ou para cima, um farrapo borrado e molhado por horas, chorando, às vezes chupando num pano molhado em água de açúcar, ou quando as nossas mães queriam trabalhar sem ouvir o nosso choro, nos colocavam um pouco de pão molhado em vinho, na boca, para assim, “adormecermos”.

Ouviam-te chorar. Talvez com dores em qualquer parte do corpo, embalavam-te por alguns momentos e calavas-te, não te administrando qualquer medicamento.

Mais tarde. Com a tal baba e ranho no nariz, às vezes sujo e com pouca roupa no corpo, pois normalmente usavas o resto da roupa dos teus irmãos, ou até do teu pai, fazendo chuva, frio ou calor, vias as outras pessoas andarem de bicicleta, sem capacetes ou outros utensílios de segurança, os que andavam de carro, não usavam cintos de segurança, as crianças não tinham assentos especiais, os pneus estavam carecas, não havia “air bags” e às vezes nem travões.

Bebíamos água dos ribeiros, das fontes, dos poços ou das minas e, não da garrafa.

Compartilhávamos um “pirolito” com quatro amigos, bebendo da mesma garrafa e ninguém realmente morreu por isso.

Comíamos biscoitos, broa, pão branco, manteiga real, toucinho, batatas, nabos, couves, feijão, arroz, mal ou bem cozinhado, bem ou mal lavados, na tal panela de três pernas, comunitária, que cozinhava para a família, às vezes para os vizinhos e entalava alguns legumes para os animais, tudo temperado às vezes com sal “amarelo e rançoso”, que se tirava da caixa, a que se chamava “salgadeira”, onde se guardava a carne salgada do porco, laranjadas ou pirolitos, feitos de água com açúcar, o que queríamos era “encher a barriga” e, nunca estávamos acima do peso.

Porquê? Porque estávamos sempre a brincar, ou a trabalhar na agricultura, lá fora, pois saíamos de casa pela manhã e andávamos lá fora o dia todo, estávamos de volta quando o sol desaparecia. Chegámos até aos dias de hoje, talvez porque passávamos horas construindo os nossos brinquedos, como por exemplo carrinhos de madeira com rodas de toros de pinheiros e, montá-los ladeira abaixo, sem travões, caindo e levantando-nos sem nunca nos queixarmos, aprendendo assim a resolver os nossos problemas.

E claro, aprendemos o “a, e, i, o, u”, ou a “a, b, c”, naquela “lousa” de pedra preta, onde um lápis era um “riscador”, também de pedra preta, sabíamos a “tabuada” de cor e salteado, nas salas de aula não havia tecto, víamos as telhas onde fazia frio no inverno e eram quentes a partir de Maio e, estava lá, ao lado daquele quadro, que nos parecia muito grande, uma cana comprida para manter o respeito, não tínhamos Playstations, Nintendos, jogos de vídeo, 150 canais na TV a cabo, não havia filmes de vídeo ou DVDs, com som surround, telefones celulares, computadores pessoais, com Internet.

Mas tínhamos amigos, era só vir à rua e encontrá-los. Só havia dois modelos de corte de cabelo, era comprido, de vários meses, talvez até anos, sem nunca ter sido cortado, onde havia os tais insectos a que nós chamávamos “lendias e piolhos”, ou rapado, onde o barbeiro deixava uma “franginha” na frente a cobrir parte da testa, caíamos das árvores, ficávamos magoados, quebrávamos os ossos ou até os dentes e não se ia ao hospital, nem havia acções contra as companhias de seguros por esses acidentes.

Comíamos vermes, terra e lama, enquanto brincávamos em terreno sujo e, os vermes não continuavam a viver em nós por toda a vida. Pelo nosso aniversário nunca nos deram brinquedos, tais como cópias de armas modernas, como pistolas e metralhadorasdo  último modelo, mas sim brinquedos feitos por familiares, com paus ou bolas de trapos.

Aprendíamos a lidar com a decepção, se não éramos escolhidos para a equipa de futebol da nossa rua ou bairro.

Era inédita a ideia que os nossos pais iam socorrer-nos se por acaso quebrássemos a lei, pois eles realmente estavam sempre do lado da lei.


A nossa geração passou, entre outras, pela Segunda Guerra Mundial, por aquela maldita Guerra do Ultramar, produziu alguns dos melhores inventores, tendo sido em parte, uma explosão de inovação, nasceram líderes, claro, com algumas excepções, que têm solucionado a maior parte dos problemas que vão afectando o mundo de hoje, num mundo onde cada vez existem mais facilidades para alguns, mas muito mais dificuldades de sobrevivência, pelo menos para nós, os tais que nascemos entre aquelas datas, alguns até antes ou depois e, tanto no fracasso como no sucesso, sempre assumimos a nossa responsabilidade, os nossos compromissos, a palavra dada, para nós conta e aprendemos a lidar com tudo isso, embora agora, como já mencionámos antes, com muito mais dificuldade.

Se tu, que me estás a ler, és um deles, PARABÉNS. Tenta sobreviver, companheiro de jornada.

Tony Borie, Abril de 2014
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14368: Libertando-me (Tony Borié) (8): Retire da Terra o que é necessário para viver e nada mais

Guiné 63/74 - P14396: Parabéns a você (877): José Lino Oliveira, ex-Fur Mil Amanuense do BCAÇ 4612/74 (Guiné, 1974)

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Nota do editor

Último poste da série de 17 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14375: Parabéns a você (876): José Armando F. Almeida, ex-Fur Mil TRMS do BART 2917 (Guiné, 1970/72)

sábado, 21 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14395: (In)citações (74): Fotos que por acaso não são da minha motorizada nem de uma outra portuguesa (Henrique Cerqueira)



1. Mensagem do nosso camarada Henrique Cerqueira (ex-Fur Mil da 3.ª CCAÇ/BCAÇ 4610/72, Biambe e Bissorã, 1972/74), com data de 17 de Março de 2015:

Caro camarada Luís Graça
Desta vês lanças o desafio das motos que tínhamos na Guiné e de preferência as Portuguesas.

Ora muito bem, aí vão umas fotos que por acaso não são da minha moto nem de uma Portuguesa.
O  meu Miguel era um exímio condutor. As fotos ilustram o seu percurso. Ou seja, ele começou aos dois anos (aconselhável a todos os próximos condutores) a aprender a conduzir.

Começou por aprender em carrinho de rolamentos, depois passou para veículos militares, mais propriamente os “Mercedes militares” e então, como era a sua maior aspiração, passou às motos de Muito Alta Cilindrada, tão alta que a sua moto, como está representada, dava para tirar o motor enquanto estava parada, não fosse outro qualquer motar qualquer se servir dela.




Desculpem lá mas sinto muito orgulho de ter um filho que aos dois anos já era um excelente praticante das grandes velocidades.

Agora a falar a sério. Eu achei por bem enviar este escrito só para brincar um pouco.
Em Bissorã havia um menino mimado, que creio que era sobrinho do Amílcar Cabral, que tinha uma moto, mas esse preferia as Japonesas (Honda) penso até que era moda lá dos meninos bem da Guiné da altura. Nada de ressentimentos, mas às veses custava um pouco ter de fazer colunas de proteção para esses meninos se deslocarem a Mansoa ou Bissau.

Já a moto do Miguel, que penso que era uma BSA ou Triunf, era altamente ecológica porque gastava zero aos cem (sem motor).
Convém não esquecer que o Miguel nas suas lides motorizadas era sempre supervisionado pelo fiel amigo Inhatna Biofa. Nunca correu perigo de transgressão.

Malta um abraço e desculpem lá qualquer coisinha.
Henrique Cerqueira
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14136: (In)citações (73): Vive la Liberté! Vive la France" (Francisco Baptista, ex-alf mil, inf, CCAÇ 2616, Buba, 1970/71, e CART 2732, Mansabá, 1971/72)]

Guiné 63/74 - P14394: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (10) - Reportagens da Época (1967): Operação Cernelha

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 17 de Março de 2015:

Braga, 15/03/2015Prezado Luís Graça:
Envio mais alguns dados, de vivências da Guiné, após sobre os mesmos terem passado 47 anos.

Com um abraço amigo,
Domingos Gonçalves



MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1967)   
REPORTAGENS DA ÉPOCA

10 - Operação Cernelha

Binta, 17/03/1967

São 15 horas. O Sol queima. A estrada até Guidage vai desfazer-se em pó.
Sinto medo.
A operação é arriscada.
Mesmo assim vou.
Todos vamos.

Em mim o temor e a esperança quase se confundem. Mas vou. Melhor, vamos.

Pouco depois das quatro horas da tarde a coluna partiu rumo a Guidage. O destino final chama-se Sambuiá.
 
Às dezoito horas chegou-se ao destacamento de Guidage.

Às 24, iniciou-se a marcha para o objectivo, seguindo pela estrada que vai por Facã, rumo à base turra de Sambuiá.
 
É a operação “Cernelha” que está em marcha.

Isto, de facto, não passa de uma tourada. De uma tourada que se repete muitas vezes, mas onde não se percebe muito bem quem são os touros, e quem são os toureiros. É que, às vezes, fica-me a sensação de que desempenhamos aqui um duplo papel: conforme as circunstâncias, tanto toureamos, como até somos toureados.


Dia 18

Pelas três da madrugada, entre Facã e a estrada de Bigene, fizemos uma pequena paragem para descansar.

A essa hora a artilharia de Bigene começou de novo a bombardear a zona onde ao amanhecer deveríamos actuar.

Mete impressão, durante o silêncio da madrugada, só quebrado pela voz da fauna selvagem, o ruído causado pelo detonar das granadas, que deixa, por breves momentos, um silêncio soturno e breve instalar-se em todo este mundo naturalmente belo, e bom.

Até os habitantes da selva sofrem com a guerra, que não respeita os seus habitats naturais, e o sossego de que deveriam beneficiar.

Após o rebentamento de cada granada, que as peças de artilharia disparam, cai sobre a selva um silêncio soturno, enorme, como que de protesto contra esta agressão, de que a própria natureza é vítima.

Pelas três e meia prosseguimos a marcha. Pelas quatro, atravessámos a estrada de Bigene.
Pelas cinco horas passou-se a ocidente da antiga tabanca de Sambuiá. Às seis horas atacou-se o objectivo.

Posições relativas de Binta / Guidage / Sambuiá

O fogo foi intenso, e prolongado. Durante cerca de meia hora as nossas armas, e as deles, dispararam um pouco ao acaso, orientadas mais pelo ruído dos tiros do adversário, do que pela localização de um objectivo concreto. Foi uma tempestade de tiros de armas ligeiras, de granadas de morteiro, de bazookadas e roketadas.

E não se conseguiu entrar na base do inimigo. Os gajos têm, ao que parece, abrigos subterrâneos, o que lhes permite uma boa defesa. Para além disso, ninguém conhece muito bem a localização da base.
Por certo que o local onde nos barraram a passagem com fogo bem conduzido e certeiro, está ainda a uma considerável distância do local onde pretendíamos chegar.

Só uma coluna de blindados teria condições para avançar no terreno, e conseguir alguns resultados, sem ficar sujeita a sofrer muitas baixas humanas. Porém, aqui, os únicos blindados que temos são feitos de carne e osso. Um material tão precioso quanto vulnerável.

As nossas forças sofreram dois mortos, pertencentes à milícia de Binta, e vários feridos, um dos quais com bastante gravidade. Os feridos pertenciam aos “roncos” de Farim.

Durante a retirada, quando fazíamos com paus, e folhas de palmeira, macas para melhor transportar os feridos e os mortos, detectámos uma emboscada dos gajos. Conseguimos abrir fogo primeiro do que eles, e não tivemos qualquer azar.

Pouco depois das nove horas fomos sobrevoados por uma avioneta. Era o comandante que, como de costume nestas ocasiões, vinha dirigir lá de cima os acontecimentos. Pelas dez horas apareceram os bombardeiros, a escoltar os helicópteros que vinham evacuar os feridos e os mortos.

Chegaram depois de estarmos à volta de quatro horas à espera deles. Se por acaso tivéssemos necessitado de apoio aéreo para sair do local onde se iniciou o ataque, bem tramados estávamos. O apoio aéreo é eficaz e moralizador para as tropas terrestres. Porém, raras vezes aparece a tempo e horas, nos locais onde faz falta.

O regresso a Binta fez-se pela estrada que segue de Bigene para Farim. Atravessou-se, a pé, o rio Sambuiá, dado que a ponte que era de madeira foi queimada, já lá vai muito tempo.
Junto à ponte de Boborim estavam as viaturas à nossa espera.

Esta operação, em que participaram as companhias 1546, 1547, 1585 e os “Roncos” de Farim, apenas deu porrada para a nossa Companhia, e para os “Roncos” que seguiam integrados na nossa unidade.

Logo que cheguei a Binta, apesar de fatigado, ainda fui sobrevoar Sambuiá, de avioneta, em missão de reconhecimento.

Mais uma vez fui e regressei.

Enquanto isto acontecer, todos os sacrifícios, e todos os riscos, serão sempre pequenos.
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14361: Memórias da CCAÇ 1546 (1967) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (9): Golpe de mão à casa de mato de Mampatás

Guiné 63/74 - P14393: Blogpoesia (406): "Tranquilidade das águas" e "O rio da história", dois poemas para o Dia Mundial da Poesia (J.L. Mendes Gomes)

1. Em mensagem de 19 de Março de 2015, o nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66), enviou-nos dois poemas da sua autoria para publicação no Dia Mundial da Poesia que se comemora hoje.


Tranquilidade das águas…

Gosto de sair à rua
E sentir minha alma calma.
Sem uma névoa ou sombra negra.
Tudo certinho.
De nada dever.
Nem pró corpo,
Nem para o ser.
Sentir a paz
De quem não fez mal.
A ninguém ou a mim.
E o conforto
De quem ajudou.
Naquela hora exacta
Em que foi preciso.
Sei que não sou anjo.
E sou de barro.
Mas se sanar meus erros,
Reparando a dor,
E pedir desculpa,
Posso caminhar de pé
E cabeça erguida.
Viver tranquilo
Amando a vida.

Berlin, 17 de Novembro de 2014
22h30m

Joaquim Luís Mendes Gomes

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O rio da história…

A história é um rio.
Longo.
Ninguém conhece onde ela nasce,
Muito menos onde é a foz.
Tem cascatas. Cachoeiras.
Afluentes e confluentes.
Muitos meandros.
Ora largos.
Quase mares.
Ora estreitos.
Quase laços.
Não tem margens.
Nem tem leito.
Ela banha todo o mundo.
Povoados.
Espaços ermos.
Florestas.
Por desertos.
Sempre a descer.
Não volta atrás.
Inundações.
Convulsões.
Muitas vagas.
Muita tormenta.
Tem lezírias.
Planuras.
A perder de vista.
Muitas barragens.
Dinastias.
Histórias de sangue.
Muitas guerras.
Muitas derrotas.
Muita luz.
Muitas vitórias.
E qual o fim?
Só no fim,
Se irá saber…

O termómetro continua a descer…
Berlim, 18 de Novembro de 2014
7h49m
Joaquim Luís Mendes Gomes
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14392: Blogpoesia (405): Paranóia ou lamentos de veterano - Ah! se eu tivesse uma G3! (Juvenal Amado)

sexta-feira, 20 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14392: Blogpoesia (405): Paranóia ou lamentos de veterano - Ah! se eu tivesse uma G3! (Juvenal Amado)

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 14 de Março de 2015:

Carlos e Luís
Vivo num país que não me faz chorar, faz-me enraivecer.

Na verdade esta frase do Pacifico dos Reis(*) na mensagem do José Marcelino Martins encerra um grito surdo. 26% dos portugueses não mexeriam uma palha para defender o nosso país.
Situação que espelha o desgosto, a falta de perspectivas em nos vemos mergulhados e o mau trabalho que a nível de educação se tem feito quanto ao verdadeiro valor da Pátria .
Depois nos jornais lemos que os jovens têm que emigrar para terem futuro, que reformados estão a ser despejados das suas casas, que se comem não podem comprar os remédios, famílias carenciadas com com filhos deficientes que lhes são retirados os subsídios, porque um dos conjugues arranjou um emprego e pasme-se com o ordenado mínimo etc, etc., etc..
Depois temos classe politica em que deixamos de acreditar. Agora pergunto eu, valerá a pena lutar por este país?
Eu, acredito acabaríamos por voltar a lutar, porque o sentimento de nacionalidade, e a defesa do que é a terra dos nossos antepassados, nos levaria novamente a isso.

Juvenal Amado

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PARANÓIA OU LAMENTOS DE VETERANO

Ah! se eu tivesse uma G3!

Porque sou ignorado?
Mal tratado pelo o meu país
Dizem que sou parvo
E que sou maluco
Ninguém me leva a sério
Vozes de burro não chegam ao Céu

Eu lhes dava a maluqueira se tivesse uma G3!

Dizem que bebo demais
Que mal posso com as botas
Que falo sempre do mesmo
Que sabem da dor que tenho no peito?
Esta dor é como a injustiça, nunca passa
Eu é que sei onde o sapato me aperta

Mas eu lhes mostraria se tivesse uma G3!

Sem préstimo dizem
Que não mereço o chão que piso
A sombra que me protege
O pão que como
Que vontade tenho de partir
Não sabem o peso que carrego
Estou farto de palmilhar estrada
Também não sei para onde ir

Tenho as costas contra a parede
Não vejo horizontes
Ninguém ouve o meu lamento
Ninguém me leva a sério
Mas se eu tivesse uma G3 outro galo cantaria

Ah! mas se eu tivesse uma G3 iam ver
Se eu tivesse uma G3...

Juvenal Amado
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Notas do editor

(*) Vd. poste de 13 de março de 2015 > Guiné 63/74 – P14357: Divagações de reformado (Pacífico dos Reis) (7): Vivo num país que não me faz chorar, faz-me enraivecer

Último poste da série de 19 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14386: Blogpoesia (404): No dia do pai, um poema escolhido pelo camarada Armando Faria, "Ter um Pai", de Florbela Espanca (1894-1930)

Guiné 63/74 - P14391: Notas de leitura (694): Mapas da Guiné: existem muitos e estão mal estudados (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Março de 2015:

Queridos amigos,
Temos falado de tudo: das nossas fotografias, da nossa correspondência, das nossas lembranças, dos nossos vivos e dos nossos mortos.
Ao tempo em que combatemos até tínhamos cartas fiáveis, dos anos 1950, as povoações que não encontrávamos tinham-se volatizado entre 1963 e 1964, mas tinham existido.
Os mapas imperiais, com especial relevo a partir do século XIX, referiam as etnias predominantes e os mapas para uso escolar reproduziam-nas por vezes com omissões e besteiras de bradar aos céus. Tome-se como exemplo este mapa que, estou absolutamente convicto, encerado e com réguas, estava pendurado na parede da minha escola primária. E temos que questionar o silêncio dos estudiosos e dos curiosos, como é que engolimos todas estas disparidades e incongruências.
A quem aproveitam? Cabe-vos responder.

Um abraço do
Mário


O Mapa pode ser ampliando clicando em cima


Mapas da Guiné: existem muitos e estão mal estudados

Beja Santos

O nosso blogue tem várias riquezas, que vão desde os mapas, passam pelo acervo fotográfico e chegam aos testemunhos, únicos e irrepetíveis. Possuímos todas as cartas daquela Guiné onde combatemos, e a sua fiabilidade é indiscutível, vieram a seguir os soviéticos e o seu mapeamento tem erros de palmatória, hoje servem para pouca coisa. No que toca à história, temos um alfobre que vai desde a Sociedade de Geografia de Lisboa às inúmeras publicações que esta instituição alberga, bem como o Arquivo Histórico Ultramarino e centros de estudos africanos de algumas universidades. Posso testemunhar que quando andei à procura de cartas pouco ou nada conhecidas, encontrei na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa e pude usar no Roteiro que escrevi com Francisco Henriques da Silva a Carta da Guiné Portugueza de 1902 e a Carta Hydrographica da Guiné Portugueza de 1844. Para o meu livro em preparação sobre a história da Guiné, graças à amável deferência daqueles solícitos técnicos dessa biblioteca já tenho imagens que não foram divulgadas ao público.

Comprei há dias num leilão um mapa de Portugal Insular e Ultramarino, coordenado por J. R. Silva, creio que na escola primária que eu frequentei havia uma versão encerada, é seguramente um mapa ou do fim dos anos 1940 ou elaborado em plena década de 1950. Se formos ao Google é possível encontrar mapas muito semelhantes, por exemplo de 1934, vê-se à légua que se trata de versões escolares. O que para mim é um mistério é ausência de estudos de índole científica (antropologia, sociologia…) sobre o que esses mapas dizem, se eram conformes às realidades que diziam transmitir. Queria só recordar que em tempos fiz referência a uma brochura que era distribuída na Feira Popular de Lisboa, então em Palhavã, em 1945, em que o que ali se mostrava era pouco mais do que a Guiné dos presídios e praças, do século XIX. No Leste, nem uma só uma menção a populações fronteiriças, nem uma palavra sobre o Boé ou o Gabu. Geba tinha mais importância que Bafatá; escarrapacha-se o nome de Sambel Nhantá, no regulado do Cuor, nesse tempo já não existia; toda a região do Corubal era puramente omitida, como o Xime; a região Centro-Norte não mencionava Mansoa, Bula, Bissorã ou Mansabá quando, a este tempo, eram já vilas com algum desenvolvimento; não há uma referência à cidade de Bolama no arquipélago dos Bijagós; no Sul, falava-se de Bolola, certamente por influência do passado e não há uma só menção a Catió, Fulacunda, Bedanda ou Gadamael, que de facto existiam.

Vamos agora ao mapa da Guiné, coordenado por J. R. Silva, não tenho dúvidas que estava na minha sala de aula, era ali que se exaltava o Império. Pois faz uma grande diferença, e para muito melhor, do mapa da Feira Popular de 1945. Já existe o Gabu, já se fala de Nova Lamego, Buruntuma e Sonaco, bem como de Pirada e de Canquelifá (na versão de Cam Quelifá). Quem olha para o mapa vê um predomínio de Mandingas e com menos relevo aparecem Futa Fulas, ora na verdade as diferentes etnias Fulas tinham nestes anos de 1950 já uma expressão predominante. Há nomes de regulados totalmente anacrónicos. No que toca à região de Bafatá, há menção dos regulados de Joladú, Gussará, Xime, Bololi, Cossé, Corubal e junto ao Senegal Sam Corlá (noutra versão Sancorlá). Aqui predominam os Fulas Pretos e refere-se a presença de Futa Fulas, o que é inverosímil na medida em que os Mandingas e os Balantas tinham já grande expressão. No Sul, revela-se a presença dos Nalus, nessa altura já em grande apagamento. Na região de Cacheu destacam-se os Manjacos e depois os Brames, estes eram praticamente inexpressivos. Na fronteira Norte, na parte Oriental, são referidos os Felupes, Baiotes, os Banhuns e os Cassangas, não que não fosse verdade a sua presença neste território, mas o predomínio era Felupe e depois Balanta.

Isto para dizer o quê? Que não é possível estudar história e dar-lhe verossimilhança sem clarificar estes mapas entre o século XIX e o século XX. Não o fazendo, estamos a ficcionar um mosaico étnico, depois desproporcionado aos relatos dos governadores, aos testemunhos dos militares e às cartas que escrevemos para as nossas famílias, pelo menos.

Em resumo, apela-se aos estudiosos da Guiné-Bissau e de Portugal que olhem para estes mapas e cartas confrontando-os com o que se escreveu nos livros de história, pondo dentro do território os seus verdadeiros territórios. A despeito de impetuosas migrações que houve na Guiné, particularmente no século XIX, houve etnias que perderam relevo, caso dos Beafadas, dos Nalus, dos Brames e dos Cassangas, e o peso dos Balantas não surgiu da noite para o dia, decorre de uma evolução e de uma capilaridade na ocupação do território. O resto passa pela beleza de olhar para estes mapas e supor que estavam próximos da verdade… O que é pura fábula. Mas que eram bonitos, eram, esta Guiné era a exótica babel cantada por plumitivos dos anos 1930 e 1940. E era assim que se confundia a Guiné fabulosa e a sua terra ardente com a Guiné das suas verdadeiras gentes.
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14385: Notas de leitura (693): "Neste mar é sempre inverno", romance de Tibério Paradela (edição de autor, 2014) (Parte II): a pesca do bacalhau e o paralelismo com a tropa e a guerra... (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P14390: Agenda cultural (384): Apresentação do livro "Nós, Enfermeiras Paraquedistas", dia 26 de Março de 2015, pelas 18h00, no Auditório do Centro Cultural e de Congressos de Aveiro, Cais da Fonte Nova, Aveiro (Miguel Pessoa)

1. Mensagem do nosso camarada Miguel Pessoa (ex-Ten Pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74, hoje Coronel Pilav Ref), com data de 19 de Março de 2015:

Informámos aqui anteriormente que estão previstas para já duas apresentações deste livro editado pela "Fronteira do Caos Editores", a primeira em Aveiro, a segunda no Porto.

Da primeira apresentação deixamos-vos aqui o respectivo convite. A sessão decorrerá no auditório do Centro Cultural e de Congressos de Aveiro, pelas 18H00 do próximo dia 26 de Março. Uma oportunidade para o pessoal daquela região (e arredores...) estar presente.

Refira-se que esta sessão conta com a presença, para além de várias das co-autoras (enfermeiras paraquedistas), do Professor Adriano Moreira (autor do prefácio do livro) e do TCor. Aparício, que já tinha igualmente feito a apresentação da obra no Estado Maior da Força Aérea, no final de Novembro do ano passado.


Quanto à segunda apresentação, prevista para a Messe de Oficiais da Batalha, no Porto, aguardamos ainda a confirmação da data inicialmente programada, 9 de Abril. Aqui daremos informação logo que possível.
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14340: Agenda cultural (387): Conversas na Lua com... António Graça de Abreu, dia 13 de Março, às 19h00, na Livraria Lua de Marfim, Amadora

quinta-feira, 19 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14389: Pensamento do dia (24): No Dia do Pai... Mensagem ao meu pai, esse homem duro e autoritário que morreu aos 59 anos para grande pena minha (Francisco Baptista)

1. Em mensagem de hoje 19 de Março de 2015, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), fala-nos assim de seu pai:


O meu Pai

As mães são sempre tão sábias, tão carinhosas que desde meninos desarmam as nossas maldades e malandrices. De corpo e alma fomos moldados por elas, para elas não temos segredos. Sofrem muito quando nos desviamos dos bons caminhos que devíamos percorrer mas também sabem que os filhos, pela sua natureza, estão sempre sujeitos a esses desvios.

Os nossos pais com menor conhecimento da nosso intimo e das nossas inclinações, fazem um esforço maior para nos compreender e erram mais nas suas relações connosco. Fazem um grande esforço físico e mental para nos agradar, mas estão sempre em desvantagem em relação às mães que nos moldaram e se sabem moldar para nos aconchegar.

Com os pais há sempre mais choques sobretudo quando somos também homens em competição com eles e não gostamos muito de ser comandados de qualquer forma. Em relação ao meu pai, procuro ser comedido para não entrar em descrédito, tão criticado dentro de portas pelo seu autoritarismo e intolerância, pelos filhos mais velhos (homens) e tão respeitado em toda aldeia, em todo o concelho e fora dele, pela sua honra, pela sua palavra, pela sua verticalidade.

Produtor de cortiça, era por tradição familiar que tinha herdado do seu pai e do seu avô também negociante da mesma. As relações comerciais da minha família com os fabricantes de Lourosa remontam já há mais de um século. Na família conta-se a estória, que eu nunca lhe ouvi, pois ele nunca se vangloriava de nada, que em ano de pouca cortiça, ele conseguiu juntar uma boa rima dela.

Um dia passou por lá um grande fabricante, hoje um dos maiores ricos deste país e lhe disse para lhe pedir um preço, pois ele estava disposto a pagá-la bem. Ele terá respondido, que a ele não lha venderia por preço nenhum, já que ele tinha amigos em Lourosa que lhe compravam a cortiça em anos bons e em anos maus. Nunca enriqueceu, trabalhou muito e poupou muito, deu toda a educação escolar possível aos filhos.
Morreu cedo, aos 59 anos, para grande pena minha, nunca consegui fazer com ele as pazes que gostaria, depois de tantos choques e desavenças, motivados pelo seu autoritarismo e pelo meu orgulho.

Nunca esqueci, as primeiras lágrimas que lhe vi, quando me fui despedir dele, antes de partir para a Guiné.

Esta mensagem ao meu pai, esse homem duro e autoritário, foi o regedor de Brunhoso, mas que me comoveu tanto nessa partida, foi inspirada na mensagem do José Carlos Gabriel, ao pai dele, tão contida, tão profunda tão sentida, que me sensibilizou tanto.

Obrigado José Gabriel por me ajudares a fazer alguma justiça ao meu pai.

Um abraço
Francisco Baptista
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 Nota do editor

Último poste da série de 19 de Março de 2015 > Guiné 63/74 - P14387: Pensamento do dia (23): No dia do pai... "Meu pai, estejas onde estiveres, saberás que te amo muito e te perdoei o nos teres deixado tão prematuramente" (José Carlos Gabriel, ex-1º cabo cripto, 2ª CCaç / BCaç. 4513, Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74)

Guiné 63/74 - P14388: Carta aberta a... (12): ...aos meus netos, neste Dia do Pai (José Martins)

1. Mensagem do nosso camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), com uma carta aberta aos seus netos, neste dia do Pai:

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Nota do editor

Último poste da série de 12 de novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13879: Carta aberta a... (11): Jornalista Sousa Tavares, a propósito do seu artigo no jornal Expresso do dia 8 de Novembro passado (Manuel Luís Lomba)

Guiné 63/74 - P14387: Pensamento do dia (23): No dia do pai... "Meu pai, estejas onde estiveres, saberás que te amo muito e te perdoei o nos teres deixado tão prematuramente" (José Carlos Gabriel, ex-1º cabo cripto, 2ª CCaç / BCaç. 4513, Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74)

1. Mensagem de José Carlos Gabriel, com data de hoje:

 Amigos Luis Graça e Carlos Vinhal.

Sendo hoje o dia do pai não pude deixar de escrever algumas palavras relacionadas com esta data que marca um pouco a minha vida.

Se acharem interessante podem publicar.

Um abraço.

José Carlos Gabriel
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[Foto à esquerda: Guiné > Região de Tombali > Setor S2 (Aldeia Formosa) > Nhala > 2ª CCaç / BCaç. 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973-74) > Nhala, JUN73 > O 1º cabo cripto Gabriel no desempenho de funções, Foto (e legenda) : © José Carlos Gabriel (2011). Todos os direitos reservados]
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Carlos Gabriel, meu pai - Um anigo de pouco tempo


Pela primeira vez na vida vou falar sobre o meu pai. A razão é porque o perdi quando tinha apenas 9 anos e de uma maneira que considero inapropriada (mas que foi consciente da sua parte).

Mas quem sou eu para o julgar?

Dos poucos anos de vida juntos tenho mais boas recordações que o contrário. Não terá sido um pai perfeito pois para o ser não nos teria deixado sozinhos tão cedo (eu com 9 anos a minha irmã com 11 e a minha mãe com 32,  mãe que dedicou o resto da sua vida aos filhos e que ainda vive junto a nós).

Mas será que eu como pai também fui o pai perfeito? E será que ele existe?

Penso que não existe o pai perfeito por muito que nos esforcemos. Aos olhos dos nossos filhos existe sempre algo que eles acham que falhamos.

Tinha-lhe um respeito enorme e que me recorde só uma vez me deu uma palmada em cada mão e muito bem dadas.

Tinha-lhe feito um pedido ao qual não acedeu e eu feito esperto pedi á minha mãe que acabou por ceder sem saber do antecedente. O meu pai ao ver que passado umas horas eu já tinha o que queria simplesmente me perguntou se eu tinha tirado ou se tinha pedido e claro confirmei que tinha pedido á mãe tendo-me interrogado:

- EU NÃO TE TINHA DITO QUE NÃO?

Foi nessa altura que me abriu a porta da escada que dava acesso 
José Carlos Gabriel, hoje
á nossa casa e aí deu-me uma palmada em cada mão mandando-me de castigo para casa.

Não me recordo de outra situação deste género nestes curtos 9 anos de convivência.

Com a idade a avançar cada vez mais sinto a sua falta. Sinto tristeza por não ter dado oportunidade á vida para conhecer a neta e os 2 bisnetos.

Existem datas que me são muito difíceis de ultrapassar a sua ausência tais como: O seu aniversário o meu e o Natal.

Esteja onde estiver saberá que o amo muito e lhe perdoei o nos ter deixado tão prematuramente.

José Carlos Gabriel

PS - Carlos Gabriel a bold e sublinhado é intencional pois era o nome pelo qual o meu pai era conhecido.

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Nota do editor:

Último poste da série > 9 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14336: Pensamento do dia (22): Aprendi na guerra a pôr um pé à frente do outro e continuar a caminhada, mesmo quando tudo era difícil (José Belo)

Guiné 63/74 - P14386: Blogpoesia (404): No dia do pai, um poema escolhido pelo camarada Armando Faria, "Ter um Pai", de Florbela Espanca (1894-1930)

1. O camarada Armando Faria (ex-fur mil inf minas e armadilhas da CCAÇ 4740, Cufar, 1972/74) mandou-nos este poema de Florbela Espanca (1894-1930), para comemorar o dia do pai, uma tradição em Portugal que hoje ainda se mantém, e que está associado ao  calendário litúrgico da religião católica (dia 19 de março,  dia de São José, marido de Maria, mãe de Jesus Cristo).

Na mensagem que nos mandou traz uma dedicatória aos nossos pais (na maior dos casos, já falecidos) mas também aos pais que hoje somos (em muitos casos, duplamente pais e avós): "Com um beijo, um abraço ou uma simples oração"... 

É também, segundo o entendimento dos nossos editores,  uma homenagem a uma grande mulher portuguesa, e uma grande poetisa, nascida em Vila Viçosa, e que em  Matosinhos, aos 36 anos, pôs termo à vida... Uma morte de(a)nunciada!...E, claro, é ainda uma homenagem à nossa bela e amada língua: foi em português que aprendemos a dizer, pai e mãe...

Um pormenor histórico-biográfico siobre a grande Florbela Espanca:  foi registada, de acordo com o código civil da época, com a infamante designação de "filha ilegítima de pai incógnito"... Seu pai, João Maria Espanca só a haveria de perfilhar 18 anos depois da sua morte... Este facto pode ajudar-nos a entender melhor o poema
"Ter um Pai". [Ler aqui a sua biografia, no sítio "Vidas Lusófonas"].



Ter um Pai

Florbela Espanca (1894-1930)

Ter um Pai! É ter na vida 

Uma luz por entre escolhos; 
É ter dois olhos no mundo 
Que vêem pelos nossos olhos! 

Ter um Pai! Um coração 
Que apenas amor encerra, 
É ver Deus, no mundo vil, 
É ter os céus cá na terra! 

Ter um Pai! Nunca se perde 
Aquela santa afeição, 
Sempre a mesma, quer o filho 
Seja um santo ou um ladrão; 

Talvez maior, sendo infame 
O filho que é desprezado 
Pelo mundo; pois um Pai 
Perdoa ao mais desgraçado! 

Ter um Pai! Um santo orgulho 
Pró coração que lhe quer 
Um orgulho que não cabe 
Num coração de mulher! 

Embora ele seja imenso 
Vogando pelo ideal, 
O coração que me deste 
Ó Pai bondoso é leal! 

Ter um Pai! Doce poema 
Dum sonho bendito e santo 
Nestas letras pequeninas, 
Astros dum céu todo encanto! 

Ter um Pai! Os órfãozinhos 
Não conhecem este amor! 
Por mo fazer conhecer, 
Bendito seja o Senhor!

Florbela Espanca 

In: Obras Completas de Florbela Espanca, vol. II, Poesia (1918-1930), prefácio de José Carlos Seabra Pereira, 4.ª ed., Lisboa, Dom Quixote, 1992.
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Nota do editor:

Último poste da série > 10 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14344: Blogpoesia (403): o meu mar da Ericeira (J. L. Mendes Gomes)


quarta-feira, 18 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14385: Notas de leitura (693): "Neste mar é sempre inverno", romance de Tibério Paradela (edição de autor, 2014) (Parte II): a pesca do bacalhau e o paralelismo com a tropa e a guerra... (Luís Graça)




Elementos icónicos da primeira página, na Net, da Fundação Gil Eanes, com sede em Viana do Castelo...  (Reproduzidos com a devida vénia)...

No romance "Neste mar é sempre inverno", o navio hospital que apoiava a frota bacalhoeira chama-se "Angelisse" (pp. 155 e ss). Nome fictício, claro, para designar o Gil Eanes... (que representava para a tripulação dos navios da "frota branca", o que de certo modo representava, para nós, na Guiné, o Hospital Militar de Bissu)... 

Hoje o Gil Eanes é um navio-museu que merece a nossa visita...


[À esquerda: Imagem da capa do livro de Tibério Paradela, "Neste mar é sempre inverno" > Ficha técnica: ed. autor, agosto de 2014, Aveiro. Depósito legal: 379001/14. Tiragem: 500 ex. 262 pp. Capa de José A. Paradela. O livro pode ser pedido através do mail: paradela.tiberio@gmail.com ]


Mais algumas notas da minha leitura do livro do TibérioParadela (*):


Já desde 1927, do tempo da  Ditadura Militar, havia legislação que veio  promulgar medidas de incentivo ao desenvolvimento da pesca do bacalhau, e nomeadamente facilitar (e tornafr mais atrativo) o recrutamento do pessoal (vd. Diário do Governo, 1.ª série, Decreto n.º 13441, de 8 de Abril de 1927). 

Uma dessas medidas era a dispensa do serviço militar aos pescadores e marinheiros que tivessem cumprido um mínimo de seis campanhas de pesca consecutivas na frota nacional bacalhoeira. 

Noutros casos, os mancebos apurados para o serviço militar podiam beneficiar de adiamento até aos 26 anos. Além disso, a falta à junta de recrutamento podia ser relevada desde que os faltosos fizessem prova de que estavam embarcados... Em suma, a pesca do bacalhau na Terra Nova e na Groenlãndia era um desígnio nacional...

Pode todavia perguntar-se se havia algum paralelismno entre a vida a bordo e a tropa (e a guerra colonial) ? Nas notas que tomei, assinalei algumas notórias semelhanças, físicas, simbólicas e culturais:

(i)  Os pescadores, em geral recrutados pelo capitão do navio (ou por recrutadores a seu cargo, e por conta do armador), eram divididos em duas categorias em função da antiguidade (que, tal como na tropa, era um "posto" ou dava "estatuto"): os maduros (com uma ou mais campanha na pesca do bacalhau, em geral de seis meses); e os verdes, diríamos nós os "periquitos"... Competia aos maduros praxar os verdes, mas ao mesmo tempo apadrinhá-los, enquadrá-los, apoiá-los...

"O primeiro bote [dóri] a ser alcançado foi o número 8, o Fangueiro. (...) Sendo a primeira vez que arriava no bote, talvez de algum medo lhe estivesse a pulsar o coração. Quando o Nova Esperança passou à sua ilharga, o verde Fangueiro parou de alar, endireitou-se e rodou, todo ele, na contemplação da sua grande casa ali que, como se o ignorasse, se afastava sorrateiramente" (p. 87).

Mas não ficavam isolados os "verdes".. Por perto havia sempre um "maduro" que enquadrava,  supervisionava e, de algum modo, protegia:

 (...) "Não muito longe dali, o ti Armando Poveiro, o seu maduro, tinha-o debaixo de olho como as feras têm as suas crias. Não só para [o] proteger,mas também para o ensinar... e incitar" (p. 87)

(ii) As alcunhas, tal como na vida militar... Todos ou quase todos têm alcunhas,  em geral ligadas à sua proveniência geográfica ou terra natal, ou a alguma particularidade biográfica;

"Cá em cima, o Nazareno, o Farol [ilhavense,] , o Mira, o Poveiro, o Penicheiro, o Esquimó e também o Francisco, aliás, o Serrano" (p. 74)...

"O Francisco já se tinha apercebido de que as alcunhas tinham uma relação directa, nuns casos, com as terras de origem, noutros com o aspecto físico. O Nazareno, o Mira, o Penicheiro, o Poveiro, o Esquimó, o Chino. Outro tomara a alcunha da mãe, era o Gila. O Francisco estava agradado com o seu crisma. Ser da serra parecia que agora lhe dava um orgulho que nunca tinha sentido por não ser motivo para isso nascer-se no meio de cabras e de cumes" (p. 53).

(iii) O navio era a "grande casa", a caserna, o quartel, onde também havia segregação socioespacial... Por exemplo, não era habitual, os oficiais (capitão e imediato) entrarem, a não ser em situações excecionais, na área reservada ao pessoal (pescadores e moços de convés)... 

No bacalhoeiro "Nova Esperança", esse espaço, de "entrada reservada", chama-se rancho (que, segundo o gossário publicado no fim do livro, é o "espaço interior debaixo do castelo da proa", integrando a cozinha, refeitório e dormitório, p. 262).

Um dia, em que os homens andavam na faina na pesca (cada um com o seu dóri, e os devidos apetrechos), o velho Imediato lembrou-se de ir cozinha e pediu ao cozinheiro um café para ser servido no rancho, que o autor descreve sugestivamente nestes termos:

"Quando entrou no rancho o velho Oficial sentiu-se envolvido por um bafo agradavelmente morno mas acre de vinho e  cachaça. Noutro espectro odoroso, o fumo do cigarro feito na hora, o chulé e os restos de hálitos  não tratados. Tudo isto flutuva no ar havia uma hora, desde que os pescadores tinham partido para a faina" (p. 70)...

E onde não faltavam os calendários eróticos, com lindas raparigas com o corpinho à vela, tal como nas nossas casernas na Guiné, calendários que no caso de um navio balançam de maneira ritmada, "numa dança lasciva, sensual, convite à volúpia estonteante,  interminável" (p. 72)...

Perante o raparo do cozinheiro ("Não sei se eles [,os pescadores,]  iam gostar"), o velho Imediato comentou:

"Eu sei que os soldados não gostam que o Oficial de Dia lhes entre na caserna. Normalmente fazem-no mira de que haja algum desalinho para depois desferirem o castigo. Eu não vim aqui para isso, cozinheiro. Vim, simplesmente para tomar um café ao pé de si. Tenho uma enorme admiração pelos pescadores, mas não tenho menos por si, cozinheiro (...) Você sabe que a comida é motivo de muitas discórdias e guerras (...) (p. 71).

(iv) O mar é o mato... E só ao fim de quarenta dias depois de partirem de Lisboa, é que os homens do "Nova Esperança" , agora a caminho da Groenlêndia, voltam a pisar terra, neste caso o mítico porto de St. John's... 

"Bastaram quatro [dias] no porto de St. John's para lhes retemperar os corpos e tonificar os espíritos, porque pisaram terra firme, encontraram amigos de outros barcos, deambularam pelas ruas da cidade, farejaram o odor dos perfumes das mulheres nas lojas e centros comerciais desafiando as suas sexualidadesd reprimidas" (p. 106)...

(v) Mas o mar (e a pesca à linha do bacalhau) também é a solidão e a violência (dos conflitos, da fúria do mar, da dureza da vida a bordo, do risco de acidente e de naufrágio)... Haveremos de falar disso noutro poste, com mais tempo e vagar...

"Um homem sozinho, assim, num bote, no meio do mar, sente a paixão da liberdade e, ao mesmo tempo, o peso do abandono. É o que eu sinto. Mas o pensamento ninguém mo tira! A minha pobre Rita!"... [Fala do Tio Quico, o mais velho, que tem um filho em França, na emigração, e outro, o mais novo, apanhado na fronteira, recambiado para a tropa e agora nas Áfricas...] (p. 42).

(vi) Refira-se também a importância do correio...

"Agora têm pela frente cinco dias sem faina de pesca [a caminho da Groenlândia]. Só navegar. (....) E nas horas de descanso, sentados nas locas ou deitados nos beliches, a relerem as cartas que tinham recebido das famílias e amigos em St. John's" (p. 106).

(Continua) (**)

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Notas do editor:


Guiné 63/74 - P14384: Os nossos seres, saberes e lazeres (78): Relato de visita a Angra do Heroísmo (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Março de 2015:

Queridos amigos,
Tinha saudades de Angra do Heroísmo, foram sempre estadias meteóricas, sempre um pouco da cidade, sem lhe tomar o peso, sem lhe medir esta dimensão de cidade da Renascença, de encruzilhada das Índias, ponto focal da resistência aos Filipes que, à cautela, aqui mandaram construir uma das maiores fortalezas atlânticas.
Tive sorte com o tempo, foram os dias de Março com aguaceiros espúrios e com a humidade do costume.
Um dia completamente dedicado a Angra, a seguir um passeio costeiro pela Ribeirinha, Feteira, Porto Judeu, Fonte do Bastardo até Praia da Vitória, havia que respirar aqueles ares da juventude de Vitorino Nemésio. E o mais que vos contarei, impante de alegria.

Um abraço do
Mário


A mui leal, nobre e valente Angra do Heroísmo

Beja Santos

Há bem 15 anos que não visitava este rincão que a UNESCO consagrou como património mundial da humanidade e com justeza: encruzilhada das Índias Ocidentais e Orientais que aqui faziam aguada, se abasteciam de mantimentos vários, largavam doentes, aqui morreu Paulo da Gama, no regresso da viagem de 1498, aqui se fundou a primeira cidade moderna do Atlântico, nada das ruas enviesadas dos tempos medievos, são ruas desafogadas, parecem correr em direção à angra dos galeões que traziam a prata de Potosi; aquela Angra da mocidade de Garrett, para onde confluíram os liberais; e daqui partiram para o Mindelo, mais adiante, em Praia da Vitória foi desbaratada a armada miguelista, primeiro ponto para a derrocada no absolutismo. Mas há mais, como é evidente, por exemplo o Monte Brasil, sobranceiro à cidade marcada pela Renascença.


Começo o passeio pela Sé Catedral, profundamente afetada pelo sismo de 1980, e a seguir pelo incêndio de 1983. É também conhecida por Igreja do Santíssimo Salvador da Sé. É de grande imponência, mantém o seu estilo renascentista e vestígios do que escapou ao incêndio. Vale a pena ver a estante de leitura em estilo indo-português, em jacarandá do Brasil com marfim de baleia.


O fotógrafo é amador e canhestro, regula as entradas de luz por puro instinto, e por isso esbanja oportunidades na captação de imagens que contribuiriam para ver a riqueza deste tempo. Fica um detalhe, dá para perceber o tempo antigo e os fulgores de uma riqueza que já houve.


Este Santo António escapou ao incêndio, depois de algumas visitas a igrejas deu para perceber que os terceirenses têm por ele uma indesmentível devoção. Pena é a falta de nitidez da imagem, mas o fotógrafo amador comprazeu-se como o antigo sobressai das paredes restauradas, de uma alvura impressionante.


Do adro da Sé contempla-se esta fachada da Confederação Operária Terceirense, ali se inscreveu: Operários uni-vos! O socialista Antero de Quental, que se correspondeu com Marx, micaelense, seguramente se regozijaria.


Dá gosto ver o aprumo destas fachadas, as suas varandas em ferro, as cores garridas, o desvelo da manutenção, as bonitas calçadas. O visitante tem um prospeto na mão onde lê, a propósito do que tem em frente: “As primeiras casas surgiram nas colinas, em ruas íngremes e tortuosas, tendo no topo do Outeiro longe do mar, um castelo de defesa. Era a forma medieval de viver. Álvaro Martins Homem manda, em 1474, desviar e canalizar a ribeira que corria para a angra. Criada, assim, o indispensável sistema industrial da futura cidade, baseado na força hidráulica. Libertava o vale espaçoso para, de acordo com as normas do urbanismo do renascimento, os arruamentos obedecerem a uma malha reticulada e se organizarem por funções, de acordo com as necessidades do porto, cada vez mais frequentado por navios vindos dos quatro pontos cardeais”. Foi assim a fundação desta Angra, que uma Rainha apôs Heroísmo, em lembrança da muita lealdade às causas pátrias, Angra foi capital de D. António Prior do Crato e alavanca do liberalismo.


A fachada da Igreja da Misericórdia, debruçada sobre Angra, saiu tortinha mas dá para ver duas coisas: a belíssima calçada e o templo do século XVIII, neste local houve o primeiro hospital dos Açores, obra da Confraria do Espírito Santo e um dos seus fundadores chamou-se João Vaz Corte-Real, descobridor da Terra Nova.


Esta imagem é para puro desfrute dos sportinguistas, aqui têm a delegação fraterna. Umas ruas abaixo este fotógrafo apanhou a delegação do Benfica, não menos graciosa. Mas que não se tome esta estampa como um convite a rivalidades clubistas. O que se lê naquela lápide ao nível do primeiro andar é que ali viveu D. Violante do Canto, acérrima defensora da causa de D. António Prior do Crato, chegaram os espanhóis e a senhora não cedeu, e foi então obrigada a ir para Espanha. Que dos bons portugueses reze o nome.


Houve primeira visita ao Palácio dos Capitães Generais, primeiro foi colégio de Jesuítas, desde 1595, sabe-se como foram detestados pelo Marquês de Pombal que aproveitou a reforma dos capitães donatários e criou a titularidade de capitães generais, o primeiro foi D. Antão de Almada, que tem direito a retrato a óleo. Diga-se de passagem que foi uma visita ímpar conduzida por uma jovem cuidadosíssima, finda a visita conduziu-nos à Igreja do Colégio, também muito bela, mas foi num canto da sacristia que se encontrou esta preciosidade, minhas senhoras e meus senhores é tudo azulejaria de Delft, vale a pena descer ao pormenor.


Pede-se desculpa por algum sombreado, se é verdade que somos a potência mundial em azulejaria não se pode desmerecer da genialidade alheia, e aqui dá para perceber que os azulejos de Delft marcaram a história das artes decorativas, pela sua originalidade e cromatismos.


No jardim da cidade há esta memória de Garrett, ele aqui estudou na sua juventude e Angra não o esqueceu. O visitante fez uma pausa, é quase um septuagenário, já deambulou pela Praça Velha, olhou cá debaixo o Outeiro da Memória, calcorreou por estas ruas assombrosas, com nomes como Pisão, Garoupinha e Santo Espírito, falta-lhe energia para ir ao Convento de S. Gonçalo, um dos maiores dos Açores com rico revestimento em talha e tetos pintados, já se degustou no Palácio dos Capitães Generais, amanhã está previsto um passeio por metade da ilha, haverá tempo para pôr os pés no Monte Brasil e ver Angra do cimo, espraiando-se até S. Mateus e o seu belo porto. São mais dois pormenores de flores e plantas.


Sempre ouvi dizer que todas as árvores se dão bem nos Açores, basta recordar o delírio floral criado por José do Canto tanto no Parque Terra Nostra, junto às Furnas, em S. Miguel, como o jardim que tem o seu nome, em Ponta Delgada. A investigadora Filomena Mónica dedicou-lhe um livro espirituoso, foi um contemporâneo à frente do seu tempo. Mas este jardim tem aquelas pequenas jóias com que a natureza nos brindou. Estamos em Março e parece que a Primavera vai despontar, até os catos florescem, parece um cacho luxuriante, um quase centro de mesa, apoteótico.


E esta palmeira chinesa, não é uma delicadeza para os olhos, parece uma palmeira anã, de palmas irradiantes e um deslumbrante centro de mesa, também. A visita está feita, já se ganhou energia para o resto da deambulação, o tempo é açoriano, há assim umas abertas para o sol, abertas fugazes, a cobertura de chumbo é maioritária. Vamos praticar o pluralismo, mostrar o Benfica em construção angrense típica, em espaço da UNESCO, pois claro.


Só mais tarde, no enfiamento das fotos, é que se descobre, e com que pesar, que aquelas imagens do Teatro Angrense foram parar ao éter. E com que satisfação se procurou captá-las, andou-se lá dentro sempre a pensar naqueles teatros italianos de província, de uma riqueza contida, interiores bem decorados e com excelente acústica. Paciência, fica aqui o Benfica, em toda a sua vibração, em tons de rosa velho, há que pensar na maresia forte e constante que enferruja, dessora, calcina, enche de verdete e ferrugem. O Eusébio estaria aqui a meu lado feliz da vida, não tenho dúvidas. Amanhã há mais para ver e contar, ficam aqui pálidas referências à mais linda cidade dos Açores. Entrou-se no lusco-fusco, vejo nuns televisores imagens grotescas de mirones bem marrados nas touradas à corda, ando com os olhos no chão, há sempre novidades nesta calçada portuguesa, e enfio para o porto dos pescadores, para saborear os ruídos oceânicos, dei contas à vida, conheci esta cidade antes do sismo, é sumamente bom ver as diferenças para melhor, este património tão cuidado onde estão esmaltadas algumas das mais poderosas histórias da História de Portugal. Viva Angra e o seu heroísmo!
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14319: Os nossos seres, saberes e lazeres (77): A arquitetura de Haia em visita de médico (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P14383: (Ex)citações (267): Será que nós estamos escrevendo milhares de postes à procura da juventudo "perdida" na guerra? (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71) com data de 12 de Março de 2015:

Olá Carlos,
Peço-te que coloques esta minha interpretação sobre a questão proveniente do outro lado do Atlântico.
O Vasco(*) é muito pertinente na abordagem do tema e, seguramente, valerá a pena conhecer as opiniões dos camaradas.
Também tenho costela de bairradino, pelo lado paterno, por isso evito falar de caçoilas, mas desejo-lhe muitas alegrias.

Com um abraço
JD

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O Vasco lança o repto para respondermos aqui no Blogue, se andamos à procura da juventude "perdida" durante a guerra, e eleva o nível da introspecção pelo cotejo da procura do tempo perdido, de Proust. Também dá tópicos para reflexão, como termos nascido numa "ilha", considerando a localização (influência mediterrânica), e o tempo do pós-guerra, de que o nosso "jardim" ficou imune às devastações ocorridas no resto da Europa.

A propósito da guerra-fria recorda uma linha de orientação adoptada por Salazar, que lançou a ideia neutral do Minho a Timor. Foi uma espécie de realidade da época, pois a neutralidade revelou-se comprometida com os dois lados da contenda, o que ia custando a invasão dos Açores. Também poucos saberão, que depois do 25 de Abril os timorenses, que viviam pacificamente sob a bandeira das quinas, quiseram continuar portugueses, e só uma campanha de dinamização entusiástica os levou à guerra forçada, para escolha do modelo político que a independência exigia.

Sobre a máquina de propaganda de Salazar, provavelmente, não foi tão eficiente para a juventude mais esclarecida que frequentava os meios académicos, quanto tem sido as lavagens aos cérebros desde a revolução, assente nos pressupostos dos 3 dês - descolonização, democratização e desenvolvimento. O primeiro pressuposto foi rápida e miseravelmente realizado, recheado de traições, crimes, e outras ignomínias; o segundo, corresponde a uma quimera, um mito bestial, e a população, nem de perto nem de longe, aceita a acusação de ter vivido acima das possibilidades, nem tem responsabilidades sobre a situação económico-financeira, nem foi consultada e confrontada com a adesão à CE (ex-CEE), nem passou mandatos para a venda de infra-estruturas públicas e estratégicas, pelo que as coisas têm acontecido marginais à democracia, mas em obediência a uma descontrolada "democracia-representativa" que aproveita a espertalhões; e sobre o terceiro pressuposto, como decorre do anterior, tudo tem acontecido sem rei nem ropue, à mercê do investimento estrangeiro (agora a China é que está a dar), ou do crédito internacional, que os sucessivos governos têm desbaratado com vaidade e seleccionada galhardia.

Ah! A nossa juventude?

Durante os 3 anos de tropa que nos eram impostos, dávamos largas à nossa alegria e energia, sempre que as oportunidades o permitiam. Construímos novas amizades e praticamos a solidariedade, de que os encontros de confraternização são bons exemplos, e acabado o serviço militar, entrámos no mercado de trabalho conforme competências, apetências e oportunidades de cada um, e constituímos famílias. Não me refiro aqui aos que tiveram a infelicidade de transportarem sequelas da guerra, que são casos muito especiais que a sociedade, ignorando a solidariedade democrática, parece ignorar.

A guerra parecia perdida "ab initio", mas a generosidade dos jovens portugueses veio a impor-se à admiração do mundo (mau grado algumas artimanhas que contrariaram a dignidade da condição militar pelo aproveitamento pessoal de oportunidades ilegítimas e ilegais. Não se queria saber, ao mesmo tempo, que as maiores colónias mostravam um processo de desenvolvimento económico-social com taxas de crescimento entre os 6 e os 15%, enquanto a metrópole registava médias de 3 a 4%. Outro factor a considerar, é que aquelas colónias registaram o crescimento da população branca para o dobro, pois passaram a catalizar o interesse de uma parte dos ex-combatentes, que ali procuraram futuro, e não usavam chicote, G-3, ou Bazuka. O ambiente era pluri-racial e cada vez mais havia nativos a ombrear com metropolitanos nas diferentes actividades laborais e culturais - mas neste âmbito que consideramos, as coisas não acontecem com a facilidade e velocidade do interruptor.

Meu caro Vasco, as minhas memórias (depois da Guiné fui trabalhar em Angola) incidem na experiência pessoal, na alegria e na realização no trabalho, na segurança e harmonia familiar, mas também na observação atenta (li vários relatórios do Banco de Angola), enquanto cotejava com a propaganda local, nacional, e nacionalista (lia o Comércio do Funchal, esquerdista, e o Expresso desde o n.º 1, para além de alguns ensaios escritos que encontrava), as primeiras eram dinâmicas, a última era muito pobre de ideias e soluções dogmáticas. Também integrei uma reduzida mas interessante tertúlia com interesses no bem comum. E sonhávamos. Deve haver, porém, gente com opinião diferente, sobretudo se vinculada a dogmas ideológicos.

Finalmente, é minha convicção, que aquelas sociedades pujantes caminhavam inexoravelmente para a auto-determinação, talvez com independência soberana.

Abraços fraternos
JD
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Notas do editor

(*) Vd. poste de 12 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14351: Blogoterapia (266): O Senhor M. Proust escreveu milhares de páginas "À la recherche du temps perdu"... Será que nós estamos escrevendo milhares de postes, à procura da juventude "perdida" na guerra? (Vasco Pires, ex-alf mil art. cmdt do 23º Pel Art. Gadamael, 1970/72)

Último poste da série de 17 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14379: (Ex)citações (266): Considero, e para ser objectivo, que todos se estão borrifando para a Guiné-Bissau (Mário Vitorino Gaspar)

Guiné 63/74 - P14382: Convívios (658): Almoço do pessoal da CCAÇ 2464/BCAÇ 2861, dia 18 de Abril de 2015 em Vila Real (António Nobre)

1. Mensagem do nosso camarada António Nobre (ex-Fur Mil da CCAÇ 2464/BCAÇ 2861, Buba, Nhala e Binar, 1969/70), com data de 14 de Março de 201e:

Olá Carlos
Junto envio anuncio da realização de mais um encontro/convivio da rapaziada da CCaç 2464 que no periodo de Fevereiro de 69 a Dezembro de 1970 cumpriu serviço militar obrigatorio da Ex-Guiné Portiguesa.
Solicito pois faças a sua inserção no nosso Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné.
 Um abraço
Antonio Nobre



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Nota do editor

Último poste da série de 14 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14363: Convívios (657): XXXII Encontro do pessoal da CCAÇ 2317, dia 30 de Maio de 2015, no Restaurante Choupal dos Melros - Quinta dos Choupos - Fânzeres - Gondomar (Joaquim Gomes Soares)